A Casa Dos Cataventos
A Casa Dos Cataventos
A Casa Dos Cataventos
Cata-Ventos hoje?
257 - julho de 2016
Sumrio
Editorial
Editorial
Temtica
A Casa dos Cata-Ventos: histria e fissuras na prxis burguesa da psicanlise - Ana Maria
Gageiro e Sandra D. Torossian
A margem da transferncia - Anderson Beltrame e Eda Tavares
De um lado do mundo ao outro: a delicada construo de um lugar para existir - Francielle
Limberger Lenz e Carla Cervera Sei
Capoeira nos cataventos - ngela Lngaro Becker
Casa dos Cata-Ventos: um espao-tempo de encontro - Helena Pillar Kessler e Luciane
Susin
Limites e transgresses: uma breve reflexo sobre o estabelecimento de regras num espao
de palavras e brincadeiras no Rio de Janeiro - Julia Milman Lvia Franco Cavalcanti
O saber no saber na Casa dos Cata-Ventos: entre percursos criativos e formativos - Laura
A. F. Wottrich e Marina Gregianin Rocha
A clnica no territrio conflagrado: a casa dos cataventos - Jorge Broide
A pedido de Vossa Majestade - Bruna de Souza Fiorentin
Casa dos cata-ventos: um lugar onde se l e escreve todos os dias - Vera Moura
Quando se tem o diabo no corpo - Renata Maria Conte de Almeida
Casa dos Cata-ventos, jogar palavras ao vento? - Eduardo Kives e Carla Cervera Sei
Vem c, vem escutar...: a contao de histrias na Casa dos Cata-Ventos - Aline Sardin
Padilla de Oliveira, Marina da Rocha Rodrigues, Marina Gregianin Rocha, Rebeca Diniz
Sandes
Editorial
Editorial
Neste ms de Julho, comemora-se um aniversrio importante: a Casa dos Cata-ventos
celebra cinco anos de vida sim, pois apesar de ser uma casa, feita de vida. Fruto de uma
parceria entre o Instituto APPOA e a UFRGS, a casa nasceu inspirada nas experincias da
Maison Verte e na Casa da rvore do Rio de Janeiro, mas logo ganhou seus contornos
singulares, definidos por seus habitantes e pelo territrio onde foi criada.
Escrever, contando sobre diversos aspectos dessa experincia que j sabe andar e falar, foi
uma das formas que a equipe da Casa dos Cata-ventos escolheu para essa comemorao.
Com alegria, o Correio da APPOA acolheu o pedido de receber e soprar pelos ventos as
palavras de seus moradores, para que possam chegar a leitores de outras vilas e povoados
mundo afora.
So histrias e reflexes que nos mostram o mergulho feito na Vila So Pedro na aposta
de construir pontes com um outro to prximo e to distante. O trabalho brincante-andantecontente-cantante, que se d em meio a restos, lixos e violncias, sustentado pela
transferncia. No ptio, onde os brincantes no podem ultrapassar o tamanho de uma cabo
de vassoura, onde os habitantes se renem para contar histrias que ajudem a suportar e
elaborar a dor. Este tem sido o trabalho de uma clnica psicanaltica em situao social
crtica, composta por uma equipe oleira numa posio de aprendiz, que busca sempre
abrir espao para o surgimento do sujeito.
Aos que ainda no conhecem a Casa, fica o convite para a visita, atravs desses escritos.
Aos que j a conhecem, mais de perto ou mais de longe, o convite vale da mesma forma:
como em uma contao, a histria que se conta e se escuta nunca a mesma.
Boa leitura!
Temtica
A Casa dos Cata-Ventos: histria e fissuras na prxis burguesa da
psicanlise
Ana Maria Gageiro e Sandra D. Torossian
A Psicanlise vive, desde seu inicio, numa oscilao, traduzida por vezes, em conflito, entre
um modo burgus de operar- e por isso ela recebe ainda hoje inmeras crticas- e a
possibilidade de ser um dispositivo ao alcance de todos. Essa oscilao pode ser rastreada
pelo menos em trs tempos: o tempo freudiano, as crticas marxistas e o dilogo entre Lacan
e os filsofos contemporneos.
A criao do dispositivo psicanaltico de escutar e compreender o humano inicia no
pensamento de Freud, um mdico vienense de vida burguesa, quem aposta, no entanto, que
algum dia a psicanlise possa estar ao alcance de todos.
No auge do marxismo a Psicanlise criticada, pela sua origem burguesa e por ser vista
como uma psicologia que enfatiza o indivduo. Coube, dentre outros, a Althusser, resgatar
para o marxismo, o valor da psicanlise ao retomar a diferenciao entre o conceito de
indivduo e o de sujeito, compreendendo que o sujeito no alheio aos aparelhos do
Estado.
A posio estruturalista de Lacan, face aos eventos acontecidos em maio de 68 na Frana,
foi alvo de algumas crticas. Essas crticas foram baseadas numa particular leitura do texto
lacaniano no qual a estrutura se oporia histria e poltica. Contra argumentando essa
posio, Zizek, um dos filsofos contemporneos que resgata da posio poltica de Lacan
como crtica ao capitalismo.
Essa movimentao oscilante entre o que aqui chamamos prxis burguesa da Psicanlise e
sua crtica acompanha a produo psicanaltica desde seus primrdios. A prpria
Psicanlise nos ensina que onde h fumaa h fogo e, por isso, pensamos ser necessrio
incorporar as crticas seguindo as pistas dessa oscilao.
Uma oscilao que s vezes apresenta o dispositivo do div como a verdadeira psicanlise
e a escuta que se produz em outros contextos e dispositivos como uma psicanlise menor.
Em outra linguagem, o que tem se chamado de psicanlise em intenso tida como
depositria da riqueza psicanaltica e a psicanlise em extenso como um efeito secundrio
da descoberta desse ouro. Sustentamos que a manuteno dessa diviso herdeira da
oscilao antes mencionada a qual produz inibio na produo psicanaltica. Por isso,
tomando como campo de experincia o trabalho desenvolvido em dispositivos no atrelados
ao div, propomos ser chegada a hora de encontrar o ponto de virada no qual intenso e
extenso sejam nomeadas como psicanlise, sem outros complementos.
O dispositivo que aqui apresentamos insere-se nessa proposta. A de interrogar a
necessidade dos complementos psicanalticos bem como de colocar a prova a ferramenta
da escuta em cenrios de violncia e desigualdade social.
A margem da transferncia
Anderson Beltrame e Eda Tavares
A Casa dos Cata-Ventos atua numa vila de extrema vulnerabilidade social: uma populao
que vive em situao econmica de misria, sem acesso a direitos sociais bsicos, servios
pblicos e recursos comunitrios. Desde nossas primeiras incurses ficamos impactados
com a precariedade, o uso e o trfico de drogas, o fedor de merda. Alguns moradores
sobrevivem como catadores de lixo, extraindo alguma dignidade do que a sociedade
refugou. Ao mesmo tempo, os profissionais e estudantes que ali atuam gozam de
reconhecimento, na medida em que pertencem a um estrato da sociedade que tem acesso
cultura, educao, lazer e bens de consumo aos quais essa comunidade no tem. Em nosso
encontro com aquela populao, cria-se uma toro que borra os contornos entre dentro e
fora. Interessa-nos pensar o espao da Casa, na medida em que ela se situa no interior de
uma Comunidade que - por sua vez - se situa no interior de uma Cidade, um Pas e um
Mundo globalizado; onde os signos de sucesso e felicidade se impem de forma
hegemnica. Inquieta-nos refletir sobre os efeitos de nosso encontro em um espao to
peculiar. Trata-se de efeitos transferenciais que - todavia - no apagam as diferenas sociais
s quais nos referamos. O dispositivo da Casa dos Cata-Ventos, herdeiro do legado de
Franoise Dolto, se vale da noo criada pela autora de que o trabalho ocorre em funo de
uma transferncia com o espao. Mas, em qu esta noo implica o trabalho? O que o
distingue do trabalho do psicanalista stritu sensu?
A equipe que l intervm no mantm a mesma configurao, oscilando com o tempo
estabelecido pelos diferentes contratos de participao (profissionais, estagirios,
extensionistas, residentes, professores da Universidade). Que transferncia lidamos quando
o lao se faz a partir da Casa? O que justificaria nos ocuparmos de pensar esta
transferncia a partir de questes sociais e polticas?
Desde Freud sabemos que o sintoma social. A subjetividade se trama tanto a partir das
linhas da novela familiar, quanto dos acontecimentos histricos recentes ou longnquos que
parecem relegados s pginas dos livros. O que constitui a subjetividade efeito de uma
rede discursiva que tambm a do coletivo. Os personagens desta novela familiar so
marcados e transmissores dos costumes, leis, lngua, moral e consequncias histricas de
um determinado contexto social.
Acerca do mito familiar, o psicanalista argentino Ricardo Rodulfo prope pens-lo como un
puado de significantes dispuestos de cierta manera (RODULFO, 2008, p. 40) a partir do
qual a criana extrai aqueles que iro marcar a sua singularidade. Diz o autor: La tarea
eminentemente activa que todo ser humano debe emprender [...] es encontrar significantes
que lo representen ante y dentro del discurso familiar, en el seno del mito familiar, o sea del
campo deseante familiar (ibid., p. 42). Para ilustrar sua tese, Rodulfo d o exemplo de
algum que caminha e que, obviamente, o faz sobre uma superfcie. Nesta cena, nada
justifica a afirmao de que o solo que se move e no as pernas. Da mesma forma, com
relao ao gesto espontneo do beb, no se pode atribu-lo funo materna ou paterna.
Alm do mais, este solo o mito familiar composto por elementos heterogneos. uma
collage, um arquivo. O que resulta na mais absoluta imprevisibilidade dos processos de
subjetivao (justamente, a certeza e a assertividade neste campo so indicadores graves
do potencial patgeno de um ambiente familiar). Portanto, no processo de edificao de si, o
que de pior a criana pode encontrar um territrio rgido e inflexvel, que determine o seu
lugar, sem possibilidades de desvio, mudana ou criao. A dimenso mortfera deste
processo estaria dada por aquilo que conceitua como significantes do Super-Eu:
significantes assaz repetitivos que, oriundos do discurso materno, constrangem as
possibilidades de deriva da identificao, indicando um assujeitamento ao gozo do Outro.
De outra parte, h os significantes do Eu: aqueles com o qual a criana opera a sua
individuao, a separao do corpo do Outro.
Todavia, embora a instncia do mito familiar assuma alguma preponderncia quando
pensamos a singularidade de um processo de subjetivao, no podemos esquecer que os
significantes que o compe advm da histria. Assim sendo, preciso destacar que as vilas
e favelas de nosso pas so efeito direto da escravido (a populao majoritariamente negra
e mulata nestes espaos torna isso bastante evidente). O trfico de escravos que durou mais
de trezentos anos trouxe para esta lado do Atlntico um contingente de milhes de negros,
deixando marcas profundas em nossa histria e na maneira de ser do povo brasileiro. Por
exemplo, Arago (1991) - em seu artigo Me Preta, Tristeza Branca - aponta como os efeitos
da escravido se revelam quando comparamos as antigas amas de leite e as atuais babs:
corpos marcados pelo afeto, mas sem que se d um reconhecimento social. Assim, se funda
uma sexualidade - um corpo - sem al-lo a um patamar de igualdade e dignidade. Outro
exemplo sugere Gilberto Freyre (apud SLAVUTZKY, 1999), tambm foram elas que deram
esse tom adocicado e suave da lngua portuguesa aqui. A miscigenao concomitante
escravido e as consequncias do tipo de colonizao em nossa histria deixam uma
herana de pas humano, solidrio e com ginga para lidar com as adversidades.
Entretanto, Endo (2005) acusa que a mortalidade de jovens brasileiros assustadoramente
elevada, vitimando com espantosa maioria a juventude negra e pobre. Dados sobre a
populao carcerria tambm reforam este cenrio de excluso. A perpetuao da
segregao, da falta de oportunidades, do subemprego e da marginalizao traz
consequncias: colocam o negro liberto como negro encarcerado. A mscara do brasileiro
cordial, onde negros sorriem no carnaval gozando de um pas sem racismo, denunciam o
que a sociedade brasileira se recusa a ver: o Brasil continua a tratar seres humanos como
na poca da escravatura, um corpo destitudo de valor e reconhecimento social. Trezentos e
cinquenta anos de escravido deixaram marcas profundas na sociedade brasileira e por
consequncia nos psiquismo. Somos herdeiros psquicos de corpos negros objetalizados
por amos brancos de mos impiedosas. O que o momento poltico deste Brasil de 2016
comea a desvelar que o pas da cordialidade e da miscigenao recusa sua face violenta,
segregadora e elitista.
A questo que trazemos o quanto essa recusa pode colocar uma impossibilidade para os
sujeitos destas comunidades segregadas, o domnio de uma defesa narcsica diante da
dificuldade de produzir um discurso que pudesse dar conta de certos impasses traumticos
na histria dos antepassados. Esta defesa faz empecilho aos seus descendentes para que
possam se apropriar de sua herana histrica. Trazemos uma questo: a exemplo do que
acontece com crianas psicticas, poderamos sustentar a hiptese de que se tratam de
comunidades de renegao (de significao) que bloqueiam a concepo pelos
descendentes de um mito de origem?
Penot (2004) argumenta que uma cristalizao e lacuna na histria familiar, obturada pelo
narcisismo parental, vai induzir a uma repetio comportamental cega e at mesmo violenta;
mas, sobretudo, refratria s tentativas de reapropriao subjetiva e de transformao
simblica. Isto se passaria, pois estes sujeitos aprisionados neste lugar fixo, numa histria
da qual no podem se apropriar, ficam alienados a esse Outro que os menospreza. O
sintoma da criana advm como portador de um enigma a ser decifrado. A criana assim
colocada na posio de smbolo (LAZNIK-PENOT, 1989) funciona como criana/carta[1]
definindo a posio subjetiva dos que lidam com ela. Muito alm da subjetividade de cada
terapeuta ou profissional envolvido com a criana, ele se ver arrastado pela cadeia
significante do Outro desta criana que forma parte de um jogo de cartas marcadas, tendo
domesticar crianas indomveis (como legtimos representantes do discurso-hegemnicoda-classe-mdia-bem-vestida-e-de-cabelo-bom). Mas mal sabem eles que tramos este
discurso, ao apostarmos em uma incluso legtima, pela palavra, capaz de alargar o campo
simblico com pertencimento e respeito diferena.
REFERNCIAS:
ARAGO, L. T. Me Preta, Tristeza Branca. In: ARAGO, L.T. et alii. Clnica do Social:
ensaios. So Paulo, Escuta, 1991.
ENDO, P. A Violncia no Corao da Cidade: um estudo psicanaltico sobre as violncias
na cidade de So Paulo. So Paulo: Escuta/Fapesp, 2005.
LACAN, J. (1988) O seminrio: a tica da psicanlise. Rio de Janeiro, Brasil: Jorge Zahar. .
nmero 7, trad Antnio Quinet, original 1986)
LAZNIK-PENOT, M. C. (1989). Seria a criana psictica carta roubada? In A. Souza (org.),
Psicanlise de crianas. Porto Alegre, Brasil: Artes Mdicas trad. Eliana Arajo Nogueira do
Vale.
PENOT, B. (2004) Psychanalyse et institutions. In: Revue Franaise de Psychanayise,.4,
Revistas do site
RODULFO, R. El Nio y El Significante: um estudio sobre las funciones del jugar en la
constitucin temprana. Buenos Aires: Paids, 2008[1989].
ROSA, M. D. Prefcio: Uma Prtica com Crianas: escuta psicanaltica e criao de
estratgias de atendimento em contexto de excluso e violncia. In: MILMAN, L. &
BEZERRA JR., B (orgs.). A Casa da rvore: uma experincia inovadora na ateno
infncia. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
SLAVUTZKY, A. As Marcas da Escravido. In: SOUSA, E. Psicanlise e Colonizao:
leituras do sintoma social no Brasil. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 1999.
Autor: Anderson Beltrame e Eda Tavares
Anderson Beltrame - Psiclogo. Especialista em Direitos da Criana e do Adolescente
(FMP/RS). Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Trabalha na Casa dos
Cata-Ventos. E-mail: [email protected]
Eda Tavares Psicanalista - Analista membro da APPOA e do Instituto APPOA. Integra a
equipe de Coordenao da Casa dos Cata-Ventos. E-mail: [email protected]
[1] Referi-mo-nos ao texto de Laznik-Penot (1989) Seria a criana psictica carta roubada?
No qual procura definir o papel de uma criana psictica numa instituio; tal qual Lacan
trabalha no seu texto sobre o conto de Edgar Alan Poe, A Carta Roubada, ao redor da qual
gira o papel dos personagens.
Na cidade de Pamonhas vivia uma menina chamada Mel. Mel havia nascido de um repolho
repolhudo mofado e, como tantas crianas, sofria com as brincadeiras feitas com aquilo que
nela era diferente. Diante da tristeza, da dificuldade de lidar com a diferena e as gozaes,
Mel comeou a produzir ns, sintoma que se inscrevia em seu corpo. Mel no sabia que
haviam tantas coisas para conhecer fora de sua cidade. Foram precisos sete ns para que
ela se aventurasse (Furnari, 2015). Quantos ns sero necessrios para viabilizarmos
alguns deslocamentos e construirmos um lugar de pertencimento?
A partir da experincia de estar com as crianas na Vila e os efeitos que esses encontros
produzem, nos colocamos a pensar sobre a diferena. Assim, as perguntas Como estamos
podendo nos aproximar da experincia do outro? e Como posso trabalhar com algo que
no conheo? (Viola e Milmann, 2012, p.81), interessam nessa reflexo, pois so desafios a
quem se prope ao trabalho na Casa dos Cata-Ventos.
Esse trabalho exige, de cada um de ns, uma presena que mais do que estar ali para
cumprir uma carga horria de trabalho ou estgio. Ao participarmos de um planto, levamos
conosco e deixamos com as crianas, mais do que podemos imaginar. Ao retornarmos da
Casa casa, nos vemos tomados por restos que ainda no podemos elaborar. Restos que
se traduzem em relatos de planto, se desdobram em escritas, convocam leituras,
deslocamentos em anlise. Deslocamentos geogrficos que ensejam deslocamentos
subjetivos ampliao de perspectivas. Propor-se a circular pela vila e estar com as
crianas dali , dessa forma, um exerccio de desprendimento. De ambos os lados.
Desprender de enquadres, deslocar. Andar pelo mundo prestando ateno em cores que
no sabemos o nome, como canta Adriana Calcanhoto. E no encontro, vamos criando
formas de nomear essas novas cores e de desatar os ns. Isto requer uma clareza quanto
posio tica que nos permite transmitir algo sem que nos deixemos seduzir pelo anseio
colonizador. Uma posio tica que requer uma sustentao coletiva; se d entre ns. Uma
presena que requer de cada um estar advertido para poder trabalhar. Que requer que
possamos seguir formulando hipteses desde o princpio do no-saber. Neste sentido, uma
pista nos lanada a partir da pergunta-inquietao: Entre estranhar e escutar h um
caminho? (Viola e Milmann, 2012, p.88).
Dos caminhos que percorremos na tentativa de construir respostas sobre como trabalhar
com este outro diferente de mim, a leitura do livro Quem da ptria sai a si mesmo escapa? de
Daniela Escobari (2009) nos emprestou elementos significativos, pois nele a autora se
prope a pensar a clnica das migraes. Ela se pergunta em que medida toda clnica no
uma clnica das migraes, ao considerar o movimento de deslocamento do familiar ao
social necessrio constituio de todo sujeito, tambm como uma migrao.
Ns, plantonistas da Casa dos Cata-Ventos, viemos do outro lado do mundo como
nomeiam as crianas o atravessar a avenida que separa a Vila do Shopping Center, onde
nos reunimos para conversar sobre o que resta em ns do planto recm terminado, antes
de seguirmos para nossas casas.
Seria o trabalho da Casa dos Cata-Ventos um produtor de deslocamentos, de migraes?
Afinal, viemos do outro lado do mundo, somos estranhos/estrangeiros e isso produz muitas
questes, nas crianas e em ns.
No so poucas as cenas em que ns e as crianas aprendemos sobre o modo de viver de
uns e outros. com grande estranhamento que observam e questionam sobre o fato de
sermos a maioria de ns mulheres mais velhas que ainda no tem filhos; algumas com,
outras sem namorado. Cada uma a seu estilo apontando outras possibilidades de vir a ser
mulher, que no necessariamente passam pela maternidade. O estranhamento diante da
postura dos plantonistas homens, que tambm trazem para meninos e meninas questes
sobre o masculino e as relaes possveis. O lugar dos filhos, do estudo, do trabalho, do
sexo. Formas de se relacionar, de estar com o outro. Geografias do contato.
As perguntas que nos chegam, buscam compreender o nosso universo a partir dos
referenciais da vila: Na tua casa, tu bate ou tu apanha? . E ns tentamos sustentar as
poucas regras que temos na Casa a partir dos nossos referenciais. Por exemplo, a regra de
que na Casa no podemos nos machucar, que a Casa um espao de cuidado. Em
diferentes cenas, vamos recolhendo uma associao entre o cuidado e o bater, que nos
aponta para outras formas de cuidar que circulam na ateno primeira infncia. Formas
que em diferentes momentos nos colocam diante de impasses entre acolher, testemunhar e
a convocao a intervir. Como intervir em cenas de violncia sem operar outra violncia?
Como testemunhar negligncias sem cair na tentao da denncia como primeira escolha?
Diante desta pergunta, parece-nos necessrio estarmos atentos transformao da
hospitalidade em hostilidade a partir da perverso sempre possvel da Lei (Derrida, 2003,
p.73). Somos interrogados pelas crianas e por nossos supervisores: O que vocs vo fazer
com isso?
Buscamos responder a partir de uma delicada tessitura do trabalho com o diferente, com o
outro, esse estranho-familiar, no cuidado de no colonizar nem hostilizar, mas acolher e
apostar nos deslocamentos. Sempre em uma via de mo dupla: nas crianas e em ns a
partir dos vrios ns que vamos escutando, que nos colocam em vrios impasses frente
castrao, frente a um no saber fazer, mas que vamos procurando, juntos, o fio para
desmanch-los, desat-los.
Como aconteceu com a adolescente a provocar a plantonista, xing-la de chata, de
catadeira e entregar a ela um desenho de diabo. O desenho foi lido pela plantonista como
sendo uma gatinha...? Nesse deslocamento, de diabo para gatinha, a hostilidade se dissolve
diante do humor, pela via da brincadeira. Dissolvida a provocao, a adolescente requer o
corpo da plantonista como superfcie de inscrio de seu nome prprio. Esta, novamente
consegue acolher, demarcar um limite e construir nesse (des)encontro uma possibilidade de
endereamento: Teu nome no. Quem sabe a inicial? . Encontram a uma letra em comum.
Ambas tm nomes que comeam com a mesma letra. E esse gesto abre a possibilidade de
mais um deslocamento. A adolescente agora quer um VEJA (produto de limpeza) e nos diz:
no vou falar com vocs, mas me olhem. Recolhe fantasias e vai deitar em cima; pede para
ficar sozinha. At o momento que algum oferece uma possibilidade de continuidade,
repertrio, sada da cena melanclica e a a adolescente acolhe a sugesto: montar uma
brincadeira de loja. Essa escrita no corpo do outro, nos remeteu ao texto de Ricardo Rodulfo
quando aborda os jogos constitutivos, a necessidade de fazer superfcie, constituir planos de
inscrio, afirmando: ... habitar um lugar colocar coisas prprias ali, mas o ponto que
no se faz isso sem profundas modificaes subjetivas em quem as pe (Rodulfo, 2004, p.
32). Marcas que se inscrevem na Casa e em cada um ali presente. Traos que nos
singularizam e nos enlaam. Nos encontros possveis na Casa, a potncia dos
deslocamentos. Poderamos pensar a casa como dispositivo que oferece possibilidades de
existir, (re)sistir inventar outras formas possveis de viver; de re-existir?
Nas brincadeiras, a diferena social aparece, por exemplo, quando as crianas brincam de
patroa e empregada, reproduzindo, ativamente na brincadeira, a opresso tantas vezes
vivenciadas por suas mes, vizinhas, mulheres da vila, no trabalho como empregada
domstica. interessante observar que as crianas montam essa brincadeira, e vo ao
longo de pelo menos dois meses elaborando variaes da cena, no momento em que o pas
testemunha o lanamento do filme Que horas ela volta (Anna Muylaerte). Aprendemos com
nossos colegas da Casa da rvore a importncia de reconhecer perante as crianas que as
desigualdades existem de fato, e falar sobre a dificuldade de viv-las (Milman e Bezerra
Junior, 2008, p. 141).
dessa maneira que vamos encontrando formas de resistir, de existir, formas de
acolhimento e hospitalidade entre ns. Como a Mel, a menina que nasceu em Pamonhas,
mas migrou para Merengue. E que pode habitar esse novo lugar depois de encontrar um
amigo escutador que a ajudou a desatar seus ns.
Assim, esse espao ENTRE, um lado e outro do mundo, entre dentro e fora da Vila, entre
dentro e fora da Casa dos Cata-Ventos, no vaivm entre suas origens e suas possibilidades,
vamos apreendendo algo significativo tanto em termos de pensar a constituio das crianas
a quem o espao se dirige, quanto constituio dos profissionais que escolhem marcar sua
trajetria profissional com a passagem pela Casa dos Cata-Ventos. Uma diferena que
escutamos na prpria forma de se referir ao espao da Casa dos Cata-Ventos: para ns, a
Casa; para as crianas, o Cata-Ventos. Interessa que siga sempre como enigma
compreender o que nos aponta essa diferena de nomeao. Diferena que permite que se
construa sentidos - significantes potentes a partir do encontro com o estranho-familiar, no
instante em que outra vez nos surpreendemos ao encontrar no mais diferente algo de mais
ntimo e singular apontado. E tudo isso numa casa, chamada Casa dos Cata-Ventos.
Referncias bibliogrficas:
DERRIDA, J. Ana Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade. So
Paulo: Escuta, 2003.
ESCOBARI, D. M. Quem da ptria sai a si mesmo escapa? So Paulo: Escuta,
FURNARI, E. Ns. So Paulo: Moderna, 2015
MILMAN, L. e BEZERRA Jr, B. A Casa da rvore: uma experincia inovadora na ateno
infncia. Riode Janeiro: Garamond, 2008.
RODULFO, R. Desenhos fora do papel. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2004.
VIOLA, C. G e MILMANN, E. O ex-estranho: o mal-estar na educao. In:
http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos/article/view/168/152
Autor: Francielle Limberger Lenz e Carla Cervera Sei
Francielle Limberger Lenz psicloga e psicanalista, Especialista em Atendimento Clnico e
Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS
Carla Cervera Sei psicanalista, membro da APPOA e mestranda em Psicanlise pela
UFRGS.
Assim como toda dana, a capoeira tambm comemora o nascimento do corpo no mundo.
Ela nos remete operao que inaugurou seu movimento, no momento em que nasceu
como corpo de discurso. A dana devolve ao corpo sua condio de enigma. Sendo assim,
ela recupera esta fundao como corpo simblico naqueles corpos que viraram restos ou
objetos de gozo do Outro, como no caso destas comunidades regidas pela violncia, onde o
corpo abusado, drogado, destitudo.
As regras que determinam os movimentos dos golpes ou das esquivas da capoeira, ou
mesmo da ginga que seu movimento fundamental, chegam no corpo de forma diferente do
que aquelas que so impostas pelo pacto civilizatrio, isto , diferentes das regras
educativas ou disciplinares. Elas no chegam no sentido de uma dominao ou de uma
restrio, mas sim na sensao danante de uma libertao. Libertam o corpo do Real que
os invade em tudo aquilo que diz respeito morte ou paralisia. Tambm atuam nos efeitos
de um corpo escravizado: corpos que perderam seus traos fundamentais. A libertao
dada na medida em que o corpo simbolizado pela msica e por sua escrita no espao.
Assim o efeito da dana da capoeira no corpo.
Ela prope movimentos que transgridem a lei da gravidade. Possibilitam ao corpo chegar
muito perto do solo e, mesmo assim, evitar a queda. um jogo que faz vencer a inibio,
efeito censurante do contexto onde cada corpo foi marcado na sua fundao. Remodela os
rituais de origem, permitindo "ser outro" num movimento de passagem. Ser outro para estas
crianas e adolescentes seria passar de criana para a puberdade, ser homem, ser mulher.
Ser algum que domina o tempo e o espao, ser algum que sabe o que fazer com suas
pulses, sem ser dominado por elas.
Gingar o principal movimento, e traz a ideia da malcia. Esta diz respeito a saber viver,
saber cair, saber desequilibrar, sem perder a dignidade. gingando que se aprende a
malcia. o movimento que d a flexibilidade necessria para apresentar resistncia, sem
fugir ao encontro com o outro. Elapermite desviar da violncia frontal, da rigidez do sistema;
ser capaz de evoluir nas margens, de tomar a tangente, de distrair o adversrio ou de se
apoiar sobre sua fora para lhe retornar o golpe.
Tem algo na capoeira que entra no corpo atravs da msica, na forma de uma repetio. O
refro deve ser repetido sempre depois da voz do cantador. O professor Nei permite que as
crianas sejam agentes desta msica, como se estivessem compondo em conjunto.
Possibilita que elas experimentem tocar o berimbau, o pandeiro e o agog, na forma
espontnea, como conseguem, explorando o instrumento. Ser escolhido para poder tocar
inaugura nas crianas o desejo de reconhecimento por algum que ocupa uma funo de
pai. A novidade esta figura masculina que ensina, limita, permite e valoriza... to diferente
do que vivenciado na vila deste lugar paterno. O pai da capoeira faz a funo simblica de
representar e transmitir as origens, a histria dos escravos, as regras do jogo.
A roda tem uma funo fundamental para a transmisso dessa musicalidade num corpo "em
passagem". Ela faz o continente necessrio para que o contedo possa ser vivido num
espao protegido. O cntico da roda, na sua ladainha repetitiva, embala o corpo como uma
voz materna e permite a experincia desse encontro com o outro semelhante na forma de
uma entrega. Esta entrega se d pelo improviso, onde no se sabe que movimento o outro
vai fazer, num dilogo espontneo de corpos. O balano do cntico permite que o mundo se
mova na segurana do corpo do outro. Assim a roda que, como o colo materno, reproduz
este balano, fazendo continente experincia da vertigem de um mundo que se move.
Num primeiro tempo, a pregnncia da imagem corporal de cada criana testada, pois a
experincia do jogo no meio da roda de uma diluio, um mergulho num corpo nico. Mas
num segundo tempo, a roda oferece referncias que delimitam as bordas corporais, atravs
da marcao do ritmo e do seu canto narrando a histria da negritude, da brasilidade, trao
fundante que enlaa a fratria.
Pode se dizer que, como no brincar, no jogo da capoeira est presente o fort-da, onde o
ensaio de separao se faz a todo momento. Ali se trabalha os perigos do encontro
alienante e a necessidade da separao. Perigo no apenas no sentido de ser atingido pelo
golpe, mas tambm perigo da seduo representada pela "finta" que promete e no cumpre,
da inteno invisvel do outro. a aposta numa mudana constante, numa no distino
entre quem ataca e quem esquiva. Para isso, fundamental que os movimentos sejam
circulares: eles abrem uma via fluida na qual um ataque pode, insensivelmente, transformarse em defesa, e uma esquiva pode mudar para uma manobra ofensiva. Isto passar
constantemente do combate dana, entre alienao e separao, entre ser objeto de gozo
e retomar-se como sujeito de desejo. O jogo ensina a deixar-se levar, num primeiro
momento, para poder retomar-se depois.
Mas preciso diferenciar a voz que embala daquela que nomeia. A funo de uma voz
paterna que alm de nomear, reconhece e autoriza. Esta comea na msica do berimbau.
Pode-se dizer que este faz a funo de um dos Nomes-do-Pai que servir de ancoragem a
esta travessia dos corpos vivenciada na roda. o berimbau que transforma a pretensa luta,
num jogo danado. a ele que se oferece um ato de f no momento de entrar na roda, como
uma beno para lanar-se ao desconhecido neste encontro de pura improvisao com um
outro.
O valor desta voz est presente quando se percebe que a msica hipnotiza as crianas.
Querem ser agentes da msica, entram em disputa para tocar os instrumentos: berimbau,
pandeiro, agog. Todas querem ao mesmo tempo, mas o prof Nei combina com voz de
mestria: s toca quem est na roda batendo palmas e quem joga tambm. Ficar na roda
cantando e batendo palmas, marcando o ritmo pode ser divertido no incio, mas exige
persistncia. Isso porque a roda um coletivo que vale por sua funo de sustentar o jogo e
a ateno para cada um se desfaz, diluda no grupo. O exerccio de ficar na roda j difcil
por si s. Mais ainda bater as palmas no ritmo e cantar s depois que o professor cantou o
refro:
"Paranau... paranau... paran".
A e i o u...u o i e a... a e i o u... vem criana vem jogar
A capoeira contm elementos de uma manifestao profana da cultura afro-brasileira, assim
como tem algo de sagrado que mobiliza o recolhimento. Aparece de uma forma
extremamente alegre na musicalizao da roda, mas tambm revive grandes tristezas, na
forma de uma ladainha, canto de lamento pelos sofrimentos padecidos pelos negros na
poca da escravido.
Mas para a Casa dos Cataventos, a capoeira um desafio que fabrica bordas, ensaia
disciplina e molda o corpo no encanto do ritual. Atravs da sua dana, transgride os cdigos
fundadores e faz abertura a uma nova subjetividade. A desorientao que ela provoca no
uma ausncia de orientao, mas um desafio a sair de uma linearidade visual e partir para
outras formas de posicionar-se no mundo. A improvisao libera o capoeirista do modo
habitual de ordenar o mundo e lhe possibilita inventar um ordenamento menos visvel.
A aposta que ela possa ser um dispositivo para a criao de novos caminhos de vida para
estas crianas e adolescentes que frequentam a Casa. E que levem consigo a principal lio
da capoeira de que a queda pode ser s uma questo de malcia. Como a letra da musica
tocada pelo berimbau:
Escorregar no cair, um jeito que o corpo d.
Autor: ngela Lngaro Becker
ngela Lngaro Becker - psicanalista, membro da Appoa.
da cidade, mas que invisvel a olhares mais apressados. A nica entrada da Vila se situa
em uma avenida de intenso fluxo de veculos, e quem passa com velocidade dificilmente
percebe que ali h uma comunidade que vive em condies de pobreza e misria. Ao
adentrar o territrio, tudo aquilo que no est vista de quem o v de fora, todavia,
evidencia-se: precariedade nas moradias, no saneamento, no acesso dos moradores s
polticas pblicas e cidadania. Essa ausncia das regulaes do Estado nas relaes e
direitos dos que ali vivem ecoa em outras violncias a que essas pessoas esto submetidas.
Essas violncias, assim, aparecem sob diversos matizes, em diferentes modos de se
relacionar, entre os diferentes personagens que compem a trama das relaes que ali se
estabelecem. A violncia que se apresenta no corpo, bem como a morte violenta, tm seu
lugar nessa trama.
Dessa forma, entendemos que o espao assim configurado pode apresentar uma dimenso
que chamamos, em conformidade com Endo (2005) de potencialmente traumatizante (p.
225). Ao discorrer acerca da violncia urbana, o autor sustenta que no se pode
problematiz-la sem levar em conta o cenrio de desigualdade social e de injustia que se
produz conjuntamente com a violncia. Aponta tambm que a distribuio desigual de
recursos, bens e servios, juntamente com a naturalizao e banalizao da desigualdade,
prope que algumas verses da violncia vo se tornando invisveis, no s para os que a
cometem, mas tambm para aqueles que sentem seus efeitos. Desse modo, a desigualdade
cotidianamente ratificada autoriza as violncias.
Endo (2005) destaca, com isso, a existncia de certos espaos potencialmente
traumatizantes nas cidades, devido desregulao e ausncia de proteo ao cidado que
por eles circula e habita. Esses espaos conjugam duas situaes para o sujeito: alm de se
encontrar mais exposto e vulnervel, tambm permanece expectante e angustiado frente a
uma violncia que pode vir a qualquer momento, de modo abrupto e traumtico.
Apresentando-se como esse espao-tempo em que aquilo que trazido pelas crianas
encontra cuidado e acolhida, a Casa dos Cata-Ventos, ao longo dos anos de trabalho, foi se
tornando palco para encenaes e relatos do cotidiano da Vila So Pedro.
A partir disso, recorremos a uma primeira cena: enquanto as crianas brincavam de polcia e
ladro nome que do a uma brincadeira em que encenam policiais prendendo ladres em
flagrante e os torturando um pequeno menino permanece colado na parede, imvel, sem
conseguir falar nem brincar. Ele convidado a entrar na brincadeira e escolher ser polcia ou
ladro, mas permanece olhando a cena que se montava com uma intensidade que, por
vezes. no parecia guardar a dimenso ficcional.
Na Casa dos Cata-Ventos, em algumas ocasies, apresentam-se situaes em que as
brincadeiras demoram a encontrar o caminho das palavras e das fantasias, insistindo em
retratar os elementos presentes no territrio: a destruio, o lixo, a sujeira, a violncia, o
xingamento, o grito, a morte. Estamos ali para auxiliar as crianasa encontrar aquele
caminho, porm considerando que preciso dar lugar para aquilo que nos endereado
encontre significaes possveis mediante o excesso de violncia. Cenas como a descrita
acima insistem em se repetir, fazendo-nos pensar que, nessa repetio, tambm est
colocada uma referncia ao traumtico.
que busca contar com um suporte discursivo, atravs da escuta e de uma presena
disponvel que aposta na construo de um intervalo. Nessa perspectiva de um tempo nolinear, esperamos incidir sobre a temporalidade traumtica.
Nesse sentido, o brincar oferece superfcie que faz suporte para uma ampliao do universo
de sentidos possveis. Abre-se um novo tempo, em que novas histrias podem emergir; fazer
histria considerando o tempo do sujeito. Pretendemos, com isso, garantir um espao para a
dimenso da fantasia, da memria e do esquecimento na elaborao, de forma a permitir
que o acontecimento traumtico e a fantasia no se subtraiam um ao outro. Conforme Rudge
(2009) aponta, para barrar a exposio permanente ao trauma, corpo estranho que invadiu
o psiquismo e recusa tornar-se passado, preciso favorecer a reconstruo e o investimento
das fantasias, tecidas no processo de escuta (p. 60).
Na Casa dos Cata-Ventos tomamos fantasia tambm em sua dimenso significante:
dispomos na casa de diversas fantasias-vestimenta, fantasias-objeto com as quais as
crianas inventam desfiles, fazem teatro, encenam ritos de Umbanda com seus vrios
personagens, fantasiam-se de lutadores, madames, cantoras, lobos, bruxas, princesas,
enfim, brincam de ser um outro, brincam com a passagem do tempo inventando o agora e o
futuro.
Esses fragmentos nos fazem pensar que o suporte discursivo da Casa dos Cata-Ventos
possibilita uma passagem que transcorre no tempo cronolgico e acolhe esse tempo no
linear, vivido como ato a ser decifrado e imagem a ser oferecida a alguma significao. Esse
tempo no linear permite uma mudana de posio na passagem do mostrar para a
pergunta, como ocorre na segunda cena, em que a repetio d lugar a uma enunciao.
Que possam se questionar: o que ns vamos fazer e o que eles vo fazer.
Referncias Bibliogrficas:
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SELIGMANN-SILVA, Mrcio (Org.). Catstrofe e representao: ensaios. So Paulo: Escuta,
2000.
CARUTH, Cathy. As pegadas impressas da psicanlise. In. SCOTTI, Srgio,
BERGAMASCHI, Rosi Isabel, LANGE, Mariana De Bastiani, GUIMARES, Beatriz,
VARGAS, Rmulo Fabiano Silva, STOBBE, Rafael Arns, COSTA, Ana (Org.). Escrita e
Psicanlise II. Curitiba: Editora CRV, 2010.
ENDO, Paulo. A violncia no corao da cidade: um estudo psicanaltico sobre as violncias
na cidade de So Paulo. So Paulo: Escuta/FAPESP, 2005.
FREUD, Sigmund. Alm do Princpio do Prazer (1920). In.: Obras Completas, v. 18. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. O Seminrio Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanlise
(1964). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
RUDGE, Ana Maria. Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
anos, vidas por um espao seu, a maioria sem nenhuma perspectiva de acompanhamento
de quaisquer adultos. A perplexidade e a frustrao de um primeiro momento deram lugar
constatao de que teramos que nos ater ao real, cientes da impossibilidade de interveno
no discurso parental como forma de ativao das narrativas infantis. Entretanto, a procura
dos espaos pelas crianas nos sinalizava que tinham algo a dizer e que estavam dispostas
a dizer elas mesmas. Comeamos a identificar que muitas j tinham instrumentos suficientes
para darem conta de si mesmas e, muitas vezes, at de irmos mais novos. Acabamos por
aceitar crianas maiores de seis anos desacompanhadas e admitir que crianas mais velhas
pudessem ser responsveis por crianas menores, ainda que tivssemos clareza de que
uma criana de oito anos no tem condio de se responsabilizar por outra de quatro. Por
tudo isso, nossa aposta recai, ento, com toda a fora, na relao que ns, psiclogos e
adultos, embasados pela psicanlise e por uma tica do cuidado, (MAIA, 2009)
estabelecemos diretamente com essas crianas.
Quanto s outras regras, fizemos diversas tentativas de institui-las em substituio s da
linha vermelha e do avental. Em determinado momento, as prprias crianas durante uma
assembleia proposta para pensarmos a forma como vinham agindo na Casa da rvore
fizeram uma releitura dos dez mandamentos, instituindo proposies rgidas para seu
comportamento na Casa. No xingars, no cuspirs no cho, no falars palavro
figuravam entre as proibies, frequentemente transgredidas. Ns, menos ousados,
tentamos algumas regras: no quadro negro s pessoas da equipe podem escrever, no pode
brincar com gua, no pode passar para o lado em que fica a caixa d'gua.... Entretanto, at
ns nos confundamos, por desconhecermos a existncia de uma regra, por discordarmos de
outra, enfim, por no conseguirmos cobrar o cumprimento de todas. Perante tantos
desencontros, nos pareceu que a regra de no poder escrever no quadro negro[3] pareceu,
no decorrer do tempo de trabalho, a que fez mais sentido para a equipe.
Seguindo nossa reflexo sobre a funo da regra na Casa da rvore, chegamos a uma
primeira constatao: a j mencionada inteno de Dolto (1984) de no usar as regras para
fazer proibies a todo momento. Se nos colocarmos nesse lugar "policialesco" no vamos
nos diferenciar de muitos outros adultos que essas crianas encontram no seu dia a dia. E,
assim, falharemos no nosso objetivo de oferecer uma possibilidade para as crianas
ressignificarem suas histrias e repensarem os rtulos que as estigmatizam. O mais
importante no fazer valer a regra, mas o deslocamento subjetivo que ela provoca: o
desejo de transgredir e o sentido dessa transgresso ou da aceitao da regra para o
sujeito. atravs desse conflito que o sujeito fala, na Casa da rvore, de seu desejo. Nosso
trabalho estar como sujeitos nas situaes, construindo, junto com outro ou outros sujeitos,
sentidos para nossas aes nas relaes no mundo.
No entanto, na discusso das regras, evidenciamos nossa prpria ambivalncia. Ao no
conseguirmos sustent-las, vivenciamos um sentimento de "fraqueza", sentido pela equipe
como um fracasso, desintegrador, portanto, para o grupo. A tendncia , ento, buscar
amarrar as regras e seu funcionamento com cordas apertadas, na fantasia de um controle
absoluto e na convico de que os fins fazer valer as regras, como no escrevers no
quadro-negro justificam os meios, valendo tudo para impedir as crianas de transgredir.
Inevitavelmente, surge em ns a impotncia: quanto mais apertamos, mais eles vo ficar
danando Funk l do lado de fora!.
[1] A Casa da rvore uma ONG, vinculada a Sub-reitoria de Extenso e Cultura da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro que desenvolve um trabalho de ateno
infncia em favelas do Rio de Janeiro e Niteri..
[2] A Maison Verte surgiu originalmente em Paris multiplicando-se por outras cidades da
Frana e do mundo como Quebec, Nova York, Buenos Aires, Barcelona, Santiago, Porto
Alegre e Rio de Janeiro de modo que hoje existem mais de 200 estruturas Dolto como so
conhecidas - ao redor do mundo.
[3]O quadro negro, localizado na entrada da Casa, uma ferramenta do trabalho. nele que
escrevemos o nome de todas as pessoas que esto no espao naquele dia, afirmando a
singularidade de cada um e, ao mesmo tempo, a insero no coletivo que se forma a cada
dia.
O trabalho do psicanalista, esteja ele onde estiver, o da escuta e isto somente possvel
pela construo de dispositivos clnicos. No podemos deixar de mencionar, aqui, como
nessas situaes a fala do sujeito tem poder verdadeiramente transformador na vida
cotidiana do territrio conflagrado, pois quando surge o sujeito do desejo vem, junto com ele,
o pensamento sobre o seu mundo, sua urgncia e possibilita uma experincia nica. E aqui
vale dizer o mesmo para ns. A experincia da morte, do horror e do belo nos transforma a
todos.
REFERNCIAS
Benjamin, W. O narrador Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov e sobre o
conceito de histria. Fragmentos. In: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura
e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas, vol. I).
Bleger, J. Psicologia institucional. In: Psico-higiene e psicologia institucional. Porto Alegre:
Artes Mdicas, 1984.
Broide, J.; Broide, E. A psicanlise nas situaes sociais crticas. Metodologia clnica e
intervenes. 2. ed. So Paulo: Escuta, 2016.
Freud, S. (1912). Sobre la dinmica de la transferncia. In: Obras Completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1986. V. XII.
------------- (1914). Recordar, repetir y reelaborar. In: Obras Completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1986. V. XII.
Lacan, J. (1959-1960). O seminrio. Livro 7. A tica da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1991.
Autor: Jorge Broide
Jorge Broide supervisor da Casa dos Cata Ventos.
onde os moradores no entraram para a histria j que, como dizem aqui, a histria s
comea depois da escritura.
Marco, o Velho. Assim era conhecido o itinerante experiente. Ele subia em seu cavalo cor de
carvo e sabe-se l para onde seguia seu rumo. O que se sabe que ele sempre chega
cheio de mitos pra contar sobre os locais que visitou. Ele surgiu na Montanha querendo se
encontrar. Ali se estabeleceu de forma inquieta h uns quatro anos. No demorou a
conquistar a confiana de todos, com sua graa e sotaque que no se sabe as origens. A
Carta que ele escreve ao Rei, contando sobre sua ltima viagem, foi lida em assembleia no
castelo e acompanha este documento.
Marco, o Velho, para V. Majestade Rodrigo V, o Rei da Grande Montanha Salvelina.
Vossa Alteza,
Queira captar minha ignorncia por boa vontade, e acredite que nada porei aqui, nem para
embonitar nem para enfeiar, mais do que vi e vivi. Quando Vossa Majestade solicitou a
descrio da cidade que visitei, logo pestanejei. Como? Mas como descrever com palavras
a cidade que no do alfabeto? L, a letra como um ritmo que o corpo dana, compondo
msica-palavreadacorporalstica-analfabetista. S h um por l que conhece a letra do jeito
que a gente conhece e escreve como esta que estou lhe escrevendo...
Pois bem, vejo que j sem querer lhe descrevo a cidade que no pode ser descrita. Ento
sigo a prosa contando o nome da cidade: Cata-vento. A vosmec pergunta como que a
cidade h de ter nome se nem palavras ela tem, no estou certo? Ora, eu no disse que tem
um, s um, mas tem, que conhece as letras? Pois foi justo esse um que inventou o nome da
cidade. Isso j faz um bocado de tempo. Foi antes de Judas perder as botas e antes mesmo
da cidade existir. Assim que amaciei com o p a terra de Cata-vento, prguntei a mim
mesmo por que causa, motivo, razo ou circunstncia a cidade leva esse nome. Ota
prgunta: por que que tem quadros verdes, folhas brancas e gizes coloridos espalhados
por todo lugar, se ningum h de escrever? Ota: onde j se viu uma cidade que se resume a
uma casa de trs cmodos e um quintal? Cada hora que eu vivia a mais em Cata-vento,
mais eram as prguntas. Desenvolverei mais detalhadamente esta estria dos trs cmodos
e um quintal. Eis que a casa-cidade dividida em quatro. H um corredor, uma sala, uma
lavanderia e um quintal. Vossa Alteza deve estranhar eu estar a classificar um corredor
como um cmodo; mas lhe digo, ento, o porqu desta estranheza. uma escolha passar
pelo corredor. Ele no ponte de acesso aos outros cmodos; digo, digo, sim, mas
tambm no. O sujeito pra mode entrar na lavanderia, dever sair pela porta da frente da
casa que fica na sala e, pelo quintal, acessar a porta dos fundos que d o acesso
lavanderia. Solamente a sala tem acesso direto ao corredor. Digo, digo, a sala e tambm o
quintal. Final das contas s a lavanderia que no tem acesso direto ao corredor. No tem
acesso direto ao corredor e nem sala; a lavanderia s tem acesso pelo quintal. Pelos
fundos do quintal. Pra um dedinho que logo todo esse quiproc h de se resolver.
Na lavanderia so mquinas de lavar roupas sujas, uma vez por semana, s teras-feiras,
logo depois do sol a pino. Mais pontualmente s 13 horas e 30 minutos. Sim, o tempo l, por
incrvel que parea, contado como aqui nos aposentos de nosso reino. Na sala so
brinquedos, fantasias, quadros verdes, giz de cera, folhas de papel, cadeirinhas minsculas,
mesa baixinha, cho, cabides, copos dgua e livros coloridos. No corredor parece que vou
me embarrar s de falar. Tem de tudo no corredor! Tem barro, p, muito p, madeira,
papelo, gatos, cachorros, urubus, helicpteros, pedra, pedrinha, enjambramento,
gambiarra, varal sem muita roupa limpa, cheiros de decomposio e chuva. O corredor no
tem teto. O quintal, Vossa Majestade! , o quintal! onde tudo de bonito acontece. Tem
balano de corda que vai bem alto do cho, tem bergamoteira que nunca fica laranjada, tem
cho colorido de giz, terra boa pra fazer bolinho de chocolate, bola pra bater, espao pra
existir e ser tudo que quiser e muro pra fazer fronteira. Bem, agora que j ensebei vosmec
com a ladainha do espao, se aprochegue sem lonjura que irei hablar das personas!
Em Cata-vento a diviso das pessoas por tamanho. O marco divisrio 1 metro e 49
centmetros; uma vassoura d quase isso. Quem possui a altura que se encontra abaixo
deste nmero, tem direito a brincar no quintal, na sala e no corredor; alm disso, deve
merendar (o que conseguem) e sestear (o que podem) s e somente no corredor. Quem
mede mais que uma vassoura pode brincar na sala, no quintal e, se quiser, no corredor; mas,
o mais importante e diferencial que, os grandes tem a chave da lavanderia. S os grandes
podem entrar na lavanderia. Los pequenos no ouvem los grandes na lavanderia. Causa de
qu o barulho das mquinas de lavar roupa suja alto demais. Os grandes hablam e contam
anedotas dos pequeninos. Dentre os grandes tem aquele um que deu o nome da cidade e
que domina o mundo das letras. Ele quer ensinar o que sabe e aprender o que no sabe
com os moradores do corredor. Ele sabe que nem toda patota h de aprender las palabras,
mas ele convida os pequenos, sempre, a desenhar tudo que quiserem, inclusive letras, nos
quadros verdes, papeis, muros e cho. Fico aqui hablando em grandes, no pluralista da
palabra. Mas, na realidade, apenas esse um que grande, e que eu conheci na cidade-lotecasa. Em minhas quimeras vejo seu Furgus hablando solito dentro daquela lavanderia. Ah!
No contei que o nome daquele um Furgus? Pois estou lhes contando, ento. Ele
devaneia e tenta recriar as brincadeiras vividas com os pequenos tudo de novo, dentro da
lavanderia. Fico falando de brinquedos, brincadeiras, brincolar, brincanejar, que isso a
mesmo. Em Cata-vento o que se faz. Quando no esto brincando, esto falando sobre as
brincadeiras ou sobre como brincar. So todos brincantes-andantes-contentes-cantantes.
Queres saber da aparncia fsica dessa gente esquisita? Furgus tem olhos grandes, de
quem presta muita ateno em tudo; so olhos de cuidado e entusiasmo. Procura estar
sempre com sorriso na orelha, ele um cara cheio de humor, mas s vezes se afeta nas
brincadeiras mais melancoladas, ou nas historietas que os pequenos contam sobre o que
acontece nos cantinhos do corredor. Ele veste roupas coloridas, mas chinfrins, que possa
sujar nas brincadeiras. S quando entra direto na lavanderia vai mais emperiquitado; parece
que ele trata o momento de lavar roupas sujas como um momento muito importante. O nariz
pequeno, acho que pra no sentir muito o cheiro do corredor. Os cabelos foram rapados,
pois no queriam hospedeiros. Os molequinhos remelados quanto mais brincalhes, mais
piolhudos. Doravante, os pequenos parecem dlmatas, sempre cheios de manchinhas de
machucado ou de sujeira que veio do corredor ou do bolo de chocolate. Eles falam umas
cousas estapafrdias que no tem jeito de no gargalhar! Cada um tem uma caracterstica
excntrica especial. Tem o manhoso esfolado, o briguento gritante, a princesinha, a fiapo em
p, a malandrinha, o dentinho cado, o espertinho carente e o tatuzento zarolho cada tanto
surge um novo e todos trocam de papel volta e meia. Apesar de toda brincadeira e alegria,
alguns pequenos trazem algo nos olhos muito peculiar. Nunca vi isso nos olhos das
crianas aqui do reino. como se elas estivessem lhe passando uma mensagem, mais ou
menos assim: eu sei mais do mundo do que tu calculas, mais do que eu deveria saber, bem
mais do que eu quisera. E o estranho e desgostoso que a mensagem, quando chega a
mim, di! Di de fazer careta. Bem mais do que eu quisera.
Escapei por pouco. Foi detalhe de um centmetro que me botou para o grupo dos maiores de
uma vassoura. Coube-me em sorte. Digo isso porque h muitos dissabores pra quem mora
no corredor. Quem est no corredor s vezes nem se d por conta, causa de qu j
acostumou com o desgosto; mas, quem vai no corredor s a passeio... Deus que me livre,
por obsquio, desse tempo enfeiado! No sei quem inventou e quem manda no corredor
(alis, ningum por l tem essa resposta). Falando em mandante, no sabo tambm quem
manda em Cata-vento! Parece ser seu Furgus; porm, na prtica no h hierarquias como
aqui e em todos os cantos de nosso reino. Que baita faanha valorosa essa de no ter s um
que manda. Peo desculpas se assim lhe ofendo vossa merc, que na lida esse modo de
ser e cuidar cativa!
No te afanes de saber tudo to pressa. S o que quero lhe dizer, afinal, que a mim se
cumpriu uma barbaridade de momentos intensos e infinitos em si. Que boa ventura de
andante essa minha! E lhe digo mais: no h melhor cousa no mundo que ser cabrahonrado-cavaleiro-andante-brincante-buscador de boas venturas. cousa linda desfazer
agravos atravessando pontes, esquadrinhando barricadas, visitando castelos de pano,
pulando rios de corda, e tudo isso vestido de Batman ou de Branca de Neve.
Trago-lhe, V.A., cousas de mrito e louvor. Uma delas a experincia dentro da cuca que
exala na pele, outra delas o vento que espantou meus cabelos e me trouxe de volta. Quis a
sorte que calhasse de eu passar por ali. A vosmec agradeo o regalo e a boa acolhida.
S tenho mais ota pregunta e essa no h de ser a ltima: por que causa motivo razo ou
circunstncia a cidade chama Cata-vento se ningum h de catar o vento? No tem catavento em lugar algum! Tentei construir um, praquela populao, e sumiu logo que acabei de
dobrar o dito cujo! Hoje, agora, aqui que entendo isso tudo! uma mensagem, um enigma
como da Esfinge! Esta charada explica o que a cidade e como a vida acontece nela: as
cousas nunca so capturadas, guardadas; as cousas so vividas, na experincia. Nem eu,
nem ningum, nem vosmec consegue, e nunca h de conseguir, pegar um minuano com a
mo e guardar no bolso ou em qualquer caixinha. Isso porque o vento no se cata, se sente.
S h de conseguir catar o vento, quando abrir os braos, fechar os olhos e deixar ele te
levar.
S descobri isso, sentindo o frio na barriga e o calor no corao, quando catei o vento e fuime embora.
Traduo para Desentendidos
Rodrigo V: Professor Rodrigo Lages.
Furgus: Equipe da Casa dos Cata-ventos.
Lavanderia: Ufrgs local das reunies de equipe.
Por que ainda existem tantos analfabetos no Brasil? Quem ganha com a presena macia
de analfabetos humilhados entre as pessoas letradas? Por que as crianas de classe mdia
e alta as escolas alfabetizam aos cinco e seis anos e nas escolas pblicas a alfabetizao
pode se arrastar por vrios anos, deixando como resultado as marcas do fracasso no aluno?
Um dia, h um ano, conversvamos, Ana Gageiro e eu, sobre coisas da vida. Nossa
convivncia de trabalho tinha sido interrompida em 2009, com a ida dela para a UFRGS eu
havia permanecido na Unisinos. Desde ento, passamos a nos encontrar com um grupo de
trabalho da Unisinos, mas para diluir as saudades. Neste dia ento, fiz um pedido fatal: Ana,
fale-me mais sobre a Casa dos Cata-Ventos. Ela falou... como a menina dos olhos. Ento fiz
uma pergunta fatal: estas crianas sabem ler e escrever? Eu vou ser feliz para sempre se
tu vier trabalhar conosco. Ela disse.
Depois foi Sandra Torossian. Com aqueles olhos verdes. Sedutora. Falta isto Verita, que tu
sabe.
Atingida no meu rgo vital, este rgo que no para de querer disseminar as letras e o
direito ao acesso a elas. Da minha trajetria pessoal e profissional, a que nunca deixou de
me encantar a pesquisa em relao aos processos de aprendizagem.
Quando fui conhecer a equipe, no eram poucas as pessoas, entre psicanalistas, psiclogos
(em sua maioria, para minha surpresa) recm formados, residentes, estagirias e estagirios
de graduao, alm de uma jovem pedagoga e um residente de Educao Fsica. Procurava
decifrar o sentido que cada um dava para se envolver com o projeto.
Me perguntava como essas pessoas do grupo da Cata-Ventos entendiam o nosso modo de
organizao social. natural que existam pobres e ricos? Ou, a existncia das diferenas
econmicas foi naturalizada a ponto de no se pensar mais em outras possibilidades? O
certo que naturalizar a existncia de pobres e ricos e que isto sempre ser assim,
determina o modo como se vai realizar uma interveno social.
Perguntas como: o que infncia? Qual ou quais infncias frequentam a Casa dos CataVentos? Que lugar ocupa no mundo, quando o lugar onde nasceu e vive uma criana uma
vila envolvida com o trfico e a violncia? Uma criana o adulto que sobreviveu. Disse
uma delas em algum momento.
O que ler e escrever no contexto das crianas? Que funo e poder tm ler e escrever?
Que vida existe na vida de quem no sabe ler e escrever num mundo 100% letrado? O
dinheiro cobre a falta de quem no sabe ler e escrever?
A garantia constitucional da escola para todos, no garantiu a aprendizagem para todos. A
sutil, ou nem tanto, perversidade social das elites letradas, pode se revelar nos precrios
investimentos econmicos e profissionais dos professores. Estes, por sua vez, mesmo ao
identificar os processos de excluso social, resultantes das repetidas reprovaes
escolares, no se comprometem e com a possibilidade de fazer diferente, acabam
compactuando com as polticas educacionais discriminatrias.
A criana chega escola emocionada, cheia de expectativas e em geral num curto perodo
vai perdendo todo o entusiasmo. Confirma-se o destino das pessoas oriundas das classes
populares: temos e sempre tivemos a cabea fraca. Ao invs da escola ser um testemunho
ou um espao simblico democrtico onde todos podem aprender, ela condena a grande
maioria ao mnimo. E, j natural aceitar uma aprovao de 75%.
No Brasil, sempre foi moda trabalhar com os pobres e para os pobres. Simplificando, h
duas vertentes destas intervenes. Uma delas a da igreja e ou a das elites letradas,
quando se julga superior a todos os seres humanos sem pedigree. Desta perspectiva,
assistencialista, os alunos no podem aprender e no devem aprender, pois os pobres
devem ficar onde esto e jamais devem cogitar deslocar-se de seu lugar social. Os
diferentes so mantidos excludos com seus traos raciais longe dos olhos da aristocracia
branca e s devem ser chamados para lhe servir. Este contingente deve sempre permanecer
estvel e disponvel.
Por outro lado, a outra vertente: sem sombra de dvidas a mais difcil, pois coloca em
questo, de forma permanente os nossos conceitos e pr-conceitos. Sob esta perspectiva, o
trabalho que oferece este instrumento, que a escrita, sem de maneira nenhuma substituir a
escola, oferece com a perspectiva de emancipar a inteligncia e o desejo de cada criana.
E, para uma sociedade que se diz democrtica, isto no deveria ser um risco, pois lidar com
sujeitos emancipados equivale a lidar com sujeitos que so capazes de fazer escolhas!
Fazer escolhas no se submeter s regras do trfico, s regras de um destino forjado por
uma sociedade discriminatria e poder sair da vila sem ser para servir ou para ir para a
priso.
Sem a mnima inteno de substituir a escola, ofereci alguns elementos iniciais como
fermento na expresso e organizao do material que as crianas apresentam. Como foi
descrito no texto de apresentao da Casa dos Cata-Ventos, este um lugar de brincar.
Ento, que negcio esse de ler e escrever? A que est o lindo disto tudo! A mesma
escola da qual falvamos antes fez do brincar e do ler/escrever dois tempos separados e
muito distintos. O primeiro pura alegria, descompromisso e descontrao. O corpo pode se
movimentar vontade. No segundo tempo, ler/escrever, rompe-se com toda esta disposio
anterior e o tempo deve ser dedicado ao sentar em silncio, um atrs do outro... - grande
parte do tempo o corpo se movimenta muito pouco. Mesmo que as letras no entrem na
cabea uma a uma, na escola elas vo sendo mostradas uma a uma como conta gotas,
mesmo que muitas crianas j conheam letras ou j estejam at alfabetizadas.
Assim, a diferena da Casa dos Cata-Ventos que este corte no acontece. A proposta
que ler e escrever seja uma continuidade do brincar, sem interrupo. Ns no percebemos,
mas quando as crianas esto no mundo, interagindo, o tempo todo a sua inteligncia est
colocando em jogo os elementos que captura de seu entorno. Formula hipteses,
capturando elementos, se empanturrando de desafios. Alguns so paridos em forma de
perguntas. Que letra essa?, Como fao para escrever o nome do meu pai?, Me ajuda a
escrever uma carta para minha me?. Outras vm como cientistas, cheias de certeza: O E
da Evelin igual o E do Eduardo. Mas tem aquelas cesarianas sem anestesia: Eu sou
mais burra do que tu... aqui, no podemos contar com a escola para desmanchar este
mandato. E a Casa dos Cata-Ventos? O que tem a ver com isto? Estas duas meninas j
esto condenadas. Podem ainda ter a pena retirada, j que no cometeram crime algum.
A partir das primeiras reunies de que participei, logo pude perceber que ler e escrever no
fazia parte do cotidiano dos plantes da Casa. Havia, porm, um projeto para ser retomado,
depois de um perodo em que a atividade no acontecera, mas sobre o qual se falava com
muito entusiasmo. Sandra Torossian, coordenadora do Projeto de Contao de Histrias,
vinha retomando a ideia com muito vigor j que as experincias anteriores haviam sido
exitosas e tambm por j ter expandido a experincia integrando a ela estagirios e
residentes. Isto significava que havia j um lugar para as letras ou haveria que se conquistar
este lugar? Talvez j houvesse um lugar conquistado para as letras, mas que pedia na sua
prpria importncia e potncia um jeito de colocar esse lugar a servio de um projeto que
envolvesse integralmente a escrita, a leitura e o brincar.
Ento, num primeiro momento fiz a proposta do uso dos crachs. Todos passariam a usar
crachs, crianas e equipe com seu nome escrito com letra maiscula de imprensa, com a
inicial de cor diferente do resto das outras letras do nome. Neste texto cabe aqui o
fundamento de que o nome prprio uma palavra profundamente significativa e que falar o
nome e apresentar o nome por escrito mobiliza o SIM para a escrita.
Na sequncia da utilizao dos crachs, muitas questes foram surgindo, que em outro
momento podero ser retomadas.
Uma segunda premissa que nos orientar o mergulho em um ambiente alfabetizador. A
Casa dos Cata-Ventos pretende disponibilizar, alm dos objetos concretamente j
disponveis, como brinquedos, fantasias e livros, tambm muitas letras, de vrios tipos,
formatos, cores e material. O alfabeto disposto na parede, letras de eve para montar
palavras, materiais para escrever, muito mais livros (foram doados livros de contos infantis)
junto biblioteca que est sendo criada. Foi confeccionado um porta-crachs, com bolsos.
Cada bolso ser para uma letra. O crach ficar guardado no bolso com a inicial do nome.
Estamos pensando em um caderno pessoal, para a escrita da histria de cada um. E,
pensamos tambm em um modo de guardar os registros para que possam ser retomados por
eles junto com a equipe.
Num terceiro aspecto, assinalo a disponibilidade da equipe presente no cotidiano da Casa.
Tal disponibilidade a condio para a compreenso visceral de que ler e escrever
processo complexo, no natural, (ou seja, h que se ter instruo ativa) e tambm para a
compreenso sobre como as camadas populares da sociedade vm sendo privadas do
conhecimento h centenas de anos. Portanto, engajar-se num projeto desta natureza ter
claro que estamos invocando um esprito transgressor, estaremos na contramo de um
sistema que insiste em privar as crianas do direito de conhecer. Mesmo que no haja
proposta de sistematizao, de introduo de uma receita, introduzimos um compromisso de
quebrar um muro do preconceito e desmanchar as certezas desesperadoras de temos a
cabea fraca.
Nenhuma criana a menos sem ter acesso a esse mundo maravilhoso da escrita e da leitura.
Nenhum dia de Casa dos Cata-Ventos sem ter sido lido ou escrito alguma coisa. A
Contao de Histrias, reinaugurada, volta batizada por eles como Livrao. Termo de
uma potncia contagiante, possvel de reinvenes permanentes.
A Casa dos Cata-Ventos e sua equipe oferecem e se oferecem a ser um campo minado de
calada e a faixa, com a entrada na vila viveramos passagens ao ato com outro grau de
violncia. Tivemos portas arrancadas de seus marcos, roubos de fantasias, corte de cabelo
de uma bolsista sem a sua autorizao. como se a transferncia tivesse se desnudado na
sua face mais violenta.
Este menino tem o diabo no corpo!
Vocs trabalham s com os que no tem futuro, no tem jeito!
Se ns batermos em vocs, o que vocs vo fazer? Vo chamar a polcia?
Voc j assistiu filme de terror? Aqui muito pior!!
Ele ficou assim porque viu ela cada no cho, cheia de sangue!! Por isto assim, doidinho,
no consegue falar direito.
Voc quer ser minha namorada?
O que vocs fazem aqui? Vo transar que vocs ganham mais!
Estas frases so ditas por crianas ou adultos da vila So Pedro durante nossa estadia l.
Refletem o encontro entre os de fora e os de dentro, numa cidade cindida com leis de
excluso muito claras.
Paulo Endo (2005) nos fala que a cidade, recortada em funo da discriminao e da
segregao entre os espaos elitizados e os espaos deteriorados, clandestinos e ilegais,
define linhas de corte que recaem, invariavelmente, sobre o corpo do cidado (pg. 53).
E sobre o corpo das crianas e sobre os nossos corpos que incidem os discursos violentos
da vila. Quando retomamos os trabalhos na casa, agora no centro da vila, expusemos toda a
equipe ao territrio violento. Trfico, lixo, podrido de dejetos, batidas policiais deixaram de
ser vivncias apenas das crianas, mas passaram a ser tambm nossas. Excessos muitas
vezes difceis de serem contornados, excessos que sobravam em anlises pessoais e
supervises. E uma diferena quase inconcilivel: somos ali os portadores da marca do
estrangeiro. Somos adultos. Somos da Universidade. Temos acesso cidade e aos seus
recursos.
Mas qual a consequncia deste excesso de violncia em sujeitos que esto em processo de
constituio? Pequenas crianas que no tem ainda um aparato simblico desenvolvido
para tentar minimizar esta avalanche de agressividade? Crianas cujas famlias esto
excludas de muito daquilo que denominamos cidadania.
Freud (1895) nos aponta em seu Projeto para uma psicologia cientfica que a dor para o
aparelho psquico a mais forte impresso e tudo pode ficar contido, resumido num buraco de
dente. Frente dor, o aparelho psquico deixa de funcionar. O ego se resume ao corpo, cabe
dentro de um buraco de crie. Frente grandes excessos, o ego tende a se defender e a se
afastar do agente agressor. Porm, como fugir se o territrio permeado de violncia? Se a
violncia acontece dentro de casa? Na rua de sua casa? Se a morte acontece na frente da
creche da comunidade? Como se estruturam estas pequenas crianas nestas condies
excessivas?
O choque traumtico representa o horror que advm do fracasso das defesas egicas,
capazes de tomar posse das atribuies psquicas e se impor para alm de qualquer
mediao, submetendo o aparelho psquico repetio estanque e empobrecedora. Isso faz
do ego, aps o seu fracasso, um vassalo da situao traumatognica, condenado a repeti-la.
(Endo,2005).
Esta criana tem o diabo no corpo!
Frente ao horror de presenciar um assassinato, o silncio ensurdecedor deste real violento.
Se o simblico no tem rendas, no tem arsenal significante para bordejar o real com
sentidos, o que resta ao pequeno espectador? Resta um diabo no corpo. Um excesso sem
fim a pulsar neste corpo e neste psiquismo a buscar recobrimentos possveis. Um corpo que
se ocupa de contar e botar o terror por onde passa, pois est, pela prpria imaturidade do
sujeito, condenado a repetir o traumtico.
Podemos enumerar os fatores de vulnerabilidade a que esto submetidas estas crianas:
violncia nas relaes familiares, na comunidade, cena primria e situaes de abuso
sexual, incompetncia do Estado em garantir direitos bsicos de educao, sade e
moradia, alm da violncia estatal na figura de uma polcia aparelhada e muito violenta.
Cidades cujo funcionamento promove a segregao e a invisibilidade destes sujeitos
margem dela.
Se possuir um corpo e nele se constituir como um sujeito desejante tarefa muito complexa
a qualquer beb, como sero as possibilidades no violentas que estas crianas em
vulnerabilidade encontram?
O encontro com estes pequenos que carregam o diabo no corpo, que demonstram a marca
da violncia impressa no seu psiquismo no ameno. A transferncia carregar todo o sem
sentido da violncia sofrida, o real no simbolizado chegar em forma de agressividade,
destrutividade e pagaremos com nosso corpo este excesso. Ao final de algumas tardes ou
manhs, onde a passagem ao ato violento a tnica das atuaes, momentos onde as
brincadeiras deixam de criar bordas para os enredos de dor e sofrimento, onde h
transbordamento pulsional, no corpo dos trabalhadores que o esgotamento fsico e
psquico surge. Por muitas vezes, acreditamos estar enxugando gelo. O emprstimo de
significantes, a criao de enredos, as propostas de nova brincadeira podem falhar e resultar
num encontro corpo a corpo, onde a continncia precisa estar marcada por palavras, mas
tambm em um toque que no seja violento.
A proposta da Casa dos Cata-Ventos est tambm neste encontro com o real da violncia.
Sustentar esta transferncia e saber que o que se mostra ali resultado de toda a vida
violentada e desamparada desta populao um ato poltico. Apostamos que um ambiente
que proporcione a brincadeira livre, a contao de histrias pode ser uma nova ancoragem
aos seus pequenos frequentadores. Uma casa onde as letras esto espalhadas em crachs
e paredes, onde ofertamos outros significantes s repeties da violncia vivida por estas
crianas poder ensejar novos futuros, novos desdobramentos. A leitura dos acontecimentos
poder se desdobrar de leituras de outras cenas, em pases distantes, onde o mal e a
Renata Maria Conte de Almeida psicanalista, membro da APPOA
nada causam nas crianas, que parece que ficamos correndo atrs das crianas sem
conseguir toc-las (s vezes literalmente!) (relato de plantonista).
Questionamo-nos: o que as crianas querem dizer com isso? O que elas esto nos
endereando? Tentamos elaborar alguma construo: seria a violncia da vila, o trauma
cotidiano, irrompendo nos plantes, ou algum evento recente especialmente terrvel que se
presentifica na conduta das crianas? Ou seria a aproximao do final do planto, sendo da
ordem do insuportvel, que estaria na base dessas atuaes, uma forma de criar uma
transitividade sentida como necessria, um espao-tempo de indistino entre a Casa e a
Vila?
Ora, transitividade nos remete a Dolto (1991, p.18), quando ela diz: as palavras do
vocabulrio so um bom exemplo de objeto transicional que a criana adquire para no
mais se separar delas. Se levantamos hipteses, portanto, como auxlio em nossa busca
por palavras que realizem a funo de ajudar a criana a atravessar as provas envolvidas
em seu crescimento e sua estruturao. So palavras que, entre outras coisas, podem ser
escovadas, a fim de produzir significado e histria, como na poesia de Manuel de Barros
(2003, I):
Logo pensei em escovar palavras porque eu havia lido em algum lugar que as palavras
eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrs dos clamores antigos que estariam
guardados dentro das palavras. Eu queria ento escovar as palavras para escutar o primeiro
esgar de cada uma.
Como no trabalhamos com manuais de semiologia pedaggica em que a criana mero
objeto de um saber, insistimos em falar - perguntar, nomear, surpreender, tensionar, ecoar,
espelhar, co-fantasiar - pois se trata do sujeito, que habita ali onde falhamos em determinlo. Paradoxalmente, por mais que falemos, no podemos exigir nada! Quer dizer, isso se
considerarmos a exigncia do lado da pedagogia, no sentido do modelamento do eu (o que
diferente do trabalho com as identificaes, que so inevitveis).
Desde a perspectiva do trabalho com o sujeito, concebemos, na formulao deste escrito,
uma lei da palavra, que deve se afastar desta concepo de exigncia e se aproximar da
noo de aposta. Apostar no implica previses, sugesto e profecias autocumpridoras, e
sim incerteza, surpresa, efeitos inesperados. uma subverso do sabido: acaso sabe a flor,
ao lanar suas sementes ao vento, onde que estas vo dar?
Ao invs de tomarmos o falar como uma tcnica, por exemplo, como a habilidade de saber
como falar com uma criana, podemos consider-lo em seu aspecto de fazer, ou seja,
considerar o modo como ele opera na estruturao do espao simblico da Casa. (O que se
faz quando se fala?). Em nosso caso, portanto, o falar o fazer primordial. Dito de outro
modo, significa que o trabalho, na Casa dos Cata-ventos, no tem apenas uma funo
digestiva - como se poderia pensar, uma funo de apoio, por analogia ao modo como
fomos classificados pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente,
como um SARA (Servio de Apoio Rede de Assistncia). Nossa inteno no apenas
teraputica - no sentido de curar pela palavra, curar pelo brincar -, tambm pautada por um
objetivo mais radical, que articular um lao com as crianas, e com a Vila, que estabelea
as coordenadas determinantes de uma experincia de si radicalmente outra. O eixo que
orienta tal experincia e que situa nosso fazer (operando, portanto, como lei) o que nos
referimos como a lei da palavra1.
Nos momentos em que explode o caos, ento, como operamos com essa lei? Uma
alternativa lanar mo da interrupo do planto:
Abrimos a casa e o caos se instala com uma rapidez incrvel. 10 minutos? 15? Arma-se uma
briga. Interrompo o planto. Morte sbita como no futebol. O primeiro gol acaba o jogo. A
primeira briga com dois machucados acaba a tarde. As crianas se revoltam, dizem que no
vo embora, que nem comeou o planto, o caos que j estava instalado aumenta (relato de
plantonista).
No significa que desistimos da palavra. Podemos inclusive dizer: Parece que agora no
est dando para conversar... - ou seja, a interrupo do planto no sem palavra. Mesmo
que tudo se d em condio de silncio, a interrupo diz algo, concebemos ela como
significante. O que tentamos marcar e aqui estamos em uma corda bamba muito tnue, a
interrupo podendo ser tomada como punio, em que corremos o risco de cair para o lado
daquela exigncia que remetemos anteriormente pedagogia - no a aprovao ou
desaprovao das condutas das crianas de acordo com nossos critrios, e sim uma
diferena: na Casa, a lei da palavra o eixo organizador. em funo dela, idealmente, que
o caos instalado pode ser considerado inaceitvel, que as atuaes das crianas podem ser
tomadas no apenas como dotadas de significado, valor subjetivo, mas tambm como
atuaes que, por sua violncia, impedem a proposta da Casa.
A interrupo do planto no uma ferramenta que diz respeito lei em um sentido negativo
- poderamos pensar, como um limite, uma proibio. Ao contrrio, concebemos ela em sua
positividade, j que um limite e uma proibio s esto propriamente includos na lei da
palavra se esta opera em um sentido positivo, concebido segundo ao menos dois
elementos.
Um deles deriva da impossibilidade de a lei ser justificada. No sabemos por qu algum
opta por falar sobre a raiva ao invs de socar, ou enunciar sua vontade ao invs de
espernear ou se ensimesmar. Simplesmente no conhecemos uma frmula para instaurar o
reino da palavra; no sabemos exatamente quais caminhos obscuros levam cada criana a
tomar o gosto de dizer. Dito de outro modo, no sabemos por qu o bico cai da boca da
criana. Mas, justamente por que falta uma soluo prvia, somos impelidos a criar, ser
agentes de um fazer cujos efeitos, posteriormente, podemos colher, catar - as palavras
podem empreender longa viagem ao vento, ns estaremos ali com a possibilidade de
testemunhar: Cata-ventos. Enfim, por isso tambm que interromper o planto, limitar e
proibir so, para ns, casos especiais do ato de falar, atravs do que impasses podem
encontrar solues mais interessantes nossa aposta fundamental, mesmo agindo em um
contexto de extrema privao material. Proibir no privar quando se pode oferecer, no
lugar do proibido, algo de maior valor:
Aps a festa de aniversrio da Casa, haviam sobrado vrias garrafas de Coca-Cola.
Decidimos levar para casa, porque no tinha como repartir igualmente entre as crianas. No
percurso da Casa at a sada da Vila estava eu, portanto, carregando duas garrafas em cada
brao. Dois meninos que eu havia conhecido naquele dia chegaram e pediram para me
ajudar a levar as garrafas. Eu digo que pesado, mas que podem tentar, e dou uma garrafa
para cada.
Eles vo me testando o percurso inteiro, ficando para trs. Mas eu os mantenho no ar, na
linha (para usar uma figura de linguagem telefonstica), perguntando sobre a histria deles,
falando com eles sobre a Casa. Eles se afastam um pouco, voltam: vai-e-vem, mas, no
obstante, vamos indo. Eu percebo o jogo deles, mas quero oferecer-lhes a possibilidade de
ocuparem outro lugar, tenho esperana de que eles se surpreendam com o encontro, tanto
quanto eu estava surpreso de estar fazendo esse percurso com eles.
quando, repentinamente, um dos meninos sai correndo com a Coca-Cola e entra em um
beco, passa por um grupo de pessoas fumando maconha, pula um amontoado de lixo, e vira
em uma ruela, perdendo-se de vista. O menino que ficou comigo diz: Tu vai ter que ir atrs
dele. Eu respondo: Eu no vou, no. Mas se ele quiser, ele pode vir at mim. Ele: Ele
menino de rua, pede dinheiro no sinal, no vai voltar.
Eu fico esperando uns cinco minutos, e o menino volta do beco, saltitando com o refrigerante
em mos.
Retomamos o percurso em direo sada, conversando, at que eles me dizem que no
querem mais carregar. Eu agradeo a ajuda e digo estar esperando v-los outro dia, na
Casa. Uma plantonista me esperava na sada e diz: Parabns, tu conseguiste. Eu
respondo: Eu no consegui nada, eles que conseguiram. Mas a verdade, pensando
depois, que eu consegui tambm. O que eu mais queria era dar o refrigerante para eles.
Qual o valor de uma Coca-Cola para um menino que pede dinheiro na rua? Eu espero, ao
menos, ter dado em troca algo mais valioso que o refrigerante: a palavra (relato de
plantonista).
Mesmo se o menino no retornasse do beco e sumisse, de fato, com a Coca-Cola, os
plantonistas no deixariam de estar indo Vila, abrindo a Casa dos Cata-ventos, e
oferecendo a ele a possibilidade de retornar. O mesmo ocorre com as interrupes de
planto. O planto acaba, mas deixamos sempre claro que Casa possvel retornar. Alis,
queremos que retornem. Que falemos sobre o que aconteceu ao invs de instaurar um nodito.
O outro elemento da lei da palavra concebida em sua positividade a circulao da palavra.
Mais do que as diferenas entre as crianas e as diferenas entre os plantonistas, a
diferena entre as crianas e os plantonistas a diferena mais importante no trabalho na
Casa, sendo na dialtica com essa diferena que circula a palavra. Por exemplo, na
interrupo do planto, muitas vezes fomos apenas os plantonistas que, talvez tambm
como efeito de nos tomarmos no lugar da responsabilidade, tomamos a deciso, sem
indagar s crianas, que assim ficaram objetificadas no ato do encerramento. Se a palavra
circula, porm, e desse modo (e somente desse modo) pode se fazer lei, apenas porque
todos podem ser sujeitos da palavra. assim que a lei da palavra torna-se no apenas uma
lei, mas uma lei-mestra, senhora de todas as outras regras da Casa. Estas no precisam,
ento, depender estritamente de sua encarnao em alguns indivduos (geralmente os
plantonistas), pois passam a estar entre todos, referidas ao coletivo.
Finalmente, se dizemos que, nos tais momentos de caos, as palavras parecem jogadas ao
vento e nada causar s crianas, porque podemos, eventualmente, ser tentados a pensar
no apenas em uma oscilao da presena da palavra, mas a ir alm: conjecturar sua total
suspenso. Trata-se, porm, de uma conjectura terica para a qual no h verificao
observacional possvel. No fim das contas, se sentimos que a palavra no tem mais efeito, o
que acontece apenas que sentimos que a palavra no tem mais efeito. Quer dizer,
fazemos uma suposio a respeito do que se passa conosco em nossa relao com as
crianas.
Quando Ulisses, ao invs de poder seguir tranquilamente sua viagem at taca, teve de lidar
com os ventos anrquicos que os marinheiros libertaram inadvertidamente do odre, no lhe
restou outra sada: apesar de tudo, navegar, encontrar algum caminho maluco at sua casa.
Assim como Ulisses, na Casa dos Cata-ventos ns insistimos em apostar, mesmo em meio
tempestade, inventar usos para o vento, por exemplo, como fazem a flor, e os vrus e
bactrias. Assim, aquilo que foi dito ao vento no necessariamente uma perda. Pode ser
um potencial. Pois o vento poder um dia voltar ( no que apostamos quando tentamos
nomear, com as crianas, o que o caos e a violncia esto impedindo a todos de falar), e nos
fazer ver que o dizer a nenhum tornou-se um dizer a todos.
Referncias bibliogrficas:
BARROS, Manoel. Memrias inventadas: a infncia.So Paulo: Planeta, 2003.
DOLTO, Franoise; NASIO, Juan David. A Criana do Espelho. Porto Alegre: Artes Mdicas,
1991.
HOMERO. Odissia. http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/odisseiap.pdf. Recuperado
em 04 de junho, 2016.
Autor: Eduardo Kives e Carla Cervera Sei
Carla Cervera Sei Psicanalista, membro da APPOA
Eduardo Kives Estudante de psicologia UFRGS, plantonista da Casa dos Cata-Ventos
[1] A palavra lei, do modo como a estamos utilizando, no se refere ao
necessrio/impossvel (cincias naturais), nem ao proibido/permitido (direito). Pensamos,
antes, no valor que palavras e gestos podem adquirir frente a um Outro que, assim, legisla
sobre o espao simblico.
protagonizar a sua luta? difcil saber ao certo qual pepita foi garimpada por ela, porm
apostamos que o dispositivo da contao de histria a ps em movimento para busc-la.
Corso&Corso (2006) deixam claro que as histrias so o terreno frtil em que outras
possibilidades de criao de si podem florescer. Para Kehl (2006, p.16) a criana
garimpeira, est sempre buscando pepitas no meio do cascalho numeroso que lhe servido
pela vida. nesse sentido, ento, que as crianas lanam mo da narrativa e entram na
trama ofertada, buscando enquadrar suas questes nos conflitos disponibilizados pela
histria ou se apropriam de fragmentos, os quais possuem em sua significao algo que
possibilita problematizar e tambm significar suas vivncias.
A fertilidade dos contos se nutre do desejo do sujeito que, lanando mo deste dispositivo, o
reinventa e, assim, reinventa a si. As narrativas infantis so, pois, talentosas em possibilitar a
simbolizao dos conflitos psquicos inconscientes. Desse modo, consideramos como um
importante elemento de elaborao daquilo que da ordem do traumtico, pois, alm de
expressarem o que sentem, pensam e vivem, seja brincando, narrando ou conversando,
tambm possibilita que criem uma nova histria a sua prpria histria.
O terror do conto Barba Azul sempre assombrara a prpria equipe de plantonistas da Casa
dos Cata-ventos, que no ousava contar histria to sanguinria e apavorante. Em um ato
de coragem, passamos a narrar Barba Azul. O fascnio nas crianas produzido pela narrao
do conto nos fez perceber a necessidade de falarmos sobre o horror. De tempos em tempos,
convidamos o Barba Azul a voltar a habitar nossas oficinas. Em sua ltima visita Casa dos
Cata-ventos, o ba virou o calabouo de seu castelo onde Barbies eram noivas degoladas, e
fiapos de tecido vermelho, sangue. A narrativa capturou um menino, que dizia desde o incio
conhecer a histria, mas que nem por um instante deixou de escutar atentamente. Este
menino sustentava a escuta at encontrarmos a chave e o ba se abrir; nesse momento, o
fechava e com o livro em mos, voltava para o incio. Foi assim por uma, duas, trs, quatro
vezes. O menino no deixava a histria terminar: a cena do encontro com o horror sempre o
impedia de prosseguir at o desfecho do conto.
No processo de inveno da sua histria, a funo do contador fundamental para sustentar
esta criao. Tomamos emprestado a ampliao do conceito de testemunha proposto por
Gagnebin (2006), o qual nomeia de terceiro a funo do ouvinte que, ao suportar a narrao
insuportvel do outro para suas palavras sejam levadas adiante, inscreve um possvel para
alm da dade algoz-vtima - por no fazer parte desse circuito -, e assim, abrir ao novo,
restabelecer o espao simblico e a emergncia de sentidos ao vivido, para alm da cena
traumtica.
Conforme j mencionamos, o cotidiano de nossas intervenes marcado por narraes
sobre o horror da violncia e da violao de direitos que se passa naquele territrio. A nossa
presena, entendida a partir desse conceito e tambm de um exerccio de alteridade que se
coloca em jogo no trabalho, aponta para um lugar fora do circuito de fixao e de
identificao. Enquanto contadoras de histrias, nos fazemos presentes junto com os contos,
que trazem s crianas essa possibilidade de um novo pelas narrativas. Dessa forma, no
somente a nossa presena, mas tambm os contos que auxiliam que se possa fazer algo
com o traumtico. Pelo plano da fantasia e do fantasiar-se, a cena traumtica pode ter um
desfecho, rompendo com a fixao na cena de horror. As histrias possuem um incio, um
meio e um fim, ou seja, nas narrativas existe um fechamento aos conflitos: ali, o terror uma
hora acaba.
Um menino, ao encarnar o Sulto do Aladim, depara-se com a possibilidade de sua morte.
Na histria, quando Jasmine precisa encontrar um prncipe para casar, o menino-sulto no
quer permitir que sua filha se case. A partir do questionamento sobre o destino do seu
reinado no caso de sua morte, o menino-sulto cria um testamento, no qual deixa tudo s
suas irms, que tambm participavam da contao. Pelo testamento, possvel dar conta de
algo - sua prpria finitude -, resolver uma situao angustiante e se inscrever em um
universo em que ele no existir mais. Pela histria, possvel brincar com a realidade da
morte e construir um desfecho. O menino-sulto garimpou vida em um contexto de morte,
ratificando a importncia de sua vida em contraponto marca social do contexto marcado
pela banalizao da morte.
Entendemos a contao de histrias como um dispositivo clnico-poltico, pois aposta na
criana enquanto sujeito, tambm de direitos, pretendendo que esta desenvolva os recursos
necessrios para exercer o protagonismo em sua vida, de modo que a dimenso subjetiva
no fique excluda ou silenciada (Rosa, 2002). Nossa escuta sustentada pela tica da
psicanlise se prope a uma tica poltica, que est a servio da construo de
alternativas que ampliem modos de viver no mundo, com uma condio de maior potncia,
criatividade e desejo dos sujeitos.
Na medida em que nos inserimos em um espao potencialmente traumtico (Endo, 2005),
somos tambm afetadas pelos conflitos que dali surgem. Assim, o contorno das narrativas
dos contos ampara nossa presena no territrio, auxiliando no desafio de nos sustentarmos
l.
Ao findar esta escrita, trazemos cena o encerramento de um momento de contao de
histrias, no qual pareceu insuportvel para um menino pr um fim em sua produo. A
possibilidade de escrever e continua... coloca um fim em sua angstia em relao ao
fechamento de sua histria, ao apontarmos que na semana seguinte teria uma continuao.
Assim, nossos fins so sempre marcados pelo compromisso da continuidade, da nossa
presena e da presena dos contos.
Referncias bibliogrficas:
CORSO, D. L.; CORSO, M. Fadas no Div: psicanlise nas histrias infantis. Porto Alegre:
Artmed, 2006
ENDO, P. C.A Violncia no Corao da Cidade: um estudo psicanaltico. So Paulo: Escuta,
2005
GAGNEBIN, J. M. Lembrar escrever esquecer. So Paulo: Ed. 34, 2006
KEHL, M. A criana e seus narradores. Em: Fadas no div: psicanlise nas histrias infantis.
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