Vilem Flusser
Vilem Flusser
Vilem Flusser
eb
w#
GIlt
III
(1997)
Mediaes
Comunicao e Cultura
Indice
Apresentao
Prefcio edio brasileira
Glossrio
2I
1
2
3
4
5
6
7
8
9
27
A imagem
Aimagem tcnica
O aparelho
O gesto de fotografar
A fotografia
A distribuio da fotografia
Arecepo da fotografia
O universo fotogrfico
23
JJ
39
49
57
65
IJ
81
9L
APRESENTAO
O livro que o letor tem em suas mos apresenta uma histria bastante singular. Publicado pela primeira vez na Alemanha em 19831, a sua verso para portugus no sim-
plesmente uma traduo, mas j uma revso da verso alem. A comear pelo ttulo: enquanto a primeira verso recebeu o nome de Fr eine Philosophie der Fotografie (<Por
uma Filosofia da Fotografia>), ttulo que foi mantido em todas as tradues para as outras lnguas, a verso para portugus teve o seu ttulo modificado para Filosofia da Caixa
Pret4 permitindo perceber melhor o universo conceptual e o
campo de abrangncia do livro. As mudanas foram providencadas pelo prprio autoti que alis escreveu ele mesmo
a verso em portugus, depois de reconsiderar alguns aspectos da sua argumentao. Vlm Flussef preciso expl
cati apesar de natural de Praga (na actual Repblica Checa) e de ter escrito a maior parte de sua obra em francs e
alemo, viveu 3I anos no Brasil e expressava-se num portugus de fazer inveja maioria dos nativos de Portugal e do
Brasil.
l. Fr
Apresentao
t0
1984, data provvel de redaco desta verso2, Flusser estava envolvido com a concepo de Ins Universum der
technischen Bilderj, que era, na verdade, um desdobramento
da Philosophre e uma resposta aos inmeros comentrios cr-
Em
11
base na sua definio semitica e tecnolgica que se constroem hoje as mquinas contemporneas de produo simbIica. E ,o* a fotografia que se inicia, portanto, um novo
paradigma na cultura do homem, baseado na automatizao
da produo, distribuio e consumo da informao (de
qualquer nformao, no s da visual), com consequncias
gigantescas para os processos de percepo individual e para os sistemas de organizao social. Mas com as imagens
electrnicas (difundidas pela televiso) e com as imagens
digitais (difundidas agora no chamado cberespao) que essas mudanas se tornaram mais perceptves e suficientemente ostensivas para demandar respostas por parte do
pensamento crtco-filosfico. Que ningum espere, portanto, encontrar nesta obra de Flusser uma anlise dafotografia de tipo clssico, baseada em orientaes da lingustica
ou da sociologia. Afotografra abordada aqui com base sobretudo em conceitos da ciberntica e ela comparece na
obra apenas como um modelo bsico para a anlise do modo de funcionamento de todo e qualquer aparato tecnolgico ou meditico. Da que Filosofia da Caixa Preta traduza
melhor as ambies da obra do que um lacnico Filosofia
da Fotografia.
Porqu caixa preta? Sabemos que o termo vem originalmente da electrnica, onde utilizado para designar uma
parte complexa de um crcuto electrnico que omitida intenconalmente no desenho de um circuito maor (geralmente para fins de simplfficao) e substituda por uma caxa
(bax) vazia, sobre a qual apenas se escreve o nome do circuito omitido. Atentemos ao facto bastante significativo de
que Gregory Bateson, no seu Steps to an Ecology of Mind4,
amplia ironicamente o significado de caixa preta, com o propsito de aplic.-lo a grande parte dos conceitos problem4. New York: Ballantine, 1972.
l2
Apresentao
13
potxto em que ambas exprmem um desconhecimento fundamental e, mais do que isso, um desconhecimento que se
transforma em actvidade, fora motriz e razo de ser, seja
do pensamento (no caso de Bateson), seja da sociedade (no
caso de Flusser). Somos, cada vez mais, operadores de rtulos, apertadores de botes,
das mquinas,Ii"funconrios>>
damos com situaes programadas sem nos darmos conta
delas, pensamos que podemos escolher e, como decorrncia,
imaginamo-nos inventivos e livres, mas a nossa liberdade e a
nossa capacdade de inveno esto restritas a um software,
a um conjunto de possibIidades dadas a priori e que no podemos dominar inteiramente. Esse o ponto em que a Filosofia de Flusser quer justamente intervir: ela quer produzir
uma reflexo densa sobre as possibilidades de criao e l
berdade rluma sociedade cada vez mais programada e centralizada pela tecnologia.
Em terrnos bastante esquemticos, podemos resumir mais
ou menos assim o percurso do pensamento de Flusser naFilosofia; a imagem fotogrfica no tem nenhuma <objectivid"ade> preliminar; no corresponde a qualquer duplicao
automtica do mundo; ela consttuda de signos abstractos
forjados pelo aparato (cmara, objectiva, pelcula), pois a
sua funo fundamental materialzar conceitos centftcos.
T4
Apresentao
t5
l6
Apresentao
domundoedetercolaboradoemrevistascientficasefilosficasdeprestgiointenlacional,eleeraumautodidacta:
de
levando-se em considerao a sua histria pessoal: iudeu
pas
nascimento, Flusser teve de viver fugindo de pas para
terem
vida
sua
da
justamente no perodo mais importae
"mos
de escolaidade. Em 1939, quando conseguiu refugiar'
pe-se na Inglaterra, toda a suafamlia hovia sido liquidada
pa,
o
los nazis na ento chamada checoslovquia, inclusive
reitor da Universidade de Praga. Cansado de ver a Europa
submergir nas trevas, com os seus mitos arcaicos de raa'
ideologia e nao, ele migra com a sua mulher Edith Barth
poro i Brosil, acreditando encontrar a uma civIizao des'comprometida
com os valores do velho mundo' No foi bem
essi o caso. Embora Flusser tenha conseguido tornar'se um
plodeatracoentreosintelectuaismaisindependentesdo
'pas,
foi hostitizado tanto pela ditadura militat que dominou
'o
pot entre 1964 e 1984, quanto pela esquerda local' que' no
rtiZer de Srgio Paulo Rouaneq, <no podia entender um
6'oFlusseremPrago.InJornaldoBrasil,RiodeJaneiro,ll.0l'97,Cademode
ldias, p. 5,
T7
Apresentao
t8
distribuio instantnea
tonxam-se bytes, sequncias de texto convertem-se em sequncias de pixels, os fins e os meios so substitudos pelo
acaso, as leis pelas probabilidades e a razo pela programade
oa. certo que muitos pensadores contemporneos McLuhan a Kerckhove, de Debord a Baudrllard, de Ong a
buscaram ou continuam a buscar exprimir algo seLvy
melhante por outras vias e com outros argumentos, mas
Flusser f-lo com uma clareza, com uma preciso, com uma
radicalidade e sobretudo com uma fora ncendiria' que
tornT torlos os outros caminhos mais tortuosos, mais ridos,
mais retricos e estrategicamente menos eficazes.
Arlindo Machado*
O presente ensaio resumo de algumas conferncias e aulas que pronunciei sobretudo na Frana e na Alemanha. A pedido da European Photography, Gttingen, foram reunidas
neste pequeno livro publicado em alemo em 1983. A reaco do pblico (no apenas dos fotgrafos, mas sobretudo do
interessado em filosofia) foi dividida, porm intensa. Em
consequncia polmica criada, escrevi outro ensaio Ins
Universum der technischen Bilder (Adentrando o universo
das imagens tcnicas), publicado em 85, onde procuro ampliar e aprofundar as reflexes aqui apresentadas.
Estas partem da hiptese segundo a qual seria possvel observar duas revolues fundamentais na estrutura cultural, tal
como se apresenta, de sua origem at hoje. A primeira, que
ocoffeu aproximadamente em meados do segundo milnio
a.C., pode ser captada sob o rtulo <<inveno da escrita linean> e inaugura a Histria propriamente dita; a segunda, que
ocoe actualmente, pode ser captada sob o rtulo <<inveno
das imagens tcnicas>> e inaugura um modo de ser ainda dificilmente definvel. A hiptese admite que outras revolues
podem ter ocorrido em passado mais remoto, mas sugere que
elas nos escapam.
22
Vilm Flusser
Para que se preserve seu carter hipottico, o ensaio no cttar trabalhos precedentes sobre temas vizinhos, nem conter
A inteno que move este ensaio contribuir para um dilogo filosfico sobre o aparelho em funo do qual vive a actualidade, tomando por pretexto o tema fotografia. Submeto-o, pois, apreciao do pblico brasileiro. Fao-o com esperana e com receio. Esperana, porque, ao contrrio dos
demais pblicos que me lem, sinto saber para quem estou
falando; receio, por desconfiar da possibilidade de no encontrar reaco crtrca. Este prefcio se quer, pois, aceno aos
amigos do outro lado do Atlntico e aos crticos da imprensa.
Que me leiam e no me poupem.
Percebo que editar este ensaio no contexto brasileiro empresa aventurosa. Quero agradecer aos que nela mergulharam, sobretudo Maria LliaLeo, por sua coragem e amizade. Que sua iniciativa contribua para o dilogo brasileiro.
V. F.
So Paulo, outubro 85
Vilm Flusser
24
25
mente.
1.
A IMAGEM
As imagens so superfcies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lforu no espao e no tempo. As imagens so, portanto, resultado do esforo de se abstrair duas das quatro dimenses espcio-temporais, para que se conservem apenas as dimenses do
plano. Devem a sua origem capacidade de abstraco especfica a que podemos chamar imaginado. No entanto, a imaginao tem dois aspectos: se, por um lado, permite abstrair
de duas dimenses dos fenmenos, por outro, permite reconstituir as duas dimenses abstradas na imagem. Noutros
termos: a imaginao a capacidade de codificar fenmenos
de quatro dimenses em smbolos planos e descodificar as
mensagens assim codificadas. Imaginao a capacidade de
fazer e decifrar imagens.
O factor decisivo no deciframento de imagens tratar-se
de planos. O significado da imagem encontra-se na superfcie e pode ser captada por um golpe de vista. No entanto, tal
mtodo de deciframento produzir apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser <<aprofundar> o significado e restituir as dimenses abstradas, deve permitir sua ista vaguear pela superfcie da imagem. Este vaguear pela su-
28
Vilm Flusser
29
30
Vilm Flusser
em determinados textos da cincia exacta. Deste modo, a hierarquia dos cdigos vai ser perturbada: embora os textos sejam um metacdigo de imagens, determinadas imagens passam a ser um metacdigo de textos.
No entanto, a situao complica-se ainda mais devido
contradio interna dos textos. Eles so mediaes tanto
quanto o so as imagens. O seu propsito mediar entre o
homem e as imagens. Ocorre, porm, que os textos podem tapar as imagens que pretendem representar algo para o homem. Este passa a ser incapaz de deifrar os textos, no conseguindo reconstituir as imagens abstradas. Passa a viver j
no para se servir dos textos, mas em funo destes. Surge a
textolatria, to alucinatria como a idolatria. Exemplo impressionante de textolatna a <fidelidade ao texto>>, tanto nas
ideologias (crist, marxista, etc.), quanto nas cincias exactas. Tais textos passam a ser inimaginveis, como o o universo das cincias exactas: no pode e no deve ser imaginado. No entanto, como o derradeiro significado dos conceitos
so imagens, o discurso cientfico passa a ser composto de
conceitos vazios; o universo da cincia torna-se um universo
vazio. A textolatria assumiu propores crticas no percurso
do sculo passado.
A crise dos textos implica o naufrgio da Histria toda, que
, estritamente, o processo de recodificao de imagens em
conceitos. A Histria a explicao progressiva de imagens,
desmagicizao, conceptualzao. L, onde os textos jno
significam imagens, nada resta a explicar, e a histria pra.
Em tal mundo, as explicaes passam a ser suprIuas: um
mundo absurdo, o mundo da actualidade.
Pois precisamente num tal mundo que esto a ser inventadas as imagens tcnicas. E em primeiro lugar, as fotografias, a fim de ultrapassar a crise dos textos.
2. A
IMAGEM TCNICA
cientfico aplicado. As imagens tcnicas so, portanto, produtos indirectos de textos, o que lhes confere uma posio histrica e
ontolgica diferente da das imagens tradicionais. Historicamente, as imagens tradicionais precedem os textos em milhares de anos, e as imagens tcnicas sucedem aos textos altamente evoludos. Ontologicamente, a imagem tradicional
uma abstraco de prrqteiro grau: abstrai duas dimenses do
fenmeno concreto; a imagem tcnica uma abstraco de
terceiro grau, abstrai uma das dimenses da imagem tradicional para resultar em textos (abstraco de segundo grau);
depois, reconstituem a dimenso abstrada, a fim de resultar
novamente em imagem. Historicamente, as imagens tradicionais so pr-histricas; as imagens tcnicas so ps-histricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais <<imaginam> o mundo; as imagens tcnicas imaginam textos que
concebem imagens que imaginam o mundo. Essa posio das
imagens tcnicas decisiva para o seu deciframento.
Elas so dificilmente decifrveis pela razo curiosa de que
aparentemente no necessitam de ser decifradas. Aparente-
34
Vilm Flusser
mente, o significado das imagens tcnicas imprime-se de forma automtica sobre as suas superfcies, como se fossem impresses digitais onde o significado (o dedo) a causa, e a
imagem (o impresso) o efeito. O mundo representado parece ser a causa das imagens tcnicas, e elas prprias parecem
ser o ltimo efeito de uma complexa cadeia causal que parte
do mundo. O mundo a ser representado reflecte raios que vo
sendo fixados sobre superfcies sensveis, graas a processos
pticos, qumicos e mecnicos, assim surgindo a imagem.
Aparentemente, pois, imagem e mundo encontram-se no mesmo nvel do real: so unidos por uma cadeia inintemrpta de
causa e efeito, de maneira que a imagem parece no ser um
smbolo e no precisar de deciframento. Quem v a imagem
tcnica parece ver o seu significado, embora indirectamente.
;
O carcer aparentemente no-simblico, objectivo, das
imagens tcnicas faz com que o seu observador as olhe como
se fossem janelas e no imagens.'lO obseruador confia nas
imagens tcnicas tanto quanto confia nos seus prprios olhos.
Quando critica as imagens tcnicas (se que as critica), no
o faz enquanto imagens, mas enquanto vises do mundo. Essa atitude do observador face s imagens tcnicas caracteiza
a situao actual, onde tais imagens se preparam para eliminar os textos. Algo que apresenta consequncias altamente
perigosas.
A aparente objectividade das imagens tcnicas ilusria,
pois na realidade so to simblicas quanto o so todas as
imagens.'Devem ser decifradas por quem deseja captar-lhes
o significado)'Com efeito, elas so smbolos extremamente
abstractos: codificam textos em imagens, so metacdigos de
textos. A imaginao, qual devem a sua origem, a capacidade de codificar textos em imagens. Decifr-las reconstituir os textos que tais imagens significam. Quando as imagens tcnicas so correctamente decifradas, surge o mundo
conceptual, como sendo o seu universo de significado. O que
35
36
Vilm Flusser
JI
38
Vilm Flusser
3. O APARELHO
40
Vilm Flusser
posio ontolgica. Sem dvida, trata-se de objectos produzidos, isto , objectos trazidos da natureza para o homem. O
conjunto de objectos produzidos perfaz a cultura. Os aparelhos fazem parte de determinadas culturas, conferindo a estas
ceftas caractersticas. No h dvida que o termo aparelho
utilizado s vezes, para denominar fenmenos da natuezai
por exemplo, <<aparelho digestivo>>, por se tratar de rgos
complexos que esto espreita de alimentos para enfim
digeri-los. Sugiro, porm, que se trata de um uso metafrico,
transporte de um termo cultural para o domnio da natureza.
Se no fosse a existncia de aparelhos na nossa cultura, no
poderamos falar em <<aparelho digestivo>.
Grosso modo, h dois tipos de objectos culturais: os que
so bons para serem consumidos (bens de consumo) e os que
so bons para produzirem bens de consumo (instrumentos).
Todos os objectos culturais so bons, isto : so como devem
ser, contm valores. Obedecem a determinadas intenes humanas. esta a diferena entre as cincias danattrezae as da
cultura: as cincias culturais procuram a inteno que se esconde nos fenmenos, por exemplo, no aparelho fotogrfico,
poftanto, segundo um tal critrio, o aparelho fotogrfico parece ser instrumento. A sua inteno produzir fotografias.
Aqui surge a dvida: as fotografias sero bens de consumo
como bananas ou sapatos? O aparelho fotogrfico ser um
instrumento como o faco produtor de bananas, ou a agulha
produtora de sapatos?
Os instrumentos tm a inteno de arrancar objectos da natureza para aproxim-los do homem. Ao faz-lo, modificam
a forma desses objectos. Este produzir e informar chama-se
<trabalho>>. O resultado chama-se <<obr>. No caso da banana, a produo , mais acentuada que a informao; no caso
do sapato, a informao que prevalece. Os faces produzem
sem informarem muito, as agulhas informam muito mais. Sero os aparelhos agulhas exageradas que informam sem nada
4l
42
Vilm Flusser
Nestas perguntas, sente-se que, embora razoveis, no ferem ainda o problema do aparelho. Os aparelhos por certo informam, simulam rgos, recoffem a teorias, so manipulados por homens e servem interesses ocultos. Mas no isto
que os caractenza. As perguntas acima no so nada interessantes, quando se trata de aparelhos. Provm, todas elas do
terreno industrial, quando os aparelhos, embora produtos industriais, j apontam para alm do industrial: so objectos
ps-industriais. Da que as <<perguntas industriais>> (por
exemplo, as marxistas) j no sejam competentes para os
aparelhos. Da a nossa dificuldade em defini-los: os aparelhos so objectos do mundo ps-industrial, para o qual ainda
no dispomos de categorias adequadas.
A categoria fundamental do terreno industrial (e tambm
do pr-industrial) o trabalho. Os instrumentos trabalham.
Arrancam objectos da natureza e enformam-nos. Os aparelhos no trabalham. A sua inteno no a de <<modificar o
mundo>>. Visam modificar a vida dos homens. Deste modo,
os aparelhos no so instrumentos no significado tradicional
do termo. O fotgrafo no trabalha e faz pouco sentido
chamar-lhe <<proletrio>>. J que, actualmente, a maioria dos
homens est empenhada nos aparelhos, no faz sentido falar-se em <<proletariado>>. Devemos repensar as nossas categorias, se quisermos analisar a nossa cultura.
Embora os fotgrafos no trabalhem, agem. Este tipo de actividad sempre existiu. O fotgrafo produz smbolos,
manipula-os e arnazena-os. Escritores, pintores, contabilistas,
administradores sempre fizeram o mesmo. O resultado deste
tipo de actividade so as mensagens: livros, quadros, contas,
projectos. No servem para serem consumidos, mas para informar: serem lidos, contemplados, analisados e levados em
conta nas decises futuras. Estas pessoas no so trabalhadorcs mas informadores. Pois actualmente, a actividade de prodnzir, manipular e amazena smbolos (actividade que no
43
trabalho no sentido tradicional) est a ser exercida por aparelhos. E esta actividade vai dominando, programando e controlando todo o trabalho, no sentido tradicional do termo. Amaioria da sociedade est empenhada nos aparelhos dominadores,
programadores e controladores. Outrora, antes de os aparelhos
serem inventados, este tipo de actividade chamava-se <<tercina>>, j que no dominava" Actualmente, ocupa o centro da cena. Querer definir os aparelhos querer elaborar categorias
apropriadas cultura ps-industrial que est a surgir.
Se considerannos o aparelho fotogrfico sob tal prisma,
constataremos que o <<estar programado>> que o catactenza.
As superfcies simblicas que produz esto, de alguma forma, inscritas previamente (<<programadas>>, <<pr-escritas>)
por aqueles que o produziram. As fotografias so realizaes
de algumas das potencialidades inscritas no aparelho. O nmero de potencialidades grande, mas limitado: a soma de
todas as fotografias fotografveis por este aparelho. A cada
fotografia reahzada, diminui o nmero de potencialidades,
aumentando o nmero de reahzaes: o programa vai-se esgotando e o universo fotogrfico vai-se realizando. O fotgrafo age em prol do esgotamento do programa e em prol da
realizao do universo fotogrfico. J que o programa muito <<rico>>, o fotgrafo esfora-se por descobrir potencialidades ignoradas. O fotgrafo manipula o aparelho, apalpa-o,
olha para dentro e atravs dele, a fim de descobrir sempre novas potencialidades. O seu interesse est concentrado no aparelho e o mundo lfora s interessa em funo do programa.
No est empenhado em modificar o mundo, mas em obrigar
o aparelho a revelar as suas potencialidades. O fotgrafo no
trabalha com o aparelho, mas brinca com ele. A sua actividade evoca a do xadrezista: este tambm procura um'lance <<novo>>, a fim de realizar uma das virtualidades ocultas no programa do jogo. Esta comparao facilita a definio que tentamos formular.
44
Vilm Flusser
O aparelho um brinquedo e no um instrumento, no sentido tradicional. O homem que o manipula no um trabalhador, mas um jogador: j no homo faber, mas homo Iudens.Este homem no brinca com o seu brinquedo, mas contra ele. Procura esgotar-lhe o programa. Por assim dizer: penetra no aparelho, a fim de descobrir-lhe as manhas. Deste
modo, o <<funcionrio> no se encontra cercado de instrumentos (como o arteso pr-industrial), nem est submisso
mquina (como o proletrio industrial), mas encontra-se no
interior do aparelho. Trata-se de uma funo nova, na qual o
homem no a constante nem a varivel, mas est indelevelmente amalgamado ao aparelho. Em todas as funes do aparelho, funcionrio e aparelho confundem-se.
Para funcionar, o aparelho precisa de um programa <<rico>>.
Se fosse <<pobre>>, o funcionrio esgot-lo-ia e isto seria o fim
do jogo. As potencialidades contidas no programa devem exceder a capacidade do funcionrio para esgot-las. A competncia do aparelho deve ser superior competncia do funcionrio. A competncia do aparelho fotogrfico deve ser superior em nmero de fotografias competncia do fotgrafo
que o manipula. Noutros termos: a competncia do fotgrafo
deve ser apenas parte da competncia do aparelho. Deste modo, o programa do aparelho deve ser impenetrvel, na sua totalidade, para o fotgrafo. Na procura de potencialidades escondidas no programa do aparelho, o fotgrafo perde-se nele.
Um sistema assim to complexo jamais penetrado totalmente e pode chamar-se caixa negra. Se o aparelho fotogrfico no fosse uma caixa negra, de nada serviria ao jogo do
fotgrafo: seria um jogo infantil, montono. O negrume da
caixa o seu desafio, porque, embora o fotgrafo se perca na
sua barriga negra, consegue, curiosamente, domin-la. O
aparelho funciona, efectiva e curiosamente, em funo da inteno do fotgrafo. Isto porque o fotgrafo domina o input
e o output da caixa: sabe com que <<aliment-lu e como fa-
45
46
Vilm Flusser
Por conseguinte, jno vale a pena possuir objectos. O poder passou do propriettrio paru o programador de sistemas.
Quem possui o aparelho no exerce o poder, mas quem o programa e quem realiza o programa. O jogo com os smbolos
passa a ser um jogo de poder. Trata-se, porm, de um jogo
hierarquicamente estruturado. O fotgrafo exerce poder sobre quem v as suas fotografias, programando os receptores.
O aparelho fotogrfico exerce poder sobre o fotgrafo. A indstria fotogrfica exerce poder sobre o aparelho. E assim ad
48
Vilm Flusser
4. O GESTO DE FOTOGRAFAR
50
Vilm Flusser
51
52
Vilm Flusser
53
quando aparecerem na fotografia. Antes no passam de virtualidades. O fotgrafo-e-o-aparelho que as realiza.Inverso do vector da significao: no o significado, mas o significante que a realidade. A fotografia a realidade; no o
que se passa lfora, nem o que est inscrito no aparelho. Esta inverso do vector da significao caractenza o mundo
ps-industrial e todo o seu funcionamento.
O gesto fotogrfico uma srie de saltos. O fotgrafo salta por cima das_ barreiras que separam as vrias regies do
espao-tempo. um gesto quntio, uma procura termodinmica. Cada vez que o fotgrafo esbarra contra barreiras,
detm-se, para depois decidir para que regio do tempo e do
espao vai saltar a partir deste ponto. Esta paragem e a subsequente deciso manifestam-se atravs da manipulao determinada do aparelho. Este tipo de procura tem um nome:
dvida. No se trata de dvida cientfica, nem existencial,
nem religiosa. uma dvida de tipo novo, que mi a hesitao e as decises em gros de areia. Sendo tal dvida a caracterstica de toda a existncia ps-industrial, merece ser
examinada mais de perto.
Cada vez que o fotgrafo esbarra contra um limite de deterrninada categoria fotogrfica hesita, porque est a descobrir a limitao inerente a qualquer ponto de vista, porque est a descobrir que h outros pontos de vista disponveis no
programa. Est a descobrir a equivalncia de todos os pontos
de vista programados, em relao cena a ser produzida. a
descoberta do facto de que qualquer situao est cercada de
numerosos pontos de vista equivalentes. E que todos estes
pontos de vista so acessveis. Com efeito, o fotgrafo hesita, porque est a descobrir que o seu gesto de caar um movimento de escolha entre pontos de vista equivalentes, e o
que tem de resgatar no determinado ponto de vista, mas
um nmero mximo de pontos de vista. Uma escolha quantitativa e no-qualitativa.
54
Vilm Flusser
55
memria do fotgrafo e do aparelho. A realizao d-se graas a um jogo de permutao com os conceitos, e graas a
uma transcodificao automtica de tais conceitos permutados em imagens. A estrutura do gesto quntica: uma srie
de hesitaes e decises claras e distintas. Estas hesitaes e
decises so saltos de pontos de vista para pontos de vista. O
motivo do fotgrafo, em tudo isto, realizar cenas jamais vistas, <<informativas>>. O seu interesse est concentrado no aparelho. Esta descrio no se aplica, nas suas linhas gerais,
apenas ao fotgrafo, mas a qualquer funcionrio, desde o empregado de banco ao presidente americano.
O resultado do gesto fotogrfico so fotografias, esse tipo
de superfcies que nos cerca actualmente por todos os lados.
Deste modo, a considerao do gesto fotogrfico pode ser a
avenida de acesso a tais superfcies omnipresentes.
5. A FOTOGRAFIA
As fotografias so omnipresentes: coladas em lbuns, reproduzidas em jornais, expostas em vitrines, paredes de escritrios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas, t-shirts. Que significam
estas fotografias? Segundo as consideraes precedentes,
significam conceitos programados, visando programar magicamente o comportamento dos seus receptores. Mas no o
que se v quando para elas se olha. Vstas ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamente sobre superfcies. Mesmo um observador ingnuo admitiria que as
cenas se imprimiram a paftir de um determinado ponto de
vista. Mas o argumento no lhe convm. O facto relevante
para ele que as fotografias abrem ao observador vises do
mundo. Qualquer filosofia da fotografia no passa, para ele,
de ginstica mental para alienados.
No entanto, se o observador ingnuo percoffer o universo
fotogrfico que o cefca, no poder deixar de ficar perturbado. Era de esperar: o universo fotogrfico representa o mundo l fora atravs deste universo, o mundo. A vantagem permitir que se vejam as cenas inacessveis e preservar as passageiras (o que, afinal de contas, seja admitido, j uma filoso-
58
Vilm Flusser
59
60
Vilm Flusser
61
62
Vilm Flusser
teno programada no aparelho a de reahzar o seu programa, ou seja, programar os homens para que lhe sirvam de
feed-back para o seu contnuo aperfeioamento.
Mas por trs da inteno do aparelho fotogrfico h intenes de outros aparelhos. O aparelho fotogrfico produto do
aparelho da indstria fotogrfica, que produto do aparelho
do parque industrial, que produto do aparelho scio-econmico e assim por diante. Atravs de toda esta hierarquia de aparelhos, coe uma nica e gigantesca inteno, que
se manifesta no output do aparelho fotogrfico: fazer com
que os aparelhos programem a sociedade para um comportamento propcio ao constante aperfeioamento dos aparelhos.
Se comparanos as intenes do fotgrafo e do aparelho,
constataremos pontos de convergncia e divergncia. Nos
pontos convergentes, aparelho e fotgrafo colaboram; nos divergentes, combatem-se. Qualquer fotografia o resultado de
tal colaborao e combate. Ora, colaborao e combate
confundem-se. Determinada fotografia s decifrada, quando tivermos analisado como a colaborao e o combate nela
se relacionam.
No confronto com determinada fotografia, eis o que o crtico deve perguntar: at que ponto conseguiu o fotgrafo
apropriar-se da inteno do aparelho e submet-la sua prpria? Que mtodos utilizou: astcia, violncia, truques? At
,que ponto conseguiu o aparelho apropriar-se da inteno do
fotgrafo e desvi-la para os propsitos nele programados?
Responder a tais perguntas ter os critrios para julg-la. As
fotografias <<melhores>> seriam aquelas que evidenciam a vitrra da inteno do fotgrafo sobre o aparelho: a vitria do
homem sobre o aparelho. Foroso constatar que, muito embora existam tais fotografias, o universo fotogrfico demonstra at que ponto o aparelho j consegue desviar os propsitos dos fotgrafos para os fins programados. A funo de toda a crtica fotogrfica seria, precisamente, revelar o desvio
63
6. A DISTRIBUIO DA FOTOGRAFIA
66
Vilm Flusser
67
(r8
Vilm Flusser
para a informao. A ps-indstria precisamente isso: desejar a informao e jno os objectos . Jno se trata de possuir e distribuir propriedades (capitalismo ou socialismo).
Trata-se de dispor de informaes (sociedade informtica).
No: mais um par de sapatos, mais um mvel, porm, mais
uma viagem, mais uma escola, eis a meta. Transvalorao de
valores, tornada palpvel nas fotografias.
Os objectos caffegam certamente informaes, e o que
lhes confere valores. O sapato e o mvel so informaes armazenadas. Mas nestes objectos, a informao est impregnada, no se pode descolar, apenas pode ser gasta. Na fotografia, a informao est na superfcie e pode ser reproduzida noutras superfcies, de to pouco valor como as primeiras.
A distribuio da fotografia ilustra, pois, a decadncia do
conceito de propriedade. I no tem o poder quem possui,
mas sim quem programa informaes e as distribui. Neo-imperialismo. Se determinado cataz se rasgar com o vento,
nem por isso o poder da agncia publicitria, programadora
do cartaz, frcar diminudo. O artaz no vale nada e no tem
sentido querer possu-lo. Pode ser substitudo por outro. A
comparao da fotografia com quadros impe repensar valores econmicos, polticos, ticos, estticos e epistemolgicos
do passado.
A decadncia do objecto e a emergncia da informao
evidenciam-se melhor nas fotografias do que nas demais
imagens tcnicas que nos cercam. O receptor do filme ou do
programa de TV no segura nada na sua mo, mas o receptor
despreza-o. Vivencia concretamente o quanto ficaram desprezveis os objectos. Ao segurar a fotografia entre os dedos,
o receptor aplica-se contra o objecto e em favor da informao, smbolo na superfcie da fotografia. Exactamente como
faz o receptor do folheto. Aps decifrada a mensagem simblica, a folha pode ser descartada. No entanto, o paralelismo
69
70
Vilm Flusser
da comercial e poltica.Eh canais para fotografias artsticas, por exemplo, revistas, exposies e museus. No entanto,
estes canais dispem de dispositivos que permitem a determinadas fotografias deslizarem de um canal a outro. As fotografias do homem na Lua podem transitar da revista de astronomia para a parede do consulado americano, da para
uma exposio artstica e da para o lbum de um liceal. De
cada vez que troca de canal, a fotografia muda de significado: de cientfica passa a ser poltica, artstica, privada. A diviso das fotografias em canais de distribuio no operao meramente mecnica: trata-se de uma operao de transcodificao. Algo a ser levado em considerago por qualquer
crtica da fotografia.
O fotgrafo colabora nessa transcodificao da fotografia
pelos aparelhos de distribuio e f-lo de maneira sui generis. Ao fotografar, visa determinado canal para distribuir a
sua fotografia. Fotografa em funo de determinada publicao cientfica, determinado jornal, determinada exposio,
ou simplesmente em funo de seu lbum. Do ponto de vista
do fotgrafo, movem-no duas razes: primeira, o canal
permitir-lhe- alcanar um grande nmero de receptores, pois
o seu empenho precisamente etemizar-se num mximo de
pessoas; segunda, o canal vai sustent-lo economicamente,
pois a fotografia, enquanto objecto desprezvel, no tem valor de troca. Em suma: o canal para o fotgrafo um mtodo
para torn-lo imortal e no morer de fome (quanto ao lbum
por ser um canal sui generis, aparentemente <<privado>>, ser
discutido no captulo seguinte).
No canal, a inteno do fotgrafo e do aparelho co-implicam-se pela mesma involuo j discutida: o fotgrafo
fotografa em funo de um jornal determinado, porque este
lhe permite alcanar centenas de milhares de receptores e
porque lhe paga. O fotgrafo cr estar a utllizar o jornal como medium. enquanto o jornal cr estar a utllizar o fotgrafo
de Julien Benda.
72
Vilm Flusser
tuao onde os aparelhos dominam. Ao formularem perguntas do tipo < a fotografia arte?>>, ou <<o que fotografia politicamente comprometida?>>, sem admitirem que tais perguntas vo sendo respondidas automaticamente pelos canais, os
crticos contribuem para o ocultamento dos aparelhos programadores.
Ao considerarmos a distribuio das fotografias, esbarramos naquilo que as distingue das demais imagens tcnicas:
so imagens imveis e mudas do tipo <<folhu e podem ser infinitamente reproduzidas; poderiam ser distribudas como folhetos, no entanto, so distribudas por aparelhos gigantescos
que as irradiam por um discurso massificante; enquanto objectos, as fotografias no tm valor: este reside na informao que guardam superficialmente; so, portanto, objectos
ps-industriais: o interesse desvia-se par a informao e no
para o objecto, que se abandona; antes de serem distribudas,
as fotografias so transcodificadas pelo aparelho de distribuio, a fim de serem subdivididas em canais diferentes; s
dentro do canal, do medium, adquirem o seu ltimo significado; nesta transcodificao, cooperam tanto o fotgrafo
quanto o aparelho. Este facto silenciado pela maior parte da
crtica, o que torna os aparelhos de distribuio invisveis para os receptores das fotografias. Graas a uma tal crtrca
<funcional>, o receptor da fotografia vai receb-la de modo
no-crtico. E ser assim que os aparelhos de distribuio podero programar o receptor para um comportamento mgico
que sirva defeed-backpara os seus aparelhos.
7. A RECEPAO DA FOTOGRAFIA
O aparelho fotogrfico comprado por quem foi programado para tal. Os aparelhos de publicidade programam essa
compra. O aparelho fotogrfico assim comprado ser de <<ltimo modelo>>: menor, mais barato, mais automtico e eficiente que o anterior. O aparelho deve o aperfeioamento
constante dos modelos ao feed-back dos que fotografam. O
aparelho da indstria fotogrfica vai assim aprendendo, pelo
comportamento dos que fotografam, como programar cada
vez melhor os aparelhos fotogrficos que produzir. Neste
sentido, os compradores de aparelhos fotogrficos so.funcionrios do aparelho da indstria fotogrfica.
Uma vez adquirido, o aparelho fotogrfico vai revelar-se
um brinquedo curioso. Embora repouse sobre teorias cient-
74
Vilm Flusser
75
76
Vilm Flusser
77
78
Vilm Flusser
79
cova de dentes deixar de revelar foras ocultas do tipo <crie>>, mas mostrar o programa das agncias de publicidade e
o programa do governo. Ficar evidente que <crie>) consta
de tais programas.
Acrtica pode ainda desmagicizar aimagem.
No entanto, algo de verdadeiramente monstruoso pode
acontecer no decurso do esforo para desmagiciz-Ia: o ctico est actualmente programado para uma viso mgica do
mundo. O prprio crtico v foras ocultas em toda parte. Sob
tal viso, os prprios aparelhos tomam-se foras ocultas: o
jornal, o partido, a agncia de publicidade, o parque industrial so deuses a serem exorcizados pela fotografia. Uma
hierofania de segundo grau, onde o jornal vai tomar o lugar
do terrorismo desmitificado. Os aparelhos j no so percebidos enquanto brinquedos automticos, mas como possudos por foras inefveis. A crtica da cultura da Escola de
Frankfurt um bom exemplo desse paganismo de segundo
grau, exorcismo do exorcismo.
Resumindo, eis como as fotografias so recebidas: enquanto objectos, no tm valor, pois todos sabem faz,-las e
delas fazem o que bem entendem. Na realidade, so elas que
manipulam o receptor para o comportamento ritual, em proveito dos aparelhos. Reprimem a sua conscincia histrica e
desviam a sua faculdade ctica para que a estupidez absurda
do funcionamento no seja consciencializada. Assim, as fotografias vo formando um crculo mgico em torno da sociedade, o universo das fotografias. Contemplar este universo visando quebrar o crculo seria emancipar a sociedade do
absurdo.
,ilrt
8. O UNIVERSO FOTOGRAFICO
es-
82
Vilm Flusser
83
Vilm Flusser
84
<<um>>
<(pensam>>
ra lgica.
85
ne
c ess
ari ame nt e,
86
Vilm Flusser
Estar no universo fotogrfico mplica viver, conhecer, valorar e agir em funo de fotografias. Isto : existir num
mundo-mosaico. Vivenciar passa a ser recombinar constantemente experincias vividas atravs de imagens. Conhecer
passa a ser elaborar colagens fotogrficas para se ter uma <<viso de mundo>>. Valorar passa a ser escolher determinadas fotografias como modelos de comportamento, recusando outras. Agir passa a ser comportar-se de acordo com a escolha.
Esta forma de existncia passa a ser quanticamente analisvel. Toda a experincia, todo o conhecimento, todo o valor,
toda a aco consiste em bits definveis. Trata-se de uma
existncia robotizada, cuja liberdade de opinio, de escolha e
de aco se torna observvel, confrontada com os robots mais
aperfeioados.
A robotizao dos gestos humanos j facllmente constatvel. Nos guichets de bancos, nas fbricas, em viagens tursticas, nas escolas, nos desportos, na dana. Menos facilmente, mas ainda possvel, ela constatvel nos produtos intelectuais da actualidade. Nos textos cientficos, poticos e polticos, nas composies musicais, na arquitectura. Tudo est
a robotizar-se, isto , obedece a um ritmo staccato. A crtica
da cultura comea a descobri-lo. A sua tarefa ser a de indagar at que ponto o universo da fotografia responsvel pelo que est a acontecer. Ahiptese aqui defendida esta: a inveno do aparelho fotogrfico o ponto a partt do qual a
existncia humana vai abandonando a estrutura do deslizamento linear, prprio dos textos, para assumir a estrutura do
salto quntico, prprio dos aparelhos. O aparelho fotogrfico,
87
enquanto prottipo, o patnarca de todos os aparelhos. Portanto, o aparelho fotogrfico a fonte da robotizao da vida
em todos os seus aspectos, desde os gestos exteriorizados ao
mais ntimo dos pensamentos, desejos e sentimentos.
O universo fotogrfico produto do aparelho fotogrfico,
que por sua vez, produto de outros aparelhos. Estes aparelhos so multiformes: industriais, publicitrios, econmicos,
polticos, administrativos. Cada um destes funciona automaticamente. E as suas funes esto ciberneticamente coordenadas a todas as demais. O input de cada um deles alimentado por outro aparelho; o ouput de qualquer aparelho alimenta outro. Os aparelhos programam-se mutuamente numa
hierarquia envolvente. Trata-se, nesse complexo de aparelhos, de uma caixa negra composta de caixas negras. Um supercomplexo de produo humana. Produzido, no decorrer
dos sculos XIX e XX, pelo homem. E os homens continuam
a produzi-lo. Deste modo, parece bvio como criticar tudo isto: basta descobrir as intenes humanas que levaram produo dos aparelhos.
Trata-se de um mtodo de crtica sedutor, por duas razes
diferentes. Em primeiro lugar, dispensa o crtico de mergulhar no interior das caixas negras. Basta concentrar-se sobre
o input que a deciso humana. Em segundo lugar, o mtodo pode recoffer a critrios j bem elaborados, por exemplo,
os marxistas. Eis o resultado de uma tal ctica: os aparelhos
foram inventados para emancipar o homem da necessidade
do trabalho; trabalham automaticamente para ele. O aparelho
fotogrfico produz imagens automaticamente, e o homem j
no precisa de movimentar pincis esforando-se para vencer
a resistncia do mundo objectivo. Simultaneamente, os aparelhos emancipam o homem para o jogo. Ao invs de movimentar o pincel, o fotgrafo pode <brincaD) com o aparelho.
No entanto, certos homens apoderaram-se dos aparelhos,
desviando a inteno dos seus inventores para o seu prprio
88
Vilm Flusser
89
relhos.
No pode haver um <<propriettrio de aparelhos>>. Como os
aparelhos j no obedecem ao controle humano, no pertencem a ningum. Quem cr ser possuidor de um aparelho , na
realidade, possudo por ele. Doravante, nenhuma deciso humana funciona. Todas as decises passam aser funconais,isto , tomadas ao acaso, sem propsito deliberado. Os conceitos programados nos aparelhos, que originalmente significavam intenes humanas, deixaram de as significar. Passaram
a ser auto-significantes. So vazios os smbolos com os quais
joga o aparelho. Este no funciona em funo de uma inteno deliberada, mas automaticamente, girando em ponto
morto. E todas as virtualidades inscritas no seu programa, inclusive a de produzir outros aparelhos ou a de se autodestruir,
realizar-se- o ne c e s s arament e.
A crtica <<clssica> dos aparelhos objectar que tudo no
passa de uma mitificao que os transforma em gigantes
super-humanos, a fim de esconder a inteno humana que os
move. A objeco falha. Os aparelhos so de facto gigantescos, pois foram produzidos para s-lo. E de forma nenhuma so super-humanos. Pelo contrrio, so plidas simulaes do pensamento humano. O dever de qualquer crtica dos
aparelhos mostrar a cretinice infra-humana dos aparelhos.
Mostrar que se trata de vassouras invocadas por um aprendiz
de feiticeiro que traz, automaticamente, gua at afogar a humanidade, e que se multiplicam automaticamente. O seu intuito deve ser exorcizar essas vassouras, recolocando-as naquele canto ao qual pertencem, conforme a inteno inicial
humana. Graas a crticas deste tipo que podemos esperar
transcender o totalitarismo robotizante dos aparelhos que estem vias de se preparar. No ser negando a automaticidade dos aparelhos, mas encarando-a, que podemos esperar a
retoma do poder sobre os aparelhos.
90
Vilm Flusser
Depois dessa dupla excurso pelo universo fotogrfico, podemos resumir o argumento: o universo fotogrfico um jogo de permutao cambiante e colorido com superfcies claras e distintas, chamadas fotografias. Estas so imagens de
conceitos programados em aparelhos e esses conceitos so
smbolos vazios. Sob anlise, o universo fotogrfico um
universo vazio e absurdo. No entanto, como as fotografias
so cenas simblicas, elas programam a sociedade para um
comportamento mgico em funo do jogo. Conferem um
significado mgico vida da sociedade. Tudo se passa automaticamente e no serve a nenhum interesse humano. Contra
essa automao estpida, lutam determinados fotgrafos, ao
procurarem inserir intenes humanas no jogo. Os aparelhos,
por sua vez, recuperaram automatcamente tais esforos em
proveito do seu funcionamento. O dever de uma fiIosofia da
fotografia seria o de desmascarar esse jogo.
Quem l este resumo, ter a impresso de que a importncia da fotografia sobre a vida ps-industrial est a ser exagerada. Porque o resumo no descreve apenas o universo fotogrfico, mas todo o universo dos aparelhos. No seria o universo fotogrfico apenas um entre os mltiplos universos do
mesmo tipo, longe de ser o mais significativo? No havert
universos muito mais angustiantes? O prximo e ltimo captulo deste ensaio esforar-se- por mostrar que o universo
fotogrfico no apenas um evento relativamente incuo do
funcionamento, mas pelo contrrio, o modelo de toda vida
futura. E que a filosofia da fotografia pode vir a ser o ponto
de partida para qualquer disciplina, que tenha como objecto a
vida do homem futuro.
UMA FILOSOFIA
DA FOTOGRAFIA
9. A URGNCIA DE
No decorrer deste ensaio, vieram tona alguns conceitos-chave.' imagem, aparelho, programa, informao. Estes
conceitos formam as pedras angulares de qualquer filosofia
da fotografia, baseando-se na seguinte definio de fotografia: imagem produzida e distribuda por aparelhos segundo
um programa, a fim de informar receptores. Qualquer
conceito-chave, por sua vez, implica conceitos subsequentes.
Imagem implica magia. Aparelho implica automao e jogo.
Programa implica acaso e necessidade. Informao implica
smbolo. Os conceitos implcitos permitem ampliar a definio da fotografia da seguinte maneira:'imagem produzida e
distribudn'afromaticamente no decorrer de um jogo programado, que se d ao acaso mas que se torna necessdade, cuja nformao simblica, na sua superfcie, programa o receptor para um comportamento mgico.\\
A definio tem uma curiosa vantagem: exclui o homem
enquanto factor activo e livre. Portanto, uma definio inaceitvel. Deve ser contestada, porque a contestao a mola
propulsora de todo o pensar filosfico. Deste modo, a definio proposta pode servir de ponto de partida para a filosofia
da fotografia.
92
Vilm Flusser
94
Vilm Flusser
Fotografia
95
96
Vilm Flusser