Deleuze, A Arte e A Filosofia
Deleuze, A Arte e A Filosofia
Deleuze, A Arte e A Filosofia
ROBERTO MACHADO
Friedrich HOlder/in
Jean Beaufret
Francis Bacon: L6gica da Sensa~ao
Gilles Deleuze
Gilles Deleuze
Deleuze> a arte e a filosofia
Roberto Machado
0 Nascimento do Tnigico
Roberto Machado
Nietzsche e a Polemica sabre
"0 Nascimento da Tragedii'
Roberto Machado (org.)
Introduo;ao aTragedia de S6focles
Friedrich Nietzsche
,-----------------
Wagner em Bayreuth
Friedrich Nietzsche
Kallias ou Sobre a Beleza
Friedrich Schiller
0701086448
llllllllllllllllllllllll
Pedro Sussekind
Peter Szondi
~~lAHAR
Rio de Janeiro
86448
SUMARIO
Copyright
2009,
Roberto Machado
2009:
A GEOGRAFIA DO PENSAMENTO
PARTE 1
1.
0 NASCIMENTO DA REPRESENTA<;:AO
2.
De!euze, a arte e a filosofia I Roberto Machado.- Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
11
11
18
21
29
33
39
41
41
44
45
47
50
50
51
52
2009
Contem dados bibliograficos de Gilles Deleuze
ISBN 978-Ss-378-016$9
1, Deleuze, Gilles, 1925-1995. 2. Representao;:ao (Filosofia). 3 Filosofia. 4 Fil6sofos. 5 Arte - Filosofia. I. Titulo.
PARTE 2
1.
0 APICE DA DIFEREN<;:A
57
59
59
60
1.
Os paradoxes kantianos
A heterogeneidade das faculdades
Urn novo conceito de tempo
2.
Genese e intensidade
0 acordo das faculdades
Genese e condi<;ao de possibilidade
A dramatizas:ao do conceito
A intensidade
PARTE 4
1.
Os pressupostos da representa<;ao
0 pressuposto principal
A harmonia das faculdades
2.
0 empirismo transcendental
Empirismo e filosofia transcendental
0 uso paradoxa! das faculdades
A relac;ao desregrada das faculdades
A ideia diferencial e a intensidade
66
PARTE 5
DELEUZE E FOUCAULT
159
69
72
1.
74
78
83
85
87
2.
87
92
96
100
103
PARTE 6
105
1.
114
114
117
124
129
105
109 .
121
DELEUZE E A LITERATURA
2.
161
161
163
169
177
181
181
182
186
189
191
193
193
194
197
199
204
206
Os procedimentos de linguagem
0 de-fora da linguagem
Literatura e devir
Lit~ratura e clinica
206
210
213
217
131
PARTE 7
131
134
. 138
138
141
147
151
DELEUZE E A PINTURA
223
Os elementos constituintes
A figura desfigurada
A area redonda e a grande superficie plana
0 movimento da pintura
A sensas:ao e as for~as
A amllise genetica
0 diagrama
A cor
225
226
234
235
237
239
241
243
A imagem-movimento
Cinema e pensamento
As teses de Bergson sabre o movimento
Bergson e a imagem~movimento
Os tipos de imagem-movimento
A imagem-percepqao
A imagem-afecqao
A imagem -aqao
A imagem mental
A crise da imagem-ac;ao
2.
245
247
247
248
253
255
259
261
265
268
269
A imagem-tempo
273
273
276
281
287
297
Foucault e Kant
A relaqao diferencial
Os fil6sofos aliados
A doutrina do pensamento
Os aliados externos
Invariante e variac;Oes
291
294
297
300
302
312
318
322
Notas
325
339
L'Anti-Oedipe
B
Le bergsonisme
CC
Critique et clinique
D
Dialogues
DR
Difference et repetition
DRF Deux regimes de fous
E
L'Epuise
ES
Empirisme et subjectivite
F
Foucault
FB
Francis Bacon, logique de Ia sensation
ID
L' 1/e deserte et autres textes
1-M
Cinema 1, l'image-mouvement
1-T
Cinema 2, /'image-temps
K
Kafka, pour une litterature mineure
LS
Logique du sens
MP
Mille plateaux
N
Nietzsche
NPh
Nietzsche et la philosophie
P
Pourparlers
PhCK La philosophie critique de Kant
SPP Spinoza, philosophie pratique
PLB Le pli, Leibniz et le baroque
PS
Proust et les signes
QPh? Qu'est-ce que Ia philosophie?
SPE Spinoza et le probleme de /'expression
A-CE
A (:JEOGRAFIA DO PENSAMENTO
ea jilosojia?.
Ora, a heterogeneidade desses dominios ou objetos nao deve obscurecer a espantosa homogeneidade do procedimento que possibilita definir sen
modo de pensar como filos6fico. Es6 aparentemente, portanto, que a obra
de De leuze e compasta de livros de hist6ria da filosofia, de critica de arte ou
literaria e finalmente de reflexao filos6fica. Vejamos por que.
Nao se pode desprezar a quantidade e a qualidade dos textos de Deleuze
sabre arte e literatura. Nao se pode esquecer a utiliza9ao que alguns de seus
escritos fazem de teorias cientificas. Sen pensamento nao se restringe a
considera,a.o do texto filos6fico: fazer filosofia e muito mais do que repetir
ou repensar os fil6sofos. Quando, porem, ele estuda o discurso cientifico ou
as express6es artisticas e literarias, jamais tern par objetivo fazer filosofia
12
A GEOGRAFIA DO PENSAMENTO
das ciencias, das artes ou da literatura. Pois, para ele, a filosofia nao e uma
reflexao sobre a exterioridade da filosofia, uma reflexao sabre dominies ou
areas extrinsecas ao discurso filosofico; ela e um processo de cria~ao. "Nao
creio que a filosofia seja uma reflexao sabre outra coisa, como a pintura ou
o cinema ... Nao se trata de refletir sabre o cinema ... 0 cinema nao e para
mim um pretexto ou um dominio de aplica~ao. A filosofia nao esta em estado de reflexao externa sabre os outros dominies, mas em estado de alian~a
ativa e interna entre eles, e ela nao e nem mais abstrata, nem mais dificil",
afirma Deleuze no momenta da publica~ao de seu primeiro livro sabre o
cinema, A imagem-movimento.' E volta a insistir na mesma ideia quando do
lan~amento de A imagem-tempo: "Quando se vive em uma epoca pobre, a filosofia se refugia em uma reflexao 'sabre' ... Se ela nada cria, que mais pode
fazer senao refletir sabre? ... De fato, o que interessa e retirar do fil6sofo o
direito a reflexao sabre. 0 filosofo e criador e nao reflexive.'''
Quando Deleuze diz que o fil6sofo e criador e nao reflexivo, o que pretende e se insurgir contra a caracteriza~ao da filosofia como metadiscurso,
metalinguagem, uma tendencia da filosofia moderna que, desde Kant, tem
por objetivo formular ou explicitar criterios de legitimidade ou de justifica~ao. lnsurgindo-se contra essa tendencia, ele reivindica para a filosofia
a produ~ao de conhecimento ou, mais propriamente, a cria~ao de pensamento, como acontece com as outras formas de saber, sejam elas cientificas ou nao. Dai ele denunciar a epistemologia como um agente de poder
na filosofia que desempenha - como a historia da filosofia - um papel de
repressor do pensamento ou se constitui como um aparelho de poder no
proprio pensamento; dai tambem ele acusar Wittgenstein de ter sufocado e
ate mesmo matado o que havia de vivo no pensamento anglo-saxao, criando
uma estupida escola esteril.'
Essas criticas, que s6 aparecem incidentalmente em sua obra - sobretudo em entrevistas -, sem terem sido rigorosamente formuladas
e explicitadas, sao, no entanto, um bom indicador de como sua filosofia
se distingue dessas filosofias contemporaneas; alem disso, elas permitem
compreender como a novidade de seu projeto nao impede que Deleuze
seja considerado um filosofo classico ou tradicional. Assim, quando sua
filosofia se poe em rela~ao intrinseca com saberes de outros dominies com outros modos de expressao -, o objetivo nao e funda-los, justifica-los
ou legitima-los, mas estabelecer conexoes ou ressonancias de um dominio
a outro a partir da questao central que orienta suas investiga~oes: "o que
significa pensar ?", "o que e ter uma ideia?" na filosofia, nas ciencias, nas
artes, na literatura.
Para a epistemologia, por exemplo, o conhecimento e uma exclusividade da ciencia, e a filosofia nao produz propriamente conhecimento.
0 objetivo da epistemologia e refletir sabre como a ciencia funciona para
fazer uma teoria do conhecimento cientifico. Por isso, sem se colocar em
uma perspectiva de reflexao sabre a ciencia, ou seja, em uma perspectiva de
elucida~ao das opera~oes caracteristicas da racionalidade cientifica, "uma
teoria do conhecimento seria uma medita~ao sobre o vazio", para utilizar
a expressao de Canguilhem. * Ora/para Deleuze, o objeto principal da filasofia e o exerdcio do pensamento presente na filosofia, mas tambem nas
ciencias, nas artes, na literatur;; 0 pensamento nao e um privilegio da filasofia: filosofos, cientistas, artistas sao antes de tudo pensadores. E e porque
a questao do pensamento se encontra no amago da considera~ao, por Deleuze, de qualquer dominio de saber que seu pensamento jainais sai da filasofia, nunca deixa de ser filosofia; mas tambem que seus estudos, sejam eles
sabre filosofos, artistas, literates, nunca se detem numa questao de detalhe,
investigando, ao contrario, o procedimento de cria~ao desses pensadores, o
proprio modo de funcionamento de seus pensamentos, a "engrenagem", a
"16gica de um pensamento". 4
Se quisermos relacionar seu procedimento filosofico com o de dais filosofos franceses que tiveram como projeto dar as ciencias a filosofia que
merecem, que pretenderam renovar a filosofia colocando-a a altura das revolu~oes cientificas modernas, poderemos dizer que, em vez de Bachelard
e sua epistemologia, e a metafisica de Bergson que serve de modelo para a
filosofia de Deleuze. Em A irnagem-movimento ele se refere explicitamente
ao "desejo profunda de Bergson: fazer uma filosofia que seja a da ciencia
moderna ( nao no senti do de uma reflexao sabre a ciencia, is to e, de uma
epistemologia, mas, ao contrario, no sentido de uma inven~ao de conceitos
aut6nomos, capazes de corresponder aos novas simbolos da ciencia) ... ".s E,
no mesmo livro, amplia o projeto de Bergson situando-o na dire~ao de seu
proprio projeto: " ... deve se tor~ar capaz de pensar a produ~ao do novo ...
* "L'objet de l'histoire de la science", Etudes d'histoire et de philosophie des sciences, Paris,
Vrin, 1968, p.n. Nao nos enganemos. Deleuze pode ate recolher uma ou outra ideia nos
escritos de Canguilhem, como faz com quase todos os pensadores; hi, no en tanto, incorn~
patibilidade total entre os projetos filos6ficos dos dois. Sobre a epistemologia de Canguilhem, cf. a primeira parte de meu livro Foucault, a cincia eo saber (Zahar, 2006).
13
14
Desde o seu aparecimento, de forma esporadica na epoca dos livros sobre o cinema, essa explicitac;ao da relac;ao entre os dominios de pensamento
tern dois aspectos. Por um ]ado, ha interferencia, repercussao, ressonancias
entre atividades criadoras sem que haja prioridade de umas sobre as outras,
e, especialmente, sem que a filosofia tenha qualquer primado de reflexao e
inferioridade de criac;ao.[Os conceitos sao exatamente como sons, cores ou
imagens, e isso faz com que a filosofia esteja em estado de alianc;a com os
outros dominios. Um agregado sensivel, uma func;ao pode estimular a criac;ao de conceitos na filosofia e, inversamente, um conceito pode estimular
a criac;ao nas outras disciplinas. Criar, em todos esses dominios, e sempre
ter uma ideia. Pensar e ter uma nova ideia. Por outro ]ado, ha especificidade
dos saberes, no sentido em que cada um responde a suas pr6prias quest6es
ou procura resolver por conta propria e com seus pr6prios meios problemas
semelhantes aos colocados pelos outros saberes. Por isso, uma ideia filos6fica e diferente de uma ideia cientifica ou artistica.
A GEOGRAFIA DO PENSAMENTO
Mas o Iugar onde Deleuze melhor explicita essa distinc;ao entre func;oes,
agregados sensiveis e conceitos- ao formular uma teoria diferencial do exerdcio do pensamento a partir de suas atividades espedficas de cria~ao- e em
0 que ea filosofia?. Deixemos de !ado a comparac;ao entre as formas de criac;ao, elaborada a partir de uma concepc;ao do pensamento como criador, para
enfocar mais detidamente a teoria do conceito que esse livro apresenta.
0 que ea fiiosofia? inicia com a afirmac;iio de seus auto res de que a respasta a questao enunciada no titulo do livro sempre foi clara para eles: ''A
filosofia e a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos."* Resposta
que os leva a acrescentar, logo a seguir, que ao criar a filosofia, os gregos
substituiram o sabio oriental, que pensa por figura, pelo fil6sofo amigo da
sabedoria, que pensa o conceito. Ser amigo da sabedoria significa criar conceitos, criar novas conceitos. Ha mais uma vez dais aspectos nessa ideia.
Por um !ado, a filosofia e cria~ao, isto e, tern a func;ao de criac;ao, assim
como a ciencia, a arte, a literatura. 0 elemento da filosofia, portanto, nao
e dado, nao existe implicitamente, velado, sendo revelado pelo fil6sofo; e
criado e se conserva como uma criac;aofo pensamento filos6fico e criador
porque faz nascer alguma coisa que aind~ nao existia, alguma coisa nova. A
,~sse respeito Deleuze esta seguindo nao s6 Bergson, mas principalmente
!Nietzsche, quando este diz que o fil6sofo nao descobre: invental Por outro
'iado, a filosofia e criac;ao especifica, criac;ao de conceitos, sem c(ue haja nenhuma preeminencia, nenhuma superioridade, nenhum privilegio da filasofia em relac;ao as outras formas de criac;ao, cientifica, artistica ou literaria.
Mas tambem sem que essa func;ao conceitual possa ser usurpada por outros saberes como a sociologia, a linguistica, a psicanalise, a epistemologia,
a analise l6gica e ate mesmo tecnicas como a informatica, o marketing, o
design, a publicidade, a comunicac;ao.
Se Deleuze defende que a filosofia nao e contemplac;ao, reflexao, comunicac;ao, e porque a considera criac;ao, e criac;ao singular, ou melhor, criac;ao
de conceitos singulares:fToda cria~ao e singular, e o conceito como criac;ao propriamente filos6fica e uma singularidade."' Ideia, tambem de ins pirac;ao nietzschiana, que ja afasta Deleuze de muitos outros fil6sofos e o leva
a sugerir que todos criaram conceitos singulares, mesmo se disseram o contrario}Ima das implicaqoes importantes dessa ideia, por favorecer a com* Efetivamente essa ideia e antiga em Deleuze, como seve pelo artigo "Bergson", de 1956,
que inicia justamente dizendo: "Urn grande fil6sofo e aquele que cria novos conceitos"
(ID, p.28). Cf. tambem a entrevista de 1980 "Huit ans apres: entretien", DRF, p.163.
II
15
16
A GEOGRAFIA DO PENSAMENTO
17
18
De leuze e a
cria~ao
dos conceitos
mentos nao conceituais dos outros dominios - fun~oes, imagens, sons, linhas, cores - que, integrados ao pensamento filos6fico, sao transformados
em conceitos. E o que diz, por exemplo, o final de Imagem-tempo: "A teoria
filos6fica e uma pratica, tanto quanta seu objeto. E uma pratica dos conceitos, e e preciso julga-la em fun~ao das outras praticas com as quais ela interfere. Uma teoria do cinema nao e 'sabre' 0 cinema, mas sabre OS conceitos
que o cinema suscita, e que estao tambem em rela~ao com outros conceitos correspondentes a outras praticas, a pnitica dos conceitos em geral nao
tendo nenhum privilegio sabre as outras, do mesmo modo que urn objeto
tambem nao tern sabre os outros. Eno nivel da interferencia de muitas praticas que as coisas se fazem, as seres, as imagens, os conceitos, todos as tipos
de acontecimentos." 13
A GEOGRAFIA DO PENSAMENTO
Mesmo que urn conceito seja como urn scm, uma imagem ou uma cor, e
nao haja superioridade ou preeminencia de urn sabre os outros, do ponto
de vista da elabora~ao dos conceitos e dos problemas filos6ficos, ou do exercicio de pensamento de Deleuze, ha prioridade da filosofia sabre os outros
dominios. A razao e que, sendo a questao de sua filosofia "o que significa
pensar?", "o que e ter uma ideia?"- e essa nao me parece ser a questao da
ciencia, da arte ou da literatura -, isto e, sendo seu objetivo principal criar
urn conceito de exerdcio do pensamento, ou investigar conceitualmente o
proprio processo de cria~ao do pensarnento, o apelo aos saberes nao filosoficos funciona fundamentalmente como extensao ou prolongamento de
uma problematica definida conceitualmente pela filosofia. 0 nao filosofico
entra como elemento que vern alimentar urn pensamento eminentemente
voltado para a filosofia e ate mesmo para as conceitos tradicionais da filasofia. Se ha, neste caso, prioridade da filosofia, e porque ela e o regime dos
conceitos, e, mesrno que os conceitos venham de fora, os conceitos suscitados pela exterioridade nao conceitual estao, no pensarnento de Deleuze,
subordinados aos conceitos oriundos da tradi~ao filos6fica. Nao nego, partanto, a importancia do extrafilos6fico para compreender como procede
seu pensamento filos6fico. A linguistica de Hjelmslev, Labov e Guillaume,
a antropologia de Levi-Strauss e Dumezil, a psicanalise de Lacan sao, nesse
sentido, fundamentais. A pintura de Cezanne e Bacon, o cinema de Resnais,
Godard, Straub, Marguerite Duras, a literatura de Melville, Kafka, Proust,
Fitzgerald, Artaud, Beckett tambem. Desejo salientar, no entanto, nao s6
que suas quest6es vern prioritariamente da filosofia, da tradi~ao filos6fica
--Espinosa, Kant, Nietzsche, Bergson-, como tambem que na trajet6ria
de Deleuze elas se colocaram a partir da filosofia. Mais do que urn te6rico
das ciencias, das artes ou da literatura, Deleuze e urn historiador da filosofia
que ousou pensar filosoficamente. 0 que implicou levar em considera~ao
o que e exterior ao discurso tecnicamente filos6fico. 0 que faz de Deleuze
urn fil6sofo- e nao simples historiador da filosofia ou do pensamento- e 0
fato de ele deixar a marca de seu proprio pensamento filos6fico em todos os
seus estudos sabre fil6sofos ou nao fil6sofos.
Urn exernplo bastante esclarecedor - que mais adiante analisarei demoradamente - de como Deleuze pensa o extrafilos6fico a partir da filasofia, mesmo se nao ha preeminencia de urn sobre o outro, esta na maneira
como estuda o cinema a partir dos conceitos bergsonianos de imagem, movimento e tempo. Nao que os livros sobre o cinema sejam urna simples apli-
19
20
Os espac;os do pensamento
Se o procedimento de Deleuze privilegia os elementos oriundos da propria
filosofia, a questao decisiva e a da relar;ao entre sua criar;ao de conceitos e os
conceitos filosoficos produzidos por outros. Suas criticas aos historiadores
da filosofia sao algumas vezes severas. Dicilogos, por exemplo, diz que "a historia da filosofia sempre foi urn agente de poder na filosofia e ate mesmo no
pensamento. Ela desempenhou urn papel repressor: como se pode pensar
sem ter lido Platao, Kant e Heidegger, eo livro deste ou daquele sobre eles?
Uma formidavel escola de intimidar;ao que fabrica especialistas do pensamento ... "* Par outre lado, v<irios de seus livros sao, como vimos, monografias de filosofos. Havera contradir;ao? Nao, quando se compreende que, para
ele, ler e pensar os filosofos nao se reduz a fazer trabalho de historiador.
Se sua atividade criadora liga-se essencialmente a historia da filosofia, e no
sentido de instituir a leitura do filosofo como parte essencial de seu modo
proprio de filosofar, ou de subordinar o conhecimento das quest5es e problemas filosoficos a constituir;ao de urn pensamento: 0 seu.
Em que sentido suas monografias de filosofos nao seriam propriamente
estudos de historiador? Dialogos da uma indicar;ao importante: "Comecei
pela historia da filosofia quando ela ainda se impunha. Nao havia meio de
es.capar. Eu nao suportava Descartes, os dualismos e o cogito, nem Hegel, as
tnades e o trabalho do negativo. Gostava dos autores que davam a impressao
de fazer parte da historia da filosofia mas dela escapavam parcial ou totalmente: Lucrecio,Espinosa, Hume, Nietzsche, Bergson ... Salvo Nietzsche e
Espinosa, a relar;ao entre esses autores e pequena, e no en tanto ela existe.
Dir-se-ia que algo se passa entre eles, com velocidades e intensidades diferentes, que nao esta nem em uns nem em outros, mas em urn espar;o ideal
* D, p.19-20. No Abeced6rio, Deleuze e menos severo com os historiadores da filosofia
defendendo que s6 se pode compreender o que e a filosofia como criac;ao de conceitos po;
sua hist6ria (cf. letra H).
21
- l
l
22
que nao faz mais parte da hist6ria ... "''5 Esse conceito de ::espa~o idear' e
importante para compreender a leitura da filosofia realizada por Deleuze
e seus dois prindpios.ig_ua caracteristica mais elementar eo fato de ela se
propor mais como uma geografia do que propriamente como uma hist6ria.
Se 0 pensamento pressupoe eixos e orienta~oes pelos quais se desenvolve,''
isso poe a exigencia de considera-lo nao como tendo uma hist6ria linear e
progressiva, mas privilegiando a constitui~ao de ~spa~os, de tipo~::Dai ~m
segundo prindpio que norteia essa leitura geografica da filosofia: a existencia nao de urn, mas de dois espa~os em que o pensamento filos6fico se situa.
Considerando a hist6ria da filosofia de urn ponte de vista filos6fico, como
uma disciplina filos6fica, a geografia deleuziana estabelece dois tipos, dais
estilos de filosofia, nao apenas heterogeneos, mas sobretudo antag6nicos.
No que diz respeito a constitui~ao de uma geografia do pensamento, a filesofia de Deleuze e marcadamente dualista.
Esse dualismo ou a posi~ao de dois espa~os antag6nicos nao se reduz
evidentemente ao pensamento filos6fico; e uma propriedade do pensamento
em geral, ou dos mais variados saberes. Na literatura, isso faz Deleuze p:ivilegiar em suas analises Artaud, Blanchet, Beckett, Michaux, Proust, Buchner, Holderlin, Lenz, Kleist, Kafka, Melville, Fitzgerald, Thomas Wolfe, VIrginia Woolf. .. "Havera sempre urn Breton contra.Artaud, urn Goethe contra
Lenz, urn Schiller contra Holderlin", diz 0 anti-Edipo.' 7 E, segundo Mil platos, os textos de Kleist "se opoem, sob todos os aspectos, ao livre classico e
romantico, constituido pela interioridade de uma substancia ou de urn sujeito. 0 livro maquina de guerra contra o livre aparelho de Estado."'' . . .
Mas 0 antagonismo tambem existe nas ciencias. Ass1m, Q antz-Ed1po
opoe uma linguistica do significante e uma linguistica ~os fluxes .. A linguistica de Saussure e p6s-saussuriana supoe a transcendenCia do sigmfiG~nte
e uma identidade minima resultante das rela<;:6es de oposi<;:ao entre os el~
mentos, que permanece atraves das varia<;:iies. A esse modele, Deleuze e
Guattari opoem a linguistica de Hjelmslev, que faz uma teoria puramente
imanente da linguagem, descreve urn campo puro de imanencia algebrica
com seus fluxos de forma e de substancia, de conteudo e de expressao, sem
as condi<;:iies de identidade minima que definiam os elementos do significante~ssim tambem, numa terminologia bern caracteristica desse livro,
* Cf. A-ffi, p.z87-8. Mil pl~t8s co~sidera Hjelmslev o Unico linguista qu: rompe com ~ significante e 0 significado, embora ainda conceba a distin9ao da expressao e do conteudo a
partir deles (MP, p.Ss, nota, p.116, nota 18).
A GEOGRAFIA DO PENSAMENTO
23
24
gem; "0 que conta e que a arvore-raiz e 0 rizoma-canal nao se op5em como
~
dois modelos: um age como modelo e decalque transcendentes, mesmo que
engendre suas pr6prias fugas; o outro age como processo imanente que subverte o modelo e esboc;a um mapa, mesmo que ele constitua suas pr6prias
hierarquias, mesmo que ele suscite um canal desp6tico."~ 4
Deleuze novamente se da conta da dificuldade. E, para resolve-la ou
pelo menos explicita-la, formula uma hip6tese bastante semelhante a posic;ao de Nietzsche, que, reconhecendo toda oposic;ao de valores como sendo
metafisica e interessado em ultrapassar as dicotomias, considera, no entanto, que as vezes a natureza grosseira da linguagem condena a falar em
termos de oposic;ao quando na verdade s6 existem graus e sutis transic;5es. ' 5
Eis o que dizem os autores de Rizoma: "Outro ou novo dualismo, nao. Problema de escrita: e preciso absolutamente expressoes 'anexatas' para designar alguma coisa exatamente. E de modo algum porque seria preciso passar
por isso, nem porque s6 se poderia proceder por aproximac;oes: a 'anexatidao' nao e uma aproximac;ao, e, ao contrario, a passagem exata daquilo que
se faz. S6 invocamos um dualismo para recusar outro. S6 nos servimos de
um dualismo de modelos para atingir um processo que recusaria qualquer
modelo. Sao necessaries, a cada vez, corretores cerebrais que desfac;am o;r
dualismos que nao quisemos fazer, pelos quais passamos. Chegar a formula
magica que todos procuramos - PLURALISMO = MONISMO - passando por
todos OS duaJismOS que SaO 0 inimigo, mas 0 inimigo totalmente necessaria,
o m6vel que nao cessamos de deslocar."' 6
Mas talvez essa critica do dualismo, realizada em nome do pluralismo
mas obrigada a criar novas dualidades, nao se reduza apenas a uma questao terminol6gica, um problema de escrita: Talvez ela seja uma dificuldade
conceitual constitutiva da filosofia de Dele~e proveniente da inadequac;ao
entre sua proposta de ultrapassar os dualismos, por um pensamento que
pretende conectar multiplicidades para formar uma totalidade fragmentaria, e seu exerdcio ou funcionamento, que postula e defende a existencia de do is espac;os antagonicos do pensamento.; Nao ha duvida de que a
-_,.
grande ambic;ao de Deleuze e realizar, inspiraao sobretudo em Bergson,
uma filosofia da multiplicidade, como veremos depois. Isso nao impede,
contudo, como estamos vendo, que sua filosofia seja dualista no sentido
preciso de situar o pensamento em do is espac;os nao apenas diferentes, mas
antagonicos. Assinalei como a geografia do pensamento estabelece esses
dois espac;os na literatura e na ciencia e mostrarei posteriormente como
/_
A GEOGRAFIA DO PENSAMENTO
25
denomina "noologia'' o estudo das imagens do pensamento e de sua historicidade3' -, enuncia esse antagonismo com uma terminologia abundante e
variada: "No curso de uma longa hist6ria, o Estado foi o modelo do livro
e do pensamento: o logos, o fil6sofo-rei, a transcendencia da Ideia, a interioridade do conceito, a republica dos espiritos, o tribunp.l da razao, os funcionarios do pensamento, o homem legislador e sujeito"; ('E todo o pensamento
que e devir, urn duplo devir, em vez de ser o atributo de urn sujeito e a representac;:ao de urn todo"; "Urn pensamento em !uta com as for~as externas em
vez de recolhido em uma forma interior, operando por revezamento em vez
de formar uma imagem, urn pensamento-acontecimento, 'hecceidade', em
vez de urn pensamento-sujeito, urn pensamento-problema em vez de urn
pensamento-essencia ou teorema, urn pensamento que apela para urn povo
em vez de se pensar como urn ministerio::; urn "pensamento n6made", urn
"contrapensamento", urn "pensamento d~- fura", "a forma de exterioridade do
pensamento- a forc;:a sempre exterior a si mesma ou a ultima fon;a, a enesima potencia- nao e, de modo algum, uma outra imagem que se aporia a
imagem inspirada no aparelho de Estado. E, ao contrario, a forc;:a que destr6i
a imagem e as c6pias, o modelo e suas reproduq5es, toda possibilidade de
subordinar o pensamento a urn modelo do Verdadeiro, do Justo ou do Direito (o verdadeiro cartesiano, o justo kantiano, o direito hegeliano etc. )".3'
\l'ortanto, de modo geral, a geografia deleuziana estabelece duas dimens5es,
ou melhor, dois espac;:os: 0 espac;:o da imagem do pensamento, que e dogmatico, ortodoxo, metaflsico, moral, racional, transcendente ... ; e o espac;:o do
pensamento sem imagem, que e pluralistaP heterodoxo, ontol6gico, etico,
tragico, imanente .,_,J
Explicitarei depois o conteudo desses dois espac;:os. Mesmo assim, pode
ser uti! indicar, desde ja, o sentido dessa contraposic;:ao pela distinc;:ao da
etica e da moral, formulada varias vezes de mane ira praticamente invariavel
desde Nietzsche e a filosofia. A ideia geral e que a etica avalia sentimentos,
condutas e intenc;:oes, referindo-os a modos de existencia imanentes que
eles sup5em ou implicam; ,a etica leva em considerac;:ao os modos de ser
das forc;:as vitais que definem o homem por sua potencia, pelo que ele pode,
pela intensidade. Ja a moral julga a .vida a partir de valores transcendentes;
e urn sistema de juizos sobre o que se diz e o que se faz em termos de bern
e de mal considerados como valores metafisicos)
__) Eis dois exemplos, dentre
varios, de formulac;:oes que vao neste sentido: "Niio ha razao de pensar que
os modos de existencia tenham necessidade de valores transcendentes que
A GEOGRAFJA DO PENSAMENTO
modo:
I!
27
28
A GEOGRAF!A DO PENSAMENTO
0 procedimento de colagem
Como se da a rela<;ao entre os filosofos que Deleuze privilegia por expressa
rem urn estilo extemporaneo de pensamento, permitindo-lhe a cria<;iio do
espa<;o ideal alternativo do pensamento sem imagem? Estabelecendo uma
analogia com a tecnica da colagem na pintura- composi<;iio feita de elemen
tos diversos ou materiais variados coladas em uma tela-e em alusao a urn
dos dominios de expressao do movimento dadaista (1915-23) de Arp, Picabia,
Duchamp, Man Ray, Max Ernst ... , Deleuze dira que essa rela<;ao e do tipo
de uma colagem. Eis o texto mais explicito sabre o assunto: "A pesquisa de
novas meios de expressao filosoficos foi inaugurada por Nietzsche e deve ser
continuada em rela<;ao com a renova<;ao de algumas outras artes, como por
exemplo o teatro e o cinema. A esse respeito, podemos desde ja p6r a questao
da utiliza<;ao da historia da filosofia. Parece-nos que a historia da filosofia
deve desempenhar urn papel bastante anaJogo ao de uma colagem em uma
pintura. A historia da filosofia e a reprodu<;iio da propria filosofia. Seria pre
ciso que a resenha em historia da filosofia agisse como urn verdadeiro duplo
e comportasse o maximo de modifica<;ao propria ao duplo. (Imagina-se urn
Hegel filosoficamente barbudo, urn Marx filosoficamente glabro, do mesmo
modo que uma Gioconda bigoduda.) Seria preciso descrever urn livro real da
filosofia passada como se fosse urn livro imagini\rio e fingido:'4o
Se Deleuze nao pode ser considerado propriamente urn historiador da
filosofia e porque, para ele, repetir urn texto nao e buscar sua identidade,
mas afirmar sua diferen<;a. Pensando no procedimento literario do discurso
indireto livre, tantas vezes utilizado par ele como exemplo de pensamento
diferencial, e passive! dizer que, em seus estudos, ele fala em seu proprio
nome usando o nome de outro. A leitura que faz dos filosofos - e tambem
dos nao filosofos - age, atua, interfere com o objetivo de produzir urn du
. plo. Deslocamento, disfarce, dissimula<;ao, recria<;iio sao sentidos correlates
29
30
de sua ideia do livro de filosofia como "fic~ao cientifica'', que aparece no prologo de Diferenya e repeti9ao." A leitura deleuziana e claramente organizada
a partir de urn ponto de vista, de urn interesse, de uma perspectiva que faz
o texto estudado sofrer pequenas ou grandes tor~6es a firn de ser integrado
a suas pr6prias quest6es; e uma leitura interessada ern captar os conceitos
que pod em ser postos a servi~o de seu proprio projeto. *
Dai a relevancia da ideia de colagern. Falar de colagem a respeito do
pensarnento filosofico significa dizer que o texto considerado e muitas vezes
extraido de seu contexto, ou melhor, que os conceitos- considerados como
objetos de urn encontro, como urn aqui e agora, como coisas em estado livre e selvagem - sao utilizados como instrumentos, como tecnicas, como
operadores, independentemente das inter-rela~6es conceituais proprias do
sistema a que pertencern. Citando urn poerna de Bob Dylan que proclama
"Sim, sou urn ladrao de pensamentos", Dialogos faz urna apologia do "roubo",
da "captura", e explicita esse procedimento de leitura defendendo que "nao
se deve procurar saber se uma ideia e justa ou verdadeira. Deve-se procurar
uma ideia totalmente diferente, em outra parte, em outro dorninio, de modo
que algurna coisa passe entre as duas." 4 ' Jdeia que ja aparece em Diferenya
e repeti9ao quando Deleuze afirrna que "o que e primeiro no pensamento e
A GEOGRAFIA DO PENSAMENTO
Toda leitura realizada por Deleuze tern urn carater instrumental. E assim que muitas vezes nos surpreendernos ao ve-lo roubar uma ideia, urn
conceito de urna filosofia que, pensada em seu conjunto, encontra-se nos
antipodas das posi~6es de sua propria filosofia.!'Mas realizar uma colagem
ou produzir urn duplo nao significa se insurgir "-"
contra o sistema. Significa
desembara~ar, desemaranhar os conceitos de seus sistemas de origem para
criar urn novo sistema. Mesmo que o pensamento tenha uma rela~ao irnediata com o de-fora, seja atravessado por urn movimento que vern de fora,
ou mesrno que a multiplicidade seja urn principio fundamental no sentido
em que os fragrnentos de uma obra devem manter entre si uma rela~ao de
diferen~a sem fazer referenda a uma unidade ou uma totalidade, ** isso nao
significa que a filosofia de Deleuze nao forme urn sistema: l''Creio na filosofia como sistema. A no~ao de sistema me desagrada quan~o e relacionada
as coordenadas do Identico, do Semelhante, do Ana!ogo. Foi Leibniz, creio,
quem primeiro identificou sistema e filosofia. No sentido ern que ele o faz,
eu i:ne associo a ele ... Sinto-me urn filosofo bastante classico."* Assim, por
exemplo, todas as suas leituras de fil6sofos sao sisternaticas. Nao so as de
Kant e Espinosa, mas ate mesmo a de Nietzsche, certarnente urn dos fil6sofos rnenos sistematicos que existem. Alem disso, no plano mais geral, a interrelal'iio conceitual que essas leituras estabelecern resulta de uma concep~ao
do exerdcio do pensamento que tambem se formula de urn modo sistematico,
mesmo. que- setra:i:e~ como~mostraret;-cle urn srsteriia aberto:-A:o-estabelecet
-!sson3.ncias, a colagem produz umainfl~~iio d~l~it;,;raquese deve a a9ao de
um pensa.rrr.entosiSterriafii::o quebuscadefinir urn espa9o da diferen~a.
Foucault, no artigo sobre De!euze citado, retornando urna ideia de Diferen(ia e repeti9ao, diz que sua filosofia e urn teatro filos6fico que faz os fi16sofos voltarem a cena como mascaras de suas pr6prias mascaras, pois no
fundo - como Nietzsche sabia - tudo e mascara, teatro onde, por exemplo, sob a mascara de Socrates explode o riso do sofista, ou onde Duns Scot
aparece com o bigode de Nietzsche, fantasiado de Klossowski. ** Esta e, sem
duvida, uma boa maneira de ilustrar o procedimento de colagern que modifica o texto produzindo seu duplo, transformando o real ern imaginario,
fingido, inventado ou criando urn filho monstruoso com outro criador. E e
justamente a compreensao da amplitude e do modo de funcionar desse procedimento que possibilita explicitar o diferencial proprio do pensarnento de
Deleuze, o que constitui sua singularidade.
Urn exemplo impressionante desse teatro filos6fico e a sintese final que
Deleuze faz, como organizador do Col6quio de Royaumont sobre Nietzsche,
em 1964,. das confer~ncias anteriores. E impossivel perceber isso quando
nao se conhece o conteudo de sua leitura de Nietzsche, que apresentarei
neste livro. Noentanto, vale a pena notar, para cornpreender esse teatro filos6fico, que Deleuze foi capaz, nessas "Conclus6es sobre a vontade de pot~n-
* Evidentemente a tor<;ao deleuziana s6 e notada quando se compara o que ele diz com
o prOprio texto que est;i sendo interpretado. Farei isso sobretudo em duas ocasi5es: no
caso de Nietzsche, para mostrar como a interpreta<;a:o deleuziana se funda em tor<;Oes a
respeito da vontade de potencia e do eterno retorno; no caso de Foucault; explidtando
sistematicamente como ela esti presente nas anilises do saber e do poder.
** Cf., por exemplo, A~CE, p.so-2. A esse respeito, e curioso ver Deleuze elogiar Sartre, em
1964, justamente por realizar uma totaliza9ao ( cf. "II a ete mon maitre", in ID, p.111 ~2).
o roubo". 43
31
32
A GEOGRAFJA DO PENSAMENTO
cia e o eterno retorno", de encontrar no que havia sido dito por Klossowski,
Jean Wahl, Foucault, Beaufret, Birault, Lowith, Gueroult etc. justamente o
que ele havia escrito sobre Nietzsche e pensava na epoca:
1) Os prindpios imanentes das interpreta96es e avalia96es sao o nobre
e o vil, o alto e o baixo .
.:o.lb) A vontade de potencia, a instancia mais profunda, a profundidade
orlginal, ontol6gica- base de toda avalia9ao -,so em seu grau mais baixo e
uma vontade que quer a potencia, ou deseja dominar, mas em seu grau mais
elevado, em sua forma intensa ou como principia intensive, e a afirma9ao
da diferen9a, a cria9ao da distancia.
3) Ha uma diferen9a essencial entre o sim niilista do Asno e o sim dionisiaco de Zaratustra, pois, quando o Asno diz sim nao faz nada mais do que
carregar: o peso dos valores cristaos, dos valores humanistas, do real sem valor- os tres estagios do niilismo -,mas quando Zaratustra diz sim, trata-se
de aliviar, tirar a carga do que vive, dan9ar, criar.
4) Quando existiu entre os antigos, o eterno retorno era "qualitative"
ou "extensive", enquanto a ideia absolutamente nova de Nietzsche introduz
um dominio de intensidades puras, como diferen9a de intensidade no ser
e do ser, como 0 que possibilita elevar 0 que se quer a ultima potencia, a
enesima potencia.
5) 0 eterno retorno- mais ocultado do que revelado nas obras publi~
cadas, que o apresentam como urn retorno do mesmo, ou urn retorno ao
mesmo - se diz do devir, do multiple, ou melhor ainda, e a i~erJ,tidade do
que difere, o ser do devir, e, neste sentido, e duplamenteseletivo: pensamento seletivo, porque elimina os semiquereres, separa as formas superiores das formas medias, eleva cada coisa a sua forma superior, a sua maxima
potencia; mas tambem ser seletivo, no sentido de que elimina as semipotencias do ser, o homem pequeno - fraco demais para poder suportar sua
prova-, exigindo que o homem se torne super-homem.44
Outro exemplo, talvez ainda mais impressionante; desse teatro filosofico esta no artigo "Em que se pode reconhecer o estruturalismo?", escrito
em 1967 e so publicado em 1972. Agrupar pensadores pertencentes a dominies diversos e tao diferentes como Jakobsen, Levi-Strauss, Lacan, Foucault,
Althusser, Barthes, Sollers, encontrando ressonancias entre seus estudos,
nao tem necessariamente nada de extraordinario, nem constituiria um teatro
filosofico. 0 que einteressante e profundamente eloquente quanto a seu procedimento e o fato de Deleuze, alem do que teria assimilado deles, "desco-
de seu proprio modo de pensar ou, ate mais precisamente, dos termos atraves
dos quais apresentava os conceitos de sua filosofia na epoca em que escrevia
Diferen<;a e repetiqao e L6gica do sentido. Eis alguns exemplos: o sentido como
efeito ou resultado de lugares de um espa9o estrutural, topologfco;-a-sdFtermina95es de rela96es diferenciais e reparti96es de p~ntos singulare~ que
lhes correspondem; a estrutura como multiplicidade de coexistencia virtual;
a genese pela qual a estrutura diferenciada(dlfferentiee), mas indiferen9acla
(i-;!difftrenCiee), se atuaifza:, tornandci-se diferen9ada no espa90 e no tempo; a
. homologia estrutural de duas series de'termos; 0 diferenciador da diferen9a;
as individua96es nao pessoais e as singularidades pre-individuais. 45
Desse modo, a rela9ao entre a filosofia de Deleuze e o pensamento dos
outros tem basicamente dois aspectos: sua leitura dos filosofos ou nao filosofos e a constitui9ao de seu proprio pensamento filosofico. Mas nao se
trata de do is aspectos fundamentalmente heterogeneos, pais os estudos monograficos que realiza sao guiados por sua problematica filosofica e, inversamente, a filosofia que produz e o resultado de inter-rela96es conceituais
feitas a partir de suas leituras filosoficas. Neste sentido, analisar a filosofia
de Deleuze e responder a uma dupla questao, ou a uma questao circular:
Como o amago de seu pensamento filosofico singular serve de principia de
leitura dos pensadores, sejam eles fil6sofos ou nao? Como OS pensadores
agenciados pela colagem explicam a forma9ao de seu sistema filos6fico?
Nietzsche e Platao
0 que possibilita a Deleuze estabelecer uma dicotomia entre duas orienta-
33
34
A GEOGRAFIA DO PENSAMENTO
didade como segredo absolutamente superficial ou descobrir a profundidade como sendo apenas uma dobra da superficie. E como o procedimento
de colagem estabelece ressonancias entre ideias de dominies diferentes, ele
tambem se apropria, a esse respeito, da critica que Michel Tournier faz, em
Sexta-feira au Os limbos do Pacifico, aposic;ao que valoriza a profundidade em
detrimento da superficie, isto e, a concepc;ao segundo a qual "superficial"
significaria de pouca profundidade e nao de vastas dimens6es e "profunda",
de grande profundidade e nao de pouca superficieY() mais profunda e a
pe!e, diz a belaexpressao de Valery de que Deleuze tanto gosta:
A referencia a Nietzsche e essencial para se coinpreender o procedimento deleuziano de critica da filosofia e busca de um espa~o alternative,
ou melhor, de critica do pensamento da representac;ao e constituic;ao de um
pensamento da diferenc;a. Ha, porem, uma importante distinc;ao a ser feita
quanto ao modo como os dois leem a filosofia. Pois Nietzsche praticamente
nao reconhece aliados. Ele pensa sua problematica como radicalmente diferente da problematica de qualquer outre pensador e sempre procurou, em
sua trajet6ria filos6fica, intensificar essa diferen~a para nao ser contaminado
pelo niilismo do pensamento. Neste sentido, nao me parece convincente
afirmar, como faz Deleuze, que Nietzsche se interessa pouco pelo que aconteceu depois de Platao." Nao foi justamente ele quem estabeleceu as etapas
da hist6ria da filosofia como hist6ria do platonismo no capitulo de Crepusculo dos idolos "Como o 'mundo verdadei.ro' acabou convertendo-se numa
fabula"- texto que atesta para Heidegger, por exemplo, como Nietzsche, a
despeito de sua vontade de subversao, guardava uma consciencia Iucida de
tudo o que o tinha precedido, e que certamente deve ter levado Deleuze a
afirmar que "a hist6ria do Iongo erro e a hist6ria da representac;ao"?53 AJem
disso, o proprio Deleuze nao diz, em Nietzsche e a filosofia, que Nietzsche tinha um conhecimento profunda do movimento hegeliano e ate mesmo que se
compreende mal o conjunto de sua obra se nao se considera contra quem sao
elaborados seus principais conceitos?54 Acontece que, para Nietzsche, mais
do que para qualquer outre pensador, e dai sua situac;ao singular na hist6ria
da filosofia, pensar afirmativamente acarreta necessariamente pensar contra todos, ou melhor, contra tudo o que foi pensado desde Platao, por estar
rmpregnado de negac;ao da vida.
Para Deleuze, nao. Deleuze e um fil6sofo da alian~a. Sua geografia do
: Nietzs~he, Nietzsche contra Wagner, "Epilo~o",
Del~uze sugere que essa afirma<;a_o de pensamento agrupa os fil6sofos em espac;os antag6nicos tomando como criNietzsche aplica~se particularmente aos estoicos. 0 que nao significa que ela se refira a
teria geral a problematica da representac;ao e da diferenc;a. Para ele, existem
tao, inaugurando uma nova etapa. 46 A filosofia de Nietzsche e, como ele proprio a denominou, um "platonismo invertido" (umgedreht=r Platonismus)."
Pois e justamente esse projeto, interpretado como subversao da filosofia da
representac;ao e denominado as vezes "perversao do platonismo", que constrtui 0 centro a partir do qual gravitam as analises hist6rico-filos6ficas de Deleuze e inspira toda a elaborac;ao de seu pensamento filos6fico.
A dualidade entre dois tipos de filosofia tern, por conseguinte, Nietzsche
e Platao como polos opostos. Eo que transparece, por exemplo, quando L6gica do sentido formula a ideia de uma dupla orientac;ao - pelo alto e pela
profundidade - que caracteriza as duas imagens antag6nicas da filosofia.
Num extreme, Platao, com quem nasce a imagem do fil6sofo como ser das
ascens6es, como~aquele que sai da caverna, se eleva e se purifica na medida
em que se eleva. Segundo essa orientac;ao, a operac;ao filos6fica e ascensao,
conversao, movimento de volta ao principia do alto, que e principia do Bern
e da Verdade, principia metafisico e epistemol6gico. "A altura e o oriente
propriamente plat6nico:'8 No outre extrema, Nietzsche, :quele que l~vou
mais Ionge a critica da identidade;49 Nietzsche, o antr-Platao, o que mars radicalmente duvidou dessa orientac;ao pelo alto e questionou se, em vez de
significar a realizac;ao. da filosofia, ela nao seria, ao contrario, sua degenerac;ao; Nietzsche, para quem defender o privilegio da profundrdade contra a altura significa afirmar a impossibilidade de um ponto de partrda, de um fundamento. Nao foi efetivamente ele quem afirmou que "atras de toda caverna
ha outra mais profunda, um mundo mais vasto, mais estranho, mais rico so\b
' d
d fu d ~ ")SO
a superficie, um abismo abaixo de todo fundo, alem e to a n ac;ao .
Nao devemos pensar, no entanto, que esse privilegio da profundrdade
com relac;ao a altura significa uma oposic;ao a superficie, pois !'grande au;bic;ao de Nietzsche e justamente abolir a oposic;ao tr<~:d~cional entre superfr:re_
e profundidade]\flio foi ele quem disse dos artistas da Grecra arcarca que: os
gregos eram superficiais ... por profundidade"?' Segundo Deleuze, o en centro de Nietzsche com a profundidade s6 foi realizado por uma conqmsta da
superficie. E nesse sentido ele retoma uma ideia que Foucault havia exposto
em "Nietzsche, Freud, Marx", segundo a qual a filosofia de Nietzsche e uma
critica da profundidade sim, mas da profundidade pura, ideal, da profundidade da consciencia, critica essa que pretende restituir a ideia de profun-
-;.
35
fil6sofos que de modo geral estao excluidos do espa~o em que pretende situar seu pensamento. E o caso sobretudo de Platao, Arist6teles, Descartes,
Hegel, os grandes representantes da imagem tradicional da filosofia como
filosofia da representa~ao. E existem filosofos ao !ado de quem ele pensafundamentalmente Espinosa, Nietzsche, Bergson.
Mas isso nao e suficiente para compreender como ele le e incorpora
os outros pensadores. Pais, se na dimensao dos sistemas filos6ficos ou da
orienta<;iio geral de um pensamento a delimita<;ao e nitida, no ambito dos
elementos ou dos conceitos componentes a comunica<;ao entre esses espa<;os
e frequente. Assim, ate mesmo conceitos de fil6sofos situados no espa<;o da
representa<;ao sao objeto de um roubo que desfaz a teia conceitual em que
estao inseridos, ou desconsidera algumas das consequencias que acarretam
nas teorias filos6ficas em que foram produzidos, para torna-los elementos da
filosofia deleuziana da diferen<;a. Livros como Diferens:a e repeti<;ilo, L6gica do
sentido, 0 anti-Edipo, Mil plat6s, 0 que ea filosofia? fazem isso o tempo todo.*
0 filosofo que mais serve a Deleuze neste sentido, e que portanto ocupa
uma posi<;ao bastante singular em seu pensamento, e Kant. Perante ele, sua
posiqao e quase sempre a de um sim ... mas bastante caracteristico do procedimento de colagem. Por um !ado, seus livros estao cheios de virulentas
crfticas a Kant, que consistem fundamentalmente em explicitar por que ele
e expoente da filosofia da representa<;ao; par outro !ado, ideias importantes
de sua filosofia se esclarecem pelo que rouba de Kant para formular uma
teoria da diferen~a, mesmo sendo necessaria fazer pequenas ou grandes tor<;5es que minimizam ou desconsideram implica<;5es que os conceitos tem~
no sistema de origem ou os corrigem a partir de outros conceitos. Outro
fil6sofo que deve ser considerado com muita aten<;iio quanta a sua apropria<;ao por Deleuze e Leibniz. Com rela<;ao a Leibniz, como analisarei na
essa posi~ao que se expressa porum "sim ... mas" se generaliza a todos os
filc\sofos, ate mesmo Espinosa, com uma unica exce~ao: Nietzsche.
Essa e a razao pela qual considero ser passive! dizer que, partindo de
Nietzsche como criteria de avalia~ao, o estilo filos6fico deleuziano consiste
emlhe encontrar aliados em graus diferentes, estabelecendo conexoes entre conceitos de filosofos que merecem figurar, com mais ou menos pertinencia, no espa~o de uma filosofia da diferen<;a. Assim, nao so 0 dualismo
proposto por De leuze para distinguir representa<;ao e diferen<;a nao e total,
mas tambem Nietzsche e o momenta de maior radicalidade da critica da
imagem ou da representa<;ao. Mas nao se deve esquecer que a leitura de
Nietzsche feita por De leuze e a cria<;ao de mais uma mascara. E, neste sentido, a leitura dos outros fil6sofos incide sabre o seu Nietzsche tanto quanta
a dos comentadores, que de um modo geral tem uma importancia muito
grande nas interpreta<;6es deleuzianas. De todo modo, e, em ultima analise,
a problematica nietzschiana da "inversao do platonismo" que esclarece a
situa<;ao, no texto deleuziano, de conceitos criados por alguns filosofos
ou recriados, a partir deles, par Deleuze, e que apontam na dire<;ao de
uma atividade filos6fica diferente do estilo de filosofia "majoritario" desde
Platao. Deleuze tem o sentimento nietzschiano de um niilismo do pensamento que domina, entre outros setores, a filosofia. Mas, diferentemente
do que acontece com Nietzsche, esse sentimento nao e total ou radical.
Assim, ao afirmar que Nietzsche se interessou pouco pela hist6ria da filosofia- como se sua avalia<;ao dos fil6sofos nao fosse inteiramente justa
ou correta -, ele esta justificando seu projeto de uma geografia do pensamento que busca contraexemplos ou tentativas de escapar do niilismo
da hist6ria do pensamento encontrando aliados para Nietzsche, principalmente Espinosa e Bergson.
Elaborar ou reelaborar uma filosofia da diferen<;a significa, assim, estabelecer uma ponte, um canal, uma liga<;ao entre Nietzsche e os que podem,
de um modo ou de outro, me nos ou mais, ser aproximados do fil6sofo da
vontade de potencia e do eterno retorno. Desse modo, a filosofia de Deleuze
recria e relaciona, pelo procedimento de colagem, "novas" pensamentos ja
existentes, dentro e fora da filosofia, sempre com o objetivo de construir
um pensamento que afirma o primado da diferen<;a sabre a identidade. Pretendo mostrar que af se encontra sua singularidade.
-~----------* Assim, quando Deleuze diz, numa aula de 1976, que se deve trabalhar com um saco e, ao
encontrar alguma coisa que sirva, botar no saco,
alguma coisa sirva: a diferen':ra.
37
PARTE
0 nascimento da representac;:aq
11
A distin~ao manifesta
A interpreta~ao deleuziana da filosofia de Platao tern como objetivo explicitar sua motiva<;iio fundamental, privilegiando seu metodo de distin<;iio ou
de divisao. "0 projeto plat6nico s6 aparece verdadeiramente quando nos
reportamos ao metodo de divisao."' Para isso, Deleuze define duas dualidades constitutivas do platonismo- a manifesta e a latente -, esclarecendo a
prioridade que vigora entre elas.
Em uma primeira determina<;iio, o platonismo consiste em distinguir
essencia e aparencia, inteligivel e sensivel, original e c6pia, ideia e imagem. Essa "dwilidade manifesta" marcou a hist6ria da filosofia. Segundo
Nietzsche, por exemplo, toda a filosofi~ partir de Platao se desenvolve
retomando a oposi<;iio entre aparencia sensivel e essencia inteligivel. Uma
boa maneira de compreender em que consiste a dualidade manifesta da filosofia de Platao eo celebre texto da Republica swa-slla, conhecido como
a "passagem da linha". 0 que esse texto evidencia e que, para Platao, nao
pode haver verdadeiro conhecimento do sensivel. 0 que corresponde ao
dominio do sensivel e apenas opiniao- conjectura e cren<;a -, e nao saber, conhecimento, ciencia. S6 e possivel urn verdadeiro conhecimento do
inteligivel, das essencias, das ideias. Mas, do mesmo modo que ha hierarquia do inteligivel com rela<;ao ao visivel, o dominic do inteligivel nao e
homogeneo, tambem e hierarquico, marcado pela superioridade da filosofia. E por que a filosofia - a dialetica, a noesis - e um saber superior a
todos os outros, como por exemplo a matematica? A "passagem da linha"
aponta dois limites da matematica: embora ela pense essencias, seres naosensiveis, ela faz uso de figuras visiveis com o objetivo de tornar possivel a
demonstra~ao por uma serie de etapas sucessivas; alem disso, ela parte de
42
0 NASCIMENTO DA REPRESENTAt;Ji.O
todo sentido."' No entanto, isso nao e o mais importante de sua interpretas:ao. Sua grande ideia consiste em defender que a dualidade entre mundo
aparente e mundo das essencias nao e a distins:ao principal estabelecida por
Platil.o; e, mais ainda, consiste em explicitar como essa distins:ao manifesta
existe em funs:ao de uma distins:ao mais fundamental, que ele chama de "latente": a distins;ao entre as boas c6pias e os simulacros.
Se ele formula essa hip6tese e porque pretende afrontar as dificuldades e cumprir as exigencias colocadas por uma "subversao" radical do platonismo ou por uma critica, de inspiras;ao nietzschiana, da filosofia da representas:ao. "0 que significa 'subversao do platonismo'? Nietzsche definiu
assim a tarefa de sua filosofia, ou, mais geralmente, a tarefa da filosofia do
futuro. Parece que a f6rmula queria dizer: abolis;ao do mundo das essencias
e do mundo das aparencias. Entretanto esse projeto nao seria pr6prio de
Nietzsche. A dupla recusa das essencias e das aparencias remonta a Hegel e,
mais ainda, a Kant. Eduvidoso que Nietzsche queira dizer a mesma coisa."4
Essa identificas;ao pre-kantiana entre fen6meno e aparencia e salientada
pelo proprio Kant: "Desde os tempos mais antigos da filosofia, os que estudavam a razao pura conceberam, a!em dos seres sensiveis ou fenomenos que
compoem o mundo dos sentidos, seres inteligiveis particulares que'dmstituiriam um mundo inteligivel, e como eles confundiam fenomeno e aparencia, 0 que e desculpavel em uma epoca ainda inculta, s6 atribuiram realidade aos seres inteligiveis." 5 Nao privilegiar a distins;ao manifesta significa,
portanto, considerar que a abolis:ao do mundo das essencias e do mundo das
aparencias, que e um objeto realizado hit muito, que e a novidade, a originalidade ou singularidade da filosofia moderna desde Kant, ainda mantem o
pensamento no espas;o da representas:ao.
Com efeito, se ate Kant os fil6sofos, opondo a aparencia sensivel a essencia inteligivel, identificam 0 fenomeno a aparencia, a nova compreensao
de fenomeno que surge a partir de Kant identifica-o nao mais a aparencia,
mas a aparis;ao, ao aparecimento. Aparecimento nao se opoe a essencia: e
o que aparece enquanto aparece, sem que haja sentido em se perguntar se
existe alga por tras. E verdade que Kant ainda separa essencia e aparencia,
ao distinguir o fenomeno da coisa em si, do puro noumenon. Mas o fundamental para Deleuze e que, ao dizer que o noumenon s6 pode ser pensado, e
nao conhecido, Kant desloca a questao do conhecimento para a correlas;ao
aparecimento-condi96es do aparecimento, substitui a disjuns:ao essenciaaparencia _pela conjuns:ao aparecimento-condis;oes do aparecimento.
43
.44
0 NASCIMENTO DA REPRESENTA<;Ao
Esse novo modo de definir o fenomeno implica urn novo estatuto do sujeito. Na metafisica cLissica, a no~ao de aparencia sensivel remete a uma insuficiencia, a uma deficiencia do sujeito, a uma constitui~ao do sujeito que,
em virtude das ilusoes dos sentidos, deforma o conhecimento da essencia
inteligivel e torna necessaria que ele ultrapasse essa insuficiencia para atingir a essencia, como vimos em Platao. Para a filosofia transcendental kantiana, ao contrario, o sujeito e condi9ao de possibilidade do aparecimento; e
constituinte das condi~5es segundo as quais e passive! que alga apare~a, em
vez de ser responsavel pelas limita~oes ou ilusoes da aparencia.
Ora, se para Deleuze a filosofia do sujeito transcendental nao e uma
alternativa a metafisica, e porque nao critica OS pressupostOS subjetiVOS da
recogni~ao e do senso comum que postulam a dupla identidade do eu puro
e da forma do objeto qualquer. A unidade sintetica originiuia da apercep~ao,
que segundo Kant eo fundamento do acordo entre as faculdades de conhecimento, e considerada por ele justamente como 0 principia mais geral da
representa~ao. Analisarei posteriormente essa problematica. No momenta,
pretendo apenas assinalar que, em ultima analise, e por situar-se na perspectiva de uma filosofia da diferen~a que Deleuze julga insuficiente definir
o platonism a pela distin~ao entre a essencia e a aparencia.
A distinc;ao latente
Realizar uma critica radical da filosofia da representa9ao que Platao inaugura
com sua teoria das ideias exige privilegiar, na propria interpreta~ao do platonismo, uma distin9ao ainda mais fundamental do que a primeira. "E exato
definir a metafisica pelo platonismo, mas insuficiente definir o platonismo
pela distin~ao da essencia e da aparencia. A primeira distin9ao rigorosa estabelecida por Platao e a do modelo e da c6pia; ora, a c6pia nao e de modo algum uma simples aparencia, pois ela man tern, com a Ideia considerada como
modelo, uma rela9ao interior espiritual, nool6gica e ontol6gica. A segunda
distin9ao, ainda mais profunda, e entre a propria c6pia e o fantasma. E claro
que Platao s6 distingue e ate mesmo op5e o modelo e a c6pia para obter urn
criteria seletivo entre as capias e os simulacros, umas sendo fundadas por
suas rela~5es com o modelo, os outros, desqualificados porque nao suportam
nem a prova da c6pia, nem a exigencia do modelo. Se, portanto, existe aparencia, trata-se de distinguir as esplendidas aparencias apolineas bern fundadas
0 metodo de divisao
Que inten~ao, que motiva9ao se encontra na base desse processo platonico
de funda~ao da representa~ao? A exclusao, a repressao das c6pias sem semelhan~a, os simulacros - resposta que leva Deleuze a explicitar a singulari-
45
46
0 NASCIMENTO DA REPRESENTA(AO
47
representa9ao ainda sao duvidosos. For que? justamente pelas raz6es que
Arist6teles aponta: porque o metodo de divisao opera sem mediac;ao, age no
imediato, vai de uma singularidade a outra. E isso de modo algum desagrada
Deleuze. A ponto de ele afirmar que a subversao do platonismo conserva
muitas caracteristicas plat6nicas e se questionar se nao seria a divisao "que
A divisao plat6nica, diferentemente da aristotelica, nao busca propriamente a identifica~ao ou a especificac;ao do conceito, mas a autenticac;ao
da ideia; nao busca a determinac;ao da especie, mas a selec;ao da linhagem.
Seu real objetivo e selecionar uma linhagem pura a partir de urn material
impuro, indiferenciado, indefinido, que justamente deve ser excluido para
que seja possivel o aparecimento da ideia. 0 platonismo e uma dialetica dos
rivais e dos pretendentes. Dai ao metodo seletivo corresponder uma participa~ao eletiva.' 3 A divisao e a medi~ao dos rivais, a avaliac;ao dos pretendentes
a partir de urn fundamento seletivo que tern como objetivo possibilitar uma
participa~ao eletiva. 0 fundamento, identico e imparticipavel, e a ideia: s6
a justic;a e justa, s6 a coragem e corajosa ... Mas o fundamento possibilita
aos pretendentes que passarem por sua prova, por sua selec;ao, participar da
qualidade que s6 ele possui inteiramente e !he serem semelhantes. "Deve-se,
portanto, distinguir: a justi~Ca, como fundamento; a qualidade "justo", como
objeto da pretensao possuido pelo que funda; os justos como pretendentes
que participam desigualmente do objeto. E por isso que os neoplatC\nicos
nos dao uma compreensao tao profunda do platonismo quando exp6em sua
triade sagrada: o lmparticipavel, o Participavel, os Participantes."*
Simulacra e diferenc;a
Vejamos o que diz Foucault sobre esse ponto central da interpreta~ao deleuziana: "Piatao nao divide imperfeitamente - como dizem os aristotelicos - 0 genero 'cac;ador', 'cozinheiro' ou 'politico', ele nao quer saber 0 que
caracteriza propriamente a especie 'pescador' ou 'caqador com lac;o'; quer
* DR, p.87. Para Deleuze, o papel do mito platOnico no m<hodo de divisi:'i.o e instituir o funda~
mento que permite avaliar os pretendentes. Cf. DR, p.Ss-6; "Simulacre et philosophie antique", in LS, P348-so. Sobre a teoria neoplatllnica da participas:ao, cf. SPE, cap. XI, p.153-63.
48
0 NASCIMENTO DA REPRESENTA(AO
saber quem eo verdadeiro ca~ador. Quem e? e nao a que e?. Procurar o aut6ntico, o ouro puro. Em vez de subdividir, selecionar e seguir o born filao ...
Ora, como distinguir entre todos os falsos ( esses simulacras, esses supostos).
e o verdadeira ( o sem mistura, o puro)? Nao descobrindo uma lei do verdadeiro e do falso (a verdade aqui nao se op5e ao erra, mas a falsa aparencia),
mas olhando acima de todos eles o modelo de tal modo puro que a pureza
do puro se assemelha a ele, se aproxima dele e pode ser medida por ele, modele que existe com tanta for~a que a vaidade simuladora do falso sera imediatamente desclassificada como nao-ser ... Diz-se que Platao teria oposto
ess6ncia e aparencia, mundo do alto e mundo aqui de baixo, sol da verdade
e sombras da caverna ... Mas para Deleuze a singularidade de Platao esta
na triagem rigorosa, na sutil opera<;ao - anterior a descoberta da essencia,
pois a exige- que pretende separar os maus simulacras do con junto da aparencia. Para subverter 0 platonismo e inutil, portanto, restituir OS direitos
da aparencia, !he dar solidez e sentido, apraxima-la das formas essenciais,
dando-lhe como vertebra o conceito ... deixemos entrar todos esses astuciosos que simulam e gritam a porta."''
Essa praposta nos remete mais explicitamente ao aspecto positive e
principal objetivo da leitura deleuziana de Platao: subverter a filosofia da
representa<;ao significa afirmar os direitos dos simulacras reconhecendo.
neles uma potencia positiva, dionisfaca, capaz de destruir as categorias de
original e de copia. Ha em Platao uma rela<;iio de for<;a entre modelo e simulacra, no sentido de que a ideia e pensada como uma pot6ncia capaz de
excluir, barrar, rejeitar as copias sem fundamento. ''A no<;iio de modelo nao
intervem para se opor ao mundo das imagens em seu conjunto, mas para
selecionar as boas imagens, as que se !he assemelham do interior, os !cones,
e eliminar as mas, OS simulacros. Todo 0 platonismo e construido sobre essa
vontade de expulsar os fantasmas ou simulacras ... "' 5 A glorifica<;iio deleuziana dos simulacras, que define seu antiplatonismo, consiste em consideralos nao como simples imita<;5es, como uma copia de copia, uma semelhan<;a
infinitamente diminufda, urn !cone degradado, mas como uma maquinaria,
uma maquina dionisiaca, uma potencia positiva, "potencia primeira" que,
quando nao e mais recalcada pela ideia, e a propria coisa; pois, se no platonismo a ideia e a coisa, na subversao do platonismo cada coisa e elevada ao
estado de simulacra. Nao se pode dizer que a subversao do platonismo segundo Deleuze consista apenas em virar a pretensao do pretendente contra
a fonte da pretensao, o simulacra contra o modelo; o fundamental de sua
Arist6teles e Platao
Se Platao e a origem da representac;ao, no sentido em que, com ele, a diferenc;a e considerada em si mesma impensavel e subordinada as pote.ncias do
mesmo e do semelhante, tambem com ele o resultado do projeto de uma filasofia da representac;ao e duvidoso, na medida em que Platao ainda nao elabora
as "categorias que permitem desenvolver sua potencia". Segundo uma bela
imagem que aparece algumas vezes no texto deleuziano, e como se o mundo
heraclitico e sofistico da diferenc;a, qual um animal no momenta em que e
domado, ainda rosnasse no platonismo, resistindo a seu juga. Com a teo ria das
ideias, Platao baliza seu dominio: funda-o, seleciona-o, exclui o que o ameac;a.
Mas, inspirado em Nietzsche, Deleuze se empenha em mostrar que a motivac;ao ou a razao que preside sua decisao de exorcizar 0 simulacra e eminentemente moral. Nao que essa visao moral do mundo caracteristica desse primeiro momenta desaparec;a da filosofia da representac;ao, mas que Arist6teles
e quem, rigorosamente falando, funda ou estabelece a "16gica da representac;ao", criando seus conceitos b!.tsicos, atraves de uma operac;ao que pretende
tirar a diferenc;a de seu "estado de maldic;ao", estado em que ela aparece como
monstruosa, como "figura do mal destinada a expiac;ao". '9
Assim, o que esta no :Imago da argumentac;ao de Deleuze e, como sempre, a relac;ao da identidade e da diferenc;a. Neste caso preciso, a questao e
saber como se da, na divisao aristotelica, o "desdobramento da representac;ao" pela subordinac;ao da diferenc;a a identidade ou pelo estabelecimento
da relac;ao da diferenc;a com o conceito atraves da mediac;ao, justamente o
que faltava em Platao. Par isso, ao estudar Arist6teles, Deleuze se interessa
pela determinac;ao de quais diferenc;as podem ser inscritas no conceito
como condic;ao para que sejam pensaveis.
A diferen~a especifica
Vejamos, em primeiro Iugar, como a diferenc;a espedfica subordina a diferenc;a aidentidade do conceito indeterminado de genera.
0 fio condutor da exposic;ao de Deleuze e que em Arist6teles o conceito
de diferenc;a e construido a partir do conceito de oposic;ao ou, mais precisamente, do conceito de contrariedade, que e um dos quatro tipos de oposic;ao,
ao !ado da relac;ao, da privac;ao e da contradic;ao. De modo geral, segundo
Arist6teles, dais termos diferem quando convem em alguma coisa. Neste
sentido, se a maior e mais perfeita forma de oposic;ao, isto e, a que melhor
convem, e a contrariedade, e porque nesse caso, ao receber opostos, 0 sujeito
permanece substancialmente o mesmo. Mas nem toda contrariedade e do
mesmo tipo. Ha uma contrariedade acidental e material e uma contrariedade
essencial e formal; a primeira da o conceito de uma diferenc;a comum ou
pr6pria, a segunda, ode uma diferenc;a essencial ou "propriissima'.
E material e acidental estar em movimento ou em repouso, ser branco
ou preto, contrariedades que podem ser separadas do sujeito e sao diferenc;as
comuns, ou ser macho ou femea, ter o nariz achatado ou aquiline, que sao
inseparaveis do sujeito e constituem, portanto, diferenc;as pr6prias. A diferenc;a propriissima, par outro !ado, e a forma pela qual um ser difere essencialmente de outro, como, par exemplo, ser racional diferencia o homem dos
outros animais. A diferenc;a propriissima, a contrariedade formal e essencial
no genera, e a diferenc;a espedfica. Vejamos o que diz Arist6teles: "As con-
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52
0 NASCIMENTO DA REPRESENTA<;:AO
A diferen~a categorial
Mas isso nao e tudo, nem mesmo o mais fundamental. Como vimos, a
diferenc;a especifica e a maior e a mais perfeita com relac;ao a urn genera;
mas ela e ainda pequena com relac;ao a diferenc;a entre os generos supremos ou categorias, que nao estao submetidos a nenhum genera comum.
Explicitei o principia aristotelico segundo o qual dais termos diferem
quando convem em alguma coisa, mostrando em que sentido as diferenc;as de especie convem em genera. Indicarei agora em que sentido as diferenc;as de genera convem em ser. Esses dais tipos de relac;ao, no en tanto,
nao sao semelhantes, mas complementares. E isso porque o conceito de
ser nao e urn genera. Urn genera e urn conceito abstrato determinavel por
uma diferenc;a extrinseca, isto e, por uma diferenc;a que nao deve canter
em sen conceito o genera do qual.ela e a diferenc;a, enquanto toda classificac;ao de conceitos se faz no interior do conceito de ser, isto e, de cada
diferenc;a de ser pode-se dizer que ela e. Como lembra algumas vezes Diferenya e repetiyilo: e porque as diferenc;as silo que 0 ser nao e urn genera.
Deleuze diz, por exemplo: "Se o ser fosse urn genera, suas diferenc;as seriam assimilaveis a diferenc;as especificas, mas nao se poderia dizer que
elas 'sao', pais o genera nao se atribui a suas diferenc;as em si:''4 Assim, as
diferenc;as genericas ou os generos, considerados como conceitos ultimos
determin3.veis ou categorias, nao se relacionam ao ser como se este fosse
urn genera comum. Mas sera que esse novo tipo de relac;ao escapa da su- ,
bordinac;ao da diferenc;a a identidade? A resposta de Deleuze e que nao,}
porque tam bern nesse caso - ainda que de modo bastante especial -urn
conceito identico subsiste. Analisemos esse problema.
Perguntar-se "o que e o ser?"- a grande questao da metafisica de Arist6teles- significa procurar saber em que sentido o ser se diz, ou, mais pre. cisamente, se o ser se diz em urn ou em vclrios sentidos. E, se o ser se diz em
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54
iii
0 NASCIMENTO DA REPRESENTA(AO
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0 NASCIMENTO DA REPRESENTAc;Ao
rr
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l!I:
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PARTE 2
0 apice da diferen<;:a
11
60
0 APICE DA DIFEREN<;;A
Analisarei, portanto, inicialmente a concep~ao da univocidade do atributo segundo a qual ele constitui a essen cia da substancia e contem a essencia dos modos, que e o principia condutor dessa dupla genese.
A univocidade do atributo
No amago da
como forma.
concep~ao
caracteriza~ao
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0 APICE DA DIFEREN(A
fontes do anticartesianismo de Espinosa-, uma das principais teses de Espinosa e 0 problema da expressao e que a (mica distin<;ao capaz de existir no
absolute e a distin<;ao real ou formal considerada como uma distin<;ao nao
numerica. 8
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rj:
l
0 APICE DA DIFEREN<;:A
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0 A PICE DA DIFEREN<,;A
ESPINOSA, 0 SER E A ALEGRIA
Nao analisarei esses dois argumentos. Partirei da problematica da potencia que esti no seu amago para aprofundar a interpreta9ao deleuziana
e causa de si."'
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0 APICE DA DIFERENc;:A
ESPINOSA, 0 SERE A ALEGRIA
causa imanente. Nao que Espinosa tenha sido o primeiro a formular con0
ceito de causa imanente, mas que e seu 0 merito de ter libertado a causa
imanente desses outros procedimentos de causalidade aos quais ela estava
intrinsecamente ligada na hist6ria da filosofia. E Deleuze assinala a diferen~a fundamental da causa imanente com rela~ao a cada uma das outras.
Por urn lado, diferentemente da concep~ao transcendente, a causa imanente permanece em si para produzir. E isso que a causa imanente tern em
comum com a causa emanativa dos neoplat6nicos. Por outro !ado, diferen-
temente da concep,a:o emanativa, para a qual o efeito sai da causa, na imanncia 0 efeito, mesmo sendo outra coisa, permanece na causa como em
outra Colsa Isto e ' no caso da causa imanente, a distinqao de essencia entre,
causae efeito, entre produtor e produzido, implica uma igualdade de ser: "E
0 mesmo ser que permanece em si na causa e no qual o efeito permanece
como em outra coisa."" Por isso a concep~ao da causa imanente implica
uma ontologia.
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0 APJCE DA DIFERENr,;:A
ESPINOSA, 0 SERE A ALEGRIA
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72
APICE
DA DJFEREN<;A
ESPINOSA, 0 SERE A ALEGRIA
vimento e repouso ,6 U
.
ermma a re 1a~ao de mo.
m corpo, uma mdivid ]' d d
de uma infinidade de partes exten .
ua ' a e, e uma composic;:ao
.
Slvas, a permanencia de u
1 - d
.
rna re a~ao e
movlmento e repouso atraves das
d
mu an~as que afetam suas partes. "Cada
corpo tern partes 'urn
'
numero multo grande d
'
s6 lhe pertencem sob uma d t
. d
e partes ; mas essas partes
e ermma a rela~ao ( d
A etica da potencia
Considerada como distinrao intr'
mseca e extrmseca 0
d'f
'
intensiva, na essencia dos
d
.
' u como 1 erenciac;:ao
mo os, e extens1va qua d
d
existencia, a distinqao modal e O 'Jt.
'
n O OS mo OS pass am a
tol6gica segundo a qual au . 'dUdlmdo aspecto de uma problematica ond. mvocl a e o atnbuto ,
da substancia e dos modos d
d .
e a con 1c;:ao da distinc;:ao
existencia, ao mesmo
Mas ela tambem permite introduzir o segundo ponto importante da interpretac;:ao deleuziana de Espinosa e que se encontra em estreita rela~ao
com a ontologia: sua concepc;:ao etica do hom em.
Retomando uma tese nietzschiana que relaciona metafisica e moral,
e pretende ultrapassa-las por se fundarem em valores transcendentes, Deleuze encontra na etica de Espinosa, fundada em sua teoria do ser, uma alternativa para a moral, do mesmo modo que a ontologia espinosista e uma
alternativa para a metafisica. Ha, assim, no pensamento de Deleuze, como
observei na introduc;:ao deste livro, uma nftida diferenc;:a entre etica e moral,
que !he serve inclusive para aproximar Espinosa e Nietzsche. Ebem verdade
que ele nao se preocupa em definir de maneira rigorosa o que seja moral.
Criticando as noc;:oes de bem e mal, recompensa e castigo, clever, proibic;:ao
etc. como ideias inadequadas, o que lhe interessa e marcar a profunda diferenc;:a entre uma moral fundada em valores transcendentes ou superiores
a vida, ou a existencia, e uma etica ou urn "amoralismo racionalista" que
avalia as condutas tomando como referencia "normas de vida" ou "modos de
exisN~ncia" imanentes. 28
A meu ver, a articulac;:ao das questoes ontol6gicas e eticas se encontra
precisamente na "correspondencia" estabelecida por Deleuze entre os elementos que constituem essa primeira "triade expressiva do modo finito" que
acabo de expor- essencia, relac;:ao caracterfstica, partes ex:tensivas - e uma
segunda triade constitufda pela essencia- sempre considerada como gran de
potencia-, por um poder de ser afetado e pel as afecc;:oes que preenchem esse
poder. "A triade completa do modo se apresenta assim: uma essencia de modo se
expressa em uma relac;:ao caracteristica; essa relac;:ao expressa um poder de ser
afetado; esse poder e preenchido por afecc;:oes variaveis, assim como essa relac;:ao e efetuada por partes que se renovam."'' 0 que, no fun do,' significa acrescentar ao aspecto "cinetico", que apresentei, um aspecto "dinamico", e afirmar
que as partes extensivas de um modo existente se afetam infinitamente ou de
um numero muito grande de maneiras, e que a relac;:ao caracteristica einseparavel de um poder de ser afetado. "De tal modo que Espinosa pode considerar
como equivalentes duas quest6es fundamentais: Quale a estrutura (fabrica) de
um corpo? 0 que pode um corpo? A estrutura de urn corpo e sua relac;:ao. 0 que
pode urn corpo e a natureza e OS limites de seu poder de ser afetado." 30 A etica
de Espinosa diz respeito, portanto, apotencia e ao poder.
Eessa concepc;:ao que pretendo esclarecer a seguir, apresentando a interpretac;:ao deleuziana da teoria espinosista das afecc;:oes e dos afetos ou
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0 APJCE DA DIFEREN~A
ESPINOSA, 0 SERE A ALEGRIA
ue se compoem segundo a lei ( conveniencia); mas tam bern pode aconteque, as duas relac;:oes nao se compondo, urn dos dois corpos seja determinado a destruir a relac;:ao do outro (desconveniencia)". 34
Conveniencia ou desconveniencia, composic;:ao ou decomposic;:ao: isso
significa que, para qualquer modo existente- 0 homem e urn deles -, ha
dois tipos basicos de encontro de corpo, ou de alma, pois para Espinosa a
alma ou 0 espirito e a ideia de urn corpo: urn born e urn mau encontro. Urn
born encontro de corpo e aquele em que o corpo que se relaciona, que se
mistura com 0 nosso, combina com ele, isto e, compoe sua propria relac;:ao
caracteristica com a relac;:ao caracteristica de nosso corpo. Urn mau encontro e aquele em que urn corpo que se relaciona com o nosso nao combina
com ele e tende a decompor ou a destruir, em parte ou totalmente, nossa
relac;:ao caracteristica.
.
Em 30 de julho de 1881, escrevendo a seu amigo Overbeck, N1etzsche
diz estar surpreso e encantado de encontrar em Espinosa urn predecessor
capaz de transformar sua propria solidao em uma solidao a dois. Ele. enumera, entao, cinco pontos - todos temas eticos - da doutnna de Espmosa
que coincidem com seus proprios pontos de vista: a negac;:ao da vonta~e livre, a negac;:ao dos fins, a negac;:ao da ordem moral umversal, a negac;:ao do
altruismo e, finalmente e e o que nos interes sa neste momento -, a negac;:ao do mal.
Para Espinosa, nao existem bern e mal; o que existe e born e mau encontro. 0 mal, por exemplo, e na realidade urn encontro de urn corpo com
outro corpo que se mistura mal com ele, no sentido em que o afeta, o modifica de tal maneira que destroi ou ameac;:a destruir a relac;:ao de movimento e
repouso que 0 caracteriza. Eassim que, ao interpretar o episodio biblico segundo 0 qual Adao teria comido o chamado fruto proibido, Esp~nosa consldera que nao houve propriamente proibic;:ao, e sim uma revelac;:ao do ,efe1to
nocivo que 0 fruto teria sobre seu corpo. ':A proibic;:ao do fruto da arvore
consistia apenas na revelac;:ao feita por Deus a Adao das consequencias mortais que a ingestao desse fruto teria; e assim que sabemos, pela luz natur~,
que urn veneno causa a morte:'" 0 chamado "mal" e na verdade urn fenomeno do tipo envenenamento, indigestao, intoxicac;:ao. 36
Portanto, a relac;:ao entre generos de conhecimento e ordem da natureza ou da vida significa, nesse primeiro nivel, que enquanto o homem apenas tiver ideias de afecc;:oes vivera na ordem dos encontros casuais ou ao
acaso dos encontros; e, reciprocamente, que o encontro fortuito acarreta
~er
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0 APJCE DA DIFEREN<;A
dois tipos de ideias afecqao: a ideia de urn efeito que se concilia com sua relaqao caracterfstica e a ideia de urn efeito que a compromete ou ate mesmo
a destr6i.
Posso, entao, introduzir o conceito de afeto ou sentimento e afirmar
i~ediatamente que aos dois tipos de ideias afecqao correspondem dois tipos
basrcos de afeto ou sentimento. 0 motivo e que, quando tenho urn encontro
no qual a relaqao caracterfstica do corpo que me afeta, que me modifica, se
combina com a relaqao caracterfstica de meu corpo, minha potencia de agir
aumenta. Tratando-se da alma, acontece o mesmo com a potencia de pensar, que e sua potencia de agir. Ao contrario, quando tenho urn encontro no
qual a relaqao caracterfstica do corpo que me afeta compromete ou destr6i
parte da relaqao caracteristica de meu corpo, minha potencia de agir diminm e, no caso extrema, pode ate mesmo ser destrufda. 0 afeto e o aumento
e a diminuiq.ao da potencia de agir de urn corpo. A terceira definiqao do
Livro Ill da Etica diz: "Por afetos entendo as afecqoes do corpo pelas quais
a potencia de agir desse corpo e aumentada ou diminufda, ajudada ou contida, e ao mesmo tempo as ideias dessas afecqoes." E esse mesmo Livro Ill,
nas definiqoes dos afetos, define a alegria como "a passagem do homem de
uma perfeiqao menor a uma maior" (def. 2), e a tristeza como "a passagem
do homem de uma perfeiqao maior a uma me nor" (clef. 3). Isso significa
que, quando a potencia de agir aumenta, sinto assim alegria e, quando a
potencia de agir diminui, sinto tristeza.
A teoria dos afetos tern grande importancia na filosofia de Espinosa,
marcando profundamente o pensamento de Deleuze. Alegria e tristeza sao
os dois afetos fundamentais a partir dos quais sao engendrados todos os outros. Assim, amor, inclinaqao, esperanqa, contentamento, estima ... provem
da alegria; 6dio, aversao, medo, remorso, desestima ... provem da tristeza.
Mas ha uma questao diffcil de ser esclarecida: a relaqao entre afeto (affectus)
e afecqao (affectio), termos que a primeira vista parecem nao apresentar
grande diferenqa. Deleuze reconhece que o afeto e urn tipo de afecqao ou
de ideia de afecqao, mas nao considera essa caracterfstica como a mais importante quando se trata de estabelecer a relaqao entre os do is conceitos: "A
toda ideia que indica urn estado de nosso corpo esta necessariamente ligada
uma outra especie de ideia que envolve a relaqao desse estado com 0 estado
passado ... Nossos sentimentos, por si mesmos, sao ideias que envolvem a
relaqao concreta do presente com o passado em uma duraqao continua: eles
envolvem as variaqoes de urn modo existente que dura."37
0 que diz esse texto? Por urn !ado, que o afeto e urn tipo de ideia; mas,
por outro !ado, que ha uma diferenqa fundamental entre eles no sen_tid~ em
que, enquanto a ideia de afecqao indica urn estado, ou que a afecqao e urn
estado, o afeto envolve a relaqao temporal ou a variaqao de dois estados.
E se esse texto de Espinosa e o problema da expressao pode deixar duvidas com relaqao a posiqao de Deleuze, Espinosa, filosofia prlitica apresenta
de forma mais explicita essa diferenqa de natureza que estou pretendendo
salientar: ''A affectio diz respeito a urn estado de corpo afetado e implica
a presenqa do corpo que 0 afeta, enquanto 0 affectus diz respeito a pas:agem de urn estado a outro, levando em consideraqao a variaqao correlatrva
dos corpos que o afetam. Ha, portanto, uma diferenqa de natureza entre as
afecqoes imagens ou ideias e os afetos sentimentos, mesmo que os afetos sentimentos possam ser apresentados como urn tipo particular de ideias ou de
afecq6es."38 Alem disso, este ultimo livro enuncia, ainda mais claramente,
urn primado da ideia sobre o afeto e, ao mesmo tempo, uma diferenqa de n_atureza entre os dois. Primado l6gico no sentido em que, embora o afeto nao
possa ser reduzido a ideia, ele sempre supoe uma ideia ou tern sempre u~a
ideia como causa; e assim, por exemplo, que urn afeto como o amor supoe
sempre a ideia, por mais confusa que seja, do objeto amado. Diferenqa de
natureza, em dois seutidos: em primeiro Iugar, embora o afeto seja, como
a ideia, urn modo de pensamento, enquanto a ideia, quando considerada
em sua realidade objetiva, e representativa, o afeto ou sentimento nao representa nenhum objeto; em segundo lugar, e mais fundamentalmente,
enquanto a ideia, em sua realidade formal, e urn determinado grau de realidade ou tern em si mesma uma realidade intrfnseca, o afeto e a transiqao, a passagem de urn grau de realidade a outro. Privilegiando a noqao de
passagem que aparece nas definiqoes espinosistas da alegria e da tristeza, a
hip6tese interpretativa que permite a Deleuze afirmar a diferenqa de natureza entre os dois conceitos e a seguinte: se uma afecqao e urn estado - o
estado de urn corpo enquanto ele sofre a aqao de outro corpo -, o afeto ou
sentimento nao e propriamente urn estado, mas a passagem, 0 movimento,
a transiqao, a variaqao de urn estado a outro. 0 afeto e a variaqao continua
da potencia de agir de alguem, determinada pelas ideias que ele tem. 39
0 afeto e aumento ou diminui~ao da potencia de agir; mas, como Deleuze faz questao de salientar, isso nao significa que haja falta ou privaqao,
pois o poder de ser afetado que expressa a essencia do modo esta sem~,re
preenchido, completo, realizado em sua relaqao com os outros modos: 0
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78
0 fi.PICE DA DIFEREN~A
modo existente tern uma essencia identica a urn gran de potencia; como
tal, ele tern uma aptidao para ser afetado, urn poder de ser afetado de urn
numero muito grande de maneiras; enquanto ele existe, esse poder e preenchide de maneira variavel, mas esta sempre e necessariamente preenchido
sob a a~ao dos modos exteriores:'4 o Se o poder de ser afetado esta sempre
preenchido, apesar do aumento ou diminui~ao da potencia de agir do modo,
isso se explica pelo fato de haver conveniencia ou desconveniencia, composi~ao ou decomposi~ao no encontro com outro modo. No caso de urn mau
encontro, a potencia de agir do corpo diminui porque ela e direcionada para
minorar ou anular o efeito destrutivo ou nocivo do outro corpo; no caso
de urn born encontro, ela aumenta porque as potencias dos dois corpos se
combinam.
Mas isso nao etudo, nem mesmo o mais fundamental; eapenas urn primeiro
nivel da etica de Espinosa. A razao e que tanto o aumento quanta a diminui~ao da potencia de agir definem a alegria e a tristeza como paixoes. Enquanta nossos afetos forem consequencia de encontros fortuitos com outros
modos existentes, eles se explicarao pela natureza do corpo que nos afeta e
pela ideia afec~ao, que e uma ideia inadequada desse corpo. Enquanto nao
formos a causa adequada nem tivermos uma ideia adequada de nossas afec~6es, nossos afetos serao paix6es, alegres ou tristes. No nivel dos encontros
fortuitos e das ideias inadequadas, os afetos, na medida em que envolvem
uma potencia de agir reduzida- porque se explicam por uma coisa ou uma
causa exterior-, as vezes aumentam, as vezes diminuem a potencia, sem
que nunca se esteja real ou formalmente de posse dela. E se a alegria e tambern uma paixao e porque, quando temos uma paixao alegre, nossa potencia
de agir nao cresce a ponto de nos concebermos adequadamente - nos nos
mantemos passivos -, nunca aumenta suficientemente para que a possuamos realmente, para que sejamos ativos, isto e, causa adequada das afec~oes
que preenchem nosso poder de ser afetado. Nossas paix6es, alegres ou tristes, sao sempre a marca de nossa "impotencia" ou da "limita0o" de nossa
potencia de agir - "elas nao se explicam por nossa essencia ou potencia,
mas pela potencia de uma coisa exterior; assim, elas envolvem nossa impotencia. Toda paixao nos separa de nossa potencia de agir; enquanto nosso
poder de ser afetado for preenchido por paixoes, estaremos separados daquilo que podemos."''
Ora, 0 que Espinosa chama de afetos ativos ou a~oes supoe que tenhamos saido do dominio das paixoes, o que, em outros termos, significa que
possuimos, que dominamos nossa potencia de agir. Analisarei, a seguir, a
problematica dos afetos ativos e, para isso, como no caso das paixoes, tambern partirei da teoria das ideias ou do conhecimento que !he corresponde e
!he serve de fundamento.
0 segundo genera de conhecimento, tal como aparece na Etica, se define pela no~ao co mum. Mostrei que a ideia afec~ao e uma ideia da mistura
de corpos, isto e, a ideia do efeito de urn corpo sabre o nosso, e e necessariamente inadequada. A ideia no~ao ou no~ao comum, em vez de sera apreensao da mistura extdnseca de urn corpo sabre outro, nos di o conhecimento
da causa, e e necessariamente adequada. "A ideia adequada e a ideia que
expressa sua propria causa e se explica por nossa propria potencia";'' "As
no~oes comuns sao ideias que se explicam formalmente por nossa patencia de pensar e materialmente expressam a ideia de Deus como sua causa
eficiente."43 As no<;Oes comuns existem em n6s como existem em Deus, ou
nos as temos como Deus as tern.
Do mesmo modo que ha correspondencia entre o primeiro genera de
conhecimento e a ordem dos encontros fortuitos ou aleatorios, o segundo
genero corresponde ao segundo aspecto da ordem da natureza ou da vida,
a ordem de composi~ao segundo leis, que "determina as condi~oes eternas
sob as quais os modos passam a existencia e continuam a existir enquanto
conservam a composi~ao de suas rela<;5es". 44 0 conhecimento das no<;6es
comuns e por no<;6es comuns e urn conhecimento adequado das leis de
composi<;ao das rela<;6es caracteristicas pelas quais os corpos convem ou
desconvem. Representando a similitude de composi<;ao dos modos existentes, Deleuze explica que a a<;ao de urn corpo sobre outro tern como causa a
natureza da rela~ao dos do is corpos, a mane ira como a rela<;ao caracteristica
de urn se compoe com a rela<;ao caracteristica do outro.
0 que mais interessa Deleuze, porem, ao tematizar as no<;6es comuns,
considerando-as como ideias de uma semelhan~a ou comunidade de composi<;ao nos modos existentes, e estabelecer que elas sao de diversos tipos,
isto e, mais ou menos gerais, representando a composi<;ao de dois ou varios
corpos. 0 que e proprio a todas elas e que a alma ou 0 espirito e levado nao
do exterior, mas do interior, ou pela causa, a compreender a conveniencia
79
80
APICE
DA DIFEREN~A
e a desconveniencia entre as coisas. Mas ha entre elas uma diferenc;:a importante. As mais universais representam uma comunidade de composi~ao
entre corpos que convem de um ponto de vista bastante geral, e nao de seus
pr6prios pontos de vista. Assim, elas nos dao a razao interna e necessaria da
conveniencia e desconveniencia entre os modos existentes. Todos os corpos,
por exemplo, tern em comum a extensao, o movimento e o repouso, e jamais
epelo que tern em comum que eles desconvem ou se op6em. Por outro !ado,
as ideias menos universais sao as que representam uma semelhan,a de composi~ao entre corpos que convem diretamente e de seus pr6prios pontos de
vista, como, por exemplo, entre um corpo humano e outros corpos. Sao elas
inclusive que Deleuze considera as mais uteis, como mostrarei quando esclarecer a questao da genese ou da formac;:ao das noc;:oes comuns, que e uma
das teses fundamentais de seus livros sobre Espinosa no que diz respeito a
rela~ao entre etica e teoria do conhecimento.
Antes, porem, e preciso introduzir, no nivel das noc;:oes comuns, a questao dos afetos ou sentimentos. E, como ja seria possivel supor, a correla<;:ao
e a mesma que a anterior, isto e, apesar da diferen<;:a de natureza, assim como
a ideia inadequada e causa de um sentimento passivo, a ideia adequada e
causa de um sentimento ativo. Se a ideia que temos e adequada, se ela expressa diretamente a rela<;:ao caracteristica do corpo que nos afeta, em vez
de envolve-lo indiretamente, os afetos que !he correspondem sao ac;:oes. "Um
afeto que e uma paixao deixa de ser uma paixao logo que formamos dele
uma ideia clara e distinta", diz Espinosa, ou uma ideia adequada, segundo
a interpreta~ao de Deleuze. 45 A formac;:ao de uma noc;:ao comum assinala 0
momenta em que somos ativos ou possuimos nossa potencia de agir. "N6s,
que a principia s6 temos ideias inadequadas e afecc;:oes passivas, s6 podemos conquistar nossa potencia de compreender e de agir formando noc;:oes
comuns"'' - o que, para Espinosa, e dificil e raro, mas nao e impassive!,
pois e justamente 0 caminho para a conquista da potencia de compreender
e agir que ele pretende mostrar com sua filosofia. Por isso a interpretac;:ao
deleuziana da relevancia a duas quest6es importantes na Etica de Espinosa.
Uma e a questao propriamente etica: "como chegar a ser ativo?". A outra
e metodol6gica ou epistemol6gica: "como chegar a ter ideias adequadas?".
Como e possivel devir ativo e racional? Ou melhor, como isso se da? Analisarei esse ponto para evidenciar de que mane ira, para Deleuze, a!em de uma
filosofia especulativa da univocidade do ser, o pensamento afirmativo de Espinosa tambem se constitui em uma filosofia pratica da alegria.
Espinosa nao ve nenhum valor positivo na tristeza. Embora nao desenvolva 0 tema, Deleuze nao deixa de assinalar a denuncia que ele faz da necessidade que os poderes opressores tern de inspirar paix6es tristes como
meio de dominar os homens. Por que a condenac;:ao da tristeza? 0 motivo
e evidente, levando-se em conta o que foi dito sobre as afec~6es e os afetos:
quando somos afetados de tristeza, nossa potencia de agir diminui porque
tudo fazemos para eliminar ou minorar a ac;:ao do corpo que nao combina
com 0 nosso. E, sendo a tristeza a diminuic;:ao da potencia de agir, nao pode
haver tristeza ativa ou ac;:ao triste; ela e necessariamente uma paixao. Por
outro !ado, ela nos faz permanecer no nivel das ideias inadequadas porque,
quando estamos tristes, devido a uma afec<;:ao produzida por um corpo que
nao nos convern, nada nos induz a formar a noc;:ao comum ao corpo que nos
afeta de tristeza e ao nosso.
No caso da alegria, a situac;:ao e bern diferente ou muito mais complexa,
e oferece a Deleuze o ensejo a uma das mais belas e interessantes interpretac;:oes que faz da filosofia de Espinosa. Ela consiste em distingnir dois pontos
de vista a respeito da relac;:ao entre a paixao e a ac;:ao. De urn ponto de vista
que chamarei estrutural, existe uma "diferenc;:a etica" radical entre a ac;:ao,
em que se possui formalmente a potencia de agir, e a paixao, em que se esta
deJa separado, privado, visto que, neste caso, por mais que nossa potencia
de agir aumente, ainda nao estaremos em sua posse formal. Uma soma de
paixoes jamais clara uma ac;:ao. A diferenc;:a etica, que Deleuze chama assim
para distingnir da oposic;:ao moral, separa nitidamente o homem de ac;:ao e
o homem de paixao: "Em ultima analise, o homem livre, forte, racional, se
definira plenamente pela posse de sua potencia de agir, pela presenc;:a nele
de ideias adequadas e afecc;:oes ativas; ao contrario, o fraco, o escravo, s6
tern paixoes que derivam de suas ideias inadequadas e que o separam de sua
potencia de agir:'" A distancia, portanto, parece intransponivel entre ideias
adequadas e ideias inadequadas, ordem das relac;:oes e ordem dos encontros,
ac;:oes e paix5es. Foi o que vimos ate o momenta.
Mas urn outro ponto de vista e fundamental na interpreta,ao de Deleuze. Ele consiste em encontrar na Etica de Espinosa uma explicac;:ao da
genese tanto da razao quanto da ac;:ao a partir das paixoes ou, mais precisamente, das paixoes alegres. '' Espinosa e o problema da expressao prop6e a
segninte tese a respeito das noc;:oes comuns: o Livro II da Etica considera as
noc;:oes comuns de urn ponto de vista especulativo, apresentando-as numa
ordem l6gica que vai das mais universais as menos universais, mas pressu-
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0 APJCE DA DIFEREN(A
ESPINOSA, 0 SERE A ALEGRIA
pondo seu processo de forma<;:ao; o inicio do Livro V concebe a fun<;:ao pratica das no<;:oes comuns, mostrando como elas sao causa das alegrias ativas,
afetos ou sentimentos que nascem da razao; ha uma mudan<;:a radical de
perspectiva, porem, quando, no decorrer desse Livro V, Espinosa se pergunta como conseguimos formar uma no<;:iio comum, questao correlata a
questao prapriamente etica: que fazer para ter afec<;:6es ativas? Razao e a<;:ao
nao podem ser separadas de urn devir. Ninguem nasce racional, ativo e, partanto, livre. A infancia e urn estado de impotencia, urn estado miseravel em
que se depende demasiadamente das causas externas, em que predominam
esmagadoramente as ideias inadequadas e os sentimentos passivos, em que
nao se possui a potencia de agir e de compreender. E o proprio Adao, o primeira homem, a infancia da humanidade, vivendo ao acaso dos encontros,
era triste, fraco, escravo, ignorante.
e, em sua genese, a razao, existindo em "livre harmonia" com a imagina<;:iio, e o esfor<;:o para selecionar e organizar os bons
encontros que possibilitam ou determinam paix6es alegres ou sentimentos
minar e preparat6rio, isto
alegrias ativas que vao substituir as paixoes tristes. 53 Eis a genese da razao e da
a<;:ao que e o itinerario de urn verdadeiro "aprendizado", de urn "aperfeiqoamento", de uma "prova fisica ou quimica"- e nao moral- de nossas ideias e
de nossos afetos, ao termino do qual seremos livres, fortes e racionais. 54
84
, 0 APICE DA DIFERENc;A
Espinosa e Nietzsche
ss
86
o APICE oA DIFEREN<;A
tos, em urn deles exposta pelo anao e no outro pelos animais de Zaratustra:
a aguia e a serpente. "'Tudo o que e reto mente', murmurou, desdenhoso, o
anao. 'Toda verdade e curva, o proprio tempo e urn circulo"'; '"6 Zaratustra',
disseram entao os animais, 'para os que pensam como n6s as proprias coisas
dan~am: vern e dao-se as maos e riem e fogem - e voltam. Tudo vai, tudo
volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser. Tudo se separa, tudo volta a encontrar-se;
eternamente fie! a si mesmo permanece o anel do ser. Em cada instante
come~a o ser; em torno de cada aqui gravita a esfera do ali. 0 centro esta em
toda parte. Curvo e o caminho da eternidade."'
Significara isso que o eterno retorno e para Nietzsche urn ciclo em que
tudo revem, em que 0 mesmo revem ou em que tudo revem ao mesmo?
A mais simples critica objetiva dos textos e a mais modesta compreensao
poetica ou dramatica e, segundo Deleuze, suficiente para desmentir essa
interpretaqao. E ele argumenta. Em primeiro Iugar, nao e o proprio Zaratustra quem enuncia essa doutrina circular do eterno retorno; num caso,
88
0 APICE DA DIFEREN<;:A
64
0 que e, entao, o eterno retorno? Para responder a essa questao e necessaria antes chamar a aten~ao para o estilo da argumenta~ao de Deleuze,
que, como ja havia acontecido na interpreta~ao de Platao, novamente estabelece uma distin~ao entre urn conteudo manifesto e urn conteudo latente.
As poucas exposi~5es do eterno retorno feitas explicitamente par Nietzsche
constituem apenas seu conteudo manifesto: preparam a revelaqao do eterno
retorno, mas nao o revelam, tudo indicando inclusive que a obra que projetava escrever pouco antes de enlouquecer, em 1889 - e que deveria chamar-se Vontade de potencia -, iria muito mais Ionge em sua conceitua~ao. E
justamente essa defini~ao que Deleuze procura formular explicitando o conteudo latente do eterno retorno. Unico modo, segundo ele, de compreender
a novidade da teo ria de Nietzsche, pois o que e dito manifestamente em Assim falou Zaratustra- e, como vimos, sempre criticado pelo personagem de
Zaratustra- esta em continuidade com a concepqao dos antigos, concep,ao
qualitativa ou extensiva, fisica ou astronomica do eterno retorno, em que
inclusive os autores antigos s6 acreditavam de modo aproximativo e parcial.
"0 conteudo manifesto do eterno retorno pode ser determinado em conformidade como platonismo em geral: ele representa entao o modo pelo qual o
caos e organizado sob a al'ao do demiurgo e sobre o model a da Ideia, que !he
imp5e o mesmo e o semelhante. 0 eterno retorno, neste sentido, e o devirlouco dominado, monocentrado, determinado a copiar o eterno. E e deste
modo que ele aparece no mito fundador. Ele instaura a c6pia na imagem,
subordina a imagem a semelhanqa.''65 Estamos sem duvida bastante lange
daquilo que Nietzsche considerou como sua ideia mais vertiginosa.
Mas entao o que eo eterno retorno? 0 inicio da segunda parte de "A visao e 0 enigma' permite dar urn primeiro passo em dire,a.o a formula,ao de
seu conceito. "'Alto !a, anao', falei. 'Ou voce ou eu! Mas eu sou o mais forte
dos dois. Voce nao conhece meu pensamento abissal. Esse voce nao poderia
suportar.' Entao aconteceu algo que me aliviou, pais o anao, curiosa como
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90
o,APICE DA DIFEREN<;:A
era, pulou de minhas costas ao solo. E se foi acocorar em uma pedra a minha
frente. Mas tinhamos parado justamente diante de um portaL 'Olha esse
portal, anao', prossegui; 'ele tem duas faces. Dais caminhos se juntamaqui;
ninguem ainda os percorreu ate o fim. Esse Iongo caminho que vai para tras
dura uma eternidade. E aquele Iongo caminho que vai para a frente e outra eternidade. Esses caminhos se contradizem; encontram-se de frente; e e
aqui nesse portal que eles se juntam. 0 nome do portal esta escrito no alto:
instante. Mas se alguem seguisse por um desses caminhos sem parar e cada
vez mais Ionge, voce pensa, anao, que eles sempre se iriam opor?':' 0 anao,
como vimos, responde entao que o tempo e um circulo; Zaratustra o chama,
por isso, de espirito de gravidade, e continua sua exposi9ao: "'Olha esse instante. A partir desse portal chamado instante um Iongo, eterno caminho
se estende para tnis: ha uma eternidade as nossas costas. Tudo o que pode
caminhar nao deve necessariamente ter uma vez percorrido esse caminho?
Tudo o que pode, entre as coisas, acontecer nao deve uma vez ja ter acontecido, passado, transcorrido? E se tudo ja existiu, que acha voce, anao, desse
instante? Esse portal tambem nao deve ja ter existido? E todas as coisas nao
estao tao firmemente encadeadas que esse momenta arrasta consigo todas
as coisas fnturas? Portanto- tambem a si mesmo? Porque tudo aquila que
pode caminhar devera ainda percorrer uma vez tambem este Iongo caminho
que leva para a frente!'"*
Essa longa passagem exp5e, segundo Deleuze, o pensamento nietzschiano do puro devir- que e 0 fnndamento do eterno retorno- pela critica do estado terminal ou do estado de equilibria e pela correlata afirma9ao
da infinidade ou eternidade do tempo. A argumenta9ao consiste essencialmente no seguinte: o tempo passado sendo infinito ou eterno, o devir teria
atingido seu estado final, se houvesse um; ora, o instante atual, que e um
instante que passa, prova que esse estado final nao foiadrigido; logo, um
equilibria das for9as, um estado de equilibria, um estado inicial ou final,
nao e passive!. Bastaria......um
tmico instante de ser anterior ou {JO_sterior ao
- ..---.-..
devir para que nao pudesse mais havei-deVIr.-6 instante atual e uminstante
-quep~s~a e SQ pode passaf porque e ao mesmo tempo presente, pass<ldo
e futuro. Ha uma rela9ao sintetica do instante consigo mesmo como presente, passado e futuro, e e essa rela9ao que fnnda ou determina a rela9ao
_
--
*Alguns textos de Nietzsche desenvolvem uma argumentas;ao semelhante. Cf., por exemplo, na edi<;8.o Os pensadores, os 1 e 14, entre os fragmentos p6stumos de 1881, e os
1062 e 1066, entre os de 1884-88.
* Cf. NPh, p.54, 221. Esse argumento de Deleuze tern uma inspira9ao bergsoniana. Apresentarei, no capitulo sabre o cinema, a leitura deleuziana do tempo em Bergson.
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0 APICE DA DIFEREN(A
For~a
e vontade de palencia
Par que a defini~ao fisica do eterno retorno e insuficiente, tornando necessaria uma defini~ao etica? A razao e a seguinte: o eterno retorno, o revir,
foi definido como o ser do devir; mas o que mostra a genealogia, quando
considera 0 homem, sua historia e sua cultura, e que devir nao e uma no~ao
univoca, pais existem dais tipos de devir: o devir-ativo eo devir-reativo; ou,
mais grave ainda, 0 que ensina a genealogia e que 0 devir e basicamente 0
devir reativo constituinte do niilismo. "E urn devir-doentio de toda a vida,
urn devir escravo de todos os homens que constitui a vitoria do niilismo."'0
Par isso so e passive! compreender e aprofundar a defini~ao especulativa do eterno retorno relacionando esse conceito com outro, tambem fundamental, da filosofia de Nietzsche: a vontade de potencia. 0 eterno retorno
compreendido como ser do devir ou revir da diferen<;a esta intrinsecamente
ligado avontade de paten cia considerada como devir das for~as ou principia
da diferen~a.
Na base da interpreta<;ao deleuziana da vontade de potencia esta a dis-.
tin<;ao entre\'o!ltaci!C_<O~or~a.'' 0 minima que se pode dizer dessa distin<;ao e
que ela nao aparece expliCit~ ou claramente em Nietzsche. Penso ate mesmo
que ela e a principal tor<;ao feita par Deleuze para ajustar o pensamento de
Nietzsche a seu proprio projeto de pensar a diferen<;a, sendo, portanto, fundamental para dar conta de sua argumenta<;ao, inclusive da interpreta<;ao
bastante original do eterno retorno nietzschiano. Vejamos o que essa distin~ao significa.
Partindo da ideia de que aquila que constitui a essencia da for~a e a
rela<;ao com outras for<;as ou de que e na rela~ao que a for<;a adquire sua essencia ou qualidade, Deleuze define urn corpo- quimico, biologico, social,
politico- como urn fen6meno multiplo, urn composto de uma pluralidade
de for<;as irredutiveis em !uta, em que algumas sao dominantes e outras dominadas. As for~as superiores ou dominantes sao chamadas ativas; as for<;as
inferiores ou dominadas sao chamadas reativas. Ativo e reativo sao as qualidades que correspondem adiferen<;a de quanti dade entre as for<;as. A essencia ou a qualidade da for<;a e a diferen<;a de quanti dade resultante da rela~ao
entre as for<;as. ''A qualidade nada mais e do que a diferen<;a de quantidade
e !he corresponde em cada rela<;ao de for<;a"; "Segundo a diferen~a de quantidade delas, as for<;as sao ditas dominantes ou dominadas. Segundo a qualidade delas, as for<;as sao ditas ativas ou reativas."''
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0 APICE DA DIFEREN~A
suas leituras dos pensadores em geral quanta com sua propria teoria sistematica do exercicio do pensamento: a distin,ao entre o empirico e o transcendental, que_ possibilita conceber a ideia de gen<es.o,__ no caso esp_ ecifico
--- ----~-----~-----.,._.-------.de Nietzsche, a forq~_CCH1l_':'_s_en~o emrlnCa e a vontade como transcendental. Ideia que nao encontro em Nietzsche.
Assim, o que em ultima analise explica essa torl'ao e que, para Deleuze,
a vontade de potencia e 0 elemento ou 0 principia genealogico - is to e,
di.ferencial e genetico - das for,as em presen,a: Ele)Jlento diferencial significa elemento ou principia de produ,a.o da diferen10a de q1,tantidade entre
as forqas. Elen:ento genetico significa elemento ou principia da,qy~]idad"
que cada forqa adquire nessa rela,ao. Eda vontade de potencia considerada
como elemento genealogico que decorrem tanto a diferenl'a de quantidade
das forqas em luta quanta a qualidade respectiva dessas forqas. A vontade de
potencia e assim 0 principia interno de determina,a:o da qualidade da for,a
e da quantidade da rela,a:o entre as for,as. 1-s relal'6es de for'a permaneceriam indeterminadas se nao se acrescentasse as for,as urn elemento capaz
de determina-las do ponto de vista tanto da quantidade quanta da qualidade: a vontade de potencia como principia imanent-;_\e, ao mesmo tempo,
transcendente a elas. ':As for,as em rela,a:o remetem a uma dupla genese simultanea: genese reciproca de sua diferenl'a de quantidade, genese absoluta
de sua qualidade respectiv~. vontade de potencia acrescenta-se, portanto,
a for,a, m.as como o elemento diferencial e genetico, como o elemento interne de sua produ,a:o:''~J
Essa problematica da genese, fundamental na filosofia de Deleuze, evidencia claramente que a distinqao entre vontade e forl'a e uma distinqao
de nivel. Para utilizar uma linguagem kantiana e bergsoniana, que Deleuze
incorpora a sua filosofia, ~ passive! dizer que, enquanto as forl'<ls.sao ..em"-,pi.ric<ls, ~vontade, que e condiqao ou prlncrpio :genetico e-diferencial~e.
,Jra!l~t:;endental. Assim, o que Deleuze esta sugerindo quando salienta que
uma v;-,;,t;;;r,;;~terna complementa a fon;a e que o empirico e quantitativa
e qualitative, mas que esse mundo das qualidades e quantidades precisa de
urn principia interne de determina,ao, de urn principia genetico, nao mais
empirico, mas transcendental. Nietzsche e a filosofia nao emprega o termo,
mas Dijeren9a e repeti(ii.o dira explicitamente. que a vontade_cl~_!'()!~!l<;j<J,~CJ
mu,;do das intensidades puras." A voP.ta<[~ cl~p~t~-,;~i;-e o principia inten~ivocfas qJl'llidac1~feqU:;;;)jia;;aes dasfor,as. As,;;;;,;;~;,a forq~ domina ou
~cl~ml,;ada, e sempre por vont~de cl~ pot~n~ia que isso acontece. E Deleuze
!!'
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0 AP!CE DA DIFERENt;;:A
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0 fi.PlCE DA DIFEREN<;A
nega o mundo em nome dos valores superiores; niilismo reativo, que nega
os valores divines em nome dos valores humanos demasiado humanos, que
poe o homem reativo no lugar de Deus; niilismo passive, do "ultimo dos
homens" que, diferentemente dos homens negatives e reativos, prefere urn
nada de vontade a uma vontade de nada, ou extinguir-se passivamente. E
esse terceiro estagio do niilismo que, na interpreta9ao de Deleuze, possibilita urn "niilismo complete" do homem da "destrui9ao ativa".
Entao, se introduz, por outro !ado, uma nova rela9ao entre a for9a e a
vontade, na medida em que o niilismo completo do homem que quer perecer, que quer ser ultrapassado, faz da nega9ao da vontade de potencia uma
nega9ao das proprias for9as reativas. Vejamos como Deleuze explica essa
nova rela9ao que vigora na destrui9ao ativa que "converte" a nega9ao em
afirma9ao: "As forqas reativas quebrando sua alianqa com a vontade de nada, a
vontade de nada, por sua vez, quebra sua alianqa com as [or9as reativas. Ela inspira ao homem urn gosto novo: se destruir, mas se destruir ativamente ... A
destrui9ao ativa significa: o ponto, o memento de transmuta9ao na vontade
de nada. A destrui9ao torna-se ativa no memento em que, tendo sido quebrada a alian9a entre as for9as reativas e a vontade de nada, esta converte-se
e passa para o !ado da afirmaqilo, refere-se a uma pot~ncia de afirmar que
destroi as proprias for9as reativas. A destrui9ao torna-se ativa na medida em
que o negative e transmutado, convertido em potencia afirmativa ... Este e
o 'ponto decisivo' da filosofia dionisiaca: o ponto em que a nega9ao exprime
uma afirma9ao da vida, destroi as for9as reativas e restaura a atividade em
quencias' tern dois sentidos, quer se afirme ou se negue ... para tornar-se
ativa, nao basta que uma for9a va ate o fim do que pode, e precise que ela
fa9a daquilo que pode urn objeto de afirma9ao". 8' Ora, essas for9as reativas
que vao ate o fim, que vao ate o maximo do que podem, de modo algum sao
abolidas pelo pensamento do eterno retorno ou pela sele9ao que so elimina
os semiquereres, as meias-vontades.
Para destruir todas as for9as reativas, isto e, ate mesmo as mais desenvolvidas, e necessaria fazer a vontade de nada- a vontade negativa de potencia -, destruir sua alian9a com as for9as reativas; e necessaria fazer da
propria nega9ao uma nega9ao das for9as reativas; e r1ecess<l.rio_realiz~; uma.
"autodestrui9ao" pela qual as for9as reativas sao negadaspor uma opera9ao
ativa; e necessaria efetuar uma "destrui9ao ativa".So quando as for9as ~ea- -
tivas s~o negadas, stipriinidas pela vontade de poterlcia pela vontade negativa de potencia que era o principia que antes assegurava a conserva9ao
e 0 triunfo delas - e que todas as for9aS poderao tornar-se ativas. So uma
autodestrui9ao exprime, portanto, o devir ativo das for9as caracteristico da
transvalora9ao de todos os valores.''
Podemos compreender por que a interpreta9ao deleuziana estabelece
como fundamental essa distin9ao, dificil de perceber ou ate mesmo inexistente no texto de Nietzsche, entre vontade e for9a, e neste caso mais especificamente entre vontade negativa e for9a reativa. Por urn !ado, e a rela9ao
entre elas que explica o devir-reativo das for9as ativas. ''As for9as reativas
encontraram o aliado que as conduz a vitoria: o niilismo, o negative, a potencia de negar, a vontade de nada que forma urn devir-reativo. Separadas
de uma potencia de afirmar, as for9as ativas so podem, por sua vez, tornar-se
reativas ou se voltar contra si proprias ... So existe devir-ativo pore em uma
vontade que afirma, como so existe devir-reativo por e ein uma vontade de
nada. Uma atividade que nao se eleva ate as potencias de afirmar, uma atividade que confia apenas no trabalho do negative esta fadada ao fracasso; em
seu proprio principia ela se transforma em seu contrario:'84 Dai o niilismo
em suas diversas figuras, em seus sucessivos estagios: niilismo negative, que
seus direitos." 8s
Ora, isso seria impassive! sem o eterno retorno, que e urn complemento indispensavel da vontade de potencia. A tmica maneira de realizar
uma transvalora9a0 OU transmuta9a0 de todos OS va)ores, isto e, de destruir
as for9as reativas e converter a vontade negativa em vontade afirmativa, e
relacionar a vontade de nada, a vontade negativa de potencia, com o eterno
retorno, ou de elevar a vontade negativa de potencia aenesima potencia do
eterno retorno: ''A nega9ao ativa, a destrui9ao ativa, eo estado dos espiritos
fortes que destroem 0 que ha de reativo neles, submetendo-os a prova do
eterno retorno ... "86
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, 0
APICE
DA DIFEREN<;A
Reencontramos, assim, a problematica deleuziana da diferenqa e da repetil'ao. 0 que e afirmado e a diferenl'a: o multiple, o acaso, o devir; em termos
propriamente nietzschianos, a vontade de potencia como vontade afirmativa:(A vontade de potencia nao e a forl'a, mas o elemento diferencial que
determina tanto a relal'ao entre as for,as (quanti dade) quanta a qualidade
respectiva das for,as em relal'iio. E no elemento da diferenl'a que a afirma-
101
102
0 APICE DA DIFEREN(.A
A introdu~ao, no estudo dessa problematica, desse outro conceito fundamental da filosofia de Deleuze - a sintese disjuntiva - e um signo de
que os conceitos nietzschianos de vontade de potencia e eterno retorno sao,
em ultima analise, OS principais nomes, entre varios utilizados por Deleuze,
para os conceitos de diferen~a e repeti~ao. Efetivamente, quando analisarmos sua "doutrina das faculdades", veremos que, para ele, o eterno r_el:cJrno
e 0 pensamento, 0 pensamento mais elevado, a forma extrema, enquanto
a vontade de potencia e a sensibilidade, a sensibilidade das for~as, o devir
sensivel das for~as, a sensibilidade diferencial.Expondo a tese central da
filosofia deleuziana de um acordo discordante entre sensibilidade e pensamento a partir dos conceitos de vontade de potencia e eterno retorno, uma
passagem de Diferen<;a e repeti<;ao possibilita ver nitidamente como a filosofia de Nietzsche, interpretada numa perspectiva em que a repeti~ao da
diferen~a aparece como sua novidade fundamental, e a referencia essencial
da critica deleuziana da representa~ao. Ela pode nos servir de conclusao:
"Sentida contra as leis da natureza, a diferen~a na vontade de potencia e o
objeto mais alto da sensibilidade, a hohe Stimmung (lembremo-nos de que a
vontade de potencia foi em primeiro lugar apresentada como sentimento,
sentimento de distancia). Pensada contra as leis do pensamento, a repeti~ao
no eterno retorno e o pensamento mais alto, o gross Gedank.e. A diferen~a
e a primeira afirma9a0, 0 eterno retorno e a segunda, 'eterna afirma~ao do
ser', ou a enesima potencia que se diz da primeira. Esempre a partir de um
sinal, isto e, de uma intensidade primeira, que 0 pensamento se designa.
Atraves da cadeia interrompida ou do anel tortuoso, somos conduzidos violentamente do limite dos sentidos ao limite do pensamento, do que s6 pode
ser sentido ao que s6 pode ser pensado.'''4
PARTE
1 .
OS PARADOXOS KANTIANOS
lI
106
OS PARADOXOS KANTIANOS
que se
da passividade e d d.
a um a e que se distmguem
-~l1aiol;;i;;~a~e~:::~:~r~t~~:e~di:::~~,li!:~~d!~~u~~:~e
:erprda pela
on e e re-presenta~oes * Parti
,
mento como sintese de re.
m~s, portanto, da defini~ao do conhecipresenta9oes e em busca d
.16gica, chegamos a identifi ,
.
e preCisao terminocac;:ao entre conhecimento e representa~ao: 0
nifica a
.
. "
orma conceitual do tdentico que
107
108
OS PARADOXOS KANTIANOS
., Espaqo e tempo nao podem ser reduzidos as categorias, embora sejam formas puras, a priori; sao intuic;6es puras, e sem intuis:ao 0 pensamento nao
tern conteudo, permanece vazio. q conhecimento, portanto, so e passive! a
partir de elementos formais irredutfveis, isto e, heterogeneos e independentes. E o elemento exterior ao conceito que torna passive! uma sintese que
se aplica a experiencia, mas
isto
e, que
* Cf. DR, p.39-40. "Hi diferens:as internas que dramatizam uma Ideia antes de representar
urn objeto. A diferens;a, aqui, interior a uma Ideia, se bern que seja exterior ao conceito
como representa~ao de objeto."
:'o
10
.\.
OS PARADOXOS KANTIANOS
110
uma forma imutavel e que nao muda. Nao uma forma eterna, mas a forma
do que nao e eterno, a forma imutavel da mudan~a e do movimento:s).A.Jias,
isso e dito varias vezes por Kant na "Estetica transcendental": "0 tempo nao
e urn conceito empirico abstraido de alguma experiencia. Com efeito, a simultaneidade e a sucessao nem sequer se apresentariam a percep~ao se a
representa~ao do tempo nao lhes servisse a priori de fundamento''; "0 conceito de mudan~a e, com ele, o conceito de movimento (como mudan~a de
lugar) so e passive] pela e na representa~ao do tempo: se essa representa~ao
nao fosse uma intui~ao (interna), a priori, nenhum conceito, seja qual for,
poderia tornar compreensivel a possibilidade de uma mudanc;a"; "A estetica
transcendental nao pode contar o conceito de mudanc;a entre os seus dados a priori, pois o proprio tempo nao muda, mas algo que existe no tempo.
Logo, para isso requer-se a percep~ao de alguma existencia e da sucessao de
suas determinac;oes, por conseguinte, experiencia''6
Ora, essa nova concep9ao do tempo interessa a Deleuze fundamentalmente porque possibilita estabelecer a distinc;ao, no interior do sujeito, entre o je e o moi, o eu transcendental e o eu empirico. 0 que ele faz dando
urn sentido conceit;:;;;fa. formula poetica de Rimbaud: "Je est un autre", eu
.e outro.
lnicialmente, e preciso fazer duas observa~6es sobre essa questao. A
primeira e terminologica. Pois me parece ser inspirado em Sartre que Deleuze faz a distin9ao entre je e moi, que nao existe evidentemente em Kant.
Com efeito, Sartre, no artigo "La transcendance de l'ego", considera que o je
e o moi constituem as. duas faces do ego: je e a personalidade em sen aspecto
ativo, moi e a totalidade concreta da mesma personalidade.' A segunda observa,ao diz respeito it frase de Rimbaud. Deleuze nao e o primeiro a utilizar a formula "Je est un autre" para esclarecer a rela9ao je-moi. ESartre, no
mesmo artigo, quem utiliza a formula de Rimbaud para ilustrar sua propria
concepc;ao do ego: "A atitude reflexiva exprime-se corretamente na famosa
frase de Rimbaud (na carta do vidente) 'Je est un autre'. 0 contexto prova
que ele quis simplesmente dizer que a espontaneidade das consciencias nao
poderia emanar do Je, ela vai na dire<;do do Je, ela o encontra, ela o deixa entrever sob sua espessura limpida, mas ela se da antes de tudo como espontaneidade individuada e impessoal."8 Alem disso, em 1963, Jacques Derrida,
em urn artigo sobre a psicologia fenomenol6gica de Husserl, publicado na
revista Etudes Philosophiques, utiliza a mesma frase de Rimbaud, em forma
negativa, para caracterizar a posic;ao de Husserl. "Men ]e transcendental e
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113
112
>o
os PARADoxes KANTIANos
separa o ate do je e o moi ao qual esse ato se atribui, e faz com que o moi
represente 0 je como urn outro que nao ele proprio. 0 tempo e a diferenqa
transcendental que intreduz uma fissura, uma rachadura entre o je e o moi
no sentido em que o sujeito s6 pode representar sua propria espontaneidade
como a de outre ou em que o moi possui uma receptividade com relaqao a
qual "Je est un autre".
E Deleuze, em plene exerdcio do procedimento de colagem- que separa os conceitos da relas:ao com outres conceitos do sistema-, intensifica a ressonancia entre o paradoxa kantiano do tempo e a questao, central em sua filosofia, da diferen<;a e sua relaqao com o pensamento. "Pouco
importa que a identidade sintetica e depois a moralidade da razao pratica
restaurem a integridade do eu, do mundo e de Deus e preparem as slnteses
p6s-kantianas; per urn curta memento entramos na esquizofrenia de direito
que caracteriza a mais alta potencia do pensamento e abre diretamente o
Ser~fe~enqa, desprezando todas as mediaqoes, todas as rec~ncilia<;iies do
conceitO;' '4 A mawr miCiatlva da filosofia transcendental cons1ste em mtroduzir a forma do tempo no pensamento.
I 113
GENESEE INTENSIDADE
GENESEE INTENSIDADE
modelo de recogni~ao, por outro !ado, uma faculdade ativa entre as outras
se encarrega, segundo o caso, de fornecer essa forma ou esse modelo ao qual
as outras submetem sua colabora~ao. Assim, a imagina~ao, a razao, o entendimento colaboram no conhecimento e formam um 'sensa comum l6gico';
mas e 0 entendimento que e aqui a faculdade legisladora e que fornece 0
modelo especulativo sob o qual as duas outras sao chamadas a colaborar.
Para o modelo pratico do reconhecimento, ao contrario, e a razao que legisla no sensa comum moral. E ainda ha um terceiro modelo em que as
faculdades acedem a um livre acordo em um sensa comum propriamente
estetico:'s
_ _/
sensa comum estetico e diferente dos outros dois. Se o sensa comum
especulativo e o acordo entre sensibilidade e entendimento sob a legisla~ao do entendimento, eo sensa comum moral eo acordo do entendimento
com a razao sob a legisla~ao da razao, no sensa comum estetico, que e o
acordo entre imagina~ao e entendimento, a imagina~ao ocupa uma posi~ao
singular. Nem tem uma fun~ao dominante, determinante, legisladora, nem
esta subordinada ao entendimento, esquematizando seus conceitos. Ela se
Iibera de tal modo que todas as faculdades em conjunto entram em um livre acordo, se exercem espontaneamente. 0 sensa comum estetico, no juizo
de gosto- que e objeto da analitica do bela como exposic;:ao ou da estetica
formal do belo em geral, do ponto de vista do espectador -, e um acordo
a priori entre a imagina~ao considerada como livre e o entendimento con
siderado .como indeterminado, ou um acordo livre e indeterminado entre
faculdades.
A importancia da Crftica da faculdade do juizo com rela~ao a Critica da
razdo pura e a Critica da razdo pratica e que ela funda as outras, no sentido
em que o sensa comum estetico torna possiveis os dais outros, ou que o
acordo livre, indeterminado, incondicionado das faculdades e condi~ao de
possibilidade de qualquer rela~ao determinada entre faculdades. E a razao
disso e que "uma faculdade nunca desempenharia um papel legislador e
determinimte se todas as faculdades juntas nao fossem capazes dessa livre
harmonia subjetiva". ' 6
0 sensa comum estetico fornece um principia, um fundamento do
acordo das faculdades nos interesses do conhecimento e da moral. Mas a
Crftica da faculdade do jufzo nao se lim ita a essa constata~ao. E se ela vai bem
mais alem e porque nao basta presumir ou supor esse livre acordo a priori
no juizo de gosto. Ele deve ser produzido ou, em outros termos, o sensa co-
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-u
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mum estetico deve ser objeto de uma genese transcendental que a analitica
do bela como exposi9ao, o estudo do juizo de gosto, e incapaz de realizar. E
_aa!Jalitica do sublime- e dai a posi9ao estrategica que ela ocupa no livroque vai fornecer o principia genetico do acordo das faculdades.
Se no juizo de beleza so o entendimento e a imagina9ao intervem, no
juizo de sublime a rela9ao entre as faculdades se da diretamente entre a
iinagina9ao e a razao. E se essa rela9ao nao so esta marcada pelo prazer como no caso da beleza -, mas tambem par desprazer, e que, nesse caso, a
razao for9a a imagina9ao a atingir o seu maximo, a impele ao limite de seu
poder. Entao, fazendo-a descobrir a imensidao do mundo sensivel e representar a inacessibilidade da ideia racional, ela possibilita que a imagina9ao
ultrapasse seus limites, se eleve a urn exercicio transcendente e descubra
que ela tambem tern urn fim suprassensivel. E, "inversamente, a imagina9ao
desperta a razao como a faculdade capaz de pensar urn substrata suprassensivel para a infinidade do mundo sensivel". "
Par isso, no caso do sublime, melhor do que urn simples acordo, o
que ha e urn desacordo, uma tensa.o, uma oposi9ao, uma contradi9ao entre a imagina9ao e a razao; mas desse desacordo provem urn acordo. Existe
acordo, mas acordo discordante, harmonia na dar. Em suma, no sublime, o
_ desacordo e o principia genetico do acordo das faculdades no sentido em
que, ne~te"caso; o-acordo .. nao-e -mais apenas presumido, como no case do
juizo de gosto, mas engendrado, "engendrado no desacordo". '8
Ora, esse procedimento genetico que vigora no caso do sublime deve
ainda servir de model a e se estender ou se adaptar ao caso do bela, efetuando
a genese do acordo entre imagina9aO e entendimento. Assim, a analitica do
bela como exposiqao e a analitica do sublime segue-se uma analitica do bela
como deduqao, que comporta uma analitica do bela na natureza, do ponto
de vista do espectador, e uma analitica do bela na arte, do ponto de vista do
artista criador. A cada aspecto da dedu9ao corresponde urn tipo de genese
realizado a partir de urn "principia metaestetico": o interesse ligado ao bela
e o genio. E o que caracteriza, apesar de todas as diferen9as, o interesse racionalligado ao bela, no caso do bela na natureza, e o genio, no caso do bela
na arte, e que eles permitem a razao engendrar a si propria e, assim, tornar
o entendimento ilimitado e a imagina9ao livre. 0 fundamental, nos dais casas, e que a dedu9ao do juizo estetico explica, utilizando o modelo genetico
oferecido pelo sublime, aquila que a analitica do belo como exposiqao nao
podia explicar - como a imagina9ao se liberta e como o entendimento se
GENESE E INTENSIDADE
torna indeterminado -, encontrando na razao o principia da genese transcendental. E, em ultima analise, a razao que assegura a genese do acordo
livre e indeterminado das faculdades. 0 que permite concluir, de urn modo
geral, da exposi9ao da via kantiana de estabelecimento da rela9ao entre as faculdades que, sea Critica da faculdade do juizo constitui o fund a originario de
onde derivam as outras duas Criticas, e porque ela nao permanece no ponto
de vista do condici(namento, como as outras, mas introduz o ponto de vista
genetico, mais funf!amental.
------------,.-118
GENESEE INTENSJDADE
0 artigo ''A ideia de genese ... ", publicado urn ana de pais de Nietzsche
e a filosofia, tambem considera fundamental a obje~ao dos p6s-kantianos a
Kant par haver ignorado as exigencias de urn metoda gewtico, explicitando
seu sentido objetivo e subjetivo: par urn lado, apoiar-se nos fatos e procurar
apenas suas condi~oes de possibilidade; par outro !ado, partir de faculdades
ja feitas, ja formadas, e, supondo que elas sao capazes de urn acordo ou uma
harmonia, determinar esse acordo harmonioso. Mas o objetivo de Deleuze
nesse artigo e justamente mostrar como, na Critica da faculdade do juizo, Kant
teria previsto essa obje~ao, pais, se e verdade que "as duas primeiras Criticas invocavam fatos, procuravam condi~oes para esses fatos, as encontravam
em faculdades ja formadas", na terceira Critica "Kant poe o problema de uma
genese das faculdades em seu livre acordo primeiro. Ele descobre, entao, o
ultimo fundamento, que ainda faltava as outras Criticas. A critica em geral deixa de ser urn simples condicionamento, para tornar-se uma Forma~ao
transcendental, uma Cultura transcendental, uma Genese transcendental."w
Percorremos a via kantiana que, na trajet6ria das tres Criticas, se desloca da problematica do condicionamento a da genese. Sigamos agora a via
p6s-kantiana, com Diferenqa e repeti9iio, que e onde Deleuze formula mais
explicitamente a critica do extrinsecismo kantiano ou do metoda de condicionamento externo e propoe urn metoda de genese interna no ambito da
propria Critica da raziio pura.
A objeqao p6s-kantiana ao projeto da Critica da raziio pura de estabelecer as condiqoes de possibilidade do conhecimento dos fen6menos diz respeito fundamentalmente a questao da relaqao entre as fa~es heterogeneas do entendimento e da sensibilidade, ou entre os niveis do conceito e
da intuiqao. Eassim que, segundo Deleuze, o objetivo de Salomon Maimon,
em seu projeto de remanejamento da Critica, no livro Filosofia transcendental, e ultrapassar a dualidade conceito-intuiqao."
Essa ideia pode surpreender. Pois em que sentido Deleuze pode assumir uma critica formulada em termos de ultrapassagem da dualidade, se
a busca da diferenqa e sempre o criteria da integraqao do pensamento de
outros a sua propria filosofia? E, mais especificamente, essa ideia nao contradira a afirmaqao deleuziana que faz de Kant o introdutor na filosofia da
diferenqa transcendental justamente por haver proposto a diferenqa de natureza, e nao de grau, entre os elementos principais do conhecimento: a
sensibilidade eo entendimento? Acredito que nao! Parece-me, ao contrario,
que sua utilizaqao da critica p6s-kantiana a Kant ilustra muito bern seu pro-
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GENESEE INTENSIOAOE
A dramatizac;ao do conceito
Para compreender a critica ao extrinsecismo kantiano e como, segundo Deleuze, e possivel pensar a diferen~a como interna, e preciso partir dos conceitos que ele propoe como mais adequados do que os de esquema e esquematismo: os conceitos de drama e dramatiza~ao, que, por mais enigmaticos
que pare~am, desempenham urn papel essencial em sua filosofia.
Uma comunica~ao a Sociedade Francesa de Filosofia, de 1967, intitulada "Metoda de dramatiza~ao", que se assemelha bastante aos dois ultimos
capitulos de Dijeren9a e repeti9ao, pode dar uma primeira indica~ao detomo
o conceito de drama e inspirado no conceito kantiano de esquema: "0 que
chamamos drama assemelha-se particularmente ao esquema kantiano. Pois
o esquema segundo Kant e uma determina~ao a priori do espa~o e do tempo
como correspondendo ao conceito: 'o mais curto' e o drama, o sonho ou
antes o pesadelo da linha reta. Eexatamente o dinamismo que divide o conceito de linha em reta e curva e que, alem disso, na concep~ao arquimediana
dos limites, permite medir a curva em fun~ao da reta. Acontece que ainda
permanece totalmente misterioso o modo como o esquema tern esse poder
com rela~ao ao conceito. De certo modo, todo o p6s-kantismo procurou elucidar 0 misterio dessa arte oculta segundo a qual determina~oes dinamicas
espa~otemporais tern realmente o poder de dramatizar urn conceito, se bern
que elas sejajotalmente diferentes dele. A resposta talvez esteja na dire9ao que alguns pos-kantianos indicavam: os dmam1smos espa~otempora1s
puros tern o p der de dramatizar os conceitos porque eles atualizam, eles
encarnam as Ideias." 24
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!;
modo de relacionar intui<;ao e conceito atraves da imagina<;ao no conhecimento matematico. "Construir um conceito, diz Kant, significa apresentar
a priori a intui<;ao que lhe corresponde. Para a constru<;ao de um conceito
requer-se, pais, uma intui<;ao nilo empirica, que, por conseguinte, como intui<;ao, seja um objeto singular, mas que, no entanto, como constru<;ao de
um conceito (de uma representa<;ao geral), deve expressar na representa<;ao
alga de universal que se aplica a todas as intui<;5es possiveis que se subsumem no mesmo conceito."' 5 0 exemplo que Kant da em seguida e o do
triangulo; construir um triangulo e representar o objeto correspondente ao
conceito de triangulo atraves da imagina<;ao de modo a priori na intui<;ao.
Mas o exemplo dado por Deleuze, a partir de Maimon, aparece na Critica
da raziio pura quando Kant explica por que os axiomas da geometria pura
sao sinteticos. "Do mesmo modo, nenhum principia da geometria pura e
analitico. Que a linha reta seja a mais curta distancia entre dois pontos e
uma proposi<;ao sintetica, porque o meu conceito de reta nada contem de
quantitativa, mas sim uma qualidade. 0 conceito de 'mais curta' tem de ser
totalmente acrescentado e nao pode ser extraido de nenhuma analise do
conceito de linha reta. Tem-se que recorrer a intui<;ao, mediante a qual unicamente a sintese e possivel:''6 Ideia repetida quase com as mesmas palavras no final do 2 dos Prolegomenos. Para Deleuze, dizer que a linha reta e o
caminho mais curta entre do is pontos s6 tem sentido na situa<;ao da reta ou
da corda, que liga as extremidades de um arco de drculo; essa proposi<;ao
implica a compara<;ao de dois conceitos heterogeneos, o de reta e o de curva
mais precisamente, implica 0 calculo de exaustao, 0 calculo pre-diferencial
de Arquimedes, pelo qual se faz uma linha quebrada tender ao infinite na
dire<;ao de uma linha curva, isto e, implica a no<;ao de limite ou de passagem
ao limite. Se o "mais curta" e o esquema ou o drama do conceito de reta e
porque e a regrade constru<;ao- exterior ao conceito, pois um conceito nao
da a regrade constru<;ao de seu objeto- do conceito de reta, que serve para
diferenciar a reta de curva; regra segundo a qual se constr6i, se produz, se
determina na intui<;ao uma linha como sendo reta.
Ate ai s6 parece haver semelhan<;a entre drama e esquema. A diferen<;a,
no entanto- e esse e o segundo ponto que pretendo salientar na passagem
do "Metoda de dramatiza<;ao" que estou comentando-, e possibilitada pela
no<;ao deleuziana de ideia, formulada a partir de Kant e de Maimon, mas,
em ultima instancia, afastando-se deles. Com Kant, Deleuze reconhece o
usa legitimo, regulador ou problematico das ideias no sentido em que seu
GENESEE lNTENSIDADE
papel e ode reunir em um todo os procedimentos do entendimento que dizem respeito a um conjunto de objetos, eo de constituir um campo sistematico unitario. A filosofia critica de Kant destaca o papel da razao com rela<;ao
ao entendimento: "constituir focos ideais fora da experiencia para os quais
convergem os conceitos do entendimento (maximo de unidade); formar horizontes superiores que refletem e abarcam os conceitos do entendimento
(maximo de extensao )". ' 7 A partir dai, esse livro caracteriza a ideia kantiana:
"Indeterminada em seu objeto, determinavel por analogia como os objetos da
experiencia, trazendo o ideal de uma determinaqilo infinita com rela<;ao aos
conceitos do entendimento: estes sao os tres aspectos da Ideia."'8
Diferenqa e repetiqiio retoma e explicita essa caracteriza<;ao, mas, ao
mesmo tempo, critica Kant por considerar dois desses tres "mementos" caracteristicas extrinsecas a ideia. "Nao ha na Ideia nenhuma identifica<;ao
ou confusao, mas uma unidade objetiva problematica interna do indeterminado, do determinavel e da determina<;ao. Etalvez isso que nao aparece suficientemente em Kant: dois dos tres mementos, segundo ele, permanecem
caracteristicas extrinsecas ( se a Ideia e em si mesma indeterminada, ela s6
e determinavel com rela<;ao aos objetos da experiencia e s6 traz o ideal de
determina<;ao com rela<;ao aos conceitos do entendimento) ... 0 horizonte
ou o foco, o ponto 'critico' em que a diferen<;a, como diferen<;a, tem como
fnn<;ao reunir ainda nao e assinalado."'9 Essa "unidade objetiva problematica
interna" da ideia significa que, enquanto para Kant e mesmo para Maimon
as ideias sao o1<)etos de uma faculdade especifica- a razao para Kant, o entendimento pa"f Maimon -, quer dizer, uma "faculdade constituindo um
sensa comum", para Deleuze elas nao sao objeto de nenhuma faculdade em
particular: percorrem e dizem respeito a todas as faculdades, englobando os
tres mementos da determina<;ao, do determinavel e do indeterminado como
uma multiplicidade diferencial que liberta a diferen<;a em um sistema de rela<;5es que refere o diferente ao diferente. "A Ideia aparece, portanto, como
uma multiplicidade que deve ser percorrida em dais sentidos: do ponto de
vista da varia<;ao das rela<;5es diferenciais e do ponto de vista da reparti<;ao
das singularidades que correspondem a certos valores dessas rela<;5es." 3'
Este nao e 0 momenta de desenvolver a concep<;aO deleuziana da ideia.
Pretendo agora esclarecer que, se a diferen<;a entre esquema e drama se da,
como afirmei, pela concep<;ao deleuziana da ideia, sua argumenta<;ao consiste essencialmente em dizer que, se o esquema e exterior ao conceito- na
medida em que um remete a imagina<;ao e o outro, ao entendimento -,
.....-----/
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A intensidade
Assim, a concep~ao deleuziana da ideia como multiplicidade ou coexistencia de rela<;:oes entre elementos diferenciais e 0 principia que permite esclarecer a critica da rela<;:iio das faculdades atraves do esquematismo da imagina9ao, tal como aparece no extrinsecismo kantiano, porque torna possivel
definir o drama ou o dinamismo como esquema ideal. Mas e ainda necessaria caracterizar essa rela9iio interna do drama com a ideia concebida como
singularidade e rela<;:ao diferencial. E para isso o final do texto do "Metoda
de dramatiza<;:iio" que estou comentando da uma indica,a:o essencial ao
afirmar, inspirado nos p6s-kantianos, que "os dinamismos espa9otemporais
puros tem o poder de dramatizar os conceitos porque eles atualizam, eles
encarnam as Ideias". Pretendo, portanto, finalmente, analisar essa defini<;:iio
do dinamismo ou do drama como poder de atualiza<;:ao ou de encarna~ao da
ideia, para explicitar como a intensidade - que e esse "poder" ou essa "potencia" de que o esquema nao da conta- e, em ultima instancia, 0 principia da genese, concebida como processo de atualiza<;:iio. Ora, um dos modos
como Deleuze cria esse conceito de intensidade- um dos mais importantes
GENESEE lNTENSIDADE
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126
quantidade intensiva, como produzido a partir do grau = 0. Entre a realidade, quando o espaqo e o tempo sao preenchidos, e a nega-;ao = 0, quando
eles sao vazios, ha uma serie continua de apreensoes possiveis. 0 real tem um
grau, isto e, uma quantidade intensiva, uma intensidade que pode diminuir
ate zero ou aumentar a partir de zero, continuamente. "Toda cor, por exemplo a vermelha, tem um grau que, por pequeno que seja, nunca e o menor,
ocorrendo o mesmo em geral com o calor, com o momenta do peso etc:'''
Portanto, o principia sintetico do entendimento chamado "antecipaqoes da
percepqao" diz que nada preencheria o espaqo e o tempo - considerados
como quantidades extensivas pelo principia dos "axiomas da intuiqao"- se 0
real, a materia da sensaqao, que vem preenche-los nao tivesse um grau.
Estudando, no ultimo capitulo de Diferenya e repetiyi'io, a "sintese assimetrica do sensivel" e, mais especificamente, a relaqao entre, por um !ado,
a intensidade e, por outro, a qualidade e a quantidade, nao ha duvida de que
Deleuze tem em mente esses dais principios formulados por Kant. Eefetivamente pensando nos "axiomas da intuiqao" que ele afirma: "Kant define
todas as intuiqoes como quantidades extensivas, isto e, tais que a representaqao das partes torna passive! e precede necessariamente a representaqao do
todo."37 E exatamente a formulaqao kantiana. Ora, nessa formulaqao aparece
explicitamente que Kant situa a rela<;ao entre parte e todo do ponto de vista
da representaqao. Deleuze comeqa sua critica justamente por ai. Fazendo
uma distinqao entre representaqao e apresentaqao, ele argumenta que o espa<;o e o tempo nao se apresentam como sao representados e que, do ponto
de vista da apresentaqao, e a apresentaqao do todo que funda a possibilidade
das partes e, por conseguinte, enquanto a intuiqao pura e intensiva, 0 que
e extensive e a intuiqao empirica. E sua critica e formulada explicitamente:
"0 erro de Kant, no momenta mesmo em que recusa ao espaqo como ao
tempo uma extensao l6gica, e lhe manter uma extensao geometrica e reservar a quantidade intensiva para uma materia preenchendo um extenso em
determinado grau:''8
Essa critica, mais formulada do que desenvolvida, e basicamente feita a
partir de um outro p6s-kantiano, Herman Cohen, que em A teoria kantiana
da experiilncia considera a quanti dade intensiva como o principia supremo de
possibilidade da experi~ncia no sentido em que ela e o principia genetico
de uma experi~ncia possivel, 39 ou, como prefere dizer Deleuze, da experiencia real. "Este e o sentido da quantidade intensiva: ela e o fundamento da
quantidade extensiva, que ela produz a partir de si mesma", diz Herman
GENESEE INTENSIDADE
Cohen, em um texto citado por Vuillemin, que afirma nao apenas a exigencia da genese, como tambem a intensidade como principia genetic0. 40 Deleuze dira, no "Metoda de dramatiza-;ao" por exemplo- mas se trata de um
pensamento que reaparece varias vezes em sua obra-, que os dinamismos
espaqotemporais sao geradores das qualidades e dos extensos. A distinqao
entre, por um !ado, a intensidade e, por outro, a qualidade e a quantidade
extensiva e essencial no seu pensamento. Mas e igualmente essencial pensara relaqao entre esses dois niveis, ou, melhor ainda, a passagem das intensidades ideais pre-qualitativas e pre-extensivas ao mundo das qualidades e
extensos. "Embora a experi~ncia sempre nos coloque em presenqa de intensidades ja desenvolvidas em extensos, ja recobertas por qualidades, devemos
conceber como condiqao da experi~ncia intensidades puras envolvidas em
uma profundidade, em um spatium intensive que preexiste a toda qualidade
e a todo extenso. A profundidade e a pot~ncia do puro spatium inextenso; a
intensidade e apenas a pot~ncia da diferenqa ... "4 '
Curiosa tor<;ao produzida pela tecnica de colagem que, considerando
o espaqo como quantidade intensiva e o real material, o real da sensaqao,
como quantidade extensiva e qualidade, parece inverter a formulaqao kantiana e mais do que nunca se afastar dela quando propoe a intensidade, considerada como pot~ncia da diferen<;:a, como sendo o prindpio genetico ou
de produqao das qualidades e quantidades. E isso fica bem evidente quando,
considerando o "Metoda de dramatizaqao", ou o ultimo capitulo de Diferenya e repetiyi'iO, percebemos que a problematica da g~nese e equacionada
pela relaqao entre ~ virtual e o atual ou pelo processo de atualizaqao, de
proveniencia berg/oniana. Dizer que a intensidade e o elemento da g~nese
interna, ou que a intensidade dramatiza, significa dizer que ela e 0 elemento
determinante no processo de atualizaqao, isto e, determina que as relaqoes
ideais, virtuais, que ja sao diferenciais, se diferenciem nas qualidades e extenses. A dramatizaqao tem por funqao atualizar ideias, e atualizar e criar. E
nessa direqao que Deleuze equaciona a questao da genese.
Mas essa problematica do virtual e do atual nos lanc;a bem Ionge de
sua leitura da filosofia kantiana. Ela sera explicitada, portanto, na proxima
parte deste livro, onde estudarei a concep<;il.o do exerdcio do pensamento
resultante da tecnica de colagem que, constituindo o &mago da filosofia da
diferenqa de Deleuze, o situa em outro espa<;o que nao o de Kant.
127
PARTE
1:
OS PRESSUPOSTOS DA REPRESENTA<;:AO
0 pressuposto principal
Situarei agora de urn ponto de vista sistematico - isto e, independentemente da leitura de urn fil6sofo determinado- como o antagonismo entre
representa~ao e diferen~a se expressa atraves da concep~ao de exercicio do
pensamento formulada por Deleuze em seu proprio nome. Com isso, quero
evidenciar como ela se relaciona intimamente com o que ele expoe, com o
nome de outros, em seus estudos monograficos. *
Ao estudar, em Diferen9a e repeti9ao, a filosofia da representa~ao, que
em ultima analise e definida pelo primado que confere a identidade, 0 que
Deleuze pretende e antes de tudo apresentar OS pressupostos que ela implica. Filosofar e eliminar OS pressupostos, mas em filosofia eles sao de dais
tipos: objetivos ( ou \xplicitos) e subjetivos ( ou implicitos ). Em geral os fil6sofos lutam contra o~essupostos objetivos, que sao os conceitos explicitamente supostos por urn conceito.
Urn exemplo e a defini~ao aristotelica do homem como animal racional,
defini~ao por genera e especie, que para Descartes pressup6e as defini~6es
de animal e de racional eo leva a propor o conceito de cogito. Assim, se Descartes, no iflicio da segunda das Medita9oes metafisicas, nao aceita definir o
homem como animal racional e porque isso o obrigaria, em seguida, a definir 0 que e animal e 0 que e racional e, em vez de uma unica questao, passar insensivelmente a uma infinidade de quest6es mais dificeis.' Essa argumenta~ao e exposta de urn modo ainda mais explicito no dialogo inacabado
A pesquisa da verdade pela luz natural, quando, rebatendo uma rna resposta
---------
* 0 livro mais importante sobre o assunto e Diferenqa e repeti9fio. Mas levarei tambem em
considera<;ao alguns textos que se assemelham bastante ao conteUdo de seu capitulo III:
NPh, cap. IIJ, 15; PS, conclusao da 1' parte; LS, 12' serie, MP, p-464-70.
de Poliandro, o jovem que nada aprendeu nos livros, mas viajou muito, Eudoxo, que representa o proprio Descartes, afirma, referindo-se a Epistemon,
o personagem que permaneceu fie! a doutrina aristotelica: "Com efeito, se
eu perguntasse a Epistemon o que e o homem, e ele respondesse, como habitualmente se faz nas escolas ' que o homem e' urn an1ma
1 racwna
1 e se
alem disso, para explicar esse dois termos que sao tao obscures qu~nto ~
pnmeiro, ele nos conduzisse por todos esses graus chamados metafisicos
teriamos certamente entrada em urn labirinto de onde nunca poderiamo;
sair. Dessa questao duas outras nascem, com efeito: a primeira, 0 que e animal?; a segunda, o que e racional? E, alem disso, se para explicar 0 que e urn
ammal e~e responder que e urn ser vivo dotado de sensibilidade e que urn
s~r vrvo e ~m corpo animado e que urn corpo e uma substancia corporea,
ve-se rmedra:amente que as questoes aumentam e se multiplicam como ramos de uma arvore genealogica."'
pode negar:', _"de modo que, quando o filosofo diz 'penso, logo sou,', ele pode
supor rmphcrtamente. compreendido o universal de suas premissas, 0 que
sere pensar qu~~er;r drzer ... e ninguem pode negar que duvidar seja pensar
e pensar, ser . ' E, portanto, a existencia de pressuposto implicito que define a filosofia da representa9ao.
0 principal pressuposto da filosofia da representa9ao, ou aquele que,
a meu ver, engloba todos os outros recenseados por Deleuze, e 0 postulado
segundo o qual o pensamento e o exerdcio natural de uma faculdade a
concep9ao de urn exerdcio natural do pensamento. Sua ideia central e ~ue
0 pensamento e naturalmente bem-dotado para possuir a verdade, ou que
exrste urn~ :finidade entre o pensamento e a verdade. Mas para entender
bern a pOS19aO de Deleuze e necessaria fazer duas distin96es. Em primeiro
Iugar, essa afinidade e postulada pela filosofia da representa9ao como dedi-
reito e nao de fato;* em outras palavras, e apenas de direito que 0 pensamento e natural. De fato, isso ninguem nega, raramente se pensa; de fato
e dificil pensar. Mas- e isso e o importante -, qualquer que seja a dificuldade, de fato, de pensar ou de traduzir a naturalidade de direito nos fatos, o
mais dificil de fa to e pressuposto pela filosofia da representa9ao como sen do
o mais facil de direito.
Dai a apologia do metodo como a condi9ao de atingir e aderir a verdadeira natureza do pensamento e !he dar universalidade. Deleuze critica o
postulado do metodo ou da subordina9ao da cu]tura ao metodo e defende
que a dificuldade de pensar e de dire ito, diz respeito a essencia do que significa pensar. Mas e precise assinalar neste memento que sua crftica pretende
situar-se no nivel de direito. "Quando a filosofia encontra seu pensamento
em uma Imagem do pensamento que pretende valer de direito, nao podemos nos contentar em !he opor fatos contraries."'
Em que consiste essa critica de direito? Para sabe-lo e precise fazer intervir uma segunda distin9ao, que e uma consequencia da primeira, porque
implica a recusa de definir o exerdcio do pensamento a partir dos fatos: a
"reparti9ao" entre o empirico e o puro, que Deleuze assimila ao "transcendental". "E precise conduzir a discussao no plano de direito e saber se essa
imagem nao trai a propria essencia do pensamento como pensamento puro.
Na medida em que vale de direito, essa imagem pressupoe uma determinada
reparti9a0 do empfrico e do transcendental; e 0 que e preciSO juJgar e essa
reparti9ao, esse modelo transcendental implicado na imagem."5 Se a naturalidade do pensamento postulada pela filosofia da representa9ao pretende
ser uma determina9ao do pensamento puro, a critica deleuziana consiste
justamente em analisar se ela consegue se manter no nivel dessa exigencia.
Neste sentido, referindo-se a Kant, ao mesmo tempo"que o elogia por
ter descoberto o dominic do transcendental, Deleuze ~e insurge contra
a descri9ao das tres sinteses, feita por ele na primeira edi9ao da dedu9ao
transcendental, considerando que so a terceira - a sfntese da recogni9ao
e realmente transcendental, enquanto nos dois primeiros casos - isto
e, na apreensao e na reprodu9aO - Kant determina 0 transcendental por
analogia com a vida psicologica. E teria sido inclusive para ocultar esse procedimento psicologista tao evidente de decalque do transcendental sobre o
empirico que Kant teria suprimido esse texto na segunda edi9ao da Crftica
da raziio pura, passando diretamente a sintese da recogni9ao. "Melhor ocul*A oposi<;fio kantiana "de fato-de direito" tambem e bergsoniana. Cf. B, p.13.
133
OS PRESSUPOSTOS DA REPRESENTA<;:AO
A DOUTRINA DAS FACULDADES
tado, o metoda do decalque nao deixa de subsistir, todavia, com todo sen
'psicologismo'."*
Mas essa euma cdtica de grande amplitude no pensamento de Deleuze.
Pois, para ele, e constitutivo da filosofia da representa<;ao nao conseguir se
manter no nivel transcendental, fundando sen suposto direito na extrapola<;iio de fatos e ate mesmo de fatos insignificantes, como os de recogni<;ao, de
reconhecimento. "Em todos os postulados da imagem dogmatica, reencontramos a mesma confusao, que consiste em elevar ao transcendental uma
simples figura do empirico, sob pena de deixar cair no empirico as verdadeiras estruturas do transcendental:''
135
OS PRESSUPOSTOS DA REPRESENTM;Ao
136
qu:
137
0 EMPIRISMO TRANSCENDENTAL
0 EMPIRISMO TRANSCENDENTAL
ode-fora, mundo onde ha termos que sao verdadeiros atomos e rela<;i5es que
sao verdadeiras passagens externas- mundo onde a conjun~ao 'e' destrona
a interioridade do verbo 'e' ... ""
Esses dois textos, que caracterizam o empirismo pela independencia, heterogeneidade e exterioridade das rela~oes, aproximam-se bastante do artigo
"Em que se pode reconhecer o estruturalismo?", de 1967, para o qual os elementos de uma estrutura s6 tem sentido pela posi~ao que ocupam, e os Jugares em um espa~o estrutural ou topol6gico sao primeiros com relac;ao as coisas que vem ocupa-los. * 0 curioso e essa passagem concluir sua argumenta~ao
afirmando que "o estruturalismo e inseparavel de uma nova filosofia transcendental em que os lugares tilm primazia sobre o que os preenche", acrescentando, logo em seguida, que a psicologia empirica e nao apenas fundada mas
tambem determinada por uma topologia transcendental."
Deleuze sabe muito bem que o criticismo nao e um empirismo eo empirismo nao e uma filosofia transcendental, e o diz explicitamente em Empirismo e subjetividade.'3 Ao mesmo tempo, salientando em Hume a prioridade
da rela~ao sobre a coisa e no estruturalismo a prioridade do Iugar sobre a
coisa, ele esta aproximando empirismo e transcendental. Como entender
sua posic;ao?
Nao ha duvida de que a filosofia de Deleuze se caracteriza pela exigencia do transcendental. Mas, embora reconhec;a em Kant o descobridor da
diferen~a transcendental, ele procura se distanciar da posi~ao kantiana,
como se pode notar pela referenda ao projeto de uma "nova filosofia transcendental", atraves de uma critica que, como ja assinalei, se insurge contra
a ideia de uma rela~ao harmoniosa das faculdades, e acusa Kant de nao conseguir se manter no plano transcendental, decalcando o uso das faculdades
do exerdcio empirico. ** Ora, e justamente ai que intervem a referenda ao
empirismo. Como "empirismo superior" ou "empirismo transcendental", ele
se apresenta na filosofia de Deleuze como um pensamento que se pretende
Iiberto do pressuposto segundo o qual o pensamento e um exerdcio natural
de uma faculdade em harmonia com as outras: "Eis por que o transcendental esta sujeito a um empirismo superior, unico capaz de explorar seu do-
139
140 .
minio e suas regioes, pais, contrariamente ao que acreditava Kant, ele nao
pode ser induzido das formas empiricas ordinarias tais como elas aparecem
sob a determinaqao do sensa comum."' 4
Mas nao devemos nos enganar. Se a filosofia transcendental, tal como
a compreende Deleuze, insurge-se frontalmente contra a concepqao do \
pensamento em que as faculdades convergem e contribuem para o reco- }
nhedmento do objeto - dai, inclusive, ela se denominar "empirismo superior" -, isso nao significa que ele rejeite a ideia de um encadeamento
das faculdades e ate mesmo que haja uma ordem nesse encadeamento. Pelo
contrario; ele nao so considera a doutrina das faculdades uma peqa necessaria do sistema filosofico, mas pretende inclusive explicar 0 descredito em
que essa doutrina teria caido pelo decalque do transcendental sabre o empirico, caracteristico do pressuposto do sensa co mum.* E por isso que, se
nao nega a teoria filosofica das faculdades, Deleuze rejeita radicalmente a
tese de que o encadeamento das faculdades implica uma colabora~ao entre
elas sob a forma de um objeto considerado o mesmo e da unidade do sujeito
de conhecimento.
Em Diferen,a e repeti(:dO, a teoria do exercicio do pensamento e claramente formulada do ponto de vista de uma doutrina das faculdades. 0
mesmo acontece com Proust e os signos, que interpreta a Recherche de Proust
como uma busca inconsciente e involuntaria da verdade que se op6e a filasofia da representaqao. E mesmo quando o termo "faculdade" nao aparece
explicitamente- e 0 problema filos6fico que ele permite investigar e formulado a partir de outros termos -, a mudan<;a parece ser mais terminol6gica
do que conceitual. Assim, por exemplo, quando o livro sobre Foucault enuncia que 0 principia geral de sua filosofia e que toda forma e um composto de
rela<;6es de for<;as, e caracteriza essas for<;as como for<;as do homem e for<;as
de fora, Deleuze, numa perspectiva que e a mesma de Dijeren9a e repeti9do,
define essas "for<;as no homem" como forqas de imaginar, de lembrar, de
conhecer, de querer.
A dificuldade e que, mesmo quando o termo e utilizado, ele nao tem
uma extensao hem delimitada. Em Proust e OS signos, ele diz respeito a sensibilidade, a imagina<;ao, a memoria, a inteligencia e a faculdade das essencias ou pensamento puro. Em Dijeren9a e repetiqao, ele concerne a sensi* Cf. DR, p.186. Deleuze critica Platao, Kant e Husserl por terem confundido o empirico e
o transcendental no exerdcio das faculdades. Cf., por exemplo, DR, p.185-6; LS, 14a serie,
p.131.
0 EMPIRISMO TRANSCENDENTAL
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uramente intensive. Isto e: ele se diz da diferen~a. Esse e o liame funda~ental entre o eterno retorno e a vontade de potencia. Urn nao pode ser
dito a nao ser do outro:'JS
0 mesmo tipo de argumenta~ao que apresenta a concep~ao deleuziana
da sensibilidade transcendental e refeito para cada uma das outras faculdades. No caso da memoria, a referencia fundamental e ao tempo. 0 objeto da
memOria, mas de uma memOria transcendental, e nao uma memOria empi~
rica, e a forma pura do tempo ou o ser do passado. 0 tempo, como objeto da
memoria transcendental, que Deleuze tambem chama de absoluta e ontologica, e urn memorandum: so pode ser lembrado; mas, ao mesmo tempo, e
imemoravel. Formula~ao que, como no caso da sensibilidade, tambem aqui
visa a distinguir os niveis empirico e transcendental e significa que nem
pode ser objeto de nenhuma outra faculdade, nem pode ser lembrado no
exerdcio empirico. 0 ser em si do passado e urn esquecimento essencial, no
sentido em que aquila que so pode ser lembrado no exercicio transcendental e ao mesmo tempo impassive! de ser lembrado no exercicio empirico:
"Ha uma grande diferen~a entre esse esquecimento essencial e urn esquecimento empirico. A memoria empirica dirige-se a coisas que podem e ate
mesmo devem ser apreendidas de outro modo: aquila de que me lembro, e
precise que o tenha vista, ouvido, imaginado ou pensado. 0 esquecido, no
sentido empirico, e 0 que nao se chega a apreender novamente pela memoria, quando o procuramos uma segunda vez ( esta Ionge demais, o esquecimento me separa da lembran~a ou a apagou). Mas a memoria transcendental apreende aquila que, na primeira vez, desde a primeira vez, so pode
ser lembrado: nao urn passado contingente, mas o ser do passado como tal
e totalmente passado. Esquecida, e dessa maneira que a coisa aparece em
pessoa a memoria que a apreende essencialmente:' 36 A coisa esquecida, o
ser em si do passado, a forma pura do tempo e 0 limite proprio, a enesima
potencia da memoria.
Essa mesma ideia nao apenas ja pode ser encontrada em livros anteriores como Proust e os signos e 0 bergsonismo, como e neles bastante explicitada. Urn texto do livro sobre Bergson e inclusive elucidative do tema que
estou expondo porque distingue o nivel transcendental ou ontologico e o
nivel empirico ou psicol6gico a partir de uma diferen~a de natureza entre
o passado e o presente: "Em todo rigor, o psicol6gico e o presente. Apenas o
presentee 'psicol6gico'; mas 0 passado e a ontologia pura, a lembran~a pura
145
0 EMPIRISMO TRANSCENDENTAL
so tern significas:ao ontologica." E, em seguida, ele explica essa ideia de passado ontologico que e condiyao do presente psicologico. "Existe, portanto,
urn 'passado em geral' que nao e 0 passado particular de tal ou qual presente, mas que e como que urn elemento ontologico, urn passado eterno e
totalmente passado, condiyao da 'passagem' de todo presente particular. E o
passado em geral que lorna possiveis todos OS passados:'37 Atraves da memoria ontologica nos colocamos primeiro no passado em geral, no ser em si do
passado, e apenas em seguida a lembrans:a adquire uma existencia atual. E
a problematica genetica, que ja situei no caso da sensibilidade como relal'ao
entre intensidade, qualidade e quantidade, que agora reaparece como uma
relal'ao entre o transcendental e o empirico, mas em termos de "atualizal'iio" ou "encarnal'ao'' do passado puro.
Analisarei posteriormente essa importante questao da genese ou do
processo de atualizal'ao. Gostaria agora de fazer duas observas:oes a respeito
do tempo e sua relal'iio com a memoria. A primeira e que essa relal'ao entre
a memoria e 0 tempo considerados como transcendentais e explicitada em
varios livros de Deleuze atraves de uma valorizayiio do conceito de reminiscencia. Eis !res exemplos. Em Proust e os signos, no contexto de uma comparal'ao entre a arte e a lembranl'a involuntaria, afirmando que ela nos da
o passado puro que ultrapassa todas as dimensoes empiricas do tempo. Em
0 bergsonismo, indicando uma inspiral'ao platonica de Bergson na ideia de
que a reminiscencia afirma uma memoria ontol6gica capaz de servir de fundamento ao desenrolar do tempo. Em Diferen~a e repeti~ao, quando, mesmo
acusando Platao de ter confundido o ser do passado como o ser passado e
ter decalcado o exerdcio da memoria transcendental sobre o exercicio empirico, reconhece que a grandeza do conceito de reminiscencia e introduzir
o tempo no pensamento.'8
A segunda observas:ao e que a questao do tempo, essencial no pensamento de Deleuze, percorre toda sua obra. Dei exemplos de livros dos anos
6o. Analisarei sua leitura da teoria bergsoniana do tempo e a utilizal'iio que
ele faz dela para dar conta do cinema moderno quando estudar Imagemtempo. No entanto, gostaria de citar agora, como prova de._que essa questao permanece presente em toda a sua obra, uma passagem do livro sobre
Foucault onde aparece quase nos mesmos termos a relal'ao entre tempo e
memoria. '"Mem6ria' e o verdadeiro nome da relal'ao consign mesmo ou do
afeto de si para consigo. Para Kant, o tempo era a forma sob a qual o espirito afetava a si proprio, como o espal'o era a forma sob a qual o espirito era
147
148
uma rejeiqao total. Assim, o "roubo" de urn conceito, e a integraqao a sua filosofia, muitas vezes desconsidera as implicaqoes que esse conceito acarreta
em seu sistema de origem. Esse procedimento do "sim ... mas", que se repete
em todas as suas leituras, e constitutivo de seu procedimento de colagem.
Essa tecnica lhe possibilita ate mesmo utilizar Platao como instrumento de
elaboraqao de sua teoria diferencial das faculdades. Citei, no capitulo anterior, dois textos de Diferenqa e repetiqilo em que Deleuze opoe a Republica
ao Teeteto. 0 texto da Republica VII, 523b-525b, a que Deleuze se refere em
varios livros, diz que "ha nas percepqoes algumas coisas que nao convidam 0
pensamento a urn exame, porque a percepqao basta para determina-las, e ha
outras que o engajam totalmente nesse exame na medida em que a percepqao nao da nada de sadio". 0 que ele extrai dessa passagem- sem aceitar todas as suas implicaqoes e acusando Platao de confundir o ser do sensivel com
o ser sensivel- e que Platao distingue ai duas especies de coisas no mundo:
as que deixam o pensamento inativo, e sao objetos de recogniqao, e as que
dao a pensar, forqam a pensar, violentam o pensamento." Assim, enquanto o
Teeteto, e a obra de Platao em geral, funda o modelo da recogniqao, a imagem
dogmatica e moralizante do pensamento, essa passagem da Republica expoe
uma imagem do pensamento em termos de encontros e violencia que e compativel com uma filosofia da diferenqa.
Ideia autiga em Deleuze. Nietzsche e a jilosofia ja opunha em Platao o
mito da caverna, que subordina a paideia a violencia sofrida por urn prisioneiro, e o texto que distingue o que forqa e o que nao forqa a pensar de uma
concepqao socratica do pensamento como amor e desejo do verdadeiro, do
belo e do bern, perguntando inclusive se nao seria alga assim que Nietzsche
propunha quando aconselhava a caracterizar Platao sem S6crates." Proust e
os signos vai ainda mais longe nessa ideia: depois de opor "ao uso l6gico ou
con junto de todas as nossas faculdades, que a inteligencia precede e faz convergir na ficqao de uma 'alma total', urn uso disl6gico e disjunto que mostra
que nunca dispomos de todas as faculdades ao mesmo tempo e que a inteligencia vern sempre depois", considera que o uso disjunto das faculdades
"tern como modelo Platao quando ele estabelece uma sensibilidade que se
abre a violencia dos signos, uma alma memorante que os interpreta e redescobre seu sentido, urn pensamento inteligente que descobre a essencia".43
Mas esse procedimento de colagem, pelo qual Deleuze integra ate
mesmo pensadores considerados como pertencentes ao espaqo da representaqao para constituir seu pensamento, leva-o principalmente a utilizar a teo-
0 EMPIRISMO TRANSCENDENTAL
ria da relaqao das faculdades no sublime tal como a estabelece Kant na Critica
da faculdade do juizo. Deleuze se refere em varios momentos a essa teoria, incorporando sua formulaqao: em A filosofia critica de Kant, em ''A ideia de genese na estetica de Kant", em "Sabre quatro f6rmulas poeticas que poderiam
resumir a filosofia kantiana", em Diferenqa e repetiqilo, em Imagem-tempo. 44
Ha uma homogeneidade muito grande entre essas passagens, que expoem
a mesma ideia, as vezes de modo analitico, as vezes apenas fixando a posiqao kantiana. No entanto, o texto mais veemente em infletir a formulaqao
kantiana no sentido do pensamento de Deleuze e a nota sobre a imaginaqao
de Diferenqa e repetiqao, praticamente o unico lugar do livro que se refere a
essa faculdade. E assim que, mesmo tendo afirmado - como ja o fizera em
A jilosojia critica de Kant- que Kant nao abandonou mas apenas multiplicou
o principia do senso comum, diz, poucas paginas depois, que o exercicio da
imaginaqao no juizo de sublime esta livre do senso comum e e urn exercicio transcendente. 45 E se defende essa posiqao e porque encontra em Kantcomo havia encontrado em Platao- a disjunqao e a violencia que sao caracteristicas essenciais de sua pr6pria teoria das faculdades. Eis sua interpretaqao
da tese kantiana: "Com o sublime, a imaginaqao, segundo Kant, e forqada,
coagida a enfrentar seu limite pr6prio, seu fantasteon, seu maximo, que e do
mesmo modo o inimaginavel, o informe ou o disforme na natureza ( Critica
da faculdade do juizo, 26). E ela transmite sua coerqao ao pensamento, forqado, por sua vez, a pensar o suprassensivel como fundamento da natureza
e da faculdade de pensar: o pensamento e a imaginaqao entram aqui numa
discordancia essencial, numa violencia reciproca que condiciona urn novo
tipo de acordo (27). Desse modo, o modelo de recogniqao ou a forma do
senso comum encontram-se em deficiencia no sublime, em proveito de uma
concepqao do pensamento totalmente diferente (29)."46
Em suma, e passive] dizer, independentemente de situar OS varios inspiradores da posiqao deleuziana, que, na ]uta contra a ideia de harmonia ou de
colaboraqao, o fundamental da tese de Deleuze e que a relaqao entre as faculdades e do tipo de urn "esforqo divergente", de urn "acordo discordante", de
uma "discordancia acordante", 47 em que cada faculdade dis junta s6 comunica
a outra a violencia que a eleva a seu limite pr6prio como diferente. Uma faculdade s6 consegue se exercer sob a aqao de uma "inimizade", de uma viol encia,
de uma coaqao, sob a aqao de forqas que a despertam para seu exercicio. Ja
mostrei em que sentido a questao basica da filosofia de Deleuze e"0 que e o
pensamento?", "0 que significa pensar?". Temos aqui urn segundo elemento
149
150
0 EMPIR!SMO TRANSCENDENTAL
151
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Epassive! explicitar o sentido do termo "Ideia", tal como Deleuze o utiliza, a partir de tr~s de suas caracteristicas. Em primeiro Iugar, como ja disse
ao estudar a relac;:ao de Deleuze e Kant, as ideias nao sao objeto exclusive de
nenhuma faculdade. Enquanto para Kant as ideias sao objeto da razao e para
Salomon Maimon, objeto do entendimento, para Deleuze sao "instilncias
que vao da sensibilidade ao pensamento e do pensamento a sensibilidade,
capazes de engendrar em cada caso, segundo uma ordem que lhes pertence,
o objeto-limite ou transcendente de cada faculdade''." Referindo-se a Riemann, Husser!, mas sobretudo a Bergson, que formula uma noc;:ao de multiplicidade qualitativa, continua, subjetiva que tornaria inuteis as noc;:oes de
uno e multiple, Deleuze considera as ideias como multiplicidades." As ideias
sao multiplicidades constituidas de elementos e de relac;:oes entre esses elementos: elementos diferenciais sem forma nem func;:ao, reciprocamente
determinaveis em uma rede de relac;:oes diferenciais. As ideias sao relac;:oes
redprocas entre elementos diferenciais completamente determinados em
suas relac;:oes. A "ideia discordante"s3 e, portanto, uma multiplicidade diferencial- diferenc;:as na multiplicidade e diferenc;:as entre multiplicidadesque, em vez de representar a diferenc;:a subordinando-a a identidade, a liberta em urn sistema de relac;:oes que refere o diferente ao diferente.
Em segundo Iugar, a ideia e virtual; uma multiplicidade virtual, diz Deleuze, ainda inspirado em Bergson, para distingui-la do irreal ou do possivel.
"Bergson eo autor que vai mais Ionge na critica do passive!, mas tambem o
que invoca mais constantemente a noc;:ao de virtual."54 0 possivel opoe-se ao
real, e o contrario do real, no sentido de que a possibilidade das coisas precede sua existencia, sua realidade; por outre !ado, o possivel realiza-se ou
nao, sua realizac;:ao implicando necessariamente uma semelhanc;:a e uma limitac;:ao. Ora, o virtual deleuziano, ou bergsoniano, de modo algum se op5e
ao real; o virtual como virtual, como caracteristica da ideia, como multipli-
0 EMP!RISMO TRANSCENDENTAL
153
cidade pura da ideia possui uma realidade. ''A realidade virtual consiste nos
elementos e relac;:oes diferenciais e nos pontos singulares que lhes correspondem. A estrutura e a realidade do virtual."SS Mas eapenas um aspecto da
realidade; o outre aspecto, e aspecto dessemelbante, da realidade e o atual.
0 virtual tem uma realidade propria, que nao se confunde com a realidade
atual. Para caracterizar esse aspecto da ideia, Deleuze gosta de citar a frase
de 0 tempo reencontrado, ultimo livro da Recherche de Proust: "real sem ser
atual, ideal sem ser abstrata".'6 Para utilizar a linguagem de 0 bergsonismo
e dos dois artigos sabre Bergson, seria passive! dizer que, enquanto a realidade virtual e "subjetiva'', a realidade atual e "objetiva''. Mas essa distinc;:ao
nao e estabelecida dessa maneira nos outros livros de Deleuze. Diferenqa e
repetiqao, por exemplo, prefere referir-se ao virtual e ao atual como dois aspectos do objeto. Todo objeto e duplo, composto de metades desiguais, impares, dessemelhantes: a primeira e a parte ideal ou virtual do objeto real, a
segunda e 0 conjunto das determinac;:oes pr6prias da existencia atual. 0 virtual e portanto uma dimensao objetiva." Mesma posic;:ao de Imagem-tempo,
como veremos ao estudar o cinema.
154
I 0
e, assim, ligam
Problemas
.
os casos de so w;a- dparaos
co'. "Neste sent!do,
d termmam
t I e o empm
d
ideias,
e
da realidade, o transcen
a .
tos que se desenrolarn
aspectos
. . d enontec1men
_
os ols
a dupla sene e ac
. el das soluc;oes
e exato
sem semelhanc;a:
do
em dors p
t os ideacionais ou !deals,
azao do sensivel; e a
engendradas,
ou r ~d d . a forma da diferenc;a como r
"61 A intens1 a e e
re;::~:~~:::.:o
blema
razao suficiente
cone~~~~:
discordante;c:~=spensamento:
Os
o: 'de duas relac;oes
uma,
sfntese d!SJU
a teo ria deleuziana do exerc "
tra ligando o vir! mentam, n
I d d'f renc;a ; a ou ,
.
se comp
. . t ual , a "sintese idea a .' eI"''Oque d'strngue
as duas e
. lde 'deravrr
r
no nive a 1
metrica do sensiVe .
sintese reI "sintese ass!
. al d diferenc;a, ou
tual e o atua ' :
onstitui. A sintese !de a . .
lo que Deleuze
d
lac;ao que as c
d"f ncrms ou pe
. aracteriza-se por relac;oes
. do sensivel caracterio tipo e
ciproca
da Ldela, c . - da ideia; a sfntese ass!metnca
s qualidades e
h
ma de diferencrac;ao
e as ideias afirmam a
c a
d .ntensidade em qu
- do atual. Oeste
za-se por
e'
D leuze chama de diferenc;a-;:ao
- de duas
r~
'_er~
rela~6es
as quantidade:
do
De leuze
modo, a teon
que inspirado na termm 'd d , ''
lementares
,
d . t nsr a es .
partes comp
. d "deias" e "estetica as m e
de modo sis"d"al't!ca asr
t' oexpoem
denomina J e. ortantes de Diferen<;a e repe L<;a.
estetica deleuziaDois textos rmp
I. has dessas dralet!ca e
. d da
. .
s grandes m
d alh r conteu o
tematico e sintetrco fia 1 do capitulo IV, depois de et_ a 0a a dramatizaatenc;ao par
. eiro no na
h
nas. 0 pnm
'
r. a ao estetica, c ama a
uro spatium,
ideia dialetica e da atua !Z <; profundidade original, para o p "d de como
d.
smo para a
..
a a mtensr a
c;ao, para 0
isto e, em ultima anahse,
a atualizac;ao
para o spatLU
d d determinar no extenso, na q
nada na varie.
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cida e e
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. "A ideia dialetica e dup 1amen
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I ridades correladas
rd_::;sdiferenciais e na
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A atualizac;ao estetica e up a
.fi
encarna as
dade das re ac;o tivas (
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osirao (diferens:ac;ao ). A especr Ac ualidades e as
0
.fi - e na comp >
.
1 ridades. s q
.rao encarna as smgu a
I mento da quaespecr cac;a
dem ao e e
a composr,
rela-;:oes, como
. . e os numeros correspon .
o ue efetua o
da Icleia?
partes atuais, as especrest da quantitabilidade na Ide!a.
.. d d
o elemen o
d potencr J
1
litab!h a e e a
ficiente o elemento a
. . Com efeito,
.
t da razao su
'
.
-quahtatlva.
terCe!rO
aspec 0
.
pre-quantitatlva e pre
'f
arao do atuaJ
S
d vida, a dramatrza-;:ao,
.
diferencia a d! eren<; ,.
em
u
.
ou
desencadera,
que
e ela que determma
~n~~~nsiv~,
relac;oe~
diferencra~ao
~~ntidade,
distribui~a~ d~s
~eterminada,
a~ao
Maalsda~e
155
156,
Ii'
0 EMPIRISMO TRANSCENDENTAL
157
PARTEs
De leuze e Foucault
Alguem poderia fazer a seguinte obje~ao a respeito da ideia central que articula OS capitulos anteriores: "Muito bern! 0 que voce diz e correto. Mas
isso nao e exatamente Deleuze. E apenas 0 primeiro Deleuze. Depois de 0
anti-Edipo e de seu encontro com Felix Guattari, sua filosofia e bern diferente,
como o proprio Deleuze reconheceu!" Nao acredito que haja varias filosofias
de Deleuze. Essa e uma das hip6teses que lancei na introduqao deste livro e tenho procurado confirmar. Everdade que ate agora privilegiei seus escritos da
decada de 6o. Principalmente porque sao dessa epoca seus principals estudos
sobre fil6sofos, o que, segundo minha interpretaqao, eo mais importante para
compreender sua filosofia, como defendi na introduqao e justificarei mais detalhadamente quando estudar seus livros sobre o cinema. Mas nao me parece
que haja ruptura entre os estudos que analisei- sem deixar de relaciona-los a
todos os outros- e o que foi feito em seguida por Deleuze.
Efetivamente, ele afirma em Ditilogos que procurou pe1s\ivros anteriores a 0 anti-Edipo descrever urn exerdcio do pensamento, e que descrever
o pensamento ainda nao era exerce-lo, havendo entre as duas posturas uma
diferen'a como que entre gritar "viva o multiplo" e "fazer o multiplo".' No
entanto, a analise da passagem de Dialogos em que tal afirma,ao e feita me
faz interpreta-la mais como urn enaltecimento do fato de ter trabalhado a
dois do que como referencia ao possivel aparecimento de uma diferenqa
conceitual em sua obra ou uma mudan'a de procedimento. Nao penso no
entanto que haja, sob esse aspecto, diferen'a relevante entre seus livros,
que me parecem apresentar uma identidade surpreendente no tocante ao
essen cia] de seu pensamento. Em geral, as mudan,as em De leuze sao mais
terminol6gicas do que conceituais e dependem dos intercessores que ele
162
DE LEUZE E FOUCAULT
esteja usando para expressar seu proprio pensamento. Neste sentido, acredito que ou ele sempre deu viva ao multiplo ou sempre fez 0 multiplo ou,
ate mesmo, teve ao mesmo tempo essas duas atitudes.
Everdade que durante o tempo em que criou sua filosofia Deleuze abandonou, por motives diferentes, termos como estrutura, instinto de morte,
presenc;a, simulacra, conteudo latente, conteudo manifesto ... Um exemplo
importante de mudanc;a que considero mais terminologica do que conceitual, ocorrida na epoca do encontro com Guattari, diz respeito a palavra "interpretac;ao", utilizada por Deleuze constantemente na decada de 6o (e que,
inclusive, tenho usado para caracterizar o seu procedimento de leitura). Na
epoca de 0 anti-Edipo e da parceria com Guattari, sempre para evitar a representac;ao, e principalmente para denunciar a psicana!ise e a linguistica,
Deleuze critica o procedimento de interpretac;ao em nome da "maquinac;ao"
ou da "experimentac;ao". Mas considero evidente que nao se trata de uma mudanc;a conceitual importante. Pois o que Deleuze critica e a interpretac;ao do
significante, pensado como representac;ao de palavras, e do significado, como
representac;ao de coisas. E isso ele nunca fez ao procurar dar conta de um
pensamento. Pois nao se deve esquecer que ele da um outro sentido apalavra
"interpretac;ao" - como em Nietz~filosofia, onde interpretar "e determinar a forc;a que da um sentido a coisa". 0 que permite dizer que, desde o
inicio, para Deleuze, o sentido implica a forc;a e e pensado como diferente da
significac;ao. Pode-se inclusive notar que no capitulo "Antilogos ou a maquina
literaria', acrescentado em 1970 a Proust e os signos, ele harmoniza ou concilia
sua teoria da interpretac;ao com a teoria das maquinas ao falar da "maquina
involuntaria de interpretac;ao", que produz o sentido ou a essencia como produto.' Nao e, portanto, uma mudanc;a como essa que me faz ver um periodo
em que Deleuze deu viva ao multiplo e fez o multiplo. Neste sentido, sua filasofia se parece como o maravilhoso "Samba de uma nota so", de Tom Jobim e
Newton Mendonc;a: "outras notas vao entrar, mas a base e uma so".
Mas para responder rigorosamente a essa passive! objec;ao e indispensavellevar mais detidamente em considerac;ao o procedimento filosofico que
caracteriza sua produc;ao depois de Diferenya e repeti9ao - livro que, disse
ele um dia, foi 0 primeiro em que tentou "fazer filosofia' e e 0 mais importante que escreveu, observando, inclusive, que tudo o que fez em seguida se
articulou com esse livro, ate mesmo o que escreveu com Guattari. * Tomarei,
* Cf. "Preface a I'edition amricaine de Difference et repetition", in DRF, p.z8o. A meu ver,
a indicas;ao mais esclarecedora do trabalho con junto de Deleuze e Guattari est.i na afirma~
entao, como exemplo de seus ultimos trabalhos o livro sabre Foucault, que
eo primeiro que escreveu sabre um filosofo depois de 0 anti-Edipo, Kafka e
Mil plat6s, escritos com Guattari. Assim, estudando o seu Foucault, terei em
vista basicamente dois objetivos principais: primeiro, expor os principais
conceitos e as principais articulac;oes da bastante originalleitura deleuziana
de Foucault nao so para dar conta de suas teses principais, mas tambem
para mostrar como os conceitos que ele privilegia na obra de Foucault e a
maneira como os relaciona correspondem perfeitamente aos conceitos mais
fundamentais de sua propria filosofia; segundo, confrontar sua leitura com
minha propria leitura de Foucault para evidenciar de modo mais explicito
do que fiz nos capitulos anteriores como Deleuze relaciona pensamento filosofico e historia da filosofia atraves de seu procedimento de colagem, que
cria um duple concebido como uma repetic;ao da diferenc;a e !he possibilita
"descrever um livro real da filosofia passada como se fosse um livre imaginario e fingido", como ele diz no prefacio de Diferenya e repeti9ao.
A questao central da filosofia de Foucault, segundo Deleuze, aquilo em
torno de que gravitam todas as suas ana!ises, e "0 que e 0 pensamento?", "0
que significa pensar?". Vimos que essa questao e fundamental na filosofia de
Deleuze. Mas isso nao significa que haja homogeneidade na maneira como os
filosofos estudados por ele criam conceitos. Sob esse aspecto, a especificidade
da filosofia de Foucault esta na existencia de tres "direc;oes", tres "dimensoes",
tres "eixos", !res "linhas" que caracterizam sua problematizac;ao do pensamento: uma arqueologia do saber, uma estrategia do poder e uma genealogia do
sujeito ou da subj~_<lc;ao, o que, para Deleuze, qualifica Foucault, ao mesmo
tempo, como arq~ivista, cartografo e topologista.* Epelo estudo de cada uma
dessas dimensoes e da relac;ao entre elas que iniciarei minha analise.
A arqueologia do saber
A arqueologia estuda o saber. Mas a tese de Deleuze a respeito do conceito
de saber em Foucault e originaL Segundo ele, o saber e constituido por dois
elementos puros, duas formas, dois estratos, duas estratificac;oes, duas qualic;ao de Deleuze de que injetava filosofia no que Guattari tirava das leituras que faziam de
etnologia, economia, lingulstica ( cf. "Lettre aUno: comment no us avons travaillC adeux",
in DRF, p.219).
* Cf. F, p.126~7. Mas Deleuze tambem se refere a topologia em sua amilise do saber e do poder.
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fica96es, duas camadas sedentarias- termos que podem ser tornados como
sin6nimos. Alem disso, alguns pares terminol6gicos igualmente sin6nimos
indicam quais sao esses elementos ou essas formas: ver e falar, visivel e dizivel, visLbi!id<)de e leg e conteudo e expressao. Essa tese de uma dupla
forma constitutiva do saber e 0 primeiro ponto importante da interpreta9a0
deleuziana do exercicio do pensamento em Foucault. Vejamos isso, partindo
da distin9ao entre conteudo e expressao.
Mil platos explicita em varias passagens a distin9ao, proveniente de
Hjelmslev, entre forma de conteudo e forma de expressao. Segundo um
dos mais importantes desses textos, 3 ~do - que Deleuze tambem
identifica a maquina social tecnica - "sao as materias formadas, que devern ser consideradas de dois pontos de vista: do ponto de vista da substii.ncia ( enquanto estas materias sao 'escolhidas') e do ponto de vista da forma
(enquanto elas sao escolhidas em determinada ordem)". Por outro !ado, a
expressilQ- que Deleuze tambem identifica a maquina coletiva semi6tica
que constitui regimes de signos- sao as estruturas funcionais que devem
ser igualmente consideradas de dois pontos de vista: o da organiza9ao de
sua forma e o da substancia que com ela se comp5e. Oeste modo, tanto o
conteudo quanto a expressao tern uma forma e uma substii.ncia.
Essa terminologia e abundante em Mil platos e organiza grande parte
de suas analises. Quando Deleuze a retoma no livro sobre Foucault, o importante e a ideia de que 0 saber e constituido por um conteudo e uma expressao, cada um deles tendo uma forma e uma substancia. Ideia que nao e
inteiramente nova porque Mil platos ja se referia varias vezes a filosofia de
Foucault encontrando em alguns de seus livros essa teoria das duas formas.
.)tssim, segundo ele, A arqueologia do saber ja havia esbo9ado uma teoria das
fl(luas multiplicidades em que as "forma96es discursivas" sao formas de expressao e as "forma96es nao discursivas" sao formas de conteudo; e Vigiar
e punir considera a~risao uma forma de conteudo sobre um estrato em rela9ao com -~tras formas de conteudo - a escola, a caserna, o hospital, a
fabrica -, e a elinquencia uma fox;ma de expressao.' 0 livro sobre Foucault
retoma esse exemplo exphcitand<;que, enquanto af'Oi'ma de conteudo e a
prisao e a substancia de conteudo sao os prisioneiros, a forma de expressao
e o direito penal e a substancia de expressao e a no9ao de delinquencia.
Mas da ainda outros exemplos, a ponto de encontrar essa distin9ao das duas
formas praticamente em toda a obra de Foucault. Assim, Hist6ria da loucura,
ao investigar a epoca classica, situa o "asilo" como Iugar de visibilidade da
~~
loucura e a medicina como Iugar de formula9ao dos enunciados sobre a desrazao; o livro sobre Raymond Roussel divide sua obra em inven9ao de visibilidade e produ9ao de enunciados; Nascimento da clinica analisa as distribui96es do visivel e do enunciavel em varios periodos hist6ricos.
Em suma, para utilizar ainda um termo importante de Mil platos, o saber e um agenciamento. Segundo esse livro, o agenciamento "distingue uma
forma de expressao, na qual ele aparece como agenciamento coletivo de
enuncia9ao, e uma forma de conteudo, na qual ele aparece como agendamenlo maquinico de corpos". Defini9ao que remete a diferen9a entre agenciamento maquinico concreto ( ou maquina concreta), pelo qual Deleuze
caracteriza o saber, e maquina abstrata, pela qual ele conceituara o poder. 5
Em Foucault, o saber e, portanto, um agenciamento pratico, um dispositivo
biforme de enunciados e visibilidades.'
Deleuze salienta a diferen9a dos enunciados e das visibilidades com rela9ao as ordens das palavras e das coisas. Um enunciado e uma fun9ao que
cruza as diversas unidades linguisticas, como as frases ou as proposi96es,
tra9ando uma diagonal, uma transversal; e uma fun9ao primitiva an6nima,
uma multiplicidade topol6gica que atravessa os diversos niveis. 0 enunciado
e uma regularidade ou uma curva que passa na vizinhan9a das emiss6es de
singularidades, dos pontos singulares que se distribuem e se reproduzem no
espa90 que ela forma. Por outro !ado, a visibilidade nao se confunde com
os objetos, as coisas, as qualidades sensiveis. As visibilidades sao formas de
luminosidades, "formas de luz que distribuem o claro eo escuro, o opaco eo
transparente, g_yisto e
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Deleuze mostra inclusive que a teoria segundo a qual os enunciados remetem ao ser da linguagem e as visibilidades, ao ser da luz, como dais elementos irredutiveis, em que um nao visa nem e visado pelo outro, torna
impassive! a intencionalidade fenomenol6gica, com seu novo psicologismo
das sinteses da consciencia e seu novo naturalismo da experiencia.
Entre visivel e enunciavel, forma de conteudo e forma de expressao,
nao ha isomorfismo, conformidade, homologia, forma comum as duas formas; ha anisomorfia, heterogeneidade, diferenc;a de natureza.* Sabemos
que essa e uma tese essencial da filosofia de Deleuze, enunciada a cada
vez que enaltece o exercicio do pensamento diferencial ou critica o pensamento representative. Mas e interessante assinalar que tambem em
Foucault ela se liga a outra tese nao menos essencial e que mostra toda a
importancia da ideia de transcendental em Deleuze: a diferenc;a de natureza entre elementos, ou melhor, entre series, s6 e descoberta no exerdcio
superior, a priori, transcendental, e nao no exerdcio empirico. Vale a pena
registrar como ele expoe mais uma vez essa ideia. "Enquanto permanecermos no nivel das coisas e das palavras, poderemos acreditar que alamos do
que vemos, que vemos aquila de que falamos e que os dais se encadeiam:
e que permanecemos num exerdcio empirico. Mas desde que abrimos as
palavras e as coisas, desde que descobrimos os enunciados e as visibilidades, a palavra e a visao elevam~se a urn exerdcio superior, a priori, de tal
modo que cada uma atinge seu proprio limite que a separa da outra, um
visivel quySO pode ser vista, um enunciavel que s6 pode ser falado." 9 Este
e, portartto, 0 primeiro aspecto: a diferen9a de natureza entre 0 visivel e 0
enunciado como formas do saber.
Mas negar o isomorfismo, afirmar a heterogeneidade nao significa dizer
que nao ha rela9ao. Ao contrario, ha uma rela9ao tao fundamental que Deleuze, retomando uma expressao de Foucault sabre Blanchot, chama de "nao
rela9ao", no sentido de uma relac;ao sem conformidade ou correspondencia,
e interpreta como uma rela9ao disjuntiva entre um processo do ver, processo
maquinico, e urn procedimento da linguagem, procedimento enunciative. ''A
conjunc;ao e impassive!. .. 0 arquivo, o audiovisual e disjuntivo:'*'
* Utilizando a linguagem do livro sobre Espinosa, Mille plateaux ("La geologie de la morale", p.sg, 76, 83, 92-3) diz que entre conteU.do e expressao ha distin~ao real ou formal.
** F, p.71. Na entrevista "A vida como obra de arte", Deleuze sugere que a divida de Foucault
para com Blanchet diz respeito a tres pontos: "Primeiro, 'falar nao ever ... ', diferen<;a que faz
com que, dizendo-se o que nao se pode ver, leva-sea linguagem a seu extreme limite, elevando-a apotencia do indizivel. Segundo, a superioridade da terceira pessoa, o 'elA' ou o neutro,
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Como Deleuze explica esse conceito de rela~ao disjuntiva, urn dos mais
importantes de sua filosofia, no caso especifico da nao rela~ao entre as formas do saber? Atraves da ideia de "luta", de "batalha', de "dupla insinua~ao",
"mutua captura", "pressuposi~ao redproca". w Essa ideia ja aparecia em Mil
platas quando, por exemplo, Deleuze e Guattari diziam que "a independencia funcional das duas formas e apenas a forma de sua pressuposi~ao redproca e da passagem incessante de uma a outra", e indicavam, referindo-se
a Foucault, a pressuposi~ao reciproca entre duas mu]tiplicidades: a prisao,
como forma de conteudo, e a delinquencia, como forma de expressao." Em
Foucault, Deleuze explica essa ideia fazendo valera distin~ao entre condi~ao
e condicionado, que vimos existir em cada uma das formas heterogeneas do
saber, e afirmando que uma forma penetra, insinua-se na outra justamente
na brecha, na exterioridade que impera entre a condi~ao e o condicionado
portanto, entre o visivel e sua condi~ao que os enunem cada uma delas.
ciados penetram ... E entre o enunciado e sua condiyao que as visibilidades
se insinuam ... Sao os enunciados e as visibilidades que se chocam diretamente como lutadores, se for~am e se capturam, constituindo a cada vez a
'verdade'.:j A nao rela~ao, a rel<i~ao disjuntiva entre as formas do saber, e,
portanto, uma rela~ao de luta, de choque, de batalha, de dupla insinua~ao.
~en~men_!? se da na disjun~ao entre ver e falar.
Ver~~os que essa disjun~a~- que impoSSlbrlita a intencionalidade fenomensAogJca, por exemplo- e o Iugar, ou melhor, o "nao Iugar", como diz
Deleuze retomando uma expressao de Foucault sobre Nietzsche, em que se
precipita o diagrama informal das for~as ou do poder. Antes, porem, e preciso apresentar a terceira caracteristica do saber.
Essa terceira caracteristica eo primado do enunciado sobre a visibilidade.
A grande importancia dessa ideia esta no fato de, por esse motivo, Deleuze
considerar Foucault urn "neokantiano", estabelecendo desse modo uma continuidade entre sua interpreta~ao de Kant, que ja apresentei, e sua interpreta~ao de Foucault. Em que sentido? Em primeiro Iugar, porque tanto no caso de
Foucault quanto no de Kant uma das formas e forma da espontaneidade e a
outra, forma da receptividade, mesmo que em Kant a espontaneidade seja do
entendimento e a receptividade, da intui~ao, e em Foucault, da linguagem e
da luz, respectivamente. Deleuze diz: "As visibilidades formam com suas con-
J!:.
di~oes
uma Receptividade, e os enunciados, com as suas, uma Espontaneidade. Espontaneidade da linguagem e receptividade da luz, ... em Foucault,
a espontaneidade do entendimento, Cogito, e substituida pela da linguagem
( o existe linguagem), enquanto a receptividade da intui~ao e substituida pela
da luz (nova forma do espa~o-tempo):"' Essa substitui~ao acarreta, segundo
ele, dois deslocamentos importantes: das condi~6es da experiencia possivel
para as condi~6es da experiencia real; do sujeito universal para o objeto ou a
forma~aci hist6rica. Haveria continuidade entre Foucault e Kant, em segundo
Iugar, porque o enunciado, como o entendimento kantiano, e uma forma de
determina~ao, enquanto 0 visivel, como 0 espa~o-tempo, e a forma do determinavel. 0 primado do enunciado e, portanto, a forma determinante que ele
tern em virtude do carater espontaneo de sua condi~ao. A determina~ao vern
sempre do enunciado, "s6 os enunciados sao determinantes e fazem ver, se
hem que eles fa~am ver outra coisa que nao o que eles dizem". '4
Em suma, o saber eurn composto de do is elementos, o visivel e o enunciado, de tal modo que ha diferenya de natureza ou heterogeneidade entre
os dois, pressuposi~ao reciproca ou disjun~ao e, finalmente, primado de urn
sabre o outro.
A estrategia do poder
0 que e o poder? Se Deleuze encontra uma inspira~ao neokantiana na concepyao que Foucault se faz do saber, e principalmente de Nietzsche que, segullcto sua interpreta~ao, lhe vern a concep~ao do poder. "0 poder e uma re]a~ao de for~as, ou melhor, toda rela~ao de for~as e uma rela~ao de poder:'s
A inspirayiio nietzschiana- o "profunda nietzschiano" de Foucault- dessa
concep~ao esta na maneira como uma forya se define por urn poder de afetar ou de ser afetado por outras for~as, afetos ativos e passivos ou, para empregar outros termos considerados sin6nimos par Deleuze, espontaneidade
e receptividade da for~a. ' 6
Esse duplo aspecto da for~a e fundamental. Utilizando uma distin~ao
de Mil platos, o livro sabre Foucault diferencia a materia e a ftm~ao da forya,
definindo rtraves delas seus dois poderes.* 0 poder de ser afetado e a rna: MP,, "La ge~i~
la morale'~ d~fiUe a m;~eria .em Hjelmslev como sendo o plano de
consistencia ~? corpo sern 6rgiios, isto e, o corpo nao formado, niio organizado, nao es~
tratificado ou desestratificado (p.sS).
de
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170
DE LEUZE E FOUCAULT
teria da for~a, materia pura, nao formada, independente das substancias formadas. 0 poder de afetar e a fun~ao da fon;a, fun~ao pura, isto e, niio formalizada. 0 poder, nao tendo forma nem em suas materias nem em suas fun~oes,
e uma "dimensiio informal" ou urn "diagrama suprassensivel". '7 "0 diagram a
nao e mais 0 arquivo, auditive ou visual,
e0
afirmando que(!;ob as formas e as substancias de estratos, o plano de consistencia (ou a maquina abstrata) constr6i continuos de intensidade".:_f Ideia retomada em Foucault, quando afirma que "o diagrama ou a miquina abstrata e
o mapa das rela<;6es de for<;as, mapa de densidade, de intensidade"."
Se a pratica de poder e irredutivel a pratica de saber e porque e nao estratificada, informe, difusa, instavel, m6vel, no sentido em que diz respeito
a quaisquer a<;6es e quaisquer suportes. Foucault da dois exemplos: o pan6ptico, que seria definido em Vigiar e punir como "a pura fun<;ao de impor uma
tarefa ou uma conduta qualquer a uma multiplicidade de individuos qualquer, sob a unica condi<;ao de que a multiplicidade seja pouco numerosa e
o espa<;o, limitado, pouco extenso"; e a governamentalidade, a biopolitica,
que seria definida no ultimo capitulo de A vontade de saber como a fun<;ao de
"gerir e controlar a vida em uma multiplicidade qualquer, acondi~ao de que
a multiplicidade seja numerosa (popula<;ao) eo espa~o, extenso ou aberto".'3
@!n suma, enquanto 0 saber e forma, 0 poder e for<;a ou rela<;5es de for~a
nao localizaveis, difusas, instaveis, que passam por pontes singulaee'::J
Em segundo Iugar, entre poder e saber ha pressuposi<;ao reciproca,
imanencia mutua. 0 poder, 0 diagrama de for<;as, e "causa imanente"'4 do
saber, e 'I_ maquina abstrata capaz de engendrar OS agenciamentos concretOS, sem no entanto unificar os elementos disjuntivosjJO diagrama do poder
nao unifica, coadapta as duas formas do saber.'5 Retomando tres conceitos
essenciais de sua filosofia - virtual, atual, atualiza~ao -, provenientes de
Bergson, Deleuze did. que entre poder e saber ha uma rela~ao do tipo virtual-atual e que as rela<;6es de poder permaneceriam virtuais se nao se atualizassem, se nao se efetuassem no arquivo audiovisual. 26
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172 ,
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173
tram em rela~ao indireta, por cima de seu intersticio ou de sua 'nao rela~ao',
em condi~6es que s6 pertencem as fon;as." 30 0 elemento informe das for~as
"explica" a rela~ao de exterioridade entre as for mas. Ou, como Deleuze tamhem diz, o j)()der- que ni'io-vhl.e-m-fal<F--faz-ver-e-fa11l:l>
A rela~ao entre o poder, considerado como for~a, afeto ou intensidade, ___ _
e o saber, como rela~~o entr~ formas exteriores e heterogeneaS,T~;;~ D~~
leuze a aproximar novamente Foucault de Kant. A analogia, ou melhor, a
ressonancia diz respeito aqui ao diagramatismo de Foucault e ao esquematismo kantiano, responsaveis nas duas filosofias por uma "coadapta~ao" entre formas de espontaneidade e de receptividade. Um texto de Deleuze e
bastante explicito a esse respeito e da uma boa ideia do procedimento de
colagem. "Kant tinha passado por uma aventura semelhante: a espontaneidade do entendimento nao exercia sua determinal'ao sabre a receptividade
da intui<;:iio sem que esta continuasse a opor sua forma do determinavel a da
determina<;:ao. Era, portanto, necessaria que Kant invocasse uma terceira
instancia alem das duas formas, essencialmente 'misteriosa' e capaz de dar
conta de sua coadapta~ao como Verdade. Era o esquema da imagina~ao ...
Em Foucault tambem e precise que uma terceira instancia coadapte o determinavel e a determina~ao, o visivel e o enunciavel, a receptividade da luz e a
espontaneidade da linguagem, operando a! em ou aquem das duas formas." 3'
Esse papel constituinte das for<;:as com respeito as formas que as preenchem, atualizam ou efetuam pode ser ilustrado pela curiosa interpreta~ao
deleuziana de As palavras e as coisas. 3' Sua tese e que cada forma~ao hist6rica remete, como a um a priori, a um espa<;:o das fon;as que e o lugar ou o
"nao lugar" das muta~6es, da mudan~a, do devir.tb forma e um composto
de rela<;:6es de for~as, e nao e propriamente 0 composto, isto e, 0 saber, que
se transforma, mas as for<;:as de onde as formas decorremj Na verdade, do is
tipos diferentes de for~as: for~as no homem, que sao for~as de imaginar,
de lembrar, de conceber ... e for<;:as de fora, com as quais as primeiras entram em rela~ao e que variam segundo a forma<;:ao hist6ri'2!j Com esse instrumento de analise, Deleuze caracteriza tres epocas que seriam estudadas
em As palavras e as coisas. A epoca classica, em que as for~as no homem se
combinam com uma for~a de representa<;ao infinita e compoem Deus como
forma de saber; a modernidade, quando as for~as no homem se combinam
com as for~as empiricas e finitas da vida, do trabalho e da linguagem, que
escapam da representa~ao e compoem o homem como forma de saber; e
finalmente, indo alem das analises explicitas de Foucault, Deleuze imagina
LJ
174
I.
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uma epoca, que segundo ele ja se inicia, em que as fon;as no homem se combinam com as for~as da informa~ao ou do silicio, os componentes geneticos
e OS agramaticais e compoem 0 "homem maquina" OU 0 super-homem.
Assim, a melhor maneira de aprofundar a compreensao desse segundo
eixo do pensamento de Foucault e atraves da distin~ao deleuziana entre as
formas de exterioridade e as for~as de fora (dehors). A ideia de exterioridade
nao acrescenta mais problema. Como vimos, ela diz respeito a forma, no
sentido em que o saber e urn composto de duas formas exteriores: ver e falar
ou luz e linguagem. As for~as, por sua vez, operam ou se exercem num espa~o diferente do das formas: 0 espa~o do de-fora, onde a rela~ao e uma nao
rela~ao, o Iugar, urn nao Iugar. Sua ideia e que as rela~oes de for~a nao estao
fora das formas do saber, visto que nada existe sob, sabre ou fora do saber;
elas sao 0 de-fora, que e informe e existe no intersticio, na disjun~ao de ver e
falar. "Urn de-fora mais longinquo que qualquer mundo exterior e ate mesmo
que qualquer forma de exterioridade, desde entao infinitamente mais pr6\
ximol~ como as duas formas de exterioridade seriam exteriores uma a outra
se nao li.Ouvesse esse de-fora, mais pr6ximo e mais longinquo?"''
Mas nao se deve pensar que ha sinonimia entre o de-fora e as rela~oes
de for~as ou de poder. Everdade que Deleuze as vezes afirma essa tese, por
exemplo, quando diz que "o diagrama e sempre 0 de-fora dos estratos".34
Neste sentido, o de-fora e o elemento informe ou informal das for~as, arela~ao da for~a com a for~a, o diagrama. Eo de-fora relative ao diagrama. Por
outro !ado, ele deixa claro que "o diagrama como determina~ao de urn conjunto de rela~oes de for~as jamais esgota a for~a, que pode entrar em outras
rela~oes e em outras composi~oes. 0 diagrama sai do de-fora, mas ode-fora
nao se confunde com nenhum diagrama, esta sempre 'tirando' novos:'* A
meu ver, o que norteia essa tese de Deleuze e uma suspeita com rela~ao ao
poder: a suspeita de que ele !eve necessariamente a urn impasse. E assim
que, referindo-se ao "siliencio" de Foucault entre os volumes I e II da Hist6ria da sexualidade, que o levou a mudar a dire~ao da anilise, Deleuze dira
que o impasse nao era de Foucault, mas do pr6prio poder.
Uma importante nota de Mil platos ja expoe a ideia da existiencia no
pensamento de Foucault de duas formas em pressuposi~ao reciproca e de
-----* F., p.gs; cf. p.51. 0 fato de afirmar as vezes uma identidade, as vezes uma diferenc;:a entre
poder e de-fora explica por que Deleuze as vezes encontra tres eixos, as vezes quatro, no
pensamento de Foucault. L'Usage des plaisir (Gallimard), por sua vez, se refere em mementos diferentes a tres eixos (p.1o) e a duas dimens6es (p.17-9).
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'
__) \
176,
DELEUZE E FOUCAULT
I,
A genealogia do sujeito
A terceira dimensao, que Deleuze denomina topologica, caracteriza-se principalmente pela rela<;ao entre o de-fora e o de-dentro, o dehors e o dedans.
Essa rela<;ao e de constitui<;ao: o de-dentro e constituido pelo de-fora, por
uma opera<;ao do fora, mas de tal modo que nem se opoe, nem mesmo e
fisicamente exterior ao de-fora: e-lhe coextensivo; "nao outra coisa que nao
o de-fora, mas exatamente o de-dentro do fora".+' A razao dessa rela<;ao intrinseca e que a opera<;ao constituinte e uma dobra, uma prega, uma reduplica<;ao; e a dobra do fora que constitui o de-dentro.
Do mesmo modo que distinguiu ode-fora da exterioridade, consideran
do-o mais longinquo que qualquer mundo exterior, Deleuze tambem distingue a interioridade de um de-dentro "mais profundo que qualquer mundo
"/Interior". E verdade que ele nem sempre respeita essa distin<;ao terminologica. E o caso, por exemplo, quando interpreta a afirma<;ao de Hist6ria da
loucura de que no Renascimento o louco esta no interior do exterior, no
sentido de sua tese de que o de-dentro e uma opera<;ao do fora, 44 ou quando
afirma que 0 de dentro e uma interioriza<;ao do fora.
Deleuze nao limita sua analise dessa dimensao aos dois ultimos livros
de Foucault. Assim, alem da referenda a Hist6ria da loucura, ele interpreta
no mesmo sentido as pregas da anatomia patologica, tais como sao analisadas por Nascimento da clinica, e o tema do "impensado" de As palavras e
as coisas: "Que haja um de-dentro do pensamento, .o impensado, e 0 que
a idade classica dizia quando invocava o infinito, as diversas ordens de infinito. E, a partir do seculo XIX, sao as dimens6es da finitude que vao dobrar ode-fora, constituir uma 'profundidade', uma 'espessura retirada em si
mesma', um de-dentro da vida, do trabalho e da linguagem ... As vezes e a
dobra do infinito, as vezes sao as reduplica<;6es da finitude que dao uma curvatura ao de-fora e constituem o de-dentro::"{b de-fora surge dentro como
aquilo que 0 pensamento nao pensa, como impensado.
0 que e esse de-dentro constituido pela dobra ou reduplica<;ao do fora?
Ea for<;a ou o terceiro poder da for<;a- a resistencia- que se volta sobre si
mesma, se exerce sobre si mesma, se afeta a si mesma. Deleuze lhe da um
nome que aparece freq~emente em sua obra: memoria, memoria absoluta ou memoria do for~.~M'cinf>Fia e o verdadeiro nome da rela<;ao consigo
mesmo ou do afeto de sipor si mesmo."/E a identifica ao tempo: "o tempo
como sujeito, ou antes subjetiva<;ao, chama-se memoria'; ao desejo: "o afeto
/
177
17.8
DELEUZE E FOUCAULT
de si por si mesmo e 0 prazer, ou melhor, 0 desejo?"; e ate mesmo a subjetiva~ao, o que faz do sujeito uma derivada do fora.' 6
Mas a analise de Foucault e hist6rica, mesmo que nao seja de historiador. Dai, mesmo reconhecendo a continuidade dessa problematica em toda
sua obra, Deleuze privilegia 0 uso dos prazeres por descobrir o nascimento
dessa dimensao de dentro na Grecia classica. A novidade dos gregos foi ter
realizado uma dupla separa~ao com rela~ao ao poder e ao saber. "Por um
!ado, existe uma 'rela~ao consigo mesmo' que deriva da rela~ao com os outros; por outro !ado, ha uma 'constitui~ao de si mesmo' que se deriva do
c6digo moral considerado como regra de saber. Eprecise entender essa derivada, essa separa~ao no sentido de que a re!aqiio consigo mesmo adquire
independencia:'47 0 que os gregos fizeram foi "vergar o de-fora em exerdcios praticos", possibilitando que a rela~ao com os outros fosse reduplicada
por uma relaqao consigo, o governo dos outros porum governo de si. Eisso
que significa a constitui~ao do sujeito como uma derivada do saber e do po
der, mas, ao mesmo tempo, independente deles: "Em vez de ignorar a interioridade, a individualidade, a subjetividade, eles inventaram o sujeito, mas
como uma derivada, o produto de uma 'subjetivaqao'."*
Ora, o livro de Foucault sobre os gregos faz parte de seu projeto de uma
hist6ria da sexualidade. Everdade que na introdu~ao de 0 uso dos prazeres
Foucault afirma que "sexualidade" e uma no~ao recente- o termo sexualidade, inclusive, s6 tendo aparecido no inicio do seculo XIX-, define seu
projeto como sendo o de ver como, nas sociedades ocidentais modernas, se
constituiu uma experiencia da sexualidade (uma tentativa de "compreender
como o individuo moderno podia fazer a experiencia de si mesmo como
sujeito de uma sexualidade") e declara que se teria bastante dificuldade em
encontrar nos gregos uma noqao semelhante. Em vez de sexualiade, partanto, quando se refere a Gnkia ele fala de atividades e pr,kas sexuais.
Apesar dessa ressalva, Deleuze se interessa em es!:'bele~conexao entre
a relaqao consigo e a sexualidade, entendida evidememente num sentido
mais amplo do que o assinalado, e o faz apresentando a tese de Foucault
como sendo que a sexualidade na Grecia e o que efetua a rela~ao consigo. A
* F, p.108; cf. p.109. Mil platOs jci havia analisado a problem<itica da subjetivas:ao como regime de signo passional, p6s-significante. 0 texto nao se refere a Foucault, mas considera,
a partir de Klossowski, a linha de subjetividade como ocupada pelo duplo (cf. "Sur quelques regimes de signes", in MP, p.149-69). Em Foucault, o duplo aparece como uma "interiorizas;ao do fora", uma "reduplica<;iio do Outro", uma "repeti<;3.o do diferente" (p.105),
urn "franzimento do fora" (p.1o6).
importancia dessa interpreta~ao esta no fato de retomar o modele da rela~ao virtual-atual tao importante e difundida em sua filosofia, que tambem
comanda, como vimos, a rela~ao poder-saber.tDo mesmo modo que as re]a~i5es de poder s6 se afirmam efetuando-se, a rela~ao consigo, que os verga,
s6 se estabelece efetuando-se. E e na sexualidade que ela se estabelece ou se
efetua."1i.E Deleuze chega mesmo a explicitar a razao dessa efetua~ao, atualiza~ao o~ encarna~ao: "E que a sexualidade, tal como e vivida pelos gregos,
encarna na femea o elemento receptive da for~a e no macho o elemento
ativo ou espont&neo:'48
Deleuze nao se interes sa em refazer ou aprofundar as analises hist6ricas
de Foucault no que diz respeito aos dois primeiros eixos, e menos ainda com
rela<;ao a esse terceiro; extrai alguns exemplos de analises hist6ricas para
ilustrar a concepqao do exercicio do pensamento que, segundo ele, norteia
seus estudos e, assim, salientar que Foucault e fil6sofo. Mas que tipo de filesofia e a sua? Querendo diferencia-la cla fenomenologia, ele dira que se trata
de uma epistemologia, o que rigorosamente nao e correto, porque Foucault
utilizou o termo "arqueologia" justamente para distinguir seu procedimento
do metoda dos epistem6logos.'9 Acredito, no entanto, que Deleuze aceitaria
essa pondera~ao. E isso principalmente porque o que !he interessa antes de
tudo e caracterizar a filosofia de Foucault como uma ontologia.
Ai esta a importancia da tematica da dobra. Eatraves dela que Deleuze
relaciona Foucault com Heidegger e Merleau-Ponty, fil6sofos que teriam
ultrapassado a intencionalidade atraves da dobra do ser, ou a fenomenolo'
gia atraves de uma ontologia. Ele cheg~smo
a apresentar a problematlca da dobra em Merleau-Ponty do mesmo modo que hav1a fe1to quando
a expos em Foucault: "Um De-fora, mais longinquo que qualquer exterior,
'se dobra', 'se redobra', 'se reduplica' de um De-dentro, mais profunda que
qualquer interior, tornando passive! a rela~ao derivada do interior com o
exterior. E mesmo essa tor~ao que define a 'Carne', para alem do corpo proprio e de seus objetos."so Analisando o procedimento da dobra em Foucault,
explicitando sua inspira~ao em Heidegger e Merleau-Ponty, Deleuze esta saIientando seu alcance ontol6gico. Mas, ao mesmo tempo, esta pretendendo
mostrar que essa inspira~ao nao destr6i a singularidade ou a originalidade
de sua concep~ao. E com esse objetivo ele)ematiza nao s6 a dobra ontol6gica propria desse terceiro eixo, como ;jmbem as duas primeiras dimens6es que ele tambem caracteriza como pntol6gicas, qualificando essas tres
dimens6es como tres "ontologias hist6licas", segundo uma expressao de
179
180
DE LEUZE E FOUCAULT
' Cf. Dreyfus e Rabinow, Michel Foucault. Un parcours philosophique, Gallimard, p.332. No
182
DELEUZE E FOUCAULT
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Em primeiro Iugar, o conceito de saber. Vimos, sob esse aspecto, uma das
grandes originalidades da leitura deleuziana de Foucault: a defini~ao do
saber como duas formas heterogeneas, disjuntivas, tendo uma o primado
sabre a outra. Reflitamos antes de tudo sabre a questao da existencia, no
saber, de dois elementos, duas formas.
Utilizando a linguagem de A arqueologia do saber, Deleuze considera o
saber como um composto de duas formas: "forma~ao discursiva" e "forma~ao nao discursiva". Nesse livro, efetivamente, Fou~;:;i! ~~ refere as rela~ci~~
entre enunciados e acontecimentos de ordem totalmente diferente ( tecnica,
econ6mica, social, politica), assinalando que uma das tarefas da arqueologia
e fazer aparecerem rela~oes entre forma~oes discursivas e dominies nao discursivos (institui~oes, acontecimentos politicos, priticas e processes econ6micos), demonstrando seu interesse pela fi.In~aoques> discurso est\lqado
exerce em um campo de pnitlcas nao discursivas. * Assi,;.;,'embo~~-~s referencias a elas sejam poucas, as praticas nao discursivas sao valorizadas nesse
livro. 0 importante, porem, para 0 problema que estamos investigando, e
que em nenhum momenta e]e diz que as praticas nao discursivas sao um
elemento do saber. 0 que define o saber como objeto da arqueologia e o
enunciado e a forma~ao discursiva.
Poder-se-a, no entanto, perguntar: mesmo que o nao discursive, no
sentido indicado do econ6mico, social e politico, nao apare~a propriamente
como elemento do saber, nao seria correto afirmar, utilizando um outro par
conceitual proposto por Deleuze, que o saber e definido nesse livro como
um composto de ver e dizer? Nao acredito! E a esse respeito ha uma passagem hem elucidativa no final, quando, ao se interrogar sabre a possibilidade
de outras analises arqueol6gicas que nao ada "episteme" ou dos saberes que
atingiram o "limiar de epistemologiza~ao", Foucault, alem da dire~ao da
* Cf. L'Archologie du savoir, Gallin1ard, p.41, go, 212; cf. tambern sobre o assunto, p.6g, 72,
136, 158, 205, 233. A expressao "forma<;ao nao discursiva" nao aparece em nenhum livro
de Foucault.
DElEUZE E FOUCAULT
e diferencia-lo da ciencia, objeto da epistemologia. Por essas razoes, nao encentro em Foucault a defini<;il.o de saber que Deleuze !he atribui, como urn
composto de duas formas de natureza diferente. ,
Aceitemos, por hip6tese, que ela existe. Que dizer, entao, das teses que
afirmam a pressuposi<;ao redproca eo primado nesses do is livros em que Foucault constr6i sua analise a partir de dois pares conceituais? A meu ver, Hist6ria da loucura apresenta efetivamente uma disjunc;ao entre a teoria medica e
o sistema de exclusao, ou entre conhecimento e percep<;iio, na epoca classica.
A tese de Foucault de que OS seculos XVII e XVIII conhecem a loucura, mas
percebem o louco, pode ser interpretada neste sentido. Mas essa disjun<;iio
nao mais parece existir a partir do seculo XIX, com o nascimento da psiquiatria, memento em que ha conjun<;il.o dessas duas vertentes divergentes. Nao
nego, portanto, q4e possa haver disjun<;iio; nego que sempre haja.
E a nao existencia de urn principia geral de disjun<;iio como caracteristica da rela<;iio entre os elementos e ainda mais patente em Nascimento da
clinica, que critica a interpreta<;iio da medicina moderna como tendo afirmado o visivel contra o pensamento e defende que se trata de uma transformac;ao hist6rica na relac;ao entre o visivel e a linguagem. 0 que evidencia
nesse memento a analise arqueol6gica e uma ruptura entre as medicinas
classica e moderna detectada em dois niveis correlates: por urn !ado, a transforma<;iio de urn espac;o de visibilidade taxonornico em urn espac;o corp6reo,
de urn olhar de superficie em urn olhar de profundidade- a espacializac;ao
da medicina no organismo -, e, por outro !ado, a transformac;ao daJinguar::-~
gem que !he e intrinsecamente ligada. Portanto, Foucault nao $poe propriamente espacializac;ao e verbalizac;ao, como se nota, por exemplo, pelas
varias formulas atraves das quais ele define, nesse livro, ()_.Q];lteto..da-ar~uoo
logia;_ "essa regiao em que as palavras~ cojsas ainda nao estii~E"_faclas",
"a articulac;ao da linguagem medica com seu objeto", "a estrutura falada do
percebido", "a espacializac;ao e a verbaliza<;iio fundamentais do patol6gico",
0 "olhar loquaz" do medico.''
E a tese do primado do dizer sobre over? Nascimento da clinica afirma
efetivamente a existencia de urn primado ou urn privilegio da linguagem
com relac;ao ao olhar, na epoca ci<issica, no sentido em que, nessa epoca, a
doenc;a constituia urn espac;o racional, urn espac;o nosografico situado no
nivel da representac;ao, o que tornava a linguagem medica necessariamente
anterior apercep<;ao do corpo do doente. No entanto, com a anatomoclinica
moderna, o primado claramente se inverte. Passa a haver, nesse momenta,
185
186
DELEUZE E FOUCAULT
primado do segundo sabre 0 primeiro, responde mais as exigencias da filasofia de Deleuze do que as de Foucault. Enquanto Foucault utiliza algumas
vezes os conceitos de ver e dizer ao realizar algumas de suas analises, ora
afirmando sua disjun~ao, ora o primado de um sabre o outro, Deleuze os
transforma em elementos formais do saber e formula suas caracteristicas de
modo a que o pensamento da diferen~a, tal como ele o concebe, seja encontrado na filosofia de Foucault.
Mas esse procedimento, que diz respeito ao modo de funcionamento
geral da filosofia de Deleuze, podera ser melhor compreendido depois de
uma reflexao sabre o segundo ponto importante de sua interpreta~ao: o
conceito de poder.
'
Poder, saber, instituic;ao
Uma das grandes novidades das anilises que Foucault realiza em Vigiar e
punir e A vontade de saber e considerar o saber como uma pe~a de um dispositive politico, ou que saber e poder se implicam mutuamente: todo ponto
de exercicio de poder e um Iugar de forma~ao de saber e, reciprocamente,
todo saber assegura o exercicio de um poder. No livro anterior, A arqueologia do saber, ele estabelece uma rela~ao entre enunciados e acontecimentos
"de ordem inteiramente diferente", que sao as praticas nao discursivas tecni.>;as, econi\micas, sociais e politicas, dando qua~;se;;pre a institui~ao comoexemplo dessas praticas. Alem diSso, s6 se ree..s, nesse livro, uma {mica vez
ao poder, e apenas para sugerir que o saber tem rela~ao com o poder ou e
objeto de uma !uta politica."
Havera diferen~a entre poder e institui~ao? Considerando o saber como
um composto de formas atuais e o poder como informe e virtuaUDeleuze
interpreta, em Foucault, a "pratica nao discursiva" de A arqueologia do saber
como uma forma de conteucJS ou um elemento do saber e, portanto, como
de uma natureza diferente do poder.Qra, essa afirma~ao jamais e encontrada em A arqueologia do sabe':j', como ja assinalei, se ela aparece em Foucault e antes em Mil platos, esta ausente dos dais artigos anteriores sabre
Foucault. Ate mesmo "~ ", que utiliza os termos "forma de
expressao" e "forma de conteudo", nao considera ainda este ultimo como
saber, mas como "percep~ao". lsso ja vimos. 0 que pretendo agora mostrar e como essa inflexao, esclarecedora do projeto deleuziano em Foucault,
187
11
DELEUZE E FOUCAULT
ferente~Mas por que distingui-los por uma diferen1=a de natureza que faz
da institui1=ao urn elemento do saber? Nao sera por que em Vigiar e punir a
diferen,a e do tipo geral-particular, comum-espedfico, difereno;:a que faz da
disciplina urn elemento, uma propriedade ou uma tecnica co mum? Ao fazer
essas perguntas, penso em afirmao;:oes como essas de Foucault: "Nao se trata
de fazer aqui a hist6ria das diferentes instituio;:oes disciplinares no que elas
podem ter de singulac Mas apenas de demarcar por uma ~rie de exemplos
algumas das tecnicas essenciais que se generalizam mais facilmente de umas
as outras";lQ Panopticon "eo diagrama de urn mecanismo de poder reduzido
a sua forma ideal; seu funcionamento, abstraido de todo obstaculo, resistencia ou choque, pode ser representado como urn puro sistema arquitetonico
e 6tico: e de fato uma figura de tecnologia politica que se pode e se deve
desligar de qualquer uso espedfico, Ele e polivalente em suas aplicao;:oes,'~
E nao estani a mesma ideia presente quando, detectando nos rriecanismos
disciplinares uma tendencia a se desinstitucionalizar, Foucault a estabelece
como urn deslocamento da disciplina-bloqueio, ou a instituio;:ao fechada,
para a disciplina-mecanismo?
Ao explicar o Panopticon pela f6rmula "ver sem ser visto", _Foucault esta
justamente salientando a importancia da vigilanciaJl\~<ir_guica como urn
"instrumento" do poder disciplinar ou de urn "dispDsiililo"-q'lie age pelo
efeito de uma visibilidade geral ou coage pelo jogo do olhar. E, quando ele
acrescenta que "uma arte obscura da luz e do visivel preparou em surdina
um novo saber sabre o homem", esta se referindo a relao;:ao 'direta, sem intermediario, entre saber e podec 6' Alem disso, a indicao;:ao de' que a instituio;:ao especifica ou singulariza o exerdcio do poder aparece quando ele
assinala a importancia de um outro instrumento ou procedimento disciplinar- o exame- para a constituio;:ao do saber dando o exemplo de instituio;:oes: o hospital como aparelho de examinar permitiu o desbloqueio epistemol6gico da medicina moderna; a escola examinat6ria, o nascimento da
pedagogia "cientifica"; a prisao, a formao;:ao de um "saber clinico sabre os
condenados". 63
t.!:!iio ha duvida de que para Foucault o poder e causa imanente ou e
constituinte do sabe!)Essa ideia, ressaltada na interpretao;:ao de Deleuze,
e enunciada em Vigiar e punir e A vontade de saber. A dificuldade, alem das
que ja assinalei, referentes a Vigiar e punir esta em considera-la como uma
dimensao presente em toda a obra de Foucault. Em As palavras e as coisas,
par exemplo. Vimos que o "anexo" de Foucault, pressupondo definio;:ao do
e.
poder como relao;:ao de foro;:as, tern par objetivo demonstrar que as relao;:oes
entre dois tipos de foro;:as informes constituem, em diferentes epocas, o saber como form<;j Nao consigo, porem, encontrar a problematica das foro;:as
em As palavras e as coisas, nem na categoria de infinito, na epoca classica,
nem na de finitude, na modernidade. Alem disso, mesmo se o problema das
foro;:as estivesse efetivamente presente nesse livro, para que a hip6tese geral
de Deleuze se confirmasse nessa interpretao;:ao seria necessaria mostrar que
as foro;:as constituem a disjuno;:ao das formas de conteudo e de expressao, o
que nao acontece. E verdade que seus conceitos-chave sao "foro;:as no homem", "foro;:as de fora", "dobra" ou foro;:as de finitude, "desdobre" ou for1=as
de elevao;:ao ao infinito, em detrimento do conceito de poder - como vimas, colocado sob suspeita par Deleuze, e ao qual ele nao se refere explicitamente nessas analises. De todo modo, interpretar o a priori hist6rico de
As palavras e as coisas como rela<;:6es de foro;:as e dar ao termo "foro;:a" urn
sentido tao diferente do que foi dado par Deleuze no estudo sabre Vigiar e
punir que, quando confrontadas, as duas analises podem confundir mais do
que esclarecer.
E a dificuldade que sinto em compreender a concepo;:ao de Foucault no
que diz respeito a relao;:ao do poder e do saber a partir da leitura de Deleuze
s6 tende a aumentar quando, referindo-se a A arqueologia do saber, este
afirma que o enunciado AZERT, do teclado das maquinas de escrever francesas, "atualiza ou efetua relao;:oes de for9as, tais como elas existem em frances
entre as letras e os dedos segundo ordens de frequencia e de vizinhano;:a".64
E se ele faz uma afirmao;:ao como essa, que jamais li em Foucault, e parque parte do principia, que me parece bem diferen_te_~()S fo_rl11\ll':'~?,;pelo
analista do poder, d~- que-~c;:oesaelO~~as, tais c~mo Foucault as
compreende,-iliio dizem respeito apenas aos homens, mas aos elementos,
as letras do alfabeto em suas tiragens ao acaso ou em suas atrao;:oes, em suas
frequencias de agrupamento segundo uma lingua"!)'
0 personagem de uma
encena~ao
189
~90
DELEUZE E FOUCAULT
para avaliar a justeza da interpretao;ao de Deleuze. Sua postura perante a hist6ria da filosofia, ao esclarecer que a repetio;ao de um pensamento deve afirmar sua difereno;a, e nao buscar sua identidade, ou criar um duplo que comporte 0 maximo de modificao;ao do texto comentado, lira todo 0 interesse
desse tipo de tentativa, como tenho dito Vi\rias vezes. Desse modo, meu objetivo ao apresentar minha leitura do texto de Foucault nao e propriamente
criticar, mas dar conta do tipo de toro;ao que produz esse duplo de Foucault,
para examinar de outra perspectiva o modo de funcionamento da filosofia
de Deleuze. Se, algumas vezes, ha dificuldade, por parte de quem tambem
conhece o pensamento de Foucault, de encontrar em seus textos a interpretao;ao de De leuze, e porque o objetivo deste e me nos esclarecer a filosofia de
Foucault que integra-la a seu pr6prio projeto filos6fico. No teatro filos6fico
deleuziano, Foucault e, entre outros, personagem de uma encenao;ao.
PARTE
Deleuze e a literatura
Tenho privilegiado, na interpreta~ao do pensamento de Deleuze, sua leitura dos fil6sofos. Entre outras raziies porque o considero, antes de tudo,
um fil6sofo que encontrou no pr6prio discurso filos6fico os conceitos que
!he possibilitaram estruturar sua filosofia como um pensamento diferencial.
Mas esse privilegio que descortino em suas analises dos fil6sofos quando se
trata- como e meu objetivo - de explicitar 0 modo de funcionamento de
seu pensamento nao exclui os importantes estudos que fez sobre dominies
exteriores a filosofia. Neste sentido, situei, na introdu9ao, a rela9ao que
e possivel estabelecer no discurso deleuziano entre filosofia, ciencia, arte e
literatura. Alem disso, em alguns mementos, sobretudo quando analisei sistematicamente sua doutrina das faculdades, utilizei estudos seus que tratam
de saberes nao filos6ficos para situar ou esclarecer algumas de suas posi96es
filos6ficas.
Essa rela9ao entre saberes sempre foi intensa no pensamento de Deleuze. Nao e lateral ou circunstancial, pois, como ja esclareci, o objetivo
principal de sua filosofia e elucidar o que seja pensar, e o pensamento nao
e exclusividade da filosofia: e uma propriedade de qualquer tipo de saber.
Vendo na filosofia o dominic do conceito, Deleuze elabora sua pr6pria filesofia levando em considera9ao ou incorporando conceitos provenientes de
outras filosofias que ele situa no espa~o da diferen9a, mas tambem criando
conceitos a partir do que foi pensado, com seus pr6prios elementos, em outros dominios. Assim, ao considerar as ciencias, a literatura e as artes, De-
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OELEUZE E A UTERATURA
Essa e uma das hip6teses deste livro. Para refor9a-la, e necessaria, porem, dar mais urn passe e mostrar como, efetivamente, a resson3.ncia pro-
duzida por Deleuze entre a filosofia e o nao filosofico consiste em transformar em conceitos o exerdcio niio conceitual de pensamento existente
nesses outros dominios. Farei isso apresentando a rela9ao de sua filosofia
com a literatura, a pintura, o cinema. Come~arei com a literatura. Primeiro,
0 titulo da obra ja indica a importancia do conceito de signa para a interpreta<;ao deleuziana, sugerindo uma primeira caracteriza<;ao de Em busca
do tempo perdido como um sistema de signos. Os signos constituem tanto a
unidade quanta a pluralidade da Recherche. Unidade no sentido em que todos os "dominios", "campos", "mundos" apresentados ou criados por Proust
formam sistemas de signos emitidos par pessoas, por objetos, por materias.
Tudo e signa. Mas, por outro !ado, OS signos sao heterogeneos. 0 sistema
que COnstitui a obra e pJuralista no sentido em que OS signos nao sao do
mesmo tipo, do mesmo genera: nao tem a mesma rela<;ao com a materia em
que estao inscritos, nao sao emitidos do mesmo modo, nao tem o mesmo
efeito sabre o interprete, nao tem a mesma rela<;ao com o sentido, com as
faculdades que os interpretam, com as estruturas temporais neles implicadas, com a essencia.
195
196
DELEUZE E A LITERATURA
elabora sua visao da arte e da rela~ao da arte com o mundo social, o amor
e as qualidades sensiveis, o que permitira a Deleuze considerar o mundo
proustiano dos signos como profundamente hierarquizado, onde todos eles
convergem para os signos da arte e sao por eles elucidados.
Os signos e o pensamento
Por que essa importancia dada aos signos e, como acabo de observar, aos
signos da arte, na estrutura da Recherche? A razao e a mesma de todos OS
estudos de Deleuze: o signo - ou, a partir de Diferen~a e repeti~ao, a intensidade- e o que for~a o pensamento em seu exercicio involuntario e
inconsciente, isto e, transcendental. S6 se pensa sob pressao. Na g~nese
do ato de pensar esta a viol~ncia dos signos sabre o pensamento. A tese
central do livro a respeito da rela~ao entre signo e pensamento e enunciada
claramente na "conclusao" da primeira parte: e 0 encontro contingente
com o que for~a a pensar que produz a necessidade de urn ato de pensamento; fazendo viol~ncia ao pensamento, os signos for~am a pensar ou a
buscar 0 sentido ou a ess~ncia: "Quem procura a verdade e 0 ciumento que
descobre urn signo mentiroso no rosto da criatura amada; eo homem sensivel quando encontra a violencia de uma impressao; e o leitor, o ouvinte,
quando a obra de arte emite signos, o que o for~ara talvez a criar, como o
apelo do genio a outros genios."s
A rela~ao entre signo e sentido e fundamental na analise de Deleuze.
Ela esta na base da hip6tese que organiza sua interpreta~ao, segundo a qual
a Recherche e urn aprendizado, o relata de uma forma,ao, a hist6ria da descoberta da voca~ao de urn homem de letras. Ora, esse aprendizado e urn
aprendizado dos signos: ''Aprender diz respeito essencialmente aos signos
... A voca1=ao e sempre uma predestina1=ao com rela~ao a signos:'' Mas, se
o objeto do aprendizado sao os signos, seu objetivo e a interpreta1=ao ou a
boa interpreta1=ao. Aprender e interpretar e interpretar e explicar ou explicitar o signo enunciando o sentido, ou a essencia, que nele estava oculto
ou latente. Deste modo, a correla~ao signo-sentido significa que o signo e
o enrolamento, o envolvimento, a implical'ao do sentido, e o sentido e o
desenrolamento, o desenvolvimento, a explica1=ao do signo. 0 sentido, ou a
essencia, vive enrolado no signo, no que nos for,a a pensar, e s6 e pensado
quando somos coagidos ou for~ados.
197
19&
DE LEUZE E A LITERATURA
inteligente. Mas, achando, logo em seguida, que essa entona9ao era apenas
uma consequencia da inteligencia e do trabalho, decepciona-se: "Tao engenhosa era a entona9ao, de urn significado e inten9ao tao definidos, que
parecia ter existencia propria e que qualquer artista inteligente a poderia
adquirir." 8 0 que faz ele entao? Recorre a uma interpreta9ao subjetivista,
sugerida por Bergotte, segundo a qual urn gesto da Berma seria belo porque
evocaria o gesto de uma estatueta arcaica em que nem ela nem o proprio
Racine teriam pensado.
Na interpreta9ao nao se trata, propriamente, nem de sujeito nem de objeto, nem de signos objetivos nem de sentidos subjetivos. 0 que, por exemplo, uma interpreta9ao correta ensinara ao narrador e que "nem a Berma
nem Fedra sao pessoas designaveis, tampouco elementos de associa9ao. Fedra e urn pape! a ser representado e a Berma se integra nesse papel", isto e,
em urn mundo, em urn meio espiritual povoado de essencias.
A no9aO de essencia e fundamental na analise que Deleuze faz de
Proust, pois e atraves de sua descoberta que o interprete se torna capaz de
ultrapassar tanto as propriedades do objeto quanta os estados da subjetividade, equacionando de maneira correta a rela9ao entre signa e sentido. Se o
signa implica o sentido e o sentido explica o signa, essa correla9ao se torna
mais clara com a sugestao de Deleuze de que a boa ou a verdadeira interpreta9ao tern na essencia aquila que constitui o signa como irredutivel ao
objeto que o emite, e o sentido como irredutivel ao sujeito que o apreende,
decifra e interpreta. E permite compreender nao so por que ha na Recherche uma hierarquia dos signos, como tambem por que a perfeita unidade
ou adequa9ao entre signa e sentido que caracteriza a boa interpreta9ao so
existe na obra de arte. Eo que mostrarei a seguir.
Signa e essencia
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2E:l0
DE LEUZE E A LITERATURA
amorosos e mundanos, adquire uma forma cada vez mais geral e material,
uma generalidade e uma materialidade cada vez maiores, na razao inversa
da boa interpreta~ao.
Qual e o sentido da mundanidade? E a vacuidade. 0 que o narrador
aprendeu em rela~ao a vida social foi que os signos mundanos sao vazios.
"0 signo mundano", diz Deleuze, "surge como substitute de uma a~ao ou
de um pensamento, ocupando-lhe o Iugar. Trata-se, portanto, de um signo
que nao remete a nenhuma outra coisa, significa~ao transcendente ou conteudo ideal, mas que usurpou o suposto valor de seu sentido. Por essa razao a mundanidade, julgada do ponto de vista das a~6es, e decepcionante
e cruel e, do ponto de vista do pensamento, estupida. Nao se pensa, nao se
age, mas emitem-se signos.''9 E Deleuze da, em seguida, urn 6timo exemplo
para ilustrar esse vazio de sentido caracteristico dos signos mundanos: uma
reuniao em casa da sra. Verdurin, onde nada de engra~ado e realmente dito,
e no fundo ninguem ri, mas Cottard faz sinal ou emite o signo de que est<\
dizendo algo engra~ado, a sra. Verdurin faz sinal de que ri e este signo e tao
perfeitamente emitido que 0 Sr. Verdurin, para nao parecer inferior, procura
uma mimica apropriada. Dai por que os signos mundanos provocam no interprete uma grande excita~ao nervosa.
Mas isso nao impede que o born interprete- o artista- detecte, como
essencia desses signos, as leis que regem as a~6es e os pensamentos vazios
dos personagens sociais, ainda que eles sejam tolos ou bobos. Proust diz isso
explicitamente: "Os seres mais estupidos manifestam nos gestos, nas palavras, nos sentimentos involuntariamente expresses leis que nao percebem,
leis gerais do grupo, ou num ultimo nivel de contingencia e de generalidade, devido a materialidade desses signos ou sua vacuidade de sentido. As
ess6ncias, neste caso, sao as leis gerais do vazio.
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202
i;
j!l
II"i
l!
DELEUZE E A UTERATURA
roaterialidade que impedem a perfeita revela~ao da essencia ou a boa interpreta<;ao. E esta s6 a arte pode dar.
"Os signos mundanos, os signos amorosos e ate os signos sensiveis sao
incapazes de nos revelar a essencia: eles nos aproximam dela, mas sempre
caimos na armadilha do objeto, nas malhas da subjetividade. E apenas no
nivel da arte que as essncias sao reveladas." 18 Se a arte revela a essncia,
revela~ao que nao se da nos outros signos, e porque, no caso da arte, a es-
signo-sentido.
Em outros terrnos, essas tres ideias significam que s6 a arte revela a
essencia como "diferen<;a ultima e absoluta''.'" E efetivamente, em 0 tempo
redescoberto, Proust define o estilo como revela<;ao da diferen<;a. 0 estilo
"e a revela<;ao, que seria impassive] por meios diretos e conscientes, da diferen<;a qualitativa que ha no modo como nos aparece o mundo, diferen<;a
que, se nao houvesse a arte, permaneceria o segredo de cada urn"." Na interpreta<;ao deleuziana, essa diferen<;a qualitativa nao pode ser reduzida a uma
diferen<;a empirica: e uma diferen<;a interna absoluta. Segundo Proust - e
evidentemente de modo bern diferente de Deleuze, diferen<;a que ele nao
ressalta em sua leitura -, s6 a arte cria urn verdadeiro pensamento diferencial. Por isso, o resultado da busca da verdade, ou do aprendizado narrado
pela Recherche, e a revela<;ao da verdade, do sentido ou da essencia dos signos artisticos. Mas a interpreta~ao deleuziana, tal como a estou expondo em
suas grandes linhas, ficaria incompleta sem uma ultima ideia importante: a
revela~ao final e a redescoberta do tempo. Vejamos o que isso significa."
203
204
DE LEUZE E A LITERATURA
Signos e tempo
Ao ler a Recherche como o relata de um aprendizado, ou de uma forma~ao,
em que aprender e interpretar signos, decifrar, e sitmi-la por isso como estando mais voltada para o futuro que para o passado, Deleuze esta valorizando 0 fa to de que a busca da verdade e temporal, ou indicando que 0 tempo
e uma condi~ao necessaria para a interpreta~ao. De urn modo geral, signo e
sentido estao sempre em rela~ao como tempo. A rela~ao entre signo e tempo
e tao profunda que, a cada tipo ou a cada especie de signa, Deleuze faz corresponder prioritariamente, privilegiadamente, uma "estrutura", uma "linha"
do tempo. Trata-se, portanto, de quatro estruturas temporais subordinadas a
duas categorias mais gerais: o tempo perdido eo tempo redescoberto.
A primeira estrutura, que corresponde basicamente aos signos mundanos, e 0 tempo perdido no sentido de tempo que passa; e 0 tempo que 0
narrador perde no vazio da vida social, da vida mundana, em vez de aproveita-lo para trabalhar em sua literatura, por exemplo, mas que, por outro !ado,
e uma etapa de seu aprendizado dos signos, como ele descobrira depois,
quando - ao construir sua obra - revelar a essencia, descer na hierarquia
dos signos e conhecer a verdade caracteristica de cada urn. Ora, a verdade
descoberta nesse tempo que se perde, em razao da vacuidade dos signos
mundanos, e a passagem ou 0 efeito do tempo: e a altera~ao e a mudan~a,
como compreende o narrador em sua ultima festa em casa do principe de
Guermantes, no final da Recherche.
A segunda estrutura temporal corresponde aos signos amorosos. 0
amor, como a mundanidade, tambem faz perder tempo. Mas a experiencia
do tempo perdido que ele possibilita e mais radical do que a que se tem na
vida social. Dai o terrivel sofrimento que ele causa. Pois os signos amorosos,
em raziio de o cilime ser a verdade do amor, implicam o tempo perdido no
estado mais puro, no sentido em que ja antecipam sua altera~ao e sua anula~iio, ja preparam seu proprio desaparecimento, figurando a ruptura, o fim
do amor.
A terceira estrutura, correspondente aos signos sensiveis, e o tempo
redescoberto; mas tempo redescoberto no sentido de um tempo que redescobre um "centro de envolvimento" no cerne de um tempo ja "desdobrado",
ja "desenvolvido", tempo que e redescoberto no amago do tempo perdido
como uma imagem da eternidade. E justamente essa rela~ao com o tempo
perdido, ainda existente no caso da experiencia das qualidades sensiveis,
que explica a ambivalencia dos signos sensiveis. Pois, apesar da sua plenitude, a alegria que eles proporcionam, chegando a ser uma antecipa~ao do
tempo redescoberto, pode transformar-se em sensa~ao de perda, como no
caso da memoria involuntaria despertada pela botina, que faz Marcel finalmente sentir a morte da avo e chorar como se ela tivesse acontecido naquele
momenta.
Por ultimo, a quarta estrutura temporal corresponde aos signos artisticos. 0 grande interesse ou a grande importancia da arte, para uma teoria
do exercicio do pensamento, e que so ela possibili ta a descoberta do tempo
como "tempo puro", "tempo original absolute", "tempo primordial" identico
a eternidade, pois a eternidade, segundo a linguagem neoplat6nica utilizada por Deleuze, e o "estado complicado do tempo". E esse tempo - que
o pensamento artistico redescobre ao revelar a essencia - que reline perfeitamente, isto e, sem materialidade ou generalidade, o signo e o sentido.
"0 que a arte nos faz descobrir e o tempo tal como se encontra enrolado na
essencia, tal como nasce no mundo envolvido da essencia, identico a eternidade. 0 extratemporal de Proust e esse tempo no estado de nascimento e
o sujeito-artista que o redescobre. Por essa razao, podemos dizer com todo
o rigor que so a obra de arte nos faz redescobrir o tempo: a obra de arte eo
'unico meio de redescobrir o tempo'. Ela porta os signos mais importantes,
cujo sentido esta contido numa complica~ao primordial, verdadeira eternidade, tempo original absolute.""' Deste modo, se os signos plenos, afirmativos e alegres da arte sao superiores aos signos mundanos, aos amorosos e ate
mesmo aos sensiveis, e porque sao o resultado de um aprendizado temporal
que converge para a arte, transforma o tempo perdido em tempo redescoberto e possibilita conferir a cada tipo de signo a verdade que !he e propria.
205
Os procedimentos de linguagem
Deleuze utiliza a literatura para pensar conceitos importantes de sua filosofia: o devir, a diferen9a, o limite, a intensidade, as for9as ... Esses e outros
conceitos suscitados pela leitura de seus principais intercessores literarios
podem ser compreendidos a partir do privilegio de duas caracteristicas basicas de sua maneira bastante singular de pensar a literatura. A primeira se
refere a linguagem literaria.
Um dos interesses de Deleuze quando estuda a literatura e definir como
se estrutura a linguagem de um tipo de literatura que, privilegiando uma
referenda a Nietzsche, pode ser chamada de extemporii.nea. Assim como,
em se tratando do pensamento em geral, nao ha valor em copiar 0 que e
considerado classico, e d.none ou esta na moda, isto e, se 0 novo e 0 (mico
criteria, tambem o valor da linguagem literaria- que tern como material as
palavras e suas rela96es- diz respeito ao novo, ao inesperado, a muta9a0, a
inven9ao. Se os materiais espedficos do escritor sao as palavras e a sintaxe,
o que conta sao os aspectos sintaticos, a rela9ao entre as palavras, o ritmo
da lingua mais do que OS aspectos lexicos. Pois 0 importante nao e a cria9aO
de neoJogismos- e a cria9a0 de uma nova sintaxe, sao OS efeitos de sintaxe,
a sintaxe inesperada da qual urn grande escritor e capaz: "Uma obra e uma
nova sintaxe, o que e muito mais importante do que o vocabulario, e cava
(creuse) uma lingua estrangeira na lingua."'* Criticando a tese linguistica de
que a lingua seja urn sistema homogeneo, composto de invariantes estruturais - ou de que tenha constantes - em nome da hip6tese de urn agenciamento heterogeneo em continuo desequilibrio, de urn sistema em varia9ao
continua- ou de que ela s6 tem variaveis -, Deleuze de fen de a existencia
de varias linguas numa mesma lingua, com as quais o escritor podera criar
** Cf. K, p.48; D, p.u; MP, p.124; CC, P7 A frase de Pro~st encontra~se em "Notes sur la
207
208
DE LEUZE E A LITERATURA
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* Cf. P, p.235, QPh?, p.105. Deleuze ve Bartleby como urn her6i do pragmatismo (cf. "Bartleby, ou Ia formule", in CC, p.no-4).
com que nao seja propriamente nem uma afirmac;ao nem uma negac;ao; e
nao sendo afirmativa nem negativa, por nao dizer sim ou nao, ela abole a
referenda, mantem o mundo a distancia. 0 advogado segue uma "16gica
dos pressupostos", segundo a qual o patrao espera ser obedecido. Ja Bartleby
cria uma singular "16gica da preferencia negativa'', que mina os pressupostos da linguagem: nao recusa nem aceita, recusa apenas um nao preferido.
E essa atitude expressa pela formula - que faz de Bartle by uma "passividade paciente" - cria uma zona de indiscernibilidade, de indeterminac;ao,
de indistinc;ao entre o preferivel e o nao preferido que introduz um vazio na
!inguagem e !he da um carater tr<\gico radical que a faz atingir o indizivel.
Se Bartleby e um resistente, um resistente passivo, e no sentido de trac;ar
uma linha de fuga que revela e poe em questao os mecanismos de dominac;ao da lingua atraves de uma lingua originaria inumana ou sobre-humana
que devasta as referencias, mina OS pressupostOS que permitem a linguagem
designar as coisas a partir de um sistema de convenc;oes logicas ou gramaticais, funcionando, neste sentido, como agramatical. Assim, Deleuze encontra em Melville uma nova 16gica, uma 16gica extrema e sem racionalidade,
um "irracionalismo superior" que nao quer explicar, esclarecer, justificar o
comportamento de seus personagens. E, generalizando, elogia os literatos
que, como Melville, levaram o romance para Ionge da razao e criaram personagens que, como Bartleby, vivem suspensos no nada, sobrevivem no vazio
e conservam o seu misterio ate o fim, desafiando a logica e a psicologia.
Outros modos de criar uma lingua estrangeira na lingua, diferentes do
que faz Melville com sua formula, dizem respeito a uma "gagueira'' da linguagem; nao uma gagueira da fala, que atinge palavras preexistentes, mas
uma gagueira da propria lingua que cria e relaciona novas palavras. Deleuze
encontra diversos procedimentos capazes de produzir essa gagueira criadora
em Beckett, Roussel, Bob Wilson, Carmela Bene, Gherasim Luca ... Em todos esses autores, o importante e o fato de eles criarem uma linguagem intensiva, afetiva, vibratil, caraeteristica de um sistema linguistico em continuo desequilibrio, em bifurcac;ao, com seus termos em varia~ao continua,
uma linguagem marcada por disjunc;oes inclusas, que afirma termos disjuntos atraves de sua distancia. Como no poema "Passionnement", do livro Le
chant de !a carpe, de Luca, poeta romeno que escreve em frances: "Passionne
nez passionnem jel je t'ai je t'aime je! je je jet je t'ai jetez! je t'aime passionnem
t'aime.""6 E se Deleuze valoriza essa caracteristica da linguagem literaria e
porque ela esta em continuidade com o privilegio que seu pensamento con-
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210
DELEUZE E A LITERATURA
0 de-fora da linguagem
Mas Deleuze nao reduz a literatura a linguagem. A linguagem nao e autossuficiente, nao tern um fim em si mesma. Nao ha intransitividade da linguagem literaria, como pensou, por exemplo, Foucault na epoca de As palavras
e as coisas. 30 Uma segunda caracteristica da literatura e que sua linguagem
sempre tern rela9ao com o de-fora, nao pode ser separada de um elemento
nao linguistico, mesmo se nao ha entre os dois uma rela~ao de representa~ao. Por mais indispensaveis que sejam os procedimentos de linguagem,
eles sao apenas a condi9ao, e devem se articular com um processo vital capaz de produzir vis6es e audi96es. Eis um texto importante a esse respeito:
"0 procedimento leva a linguagem a um limite, mas nem por isso o ultra-
211
212
DElEUZE E A LITERATURA
nos faz ver e ouvir o mundo, a vida em sua potencia, urn pensamento como
sensa~ao,
Literatura e devir
IS:
* 0 texto mais importante sobre o devir e "Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptivel", de Mil platos.
213
I
214
DE LEUZE E A LITERATURA
que trocam de posi~ao ... Po is, a medida que alguem se to rna, aquilo que
ele se torna muda tanto quanto ele. Os devires nao sao fenomenos de imita~ao, nem de assimila~ao, mas de dupla captura, de evolu9ao nao paralela,
nupcias entre dois reinos:' 38
Esse "encontro entre dois reinos", essa "desterritorializa9ao conjugada",
caracteristica do devir, pode ser notada, por exemplo, na interpreta9ao deleuziana do "devir nao humano" do Capitan Ahab no romance Moby Dick,
de Melville, e da Pentesileia, na pe9a de Kleist de mesmo nome.' 0 Capitao
Ahab nao imita a baleia branca, nao quer se assemelhar a ela; vive um devir-baleia irresistivel, e, diferentemente de Bartleby, que nao preferia nada,
demonstra uma prefer~ncia monstruosa, faz uma alian9a monstruosa com
Moby Dick, infringindo, desse modo, a lei dos baleeiros segundo a qual toda
baleia sadia e boa para ser ca~ada. ''Ahab nao imita a baleia, ele torna-se
Moby Dick, ele entra na zona de vizinhanc;a onde nao pode mais se distinguir de Moby Dick, e fere-se, ferindo-a. Moby Dick e a 'muralha proxima'
com a qual ele se confunde." 39 Pentesileia tambem nao imita: vive um devir-cadela ao se precipitar sobre Aquiles -que vive um devir-mulher- e
despeda9a-lo como se o estivesse beijando, e com essa fixa9ao em Aquiles,
que faz dele seu inimigo preferido, rompe com a lei das amazonas segundo a
qual todo guerreiro valoroso e bom para ser seu cativo e lhe dar uma filha. 40
Assim, para compreender a classifica9ao deleuziana dos devires, sobretudo 0 que significam devir minoritario e devir imperceptive!, e preciso partir da ideia de que express5es como "tornar-se crianc;a", "tornar-se mulher",
"tornar-se negro", "tornar-se indio", "tornar-se revolucioncirio", "tornar-se
)evanta a questao "0 que se torna quem escreve?", sua resposta e que, se
escrever
dois tipos de linguas, sao dois tratamentos possiveis de uma mesma lingua,
dois usos ou fun96es da lingua. Assim, menor diz respeito nao a uma outra
lingua ou a uma lingua de minoria, mas a um processo de minorac;ao, a invenc;ao de um uso menor de uma lingua maior: "servir-se do polilinguismo
em sua pr6pria lingua, fazer desta um uso menor ou intensivo"." Um dos
principais exemplos de Deleuze: Kafka, judeu tcheco, escrevendo em alemao, da ao alemao um tratamento criador de lingua menor, ao montar, em
fun~ao da situa~ao linguistica dos judeus de Praga, uma maquina de guerra
contra o alemao ou fazer passar sob o c6digo do alemao algo que nunca tinha sido ouvido. 4 ' Dar um tratamento menor, intensivo ou revolucionario a
lingua, fazer um uso menor da lingua, nao e misturar linguas, e introduzir
linhas de fuga criadoras em sua propria lingua. 0 uso menor e o uso criador,
um devir criador. Minorar uma lingua maior, extrair de sua propria lingua
uma lingua menor e faz~-la escapar do sistema dominante, do regime vigente, e desterritorializar a lingua maior, standard, padrao, modelo, oficial,
215
ii
I!
216
'I
DELEUZE E A LITERATURA
1r
Uteratura e clinica
Quando me referi aos personagens do Capitao Ahab, no livro de Melville, e
de Pentesileia, na pe~a de Kleist, foi certamente passive! perceber que eles
vivem urn devir potente demais para eles, que termina por demoli-los, aniquila-los. Para Deleu~e, ha, no devir, na desterritorializa<;ao ou na linha de
fuga, perigo de desrh'oronamento, de demoli~ao ou de uma evasao que nao
da certo, como na falta de saida do devir-animal ou no impasse da linha de
fuga nas novelas de Kafka. Acontece que, embora possa ser destruidora, ou
ate mesmo mortal, a questao importante e de como ela pode ser vivida. Deleuze- urn filosofo que sempre enalteceu a prudencia- e profundamente
consciente disso, como se pode ver pelo modo como privilegia, na rela~ao
da literatura com 0 de-fora, 0 tema da saude e a doen~a.
Trata-se da ideia de que a literatura e uma atividade clinica ou de que
0 artista, se ele e grande, e mais urn medico que urn doente: medico de si
proprio e do mundo, pois a doen<;a nao e urn procedimento, mas sua interrup~ao. Assim, mesmo quando Deleuze fala de esquizofreniza~ao, como no
Anti-Edipo, nao se trata de urn enaltecimento da loucura como doen~a, mas
do elogio de urn procedimento de liberta~ao de fluxos, de urn movimento
de desterritorializa~ao, significando, portanto, que ele distingue o esquizofrenico como tipo psicossocial (o doente de hospital, clinico, aquele que interrompeu o processo) eo esquizofrenico como portador de fluxos desterritorializados e descodificados, a esquizofrenia como processo.50 E quando ele
estuda o exemplo de Wolfson, "o esquizofrenico estudante de linguas", como
ele mesmo se denomina, Deleuze deixa clara sua posi~ao de que nele o procedimento linguistico permanece urn "protocolo" ou algo improdutivo, isto
e, nao se agenda com urn processo vital capaz de produzir uma visao. Faltalhe uma sintaxe criadoraY "Nao se escreve com suas neuroses. A neurose,
a psicose nao sao passagens de vida, mas estados nos quais se cai quando o
processo e interrompido, impedido, colmatado. A doen~a nao e processo,
mas interrup~ao do processo, como no 'caso Nietzsche'. 0 escritor como tal
nao
~de
217
II
DE LEUZE E A LITERATURA
analise, dois elementos, do is processes diferentes por natureza: 1) OS galpes exteriores OU impulses que vem de fora e OS impulses internes de uma
intensidade que ultrapassa o que se pode suportar; 2) a rachadura, fissura
incorporal e silenciosa na superficie. Mas ha. tambem uma rela<;ao entre esses termos. E justamente o que mais interessa a Deleuze e estabelecer o tipo
dessa rela<;ao. Pais esse exterior e esse interior aprofundam a rachadura e
a efetuam na espessura do corpo. Mas sera esse o (mico tipo passive! de
rela<;ao entre os dois niveis? Sera passive! evitar que a vida, e mais especificamente a linha de fuga, se transforme em demoli<;iio, autodestrui<;ao, aniquilamento? Sera passive! manter a rachadura na superficie? Sera passive!
manter a prudencia?
Para responder a essa questao, Deleuze parte da ideia de que a jun<;ao
dos dois processes pode ser feita pelo suiddio, pela loucura, pelas drogas,
pelo alcool. Mas, se faz isso, e para defender que em todos esses casas ha
algo de ilusorio.
Eque, para OS herois de Fitzgerald, 0 alcoolismo e 0 proprio processo
de demoli<;ao por determinar o efeito de fuga do passado, quando tudo se
torna longinquo, criando a necessidade de beber de novo. A busca desse
efeito do alcool pode ser produzido por muitos acontecimentos: perda do
dinheiro, perda do amor, perda da terra natal, perda do sucesso. Vivendo em
dais tempos, Gatsby, o personagem central de 0 grande Gatsby, por exemplo,
quer fazer o presente conter a mais terna, a mais doce identifica<;ao com um
passado em que ele teria sido amado e, nessa identifica<;iio, se estra<;alha e
perde tudo. 0 que da ao alcoolismo um valor exemplar e que o alcool e ao
mesmo tempo o objeto, a perda do objeto e a lei dessa perda em um processo de demoli<;ao.
Mas a postura de um personagem como Gatsby ou do consul de A sambra do vulcao, de Malcolm Lowry, nao e a posi<;ao defendida por Deleuze.
Sua questao e: "Como fazer com que a linha de fuga nao se confunda com
um puro e simples movimento de autodestrui<;ao: alcoolismo de Fitzgerald, esmorecimento de Lawrence, suiddio de Virginia Woolf, triste fim de
Kerouac?"SS Pois, para ele, se e verdade que a rachadura, a fissura, nao e
nada se nao compromete o corpo, ela deixa de ter valor quando se confunde
sua linha com a outra linha no interior do corpo.
Toda essa analise, como grande parte de L6gica do sentido, ebaseada nos
estoicos, que viam os corpos como a Unica realidade, como ser, eo incorp6~
reo como um efeito superficial, um extra-ser, um acontecimento, relacio-
219
OELEUZE E A LITERATURA
nando esses dois niveis - o fisico e o logico- pela etica. Assim, entre uma
logica da superficie, que diz respeito ao incorporeo, e uma fisica da profundidade, que diz respeito as misturas entre OS corpos, ha uma etica que relaciona o acontecimento puro, ideal, incorporeo, e a profundidade dos corpos,
por um movimento ou um processo de encarna~ao, efetua~ao, incorpora~ao. 0 sabio estoico e alguem que compreende 0 acontecimento puro em
sua verdade e ao mesmo tempo quer sua efetua~ao em um estado de co is as e
em seu proprio corpo, "quer 'dar corpo' a seu efeito incorporeo". 56
Inspirado em sua analise dos estoicos, Deleuze defende que so se apreende a verdade eterna do acontecimento se o acontecimento se inscrever na
carne; mas, par outro !ado, ele nao se causa de dizer que se deve duplicar
essa efetua~ao com uma "contraefetuaqao que a lim ita, a representa (joue ),
a transfigura"." Ser o mimico do que acontece efetivamente, duplicar a efetua~ao com uma contraefetua~ao, a identifica~ao com a distancia, como
um ator ou dan~arino, e fazer a verdade do acontecimento nao se confundir com sua inevitavel efetua~ao. Lembrando certamente de 0 nascimento
da tragedia, em que Nietzsche distingue o dionisiaco brute, selvagem, titanico dos cortejos embriagados das bacantes e o tragico- considerado como
uniao artistica do apolineo e do dionisiaco que transforma um veneno num
remedio ao criar a tragedia -, Deleuze conclui dessa analise que OS efeitos
da droga ou do a!cool (suas "revela~i'ies") podem ser vividos independentemente do usa das drogas ou do alcoa!, como uma embriaguez em que nao se
perde a sobriedade, a lucidez. "Procuramos extrair da loucura a vida que ela
contem, mas odiando os loucos que nao cessam de matar essa vida, de valta-la contra si propria. Procuramos extrair do alcoa! a vida que ele contem,
sem heber: a grande cena de embriaguez com agua em Henry Miller. Passar
sem alcoa!, sem droga e sem loucura, e isso 0 devir-s6brio, por uma vida
cada vez mais rica:ss Dai a importancia da referenda ao ator ou a arte. Pais
o ator efetua o acontecimento, mas de uma maneira bem diferente daquela
segundo a qual o acontecimento se efetua na profundidade das coisas. Sem
perder de vista a grande saude, ele duplica essa efetua~ao fisica com uma
outra singularmente superficial, ele "contraefetua'', no sentido de tornar-se
o "comediante de seus pr6prios acontecimentos".''
Assim, inspirado na "grande saude" nietzschiana, Deleuze pensa o
artista como um pensador que viu e ouviu algo grande demais, forte demais, intoleravel demais, alga irrespiravel que o esgotou, que colocou nele
a marca da morte, mas tambem o faz viver atraves das doen~as do vivido,
221
PARTE 7
Deleuze e a pintura
Os elementos constituintes
Em Francis Bacon: l6gica da sensa~do, Deleuze faz dois tipos de analise complementares: uma analise estrutural, que explica a composi~ao dos quadros
de Bacon, e uma analise genetica, que reconstr6i o processo pictural, o ato de
pintar.
Em que consiste a analise estrutural? Se, em seus estudos, Deleuze
sempre procura determinar os elementos constituintes do pensamento e a
rela~ao entre eles, no caso das pinturas de Bacon ele detecta tres elementos
-a figura, o contorno e a grande superficie plana-, sendo o contorno o
que relaciona os outros dois.
Nas Entrevistas com Francis Bacon, o critico ingles David Sylvester propoe a hip6tese - com a qual Bacon concorda- de transforma~5es hist6ricas na sua pintura: "Naquele triptico de 1944 [Tres estudos de figuras ao pede
uma crucifica~do], voce usou urn fundo de cor forte e dura para formas apresentadas com precisao e simplicidade, formas esculpidas, se assim se pode
dizer, e o conjunto era perfeitamente coerente. Depois, o tratamento das
formas tornou-se malerisch [manchado] e, com isso, o fun do suavizou-se,
ficando mais tonal, quase sempre encortinado, formando urn todo perfeitamente coerente. Entao voce se libertou das cortinas e passou a misturar urn
tratamento malerisch da forma- fazendo com que a pintura ficasse cada vez
mais congestionada - com urn fundo luminoso, plano e duro, de modo a
justapor duas conven~5es opostas:' Deleuze retoma essa ideia ao dizer que
o tratamento malerisch leva Sylvester a distinguir tres periodos na pintura de
Bacon: "0 primeiro confronta a Figura precisa e a grande superficie plana
viva e dura; o segundo trata a forma malerisch num fundo tonal de cortinas; o terceiro, enfim, reline 'as duas conven~5es opostas' e volta ao fundo
226
DELEUZE E A P!NTURA
vivo achatado ...." E ainda acrescenta um quarto peri ado, em que a figura
teria desaparecido, "deixando apenas um trac;:o vago de sua presenc;:a". * Ha,
portanto, na pintura de Bacon, mudanc;:as e periodos bem demarcados. No
entanto, isso nao impede que Deleuze lance a hip6tese da existencia de trf\s
elementos fundamentais, constituintes de sua pintura, que, apesar das variac;:oes estilisticas, seriam invariantes.' Vejamos, para compreender essa
analise estrutural, em que consistem esses elementos e que tipo de relac;:ao
existe entre eles.
A figura desfigurada
Deleuze pensa a figura primeiramente em relac;:ao a representac;:ao, para
esclarecer como, atraves dela, Bacon evita o carater figurative, ilustrativo,
narrativo da pintura. Se ele gosta da maneira como Bacon escapa da representac;:ao, e sobretudo porque, em vez de privilegiar a forma, ou ate mesmo a
abstrac;:iio, ele mantem em sua pintura uma figura que nem e abstrata, nem
propriamente figurativa. **
Nas entrevistas a Sylvester, Bacon se refere varias vezes a esse aspecto
de sua pintura. Um dos momentos e quando diz que a imagem esta entre
o figurative e a abstrac;:ao: "Esta na fronteira da abstrac;:ao, mas na verdade
nada tem aver com ela: A esse respeito, quando Sylvester menciona o triptico da Crucificaqao (1965) [imagem sS], cujo paine! direito tem uma figura
usando uma faixa no brac;:o com a suastica, e pergunta a Bacon se isso foi
feito para ter um significado, o pin tor lhe responde: "Quis colocar uma faixa
para quebrar a continuidade do brac;:o e jogar um vermelho ao redor dele ...
com a intenc;:ao de fazer a figura funcionar - nao de funcionar como uma
figura nazista, mas para funcionar como uma forma." E quando Sylvester
volta a perguntar: "Por que voce quer evitar uma interpretac;:iio narrativa?",
Bacon responde: "Nao e que eu queira evitar, mas gostaria muitissimo de
fazer aquila que Valery disse: 'proporcionar emoc;:oes sem o tedio da comu* FB, trad. br., P37 Cito a tradus:ao brasileira da Zahar por ela seguir a numera\=ao continua des quadros de Bacon adotada pela edicrJ.o francesa da Editions de la Difference,
esgotada, enquanto a edil;ao atual, da Minuit, cria urn duplo sistema de referenda: aos
DE LEUZE E A P!NTURA
voce:'' Frase que Deleuze interpreta: "Segundo a expressao de Valery, a sensac;:ao e o que se transmite diretamente, evitando o desvio ou o tedio de uma
hist6ria a ser contada:' 4
Para precisar essa originalidade da figura com relac;:ao ao abstrato e
ao figurative, Bacon esclarece que "o aspecto ilustrativo inevitavelmente
tera de estar presente na reproduc;:ao de certas partes da cabec;:a e do rosto".
Como no Retrato de Isabel Rawsthorne de pe numa rua do Soho, de 1967,
esplendido exemplo da conjugac;:ao de manchas visivelmente ilustrativas
e manchas irracionais altamente sugestivas. 5 Deleuze explicita essa ideia
de uma figura que nao e figurativa distinguindo uma figurac;:ao primaria e
uma figurac;:ao secundaria. 6 E isso o leva a defender que, embora a figura na
pintura de Bacon nao apresente uma figurac;:ao primaria, uma figurac;:ao secundaria continua presente na figura desfigurada ou na forma deformada.
Utilizando-se de um termo de Lyotard, ele chama de "figural" essa figura
sem figurac;:ao primaria.' A figura considerada como figural e forma, mas
forma deformada; e figura, mas figura desfigurada, despojada da fun9ii0
figurativa.
A figura criada por Bacon para escapar da representac;:ao tem duas caracteristicas. Primeiro, em vez de remeter a um objeto exterior, a um modelo,
que pretenderia representar ou imitar, a figura e uma forma sensivel que
remete a sensac;:ao, age diretamente sabre o sistema nervoso. Assim, quando
Bacon diz, na res pasta a Sylvester ja citada, que a figura esta na fronteira da
abstra9ao, mas nada tem aver com ela, ele explicita que isso euma tentativa
de fazer com que a pintura atinja o sistema nervoso. Bacon faz uma diferenc;:a entre a pintura que comunica diretamente e a que comunica atraves
da ilustrac;:ao. Usando mais ou menos como sinilnimos sistema nervoso e
emoc;:ao, como tambem cerebra e inteligencia, ele diz: "Certa pintura toea
diretamente o sistema nervoso e outra !he conta a hist6ria num Iongo discurso atraves do cerebra:' E tambem: ''A diferenc;:a e que a forma ilustrativa
imediatamente !he diz, atraves da inteligencia, aquila que ela expressa, enquanta no caso da niio ilustrativa ela primeiro atua nas emoc;:oes e depois faz
revelac;:oes sabre o fato." 7
Segundo, quando ha mais de uma figura, nao se deve narrar nenhuma
hist6ria, com as figuras estabelecendo uma relac;:ao. Par isso Deleuze dira
** Essa dupla recusa do figurative e do abstrato leva Deleuze a aproximar Bacon de Proust
(cf. FB, p.71-3). Em Imagem-tempo, ele defende que o cinema deve evitar dois obsticulos:
o cinema experimental abstrato eo cinema figurative comercial.
227
I
.228
DE LEUZE E A PlNTURA
DE LEUZE E A P!NTURA
que duas figuras formam um s6 fato, ou dais corpos formam uma s6 figura. * Ha uma figura comum aos do is corpos, ou um "fato" comum as
duas figuras, sem hist6ria para contar, independentemente de qualquer
rela~ao figurativa ou narrativa. Alias, radicalizando essa ideia, Deleuze
pensa que a figura acoplada faz das figuras isoladas simples casas particulares. Pais, ate no caso de um unico corpo ou de uma sensa~ao simples,
os nfveis diferentes pelos quais essa sensa~ao passa ja constituem blocos
de sensa~ao. Em ultima analise, em Bacon s6 ha figuras acopladas, pois
o que importa para ele e o entrela~amento das duas sensa~oes, o acoplamento de sensa9oes em dais corpos.
0 estudo deleuziano da figura privilegia o corpo. 0 que esta pintado
como figura e um corpo, nao representado como objeto, nem representando
um objeto, mas experimentando uma sensa~ao. 0 que e esse corpo? Uma
das maneiras como Deleuze responde a essa questao e dizendo que ele
e carne ou vianda ( viande ). Bacon pinta o corpo como carne ou vianda. A
carne ou vianda e o material corp6reo da figura. **
A esse respeito, Deleuze propoe uma curiosa rela9ao entre o corpo e
o ossa: o corpo s6 se revela quando deixa de ser sustentado pelos ossos, ou
quando a carne deixa de recobrir os ossos, quando ambos existem um para
o outro, em tensao, em confronto, mas cada um em seu Iugar. Nas Entrevistas, Bacon se refere a um pastel de Degas, Depois do banho, que retrata
uma mulher lavando as costas cuja coluna vertebral parece sair do corpo, e
acrescenta que isso da uma tal for~a e imprime uma tal distor~ao a imagem
que passa-se a perceber a vulnerabilidade do resto do corpo, mais do que
se Degas tivesse desenhado a coluna subindo naturalmente ate o pesco~o.
Deleuze se refere a esse quadro para lembrar que, em uma composi9ao totalmente diferente, Tres figuras e retrato (1975) [imagem 40 ], Bacon pintou
essa co luna vertebral numa figura contorcida, virada de cabe~a para baixo, e
observa que e preciso atingir essa tensao pict6rica entre a carne e os ossos
e que e justamente a vianda que a realiza. A vianda e o estado do corpo em
que a carne e os ossos se confrontam localmente.
* Eis alguns exemplos desse caso: imagens 17, 18, 61, 76. Em "Bartleby, ou a fOrmula",
De~
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I
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OELEUZE E A P!NTURA
* FB, p.38. 0 quadro que mais poderia se aproximar dessa interpreta<;ao de Deleuze seria
gam e se elevam insensivelmente sao mais carne do que areia, uma carne que e, aiem
Duna de areia, de 1983, sabre o qual John Russell diz: "Quanta mais a olhamos, tanto mais
disso, animada por uma complexa, uma intensa, uma todo-poderosa sexualidade" (Francis
Bacon, trad. fr., Paris, Thames & Hudson, 1994, p.182).
essa duna adquire o aspecto de anatomia humana. Essas superficies que rolam, escorre~
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DELEUZE E A PINTURA
por urn animal, como urn passaro. [imagem 27, centro]. Ou de Bacon fazer surgir tra~os animais na cabe~a da figura humana. A esse respeito, o
melhor exemplo, a meu ver, eo quadro George Dyer acocorado (1966), que
curiosamente Deleuze nao cita, e sobre o qual John Russell diz: "Quanta a
figura, ela nos lembra que Bacon inspira-se incansavelmente em animais
selvagens. Ele espreitou a fotografia reveladora com tanta aten~ao quanta
urn ca~ador espreita uma presa viva. Essa figura e manifestamente humana,
mas ela tambem encarna a paciencia e a imobilidade de uma criatura da
floresta para a qual 0 tempo tern dimens6es que nao tern qualquer rela~ao
com a vida humana." 10
Mas Deleuze tambem aprofunda a compreensao da figura em Bacon
como conceito de corpo sem 6rgaos suscitado por Artaud. No final da emissao radiof6nica "Para acabar com o julgamento de Deus", Artaud diz: "Colocando-a de novo, pela ultima vez, na mesa de aut6psia para refazer sua anatomia./ Eu digo, para refazer sua anatomia./ 0 homem e enfermo porque e
mal construido. Eprecise se decidir a desnuda-lo para raspar esse animaluculo [animal microsc6pico J que o corr6i mortalmente,/ deus/ e com deus/
seus 6rgaos/ Pois, amarrem-me se quiserem,/ mas nao ha nada mais inutil
que urn 6rgao./ Quando tiverem/ conseguido fazer urn corpo sem 6rgaos,/
entao o terao libertado de seus automatismos/ e devolvido sua verdadeira
liberdade./ Entao o terao ensinado a dan~at as avessas/ como no deliria dos
bailes populares/ e esse avesso sera/ seu verdadeiro Iugar:'"
A frase que mais interessa a Deleuze nesse trecho e "amarrem-me se
quiserem, mas nao ha nada mais inutil do que urn 6rgao". Acontece que,
embora essa ideia da inutilidade dos 6rgaos seja importante para a formula~ao do conceito deleuziano de corpo, ele nao a interpreta literalmente, chegando a dizer que nos apercebemos pouco a pouco que o corpo sem 6rgaos
nao e 0 Contrario dos 6rgaos, OU que Seus inimigos nao sao OS 6rgaos, mas OS
organismos. Por isso, ele privilegia, ainda mais, outra afirma~ao de Artaud:
"0 corpo e o corpo. Ele esta s6. E nao tern necessidade de 6rgaos. 0 corpo
nunca e urn organismo. Os organismos sao OS inimigos do corpo." Essa formula~ao evidencia que Artaud !uta tanto contra os 6rgaos quanta contra o
organismo. Contra os 6rgaos, quando afirma nesse texto que o corpo nao
tern necessidade de 6rgaos, mas tam bern quando diz: "Sem boca. Sem lingua. Sem dentes. Sem laringe. Sem es6fago. Sem est6mago. Sem ventre.
Sem anus:'" Contra 0 organismo, quando diz que OS organismos sao OS inimigos do corpo. Ora, para Deleuze, o corpo sem 6rgaos op6e-se nao pr6-
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DE LEUZE E A PJNTURA
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* FB, p.120, 135. Referindo~se ao cinema do p6s~guerra, Deleuze dir<i que "a profundidade
era denunciada como 'engodo' e a imagem assumia uma planeza de 'superficie sem pro~
Essa diferen~a ou rela~ao de coexistencia, de proximidade, entre a figura e a grande superficie plana e dada ou modulada pela cor. Po is, enquanto
os tons matizados, os filetes de tons matizados, formam o corpo da figura,
a grande superficie plana tern cor viva, pura, uniforme e im6vel. 0 que leva
Deleuze a situar essa diferen~a do ponto de vista do tempo: como tempo
que passa, ou conteudo do tempo, na varia~ao cromatica dos tons matizados
da figura ou no cromatismo dos corpos; como eternidade do tempo, ou eternidade como forma do tempo, na monocromia da grande superficie plana. ' 4
Nao basta, no entanto, dizer que ha diferen~a qualitativa entre a figura
e a grande superficie plana, pais o que interessa a Deleuze e sempre estabelecer a rela~ao- rela~ao diferencial- entre dois termos ou series. Ora, essa
correla~ao, essa conexao da grande superficie plana e da figura e dada por
urn terceiro elemento que funciona como limite comum aos outros dois:
a area redonda ou o contorno. "Contorno" talvez seja uma palavra melhor
para designa..Jo, pois a area redonda as vezes e mais oval do que propriamente redonda; alem disso, a chamada area redonda e frequentemente aumentada, ou substituida pela area redonda da cadeira onde o personagem
esta sentado, pela area oval da cama onde ele esta deitado [imagens 14, 17],
pela caixa de vidro on de esta encerrado [imagens 6, 10], e tambem aparece
na forma de pias, guarda-chuvas e espelhos [imagens 26, 28, 30, 32]. Mas,
apesar da varia~ao de forma, o contorno- que pode ocupar mais ou menos
espa~o no quadro, ou ate mesmo se multiplicar, urn contorno maior envolvendo urn men or- delimita sempre o Iugar onde esta a figura, aparecendo
como sua pista, seu picadeiro. No entanto, o mais importante e que o contorno e o Iugar de uma troca, nos dais sentidos, entre a estrutura material
e a figura; e uma "membrana" percorrida por uma dupla troca, urn duplo
movimento.
0 movimento da pintura
0 que e esse duplo movimento? 0 primeiro movimento, que e urn primeiro
tipo de tensao, vai da estrutura material para a figura. A estrutura material
- for~ada pelo contorno- adquire urn movimento que a faz tomar a forma
de urn cilindro e se enrolar no contorno, que por sua vez isola, envolve, enclausura, aprisiona afigura [imagens 6, 19]. Trata-se de urn movimento centripeto de isolamento cuja fonte nao esta na figura. Isso leva Deleuze a falar
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DE LEUZE E A PINTURA
A sensa(ao e as for(as
A condi<;:ao desse duplo movimento e a sensa~ao. Um quadro de Bacon diz
respeito a sensa~ao. Mas a relac;:ao entre pintura e sensa~ao leva Deleuze
a privilegiar Cezanne como quem deu o nome de sensa~ao -::. "16gica das
sensa~oes" e uma expressao de Cezanne- a figura sem fi~ra~ao, ou ao,caminho de ultrapassagem da figurac;:ao pela figura. A figura e a forma sensrvel
referida a sensac;:ao. Par um !ado, ela nao se refere a um objeto, a alga que
deveria representar; por outro, ela age imediatamente sobre o sistema nervoso, sem 0 intermedio do cerebra. Se para OS impressionistas a sensa~ao
esta no jogo de luz e cor, ou das impress5es, para Cezanne a sensa~ao esta
no corpo, nao no sentido de representado como objeto, ou representando
um objeto, mas de pintado como experimentando uma sensa~ao.
Em seguida, Deleuze aproxima Bacon de Cezanne, estabelecendo uma
equivalencia entre pintar a sensa~ao e registrar o fato, o fato prctural, o fato
intensivo do corpo, o fato da figura - o que s6 e passive! quando o corp?
se encontra submetido aos diversos tipos de for~as que agem sabre ele. E
precise que uma for~a se exer~a sabre um corpo para que haja sensa~ao. A
sensa~ao e 0 resultado de uma violencia, e uma sensa~ao violenta.
0 aprofundamento da no~ao de sensa~ao permite compreender a rela~ao do movimento com a for~a e, assim, compreender em que consrste efe~r
vamente 0 movimento que Deleuze detecta na pintura de Bacon. A sensa~ao
apresenta duas caracteristicas importantes. A prime ira e a difer:n~a de ~ivel.
Cada sensa~ao tem diversos niveis, diferentes ordens ou domrnros. Na~ se
trata de sensa~5es de diferentes ordens, de diferentes niveis, mas ~e drfe;
rentes ordens ou niveis de uma mesma sensa~ao. A segunda caractenstlca e
* 0 exemplo dado-~or Deleuze dessa pluralidade
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que a sensa9ao passa de um "nivel" a outro, isto e, se cada sensa9ao tem niveis diferentes, isso provem de que ela passa por varia9oes. Usando os termos
"afetos", "sensa9oes" e "instintos", Deleuze pensa os afetos como um misto de
sensa9oes e instintos, chamando de sensa9ao aquilo que determina os instintos em determinado momenta e de instinto a passagem de uma sensa<;ao a
outra. Ideia que, no fun do, e a retomada da distinyao ja feita por Deleuze nos
livros sobre Espinosa com os termos afec9ao e afeto, as afecyoes sendo os estados dos corpos provenientes da a9ao de outros corpos sobre eles, os afetos,
as varia9oes continuas desses estados em termos de aumento e diminui9ao.
0 movimento nao explica a sensa9ao, os niveis de sensa9ao; ele se explica pela elasticidade da sensa9ao, sua vis elastica, sua for9a elastica. Neste
senti do, sensa9ao e vibra<;ao. * Mas, as vezes, duas sensa9oes de nfveis diferentes, isto e, nfveis diferentes de sensayoes diferentes se confrontam e se
acoplam, se reunem produzindo uma figura acoplada. '6 Neste caso, nab se
trata mais de simples vibra9ao, mas de ressonancia, de ressonancias provenientes das camadas de sensa9oes superpostas, do entrelayamento de duas
sensa9oes e da ressonancia que elas produzem.
Ha, portanto, uma rela9ao importante entre a sensa9ao e as foryas. As
artes tem como objetivo captar, capturar for9as. A musica deve tornar senoras for9as "insonoras". A literatura, tornar dizfveis for9as indiziveis. A pinlura, tornar visfveis for<;as invisfveis. Deleuze faz a lista das for<;as que Bacon
detecta: de isolamento, de deforma<;ao, de dissipa<;ao, de acoplamento, uma
for<;a que s6 pode ser captada pelos tripticos, que e tanto for<;a de reuniao
quanto for<;a de separa9ao, a for9a do tempo, que pode ser tanto a forya do
tempo mutante, o conteudo do tempo, que aparece na figura, quanto a for<;a
do tempo eterno, a eternidade do tempo, a forma do tempo, que aparece na
grande superficie plana. Os movimentos aparentes das figuras nao s6 estao
subordinados as for<;as invisfveis que se exercem sobre elas, mas tambem
expressam a natureza intensiva do mundo que esta sob as coisas. Bacon e
um pintor das for9as, que torna visiveis as for<;as encerradas nas formas, que
apresenta as for<;as que se encontram em ayao nos corpos e sao as "causas
mais profundas" de suas deforma<;oes. E assim como Cezanne teria dado
um ritmo vital, um movimento vital, uma potencia vital a sensa<;ao visual,
Bacon teria feito o mesmo com a coexistencia de movimentos.
Assim, nas series de cabe<;as e autorretratos [imagens 71, 72, 74, 75], a
agita<;ao dessas cabe<;as vem de for<;as de pressao, dilata<;ao, contra9ao, achatamento, estiramento que se exercem sobre cabe<;as im6veis. 0 exemplo do
grito [imagens 54, 55] e bom porque mostra que Bacon poe o grito visfvel, a
visibilidade do grito, em relayao com for<;as invisfveis. Dito de outro modo,
as pinturas de Bacon em que uma figura grita poem a for<;a sensfvel do grito
em rela<;ao com for<;as insensiveis que fazem gritar, as quais, pensando em
Kafka, Deleuze chama de for<;as do futuro. "Quando ele pinta o papa que
grita, nao ha nada que cause horror, e a COrtina diante do papa nao e apenas
uma maneira de iso!a-lo, de subtraf-lo aos olhares, e muito mais a maneira
pela qual ele mesmo nada ve e grita diante do invisfvel: neutralizado, o horror e multiplicado, pois e consequencia do grito, e nao o contrario."' 7 Assim,
quando Bacon escolhe "pintar o grito mais do que o horror", esta privilegiando a violencia da sensa<;ao mais que a do espetaculo, ou a violencia das
posturas mais que a das situa<;oes. * E e importante acrescentar que Deleuze
ve na distin9ao de duas violencias - a do espetaculo ou do sensacional, da
figura<;ao primaria, e a da sensa<;ao- uma declara<;ao de fe na vida, um ato
de fe vital. Isso porque, segundo ele, quando o corpo visivel enfrenta as potencias do invisfvel, e lhes da sua visibilidade, afirma uma possibilidade de
triunfar que nao possuia enquanto essas for<;as permaneciam invisfveis.
* "0 que se tern de conseguir e uma sensa~ao de vida. Quando se pinta urn retrato, o
problema e encontrar uma tecnica capaz de expressar todas as vibrac;Oes de uma pessoa"
(David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon, op.cit., p.174).
:cf. "La peinture enflame l'ecriture", in DRF, p.168, 171. Para Bacon, os mel.hores gri~os
A analise genetica
Alem do aspecto estrutural da analise, ha tambem um aspecto genetico,
que diz respeito ao ato de pintar. Para fazer essa analise do processo pict6rico, Deleuze parte da ideia de que o pintor nao esta diante do quadro como
diante de uma superficie em branco, de uma superficie vazia que teria de
preencher; para pintar, ele tem de esvaziar a tela de uma serie de dados
figurativos: cliches fisicos, que estao em torno dele, no atelie, nos jornais,
nas fotografias, no cinema, na televisao, ou psfquicos, como percep9oes e
lembran<;as, que sao projetados na tela antes que ele comece a pintar.
Lawrence observou com muita pertinencia a !uta contra o cliche nas
pinturas de Cezanne. Eis esse belo texto: ''Ap6s uma obstinada !uta de 40
humanos foram feitos, no cinema, por Eisenstein em 0 encourafado Potemkm e, na pmtura, por Poussin com 0 massacre dos inocentes (cf. E, P34-S 48).
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DE LEUZE E A PJNTURA
anos, ele conseguiu, no entanto, conhecer plenamente uma maqa, urn vaso
au dais. Foi tudo o que conseguiu fazer. lsso pode parecer pouco, e ele morreu amargurado. Mas e o primeiro passo que conta, e a ma<;a de Cezanne e
muito importante, mais importante que a ideia de Platao ... Se Cezanne
tivesse consentido em aceitar seu proprio cliche barroco, seu desenho seria
6timo segundo as normas d\ssicas, e nenhum critico teria encontrado nada
de negativo a dizer. Mas quando seu desenho era born segundo as normas
classicas, ele parecia a Cezanne muito ruim. Era urn cliche. Entao, Cezanne
se atirava em cima dele, extirpava-lhe a forma e o conteudo, e depois de ele
se tornar ruim de tanto ser maltratado, Cezanne, esgotado, o deixava assim,
tristemente, pais ainda nao era o que que ria ... Onde Cezanne par vezes escapa par completo do cliche e da uma interpretaqao inteiramente intuitiva
de objetos reais em suas naturezas-mortas."*
Como veneer os cliches? Para responder a essa questiio, Deleuze comeqa distinguindo o acaso da probabilidade. Ele pensa que, quando se considera uma tela antes do trabalho do pintor, todos os lugares se equivalem,
sao igualmente "provaveis". Mas quando o pintor comeqa a ter uma ideia do
que deseja fazer, em bora ainda nao saiba como, alguns lugares da tela comeqam a ter mais relevancia que outros. Comeqa a haver na tela uma ordem
de probabilidades iguais e desiguais, e e quando a probabilidade desigual se
torna quase uma certeza que se pode comeqar a pintar. Assim, a probabilidade faz parte do pre-pictural.
Mas, quando o trabalho comeqa, para nao pintar urn cliche, o pintor
precisa fazer "marcas livres", traqar lin has, limpar, varrer, jogar tinta na imagem pintada, numa zona do corpo - de preferencia na cabeqa - para que
possa nascer uma figura, que e urn improvavel. Ora, esses procedimentos
dependem do acaso, mas nada tern aver com probabilidade; sao urn tipo de
escolha ou de aqao sem probabilidade.
0 acaso tern uma importancia muito grande no processo de criaqao de
Bacon. Nas Entrevistas, ele fala varias vezes do assunto. Eis algumas: "No
meu caso, toda a pintura e fruto do acaso"; "Minha maneira de trabalhar e
totalmente acidental ... "; ''Acho que a sorte, que chamaria de acaso, e urn
* Citado por Deleuze, FB, p.92-3. Deleuze e Guattari escrevem em 0 que e a filosofia?:
"0 pintor nao pinta sabre uma tela virgem, nero o escritor escreve sabre uma p<igina em
branco; a pigina ou a tela j<i estao de tal modo cobertas de cliches preexistentes, preestabelecidos, que e preciso antes de tudo apagar, limpar, laminar, ate mesmo retalhar, para
fazer passar uma Corrente dear saida do caos que nos dA a vis.3.o" (QPh, p.192).
0 diagrama
Deleuze chama de diagrama o con junto operat6rio de manchas e traqos irracionais, involunt.irios, acidentais, autom.iticos, livres, ao acaso, que sao
nao representatives, nao ilustrativos, nao narrativos. Sao traqos de sensaqao,
mas de sensaq6es confusas. Contrapondo manual a visual, ele explica o diagrama como uma potencia manual desenfreada, em que a mao se insubordina e deixa de ser guiada pelo olho. lsso significa que as manchas e traqos
manuais que constituem o diagrama desfazem o mundo 6tico, arrancam o
conjunto visual pre-pictural de seu estado figurativo, distribuindo na tela
forqas informais, para criar a figura, final mente pictural. Sea figura nao surgir desse trabalho manual, insubordinado em relaqao ao olho, e porque o
diagrama fracassou em sua funqao.
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DELEUZE E A PINTURA
DE LEUZE E A PINTURA
mente 6tico, por urn c6digo visual espiritual, cerebral, ao qual falta a sensa9ao, a aqao direta sabre o sistema nervoso. Ao contrario, o expressionismo
abstrato subordina 0 olho a mao, construindo urn espaqo exclusivamente
manual em que o caos se desenvolve ao maximo, como se o cliagrama se
confundisse com a totalidade do quadro. Desta vez a sensa~ao e atingida,
mas permanece em estado confuse. Ora, para Deleuze, ha urn uso temperado do diagrama, em que ele nao e reduzido a c6cligo e nao ocupa todo 0
quadro. Cezanne e Bacon tern a experiencia da catastrofe, mas lutando para
controlci-la. Trata-se de uma terceira via, nem exclusivamente 6tica, como
A cor
** Bacon refere-se v<lrias vezes a essa semelhan<;a produzida. Cf. David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon, op.cit., p.26, 40, 126, 144, 175.
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244,
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PARTE 8
Deleuze
e o cinema
l
1! A IMAGEM-MOVIMENTO
Cinema e pensamento
Sabemos que, como as outras formas de pensamento - ciencias, artes, literatura -, a filosofia, para Deleuze, e cria<;ao; mas um tipo espedfico de
cria<;ao, pois, enquanto a ciencia produz fun<;iies e a arte e a literatura produzem sensa<;iies- afetos e perceptos -, a filosofia produz conceitos. Sabemos tambem que Deleuze cria sua filosofia atraves de conceitos oriundos
de outros fil6sofos que ele escolhe por privilegiarem a diferen<;a em detrimento da identidade, principalmente Nietzsche e os conceitos de vontade
de potencia e eterno retorno, Bergson e os conceitos de multiplicidade,
atual e virtual, genese, atualiza<;ao, dura<;ao e Espinosa e os conceitos de intensidade, expressao, imanencia; mas ele tambem faz sua filosofia atraves de
conceitos suscitados por outros tipos de pensamento, isto e, pelo exerdcio
de pensamento nao conceitual das ciencias, das artes, da literatura. E isso o
que acontece em seus dois livros sobre o cinema, quando ele cria conceitos
sugeridos pela setima arte, levando em conta nao simplesmente um criador,
como fez nos livros sobre a literatura (Proust, Kafka) ou a pintura (Bacon),
mas o cinema em seu conjunto.
0 cinema e uma forma de pensamento. Os grandes cineastas sao pensadores, embora nao pensem conceitualmente, mas por imagens. Dai a primeira grande tese de Deleuze ao elaborar uma classifica<;ao das imagens
cinematognl.ficas: o cinema pensa com imagens-movimento e imagenstempo, as primeiras caracterizando o cinema classico, as segundas, o cinema moderno.
Estudarei esses conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo, que
estao na base dos dois livros sobre o cinema: Imagem-movimento e Imagemtempo. Primeiramente para examinar a rela<;ao entre filosofia e cinema que
A IMAGEM-MOV!MENTO
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DELEUZE E 0 CINEMA
ra~ao
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DELEUZE E 0 CINEMA
Como Deleuze vai lidar com isso, se ele pretende justamente utilizar
Bergson para estudar o cinema? Pensando que Bergson nao foi tao lange em
sua analise quanta poderia, ele vai alem, para explicitar o que esta subentendido no que Bergson disse. "A descoberta bergsoniana de uma imagem-movimento e, mais profundamente, de uma imagem-tempo guarda ainda hoje
uma riqueza da qual nao ecerto que se tenha tirado todas as consequencias.
Apesar da critica sumaria demais que, um pouco mais tarde, Bergson fara ao
cinema, nada pode impedir a conjun<;ao da imagem-movimento, tal como
ele a considera, e da imagem cinematografica:'' Vemos que Deleuze realiza
nesse momenta uma de suas tor<;6es interpretativas - como faz quando se
apropria dos pensadores que quer usar como intercessores -, ao criar um
duplo do pensamento de Bergson, com a modifica<;ao propria do duplo, para
estabelecer uma alian<;a entre este e o cinema.' Aqui, isso e feito de dois
modos. Primeiro, postulando, a partir de Nietzsche, que a essencia de lima
coisa n[o aparece no inicio, mas no meio, Deleuze situa a critica de Bergson
A IMAGEM-MOVIMENTO
* "Mesmo atraves de sua critica ao cinema, Bergson estaria no mesmo plano que ele, e
muito mais do que pensa" (I~M, p.8s). Guy Fihman analisa as tor~6es da leitura de Deleuze dos conceitos bergsonianos de imagem, movimento e tempo ( cf. "De leuze, Bergson,
Zenon d'Elee et le cinema", in Le cinema selon Deleuze, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1997).
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DELEUZE E 0 CINEMA
A IMAGEM-MOVIMENTO
Bergson e a imagem-movimento
Alem dessas teses sabre o movimento, Deleuze tambem analisa a teoria bergsoniana das imagens, com a finalidade de "deduzir" os diferentes tipos de
imagem-movimento, ou de apresentar a genese das tres linhas de diferencia<;:ao da imagem-moviment0.
Para isso, ele privilegia o primeiro capitulo de Materia e memoria, partindo da identidade, estabelecida por Bergson, entre imagem e movimento.
As imagens- o con junto do que aparece- estao em movimento, no sentide de que, em vez de serem um suporte de a~oes e rea<;oes, identificam-se
inteiramente com essas a~oes e rea~oes, constituindo um mundo de varia<;ao universal. 0 que ha no universe sao imagens-movimento em perpetua
varia<;ao umas em rela<;ao as outras, em estado gasoso: sem corpos solidos
e rigidos, sem eixos, centres, direita e esquerda, alto e baixo. Como diz Deleuze, retomando Bergson: "cada imagem age sobre outras e reage a outras em
'todas as suas faces' e 'por todas as suas partes elementares"'." Tudo e imagemmovimento, mesmo se a imagem-movimento se distingue pelos tipos de movimento que realiza e pelas leis que regem a rela<;ao das a<;oes e rea<;oes.
Essa identidade da imagem e do movimento significa a identidade da
imagem-movimento e da materia. Vista que a imagem e igual ao movimento,
tambem a materia e igual a imagem-movimento. As imagens-movimento
constituem o universe. 0 conjunto das imagens-movimento, conjunto ilimitado formado de blocos de espa<;o-tempo, e o universe material. A materia e
o universe das imagens-movimento em a<;ao e rea<;ao entre si, antes mesmo
da distin<;ao entre corpos, qualidades e a<;5es.
Finalmente, o universe material, a materia, e luz. 0 conjunto dos movimentos, das aqoes e rea<;oes, e luz. "A identidade da imagem e do movimento tem como razao a identidade da materia e da luz. A imagem e movimento como a materia e luz:''' Os blocos de espa<;o-tempo sao figuras de
luz. Na imagem-movimento ainda nao ha corpo; ha figuras luminosas. Essa
assimila<;ao da imagem, isto e, do movimento, da materia, a luz e importante porque, enquanto a tradi<;ao filosofica, inclusive a fenomenologia,
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raio de luz que ilumina as coisas, para Bergson as pr6prias coisas sao luminosas, luminosas em si, imagens de luz, sem precisar de nada para clarealas. Eisso que, retomando as vezes uma f6rmula de Bergson- "a fotografia,
se ha fotografia, ja foi obtida, ja foi tirada no pr6prio interior das coisas e de
todos os pontos do espa~o" -, Deleuze esta querendo dizer quando repete
que "o olho esta nas coisas, nas pr6prias imagens luminosas", ou que "toda
consci~ncia
e alguma coisa". l4
imagens especiais que reflitam a luz, como uma tela preta. "Falta", diz Bergson, "atras da chapa uma tela escura ( ecran noir) sabre a qual se destacaria
a imagem."' 5 Como diz Deleuze, concluindo esse ponto: "Em suma, nao e
a consciencia que e luz, e 0 conjunto das imagens, ou a ]uz, que e consciencia, imanente a materia. Quanta a nossa consciencia de fato, ela sera
apenas a opacidade sem a qual a luz, 'propagando-se sempre, nunca se teria
revelado':'' 6 De direito, a consciencia e o conjunto das imagens, e materia,
e ]uz; de fato, a COnSciencia surge quando imagens Vivas formam uma te]a
preta capaz de refletir a luz.
Deste modo, s6 se pode entender a ideia da consciencia como opacidade levando em considera~ao o segundo aspecto importante da teoria
bergsoniana da imagem. Pois, se o universo material acentrado e o conjunto
infinito das imagens-movimento que agem e reagem imediatamente umas
sobre as outras em todas as suas faces e em todas as suas partes, como vimas, esse universo acentrado de imagens em a~ao e rea~ao e apenas um
aspecto de um duplo sistema, de um duplo polo ou regime de imagens. A
teoria bergsoniana das imagens se completa com a proposta de um outro
sistema de imagens, de um sistema bastante particular de imagens que surgem nesse universo material: as imagens ou materias vivas, imagens especiais que se definem por um intervalo, uma separa~ao, um hiato, entre a~ao
e rea<;Eio, isto e, entre movimentos.
Assim, as imagens vivas diferem das outras imagens, em primeiro Iugar,
par s6 receberem a~iles em uma ou algumas de suas partes, isolando algumas
dessas a>iles, e por terem rea~iles por outras partes. Em determinados pontos
A IMAGEM-MOVIMENTO
do conjunto infinito de imagens, surge um intervalo de tempo entre o movimento que uma imagem recebe em uma ou algumas de suas faces eo movimento que ela realiza em outras, o que nao era passive! no caso das outras
imagens. Por causa do intervalo, essas imagens especiais especializam suas
faces: recebem o movimento por uma de suas faces e reagem a ele por outra.
Em segundo Iugar, o intervalo tambem diferencia as imagens vivas das
outras imagens par estas reagirem atraves de a~iles que nao se encadeiam
imediatamente com a a~ao recebida, como uma simples retransmissao, uma
propaga~ao, um prolongamento; elas sao rea~iles retardadas, respostas que
selecionam, organizam ou integram seus elementos em um novo movimento, isto e, a~iles novas com rela~ao as a96es sofridas, recebidas. Como
diz Deleuze: "Devendo esse privilegio apenas ao fenomeno da separa9ao ou
do intervalo entre um movimento recebido e um movimento executado, as
imagens vi vas serao 'centros de indetermina9ao' que se formam no universo
acentrado das imagens-movimento."' 7 A impossibilidade de prever a a~ao
permite criar o novo.
Finalmente, se privilegiarmos na imagem o aspecto luminoso, as imagens vivas, especiais, tambem diferem das primeiras por funcionarem como
uma tela opaca que torna passive! a revela~ao das imagens luminosas, ao se
refletirem nela. A luz- que se identifica com a imagem, com o movimento,
com a materia, que e uma imagem-movimento que se propaga em todas as
dire~iles- s6 se revela quando e isolada e interceptada par uma imagem especial que funciona como um obstaculo, um anteparo, uma opacidade capaz
de refleti-la. A caracteristica da imagem viva e isolar e refletir a luz. A foto
esta nas coisas, mas ela e translucida, transparente; falta a tela preta da imagem especial para revelar a ]uz. Em suma, o intervalo de movimento esta
para o movimento assim como a reflexao da luz esta para a luz. 0 intervalo,
do ponto de vista do movimento, e a tela preta, do ponto de vista da luz,
correspondem totalmente.
05 tipo5 de imagem-movimento
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DE LEUZE E 0 CINEMA
A IMAGEM-MOVIMENTO
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258 1.
DE LEUZE E 0 CINEMA
Assim, quando sao relacionadas a urn centro de indetermina~ao considerado como imagem especial, as imagens-movimento se dividem em tres
tipos: imagens-percep~ao, imagens-a~ao, imagens-afec~ao. A imagem-percep~ao recebe o movimento em uma face, a imagem-a~ao executa o movimento na outra, a imagem-afec~ao ocupa o intervale. 0 intervale do movimento e aquila com rela9ao a que a imagem-movimento se especifica em
imagem-percep9ao, numa extremidade do intervale, em imagem-a9ao, na
outra, e em imagem afec~ao, entre as duas, de modo a constituir urn conjunto sens6rio-motor.
A IMAGEM-MOVIMENTO
A imagem-percep<;ilo
Para definir a imagem-percep9ao, Deleuze distingue percep9ao objetiva e
subjetiva, estabelecendo a rela9ao entre elas. Depois de descartar outras
defini~5es, por considera-las nominais, negativas e provis6rias, ele se volta
para Bergson, retomando a distin9ao dos do is sistemas de imagens que apresentamos. Assim, a percep9ao objetiva e aquela em que todas as imagens
variam umas com rela9ao as outras em todas as suas faces e em todas as
suas partes; a percep~ao subjetiva e aquela em que as imagens variam com
rela9ao a uma imagem central e privilegiada. Essas defini~5es permitem, segundo ele, nao s6 diferenciar os dois polos, mas tambem passar de urn polo
a outro da percep9ao. "Pois, quanto mais o centro privilegiado for posto em
movimento, tanto mais ele tended para urn sistema acentrado onde as imagens variam umas em rela9a0 as outras e tendem a juntar-se as a~oes reciprocas e as vibra~5es de uma materia pura:'" Deleuze analisa, sobretudo,
o cinema frances anterior a Segunda Guerra e o cinema de Dziga Vertov,
comparando os dois a partir da diferen9a entre estados s6lidos, liquidos e
gasosos da percep9ao.
Ele ressalta na escola francesa a importancia da agua, seu "lirismo
aquatico". '3 Referindo-se a Renoir, L'Herbier, Epstein, Gremillon, Abel Gance,
Jean Vigo, ele mostra como ha dois sistemas perceptivos que se op5em. Urn
e formado por percep95es terrestres, com centros fixos, dos homens em
terra, 0 outro, por percep95es aquaticas, onde a agua, 0 elemento liquido
como varia9ao universal, e o meio concreto de urn tipo de homem, meio
de onde se pode extrair o movimento da coisa movida, a mobilidade do
movimento.
A esse respeito, seu exemplo principal e 0 atalante (1934), de Jean Vigo
- o Rimbaud do cinema, como o chamou Georges Sadoul -, que levaria
essa oposi9ao entre os dais sistemas perceptivos ao limite. Analisando esse
filme, Deleuze ve dois regimes de movimento: urn movimento terrestre, em
constante desequihbrio porque a for~a motriz esta sempre fora do centro de
gravidade, como a bicicleta do vendedor, urn movimento que se encontra
entre dois pontos; e urn movimento aquatico, em que o centro de gravidade
se desloca por uma lei objetiva, em que o ponto esta entre do is movimentos.
Assim, a imagem-percep9ao cinde-se em dais estados, molecular e molar,
ou liquido e solido, urn acarretando e suprimindo o outro. Com o privilegio
da agua, ou da imagem liquida, o cinema de Vigo faz a percep9ao humana
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,DELEUZE E 0 CINEMA
A IMAGEM-MOVIMENTO
A imagem-afecc;ao
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A IMAGEM-MOVIMENTO
DE LEUZE E 0 CINEMA
mando uma serie aut6noma que exprime uma potencia pura que passa de
uma qualidade a outra numa escala de intensidade, como o rosto do papa de
A linhageral (1929), de Eisenstein, que de santo passa a explorador dos camponeses. Por outro !ado, ha rosto reflexivo quando os tra~os permanecem
agrupados sob o dominio de um pensamento fixo e sem devir, exprimindo,
em ultima analise, uma qualidade pura comum a coisas diferentes, como o
rosto das jovens, em 6rfds da tempestade (1922), de Griffith, que expressa "o
branco de um floco de neve retido por um cilio, o branco espiritual de uma
inocencia interior, o branco dissolvido de uma degrada~ao moral, o branco
hostil e cortante da banquisa onde a heroina ira vagar". ' 6 Griffith privilegia o polo reflexivo, Eisenstein, o intensivo, mas cada um se serve do outro
polo. Alem disso, pode-se ir de um polo a outro, como na sequencia de Lulu
com Jack o estripador no final de A catw de Pandora, de Pabst, na qual, ao
close descontraido, sonhador de Jack, segue-se o close intensivo da faca que
prepara o espectador para o close que expressa seu pensamento terrivel. Partanto, um rosto pode expressar duas coisas: uma qualidade comum a varias
coisas ou uma potencia que passa de uma qualidade a outra.
Basta voltar, depois dessa analise, a primeira parte da formula- a imagem-afec~ao e 0 close - para compreender a defini~ao da imagem-afec~ao,
pois o afeto e constituido por dois componentes: uma unidade ou superficie reflexiva im6vel e movimentos ou micromovimentos intensos expressivos. Essa ideia evidencia, mais uma vez, a importancia de Bergson para
a concep~ao deleuziana do cinema, pois em sua base tambem se encontra a
defini~ao bergsoniana segundo a qual uma afec~ao e uma tendencia motora sabre urn nerve sensivel, ou uma srie de micromovimentos sabre uma
jogo intensivo de luz e trevas. 0 rosto expressionista diz respeito a serie intensiva. Ja a abstrac;ao lirica ou o antiexpressionismo de Sternberg e a relac;ao da luz com o transparente, o translucido ou o branco, que circunscreve
um espac;o onde se inscreve um close que reflete a luz. Como em A imperatriz galante (1934). 0 que nao significa que Sternberg ignore o outro polo, o
rosto intensivo com suas sombras e series. 0 que acontece e que ele parte da
reflexao, e a sombra e uma criac;ao, um resultado, uma consequencia do espac;o transparente, como em 0 expresso de Xangai (1932) e Tensao em Xangai
(1941). 0 espac;o transparente, alem de refletir a luz, a refrata, desviando os
raios que o atravessam, tornando-se intensive, alm de reflexivo.
Depois de distinguir esses dais palos do close, Deleuze investiga sua caracteristica comum: ele abstrai seu objeto das coordenadas espac;otemporais, torna-o independente de um espac;o-tempo determinado, transforma
seu objeto em "entidade", isto e, em potencia ou qualidade. ' 7 A func;ao do
close e expressar o afeto como entidade. Exemplo: o close de um covarde e
a propria covardia como entidade. Um close de Joana D'Arc, no filme de
Dreyer, e a vitima e o martirio como entidades. Ora, isso e passive! porque
o close produz uma mutac;ao do movimento, que deixa de ser translac;ao e se
torna expressao. 0 close abstrai o objeto das coordenadas espa~otemporais,
desterritorializando a imagem, para fazer surgir o afeto puro- qualidade ou
potencia- como o que e expresso par um rosto ou seu equivalente. Isso significa que "a imagem-afec~ao e a paten cia ou a qualidade considerada por si
mesma como expressa". ' 8 0 que faz do afeto alga impessoal, singular, indivisivel. Ou, para usar os termos mais importantes - que, diferentemente do
que em geral ocorre em Deleuze, aparecem varias vezes nessa analise como
sin6nimos -, o afeto e virtual, possivel, algo diferente, portanto, do individual ou atual, de sua atualiza~ao em um estado de coisas, caracteristica da
imagem-a~ao.
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A partir dessa defini1=ao, Deleuze apresenta tres modos ou procedimentos de constrw;ao de um espa1=o qualquer como potencia espiritual do
luminoso. 0 primeiro e 0 expressionismo, atraves da !uta, do conflito, da
oposi9ao entre luz e trevas na profundidade, oposi1=iio que cria um espa1=o
de sombras que se prolonga indefinidamente: a sombra como amea9a, em
Nosferatu o vampiro (1921) ou em Tabu (1931), ambos de Murnau. 0 segundo
procedimento e a abstra9ao lirica, que apresenta nao uma !uta, mas uma
alternativa: estetica ou passional, no caso de Sternberg, etica, no caso de
Dreyer, religiosa, no caso de Bresson. Trata-se sempre de uma alternancia
entre o branco eo preto, a que corresponde uma alternancia espiritual entre
o bern, o mal, a incerteza ou a indiferen1=a, sem que se deva necessariamente
escolher o bran co, pais ele tambem pode ter um carater aterrorizador, monstruoso. 0 terceiro procedimento e a cor, o espa1=o-cor do colorismo. Deleuze
salienta no colorismo seu carater absorvente, o fato de absorver tudo o que
pode, se amparar de tudo o que esta a seu alcance. "A cor e o proprio afeto,
isto e, a conjun,a.o virtual de todos os objetos que capta." Seu principal
exemplo e Minnelli, "que faz da absor9ao a potencia propriamente cinematografica dessa nova dimensao da imagem". E Deleuze observa o papel que
o sonho desempenha em seus filmes como forma absorvente da cor, capaz
de criar um espa1=o de sonho ou de pesadelo. Entre os filmes de Minnelli,
Deleuze destaca Os quatro cavaleiros do Apocalipse (1962), filme onde os personagens sao tragados pelo pesadelo da guerra, e Sede de viver (1956), sabre
o qual salienta "a hesita,a.o, o medo e o respeito com que Van Gogh se aproxima da cor, sua descoberta e o esplendor da sua cria1=ao, e sua propria absor~CiiO no que ele cria, a absor9ao de seu ser e de sua razao no amarelo". ''
Assim, a natureza do espa1=o qualquer e nao ter coordenadas, ser um
puro potencial, apresentar apenas potencias e qualidades puras, a partir de
sombras, brancos e cores. 0 que o leva, inclusive, a concluir que o espa1=o
qualquer, construido com uma pluralidade de pianos, constitui um sistema
de emo1=6es mais sutil e diferenciado que o close, sendo capaz de induzir
afetos nao humanos. Penso na resistencia guerreira da Joana d'Arc de Bresson, de 1963.
Deleuze defende, portanto, a existencia de duas subespecies de imagem-afec9ao: "porum !ado, a qualidade-pot~ncia expressa porum rosto ou um
equivalente; por outro, a qualidade-poti!ncia exposta porum espayo qualquer."''
A expressao de uma qualidade-potencia par um rosto; a apresenta1=ao de
uma qualidade-potencia por urn espa1=o qua!quer.
A IMAGEM-MOVIMENTO
A imagem-a~ao
9ao modificada. E para essa representa1=ao organica, para esse liame, esse
encadeamento sensoria-motor, que Deleuze propoe a formula SAS', querendo com ela indicar a passagem de uma situa9ao global a uma situa1=ao
transformada por intermedio de uma a1=ao concebida como duelo." A situa9ao impregna o personagem, e o personagem explode em a1=ao ou detona
uma a9ao. Essa e a "grande forma" da imagem-a9ao, que encadeia impregna,ao e explosao - situa1=ao impregnante e a1=ao explosiva -, que vai da
situa9ao aa1=ao que modifica a situa1=ao. Mas tambem acontece de a situa9ao
nao se modificar no final do filme, o que da a formula SAS. Como no caso de
Nanouk o esquim6 (1921), de Flaherty, que come9a mostrando o meio hastil onde o esquimo conquista sua sobrevivencia, apresenta seu duelo com o
gelo para construir seu iglu, eo celebre duelo com a foca, sendo o resultado
mais a continuidade da situa1=ao do que sua transforma1=ao. E ha ainda a situa9ao que pode levar a degrada,a:o final do personagem, 0 que da a f6rmula
SAS", como em Scarface, a vergonha de uma naqao (1932), de Howard Hawks,
e 0 segredo das joias (1950), de john Huston.
Esse tipo de imagem-a9ao existe em alguns generos cinematograficos: o
documentario, como o pr6prio Nanouk o esquim6 e Moana (1926), tambem
* Na verdade, antes de estudar a imagem-a<;ilo, Deleuze introduz, no capitulo VIII, outro
tipo de imagem-movimento: a imagem-pulsao- que situa entre a afeo;ao e a a<;ilo - , caracteristica do naturalismo, cujos principais representantes sao Stroheim, Buiiuel e Losey.
Nao a estudarei porque ela nao tern incidencia na argumenta~ao geral dos livros.
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DELEUZE E 0 CINEMA
de Flaherty; o filme psicossocial, como A turba (1928), No turbilhiio dametr6pole (1931) e America (1944), de Vidor, Farrapo humano (1945), de Wilder,
e Scarface e 0 segredo das joias; o western, como No tempo das diligencias
(1939), Como era verde o meu vale (1941), Caravana de bravos (1950), Rastros
de 6dio (1956), Terra bruta (1961), 0 homem que matou o facinora (1962), todes de John Ford, e 0 rio da aventura (Big Sky) (1952), de Hawks.
Deleuze estabelece cinco leis da imagem-aqao nesses generos. A primeira diz respeito a imagem-a~ao como representaqao organica. Ela organiza a maneira como o meio atualiza, efetua vcirias pot~ncias, a maneira
como o todo se encurva em torno dos personagens, realizando a passagem
da situaqao inicial a situa~ao final. A segunda rege a passagem da situa~ao
inicial aa~ao decisiva, ao duelo, pela apresenta~ao de linhas de aqao concorrentes que tornaril.o possivel o ultimo confronto individual. Isso e objeto da
montagem alternada convergente, montagem que atinge a perfei~ao em M,
o vampiro de Diisseldorf(1931), de Fritz Lang, que apresenta as linhas de a~ao
da pol! cia e dos ladroes que permitem passar da situa~ao global a aqao decisiva, quando OS ladroes prendem M e 0 julgam. A terceira e uma lei sabre a
aqao, ou sobre alguma coisa na a~ao ser rebelde a montagem, e, por isso, e
chamada por Deleuze lei de Bazin ou da montagem proibida. Ela significa
que, num efeito produzido por duas a~oes concorrentes, ha urn momento
em que os dois termos devem ser mostrados juntos sem que se possa recorrer a montagem. 0 exemplo de Bazine 0 circo (1928), de Chaplin, onde em
algum momenta Carlitos tem que entrar na jaula do leao e aparecer com ele
num plano comum. A quarta lei diz que o duelo nao e um momenta {mico:
ha um encaixe de duelos. Em M, por exemplo, o duelo e tanto entre M e
a policia quanto entre M e os ladroes. Finalmente, a quinta lei estabelece
que, entre a situaqao englobante e o her6i, o meio e o comportamento que
o modificara, a situa~ao e a a~ao, ha uma distancia que s6 pode ser preenchida progressivamente. E precise que a grandeza e a potencia do her6i se
atualizem depois de mementos internes e externos de impotencia; e precise
um caminho espa~otemporal, um processo de atualiza~ao, atraves do qual o
her6i se torna capaz de agir.
Mas a imagem-a~ao tem outro aspecto, a "pequena forma", que vai da
a~ao a situa~ao e dai a uma nova a~ao. A a~ao, que avan~a as cegas, desvela parcialmente uma situa~ao, e esta leva a uma nova a~ao. Sua f6rmula
e: ASA:. Se a grande forma e "o grande organismo univoco que engloba OS
6rgaos e as fun~oes", a pequena forma caracteriza-se pelas "a96es e 6rgaos
A IMAGEM-MOVIMENTO
que se compoem pouco a pouco numa organiza~ao equivoca"Y E, diz Deleuze, um esquema sens6rio-motor invertido.ll Esse tipo de imagem tem
dois palos ou indices. 0 primeiro e o caso em que uma a~il.o desvela uma
situa~ao que nao e dada. Como em S6cios no amor (1933), de Lubitsch, um
dos principais cineastas da pequena forma dos filmes de a~ao: um dos dois
amantes de uma jovem ve o outro vestido de smoking de manhazinha na
casa dela e conclui que ele passou a noite com ela. 0 outro tipo de indice
e 0 da equivocidade ou da distancia, em que uma diferen~a muito pequena
na a~ao ou entre duas a~oes induz uma distancia muito grande entre duas
situaoes. Um 6timo exemplo encontra-se no filme de Lubitsch To be or not
to be (1942): quando os atores de teatro representam alemaes perante espectadores numa pe~a e diante dos pr6prios alemaes na vida real, ha uma pequena diferen~a nos gestos e uma grande diferen~a entre as duas situa~oes.
Como generos da pequena forma, temos a comedia de costumes, como
nos exemplos anteriores, mas tambem o "filme de epoca", um tipo de documentario que parte dos comportamentos ou das a~oes para induzir a situa~ao social, o filme policial- que Deleuze diferencia do criminal, pois nele
se vai de a~oes cegas a situa~oes obscuras -,' o neowestern ( diferente do
western da grande forma), onde ele agrupa Hombre (1967), de Martin Ritt,
0 homem do Oeste (1958) e 0 pre~o de um homem (1953), de Anthony Mann,
Seminole (1953), de Boetticher, Juramenta de vingan~a (1965) e Meu 6dio sera
tua heran9a (1969), de Sam Peckinpah, e 0 pequeno grande homem (1970),
de Arthur Penn.
Mas ha um genera quase exclusivamente marcado pela pequena forma:
o burlesco, a comedia. Deleuze analisa um exemplo celebre: Charles Chaplin. Para que se veja em que ela consiste, nesse caso, basta lembrar uma
cena muito conhecida: abandonado pela mulher, Carlitos, de costas, parece
chorar convulsivamente; quando se vira, ve-se que estava preparando um
coquetel. 0 burlesco e isso: a a~ao e filmada do angulo da menor diferen~a
com uma outra a~ao, mas revela a imensa distancia entre as duas situa~oes.
A originalidade de Chaplin foi ter escolhido gestos pr6ximos e situa~oes
afastadas para criar, a partir deles, uma emo~ao intensa e aumentar o riso
* 0 exemplo de policial perfeito para ele C Suplicio de uma alma (1956), de Fritz Lang:
numa campanha contra o erro judicial, o her6i fabrica falsos indicios que o inculpam.
As provas da fabricat;ao desaparecem, e ele e preso e condenado. Perto de ser libertado,
durante uma visita de sua noiva ele deixa escapar uma informas:ao que a faz compreender
que ele e o culpado. A fabricar;ao de falsos indicios foi uma maneira de ocultar os ver~
dadeiros.
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l
!
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. DE LEUZE E 0 CINEMA
A imagem mental
Depois do estudo desses tres tipos de imagens (percep~ao, afec~ao e a~ao ),
Deleuze introduz o conceito de imagem mental, ou considera o mental uma
imagem espedfica: "Uma imagem que lorna como objeto de pensamento
objetos que tern uma existencia propria fora do pensamento, como os objetos da percep~ao tern uma existencia fora da percep~ao. Euma imagem que
toma como objeto rela~oes, atos simb6licos, sentimentos intelectuais:'" A introdu~ao da imagem mental no cinema, fazendo deJa a realiza~ao ou o acabamento de todas as imagens, ao enquadra-las e transforma-las, ao penetrar
nelas, deve-se a Hitchcock. Nele, percep~6es, afecq6es, aq6es sao interpretaqao, raciodnio, no senti do de que o importante, para ele, sao as relaq6es. Um
filme de Hitchcock e urn grande raciodnio, uma demonstra~ao matematica,
apesar da inverossimilhanqa de certas aq6es e situaq6es. Como na cena do
aviao que persegue o her6i, em Intriga intemacional (1959), e que estaria
la para pulverizar um campo deserto onde nao ha o que pulverizar. Alias,
a respeito dessa cena, de que gosta muito, Truffaut diz que Hitchcock tern
"a religiao da gratuidade, o gosto da fantasia fundada no absurdo".35 Percepqao, afecqao e a~ao sao cercadas, enquadradas por urn conjunto de relaq6es.
lmagem mental e imagem-relaqao, cadeia de relaq6es, mais do que trama
de aqoes. Se Hitchcock retoma uma aqao do filme policial, ela tem apenas
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* Deleuze conc~ui a analise de Buster Keaton descrevendo OS dois procedimentos que ele
e~prega, que sao duas formas de gag: a gag-trajet6ria, baseada numa montagem ultrarr<i-
A IMAGEM-MOVIMENTO
a aparencia de urn duelo que rege a a9ao. As a~6es sao tomadas num tecido
de relaqoes, que as eleva ao estado de imagem mental. A relaqao penetra a
aqao e a transforma em ato simb6lico. * Cada plano, cada imagem apresenta
uma relaqao mental, levando a imagem-movimento a urn limite. E Deleuze
chama atenqao para urn aspecto de grande importancia: a descoberta das
relaq6es remete a uma situa9ao de voyance, de videncia, que substitui uma
simples visao. Como em Janela indiscreta (1954), em que o her6i chega a
imagem mental nao porque e fot6grafo, mas porque esta imobilizado, reduzido a uma situaqao 6tica pura, como se fosse urn espectador. Deste modo,
tomando explicitamente a rela9ao como objeto, o cinema de Hitchcock e
a realiza9ao das imagens-percepqao, afecqao, a9ao, completando o circuito
da imagem-movimento ou levando a perfei~ao l6gica 0 cinema classico, ao
mesmo tempo que aponta para o questionamento, para a ruptura dos liames sens6rio-motores: "Se o cinema de Hitchcock nos pareceu a realiza~ao
(achevement) da imagem-movimento e porque ele ultrapassa a imagem-a~ao
rumo a 'relaqoes mentais', que enquadram e constituem sua cadeia, mas ao
mesmo tempo retorna a imagem segundo 'rela96es naturais' que comp6em
a trama." 36
A crise da i magem-a~ao
A partir dai Deleuze situa e caracteriza a crise da imagem-a9ao que da nascimento a urn cinema que exige cada vez mais pensamento. A nova imagem,
a imagem mental, que resulta dessa crise, explica-se em termos de pensamento, no sentido de que nela a percep9ao nao se prolonga mais em aqao,
mas se relaciona diretamente com o pensamento. ''A alma do cinema exige
cada vez mais pensamento, mesmo se o pensamento comeqa por desfazer o
sistema das a~6es, percepqoes e afec~6es que tinham alimentado o cinema
ate entao. Nao acreditamos mais que uma situaqao global possa dar Iugar
a uma aqao capaz de modifica-la. Tambem nao acreditamos mais que uma
a9ao possa forqar uma situa~ao a se revelar mesmo parcialmente. Desmoronam as ilusoes mais 'sas'. Em toda parte, o que fica logo comprometido
sao os encadeamentos situa9ao-a~ao, aqao-reaqao, excita~ao-resposta, em
* Por simbolo, ,Deleuze entend~ "urn objeto concreto portador de diversas rela<;:Oes ou
das varia<;:Oes de uma mesma rela<;:ao, de um personagem com outros ou consigo mesmo",
como a aliano;a em )anela indiscreta (1954), de Hitchcock (1-M, p.275).
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. DE LEUZE E 0 CINEMA
se acredite mais que uma situaqao de Iugar a uma aqao capaz de modifica-la,
resultando isso no questionamento dos liames sens6rio-motores constitutivos da imagem-aqao.
Deleuze apresenta cinco caracteristicas dessa nova imagem responsavel pelo questionamento do esquema sens6rio-motor. Primeiro, contrariamente a grande forma, com sua situaqao globalizante, agora as situaq5es sao
dispersivas, lacunares, com multiplos personagens, que as vezes aparecem
como principais, as vezes tornam-se secundarios, personagens entre os
quais as interferencias sao pequenas. Segundo, diferentemente da pequena
forma, agora se interrompe a linha que ligava os acontecimentos uns aos
outros; as ligaq5es ou os encadeamentos entre as imagens tornam-se fracos,
ao acaso. Terceiro, personagens que erram sem reagir ao que lhes acontece
substituem a aqao ou a situaqao sens6rio-motora. 0 passeio, a perambulaqao, a errancia fazem com que os personagens estejam em um continuo ir
e vir destacado da estrutura ativa ou afetiva que estava na sua base. Nao
ha mais propriamente uma aqao que se desenvolve em um espaqo determinado, e sim um espaqo qualquer, como espaqo desconectado ou espaqo
vaz10. Quarto, a tomada de consciencia dos cliches fisicos e psiquicos, imagens sens6rio-motoras das coisas. Essa nova imagem mostra que, para as
pessoas se suportarem, e preciso que a miseria externa insuport<J.vel atinja
suas consciencias. Quinto, a den uncia de um compl6 organizado por um poder difuso que faz circular os cliches. Trata-se do compl6 de um poder que
se exerce sobretudo pela vigi!ancia, para a qual a informaqao ou os meios de
comunicaqao desempenham um grande papel.
Essa analise e feita inicialmente tomando como exemplo 0 cinema
americana do pas-guerra, de Altman, Cassavetes, Lumet, Scorsese. Deleuze
encontra muitas dessas caracteristicas em Taxi Driver ( 1976), de Scorsese,
em que o motorista hesita entre se matar e cometer um assassinato politico,
e ao optar pela matanqa final chega a se surpreender, como se aquilo tudo
nao !he dissesse respeito; mas em que tambem nao M conexao sens6riomotora entre 0 motorista e 0 que e]e ve na calqada; ou entao em que e feito
o inventario dos cliches psiquicos do motorista e dos cliches 6ticos e sonoros da cidade. No entanto, se Deleuze salienta a dimensao cdtica desse cinema, com seu projeto estetico-politico de extrair uma imagem dos cliches
e usa-la contra eles, e em ultima analise para apontar seus limites e sugerir
A IMAGEM-MOVIMENTO
que, de fato, ele e pouco critico. Pois se limita a denunciar um mau uso das
instituic;5es, esforqando-se por salvar os restos do sonho americano, como
em Sidney Lumet, ou a parodiar o cliche em vez de realmente criar uma
nova imagem. No fundo, o que Deleuze quer mostrar tomando exemplos
de filmes bern posteriores ao nascimento de um tipo radicalmente novo de
imagem e que a for<;a da tradi<;iio do cinema americana, como cinema de
aqao, impedia que ele fosse transformado de dentro, pondo em questao a
imagem-movimento.
Essa liberta<;iio da imagem-movimento ou a criac;ao de um novo tipo de
imagem deve-se ao neorrealismo italiano, que foi, na verdade, segundo ele,
0 responsive! pela elaborac;ao das cinco caracteristicas que estao na base da
nova imagem: a situac;ao dispersiva, as ligac;oes fracas, a errancia, a tomada
de consciencia dos cliches, a denuncia do compl6. Pois, se era dificil para o
cinema americana escapar da imagem-ac;ao por causa da tradic;ao que havia criado, a Europa tinha mais liberdade para isso. Principalmente a ltalia,
pais que, ao contrario da Fran<;a, foi derrotado na guerra, mas, ao contrario
da Alemanha, dispunha de uma industria cinematografica que havia relativamente escapado do fascismo e, alem disso, podia invocar a resistencia.
Assim, foi primeiro na Italia que se produziu a grande crise da imagem-a<;ao,
com Rossellini, De Sica, Fellini, Francesco Rosi. Rossellini, questionando,
a grande forma da imagem-a<;ao, com Roma, cidade aberta (1945) e Paisa
(1946); De Sica, com Ladriio de bicicleta (1948) e Umberto D (1952), interrompendo a forma da pequena a<;ao; Fellini, com Os boas-vidas (1953), dando vez
ao passeio, a perambulac;ao; Rossellini e Fellini, com Viagem aItalia (1954),
De cn1pula a her6i (1959) e 0 xeique branco (1952), denunciando a fabricac;ao
dos cliches; Rosi, com 0 bandido Giuliano (1961), apresentando a imposic;ao
de papeis pelo poder. E se os italianos tinhanr uma "consciencia intuitiva'' da
nova imagem que nascia, a nouvelle vague retomou depois essa mutac;ao com
uma "consciencia intelectual e reflexiva". "A periodicidade e mais ou menos:
38
1948, a Italia; 1958, a Franc;a; 1968, a Alemanha'', diz Deleuze.
Mas, ao aprofundar a natureza dessa nova imagem, Deleuze nao a explica propriamente pe!as cinco caracteristicas apresentadas fl:O ultimo capitulo de Imagem-movimento. Janas ultimas linhas desse primeiro tomo, ele as
considera condic;oes externas necessarias, isto e, mais 0 que tornam possivel
a nova imagem do que ela propria. No entanto, sua posic;ao s6 aparece claramente no inicio de Imagem-tempo: sea crise da imagem-aqao era a condic;ao
negativa para o surgimento da nova imagem pensante, a imagem-tempo s6
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DE LEUZE E 0 CINEMA
2 A
IMAG EM-TEMPO
Situa~oes
6tico-sonoras puras
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DELEUZE E 0 CINEMA
A IMAGEM-TEMPO
nossas cren9as ideol6gicas, nossas ex1gencias psicol6gicas. Portanto, geralmente percebemos apenas cliches. Mas, se nossos esquemas sens6riomotores se bloqueiam ou se interrompem, urn outro tipo de imagem pode
aparecer: uma imagem 6tico~sonora pura, a imagem inteira e sem met<ifora,
que faz surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror
ou de beleza, em seu carater radical ou injustificavel, pois nao tern mais de
ser 'justificada', como bern ou como mal ... Esse foi o problema sobre o qual
nosso estudo precedente se encerrou: extrair dos cliches uma verdadeira
imagem."4o
0 neorrealismo e urn cinema em que o personagem registra mais do
que age e tern a revela9ao ou a ilumina9ao de alguma co is a de intoleravel, de
insuportavel, de uma situa9ao impossivel de ser vivida; urn cinema em que
se apreende alguma coisa forte demais, poderosa demais, injusta demais,
uma brutalidade visual e sonora insuportavel que excede nossa capacidade
sens6rio-motora. Ao se desvincular do esquema sens6rio-motor, que existe
em fun9ao da a9ao, a percep9ao do personagem- e do espectador- atinge
seu limite, sendo capaz de ir alem dos cliches que nos impedem de ver o
que o real tern de insuportavel, inaceitavel, que nos impedem de ter uma
rela9ao direta com o real. A imagem 6tico-sonora pura revela o que nao se
ve, o imperceptive!. Como em Stromboli (1951), de Rossellini, onde uma estrangeira tern uma revela9a0 profunda da vida porque e incapaz de reagir
para atenuar ou compensar a violencia do que ve na ilha italiana, como na
pesca do atum, na erup9ao do vulcao, e em Europa 51 (1952), tambem de
Rossellini, onde uma burguesa, depois da morte do filho, aprende a ver o
que se passa em torno dela, quando seu olhar abandona a fun9ao pratica de
dona de casa ocupada com a vida mundana, e ela descobre, por exemplo, o
que e 0 mundo do trabalho numa fabrica. *
A substitui9ao das situa96es sens6rio-motoras por situa96es 6ticas e
sonoras puras capazes de produzir novos modos de compreensao e de re* Deleuze cita esta cena nove vezes em Imagem~tempo (cf. I-T, p.8, 29, 30, y, 33, 63, 65, 75
e 222). Na E:poca em que estudava o cinema moderno, Deleuze elogiou duas vezes Foucault
como urn vidente que via o intolenlvel, alguem para quem pensar era reagir ao intolerivel
(cf. DRF, p.256; P, p.140 ). Nas cartas de 13 e 15 de maio de 1871, conhecidas como "cartas do
vidente", Rimbaud diz que precise se tornar vidente e est.i trabalhando para isso. De todo
modo, parece~me haver uma ton;ao evidente quando Deleuze subtrai o que hi de cristao e
transceridente nessas sequencias desses filmes de Rossellini para ilustrar sua tese da videncia
do cinema moderno. 0 tema de uma percept;ao artlstica -liberta da percept;J.o pragm<itica,
interessada, seletiva- capaz de revelar com intensidade o real e bergsoniano.
*No livro Para o observador distante, Noel Burch diz que os filmes de Ozu sempre evocam
a cerim6nia tradicional do chi, sua "geometria moral", e cita, a esse respeito, o poema didatico escrito pelo mestre do cha Rikyu, no seculo XVI: "Tenham sempre em mente/ Que
a cerim6nia do cha, em essencia,/ Nada mais eJ Que ferver 3.gua,/ Fazer o cha e heber"
(trad. fr., Gallimard, 1982, p.rgr).
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, DELEUZE E 0 CINEMA
pianos intermediarios sem personagens, mais ou menos autonomos: as naturezas mortas ou pillow-shots, planos-travesseiros, e os espa~os quaisquer,
que sao espa~os desconectados ou vazios. E, embora nao seja facil distingui-las dos espa~os, Deleuze insiste que as naturezas-mortas- como uma
bicicleta parada ou um vasa-, nao mais imagens vazias, mas plenas, sao
imagens puras e diretas do tempo. As "naturezas-mortas" detectam o tempo
como forma imutavel num mundo sem rela96es sens6rio-motoras. "Na banalidade cotidiana, a imagem-a~ao e ate mesmo a imagem-movimento tendem a desaparecer em pro! de situa96es 6ticas puras, mas estas descobrem
liga~6es de um novo tipo, que nao sao mais sens6rio-motoras, e que colocam
os sentidos libertos em rela~ao direta com o tempo, com o pensamento:'"
Pais, enquanto a imagem-movimento, presa aos liames sens6rio-motores,
clava apenas uma imagem indireta do tempo, a imagem 6tica e sonora pura
da uma imagem-tempo que subordina o movimento, uma imagem-teinpo
direta que faz o olho adquirir uma fun~ao de voyance, de videncia.
Bergson e a imagem-cristal
Deleuze aprofunda o conceito de imagem-tempo pelo conceito de imagemcristal. Falar de imagem-cristal* significa falar de uma imagem que tern duas
faces: atual e virtual; significa que, por oposi~ao a imagem-movimento, a
imagem-tempo e tambem virtual, OU, mais precisamente, e uma rela9a0
coalescente entre virtual e atual. *' Quando a imagem nao mais se prolonga
em movimento, como no cinema classico, ela se torna uma unidade indivisivel entre uma imagem atual e sua imagem virtual. Na imagem crista!,
atual e virtual- termos de origem bergsoniana- sao distintos, diferem por
natureza, mas, em Ultima analise, tornam-se indiscerniveis, inassinahiveis.
A IMAGEM-TEMPO
A dama de Xangai (1948), de Orson Welles, onde o principia de indiscernibilidade atinge o apice com uma imagem-cristal perfeita em que os espelhos
multiplicados tomaram, absorveram a atualidade dos dais personagens, que
s6 poderao reconquista-la quebrando todos os espelhos, encontrando-se assim !ado a !ado e matando-se um ao outro. Outro exemplo encontra-se em
Cidadiio Kane (1941), do mesmo diretor: quando, perto do final do filme,
depois de ser abandonado pela segunda esposa, Kane passa diante de dais
espelhos, um em frente ao outro, e sua imagem se multiplica. "Quando as
imagens virtuais proliferam assim, seu conjunto absorve toda a atualidade
do personagem, ao mesmo tempo que o personagem torna-se apenas uma
virtualidade entre outras:'4 '
Se virtual e atual sao conceitos fundamentais da filosofia de Deleuze, a
ponto de estarem presentes em todos os seus livros, em sua reflexao sabre
o cinema ele os explicita pela rela~ao com o tempo, ou pelo conceito de
tempo tal como o formula servindo-se mais uma vez de Bergson.
As grandes teses de Bergson sabre o tempo, ou os paradoxos do tempo,
apresentadas em Materia e memoria sao: 1) Passado e presente nao sao dais
momentos sucessivos do tempo, mas dais elementos coexistentes ou contemporaneos. 0 passado nao sucede ao presente que ele nao e mais, que ele
deixou de ser. 0 passado, como passado puro, passado em si, ou em si do
passado- a lembran9a pura, e nao a lembran~a empirica, a imagem-lembran9a- nao e um antigo presente; ele coexiste com o presente que ele foi.
0 passado esta entre dois presentes: o presente que ele foi e o atual presente
em rela~ao ao qual ele agorae passado. Mas ele se constitui nao antes, e sim
ao mesmo tempo que o presente que ele foi e o novo presente em rela~ao
ao qual ele e agora passado, o presente atual. "Um presente nunca passaria se nao fosse 'ao mesmo tempo' passado e presente; um passado nunca
se constituiria se nao tivesse sido antes constituido 'ao mesmo tempo' que
foi presente." 4l 0 passado nao se constitui depois de ter sido presente, ele
coexiste consigo como presente. A dura~ao e essa coexistencia, essa coexistencia consigo mesmo. Se o passado nao fosse passado ao mesmo tempo que
presente, ele jamais poderia se constituir, nem ser reconstituido a partir de
um presente ulterior.
2) Ha diferen~a de natureza entre passado e presente. Enquanto o presente nao e, ou e puro devir, isto e, muda, passa, nao para de passar, 0 passado nao deixa de ser, n[o para de ser, conserva-se em si, conserva-se no
tempo indefinidamente, como passado nao cronol6gico, passado em geral,
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A IMAGEM-TEMPO
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A IMAGEM-TEMPO
CINEMA
movimento, o crista! reverte a subordina~ao do tempo ao movimento e revela uma imagem-tempo direta.' 0 que o visionario, o vidente ve no crista!,
com seus sentidos libertados, e 0 tempo, e 0 jorro do tempo como desdobramento, como cisao em presente e passado, presente que passa e passado que
se conserva: o tempo em sua diferencia~ao. 46
Evidenciando o quanta sua analise do cinema moderno tambem parte
de Bergson, Deleuze da como exemplos de temporaliza~ao da imagem, ou de
forma~ao de uma imagem-tempo direta como imagem crista!, os cinemas
de Orson Welles e de Alain Resnais. Segundo ele, a primeira vez que uma
imagem-tempo direta aparece no cinema, na forma dos len~6is de passado, e
em Cidadilo Kane, quando as testemunhas entrevistadas pelo jornalista para
saber o que e Rosebud apresentam urn corte da vida de Kane, urn drculo
ou urn len~ol de passado virtual, coexistente. "Cada testemunha salta no
passado em geral, instala-se de saida nessa ou naquela regiao coexistente,
antes de encarnar certos pontos da regiao numa imagem-lembran~a." 47 1-Ia
basicamente dois tipos de imagens no filme. Umas reconstituem series motoras de antigos presentes. Sao os campos e contracampos que apresentam
os habitos conjugais de Kane. Mas ha tambem os pianos em profundidade
de campo, que exploram urn len~ol de passado. Deleuze caracteriza a profundidade de campo pensada como plano-sequencia nos seguintes termos:
"uma diagonal ou uma abertura que atravessa todos os pianos poe os elementos de cada plano em intera~ao com os outros e, sobretudo, faz comunicar diretamente o plano de fun do com o primeiro plano". 48 Como na cena da
tentativa de suiddio da segunda esposa de Kane. E, para salientar a rela~ao
entre tempo puro e profundidade de campo, ele indica que, quando Kane
vai encontrar sen amigo jornalista para a ruptura, move-se no tempo, ocupa
urn Iugar no tempo mais do que no espa~o; ou como, em M. Arkadin (1955),
tambem de Welles, quando o investigador aparece no patio, no inicio do
filme, ele surge do tempo, mais do que chega de outro Iugar. Em suma, as
imagens em profundidade expressarn regi6es virtuais do passado, camadas
de passado coexistentes, que tornam possiveis as imagens-lembran~a; sua
fun~ao principal e exibir o tempo por ele mesmo: uma fun~ao de rememora~ao, de temporaliza~ao, uma temporaliza~ao que se da pela memoria.
OphiHs, o cristal rachado, como em Renoir, o cristal em forma:;ao, como em Fellini, o cristal em decomposi:;ao, como em Visconti. Mas todas elas consistem na unidade indivisivel
de uma imagem atual e sua imagem virtual (1-T, p.111-28).
Descri~ao, narra~ao,
narrativa
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DE LEUZE E 0 CINEMA
zia, esses pontos de vista dependem dos tipos de imagem, isto e, de se tratar
de imagem-movimento ou de imagem-tempo.*
0 primeiro ponto diz respeito as descri~oes. Se a descri~ao tem rela~ao com o mundo, o meio, os objetos, a realidade, uma descri~ao "organica"
pressupoe uma situa~ao, uma realidade. Supoe a independencia do objeto;
supoe que o meio preexiste a descri~ao que a camera faz. E assim ela define
situa~oes sens6rio-motoras. Uma descri~ao cristalina, ao contrario, vale por
seu objeto, o substitui, ou ate mesmo o constitui, dando sempre Iugar a outras descri~6es, que podem modificar as anteriores. E uma descri~ao pura
que remete a situa~oes 6ticas e sonoras puras desligadas de seu prolongamento motor.
Deleuze aprofunda esse ponto pela rela~ao do real e do imaginario nos
dois tipos de descri~ao. 0 regime organico da descri~ao, regime sensoriamotor, compreende esses dois modos de existencia - o real e o imaginario- como dois palos em oposi~ao: os encadeamentos atuais do ponto de
vista do real, as atualiza~oes na consciencia do ponto de vista do imaginario. No regime cristalino da descri~ao esses dois modos de existencia
se reunem em um circuito em que o real e o imaginario, o real atual e o
virtual, formam duas imagens distintas, mas indiscerniveis, coalescentes,
intimamente unidas.
0 segundo ponto diz respeito a narra~ao. Se a narra~ao e a maneira de
contar uma hist6ria, a narra~ao organica consiste no desenvolvimento dos
esquemas sens6rio-motores. Deleuze estuda essa ideia pela distin~ao entre
movimentos normais e anormais. Urn movimento sem centro- centro de
revolu~ao, de equilibria, de gravidade- e anormal, aberrante. Segundo ele,
as anomalias de movimento, os movimentos aberrantes- acelera~ao, desacelera~ao, inversii.o, falso raccord etc. - apareceram bem cedo (basta pensar
* Essa analise leva Deleuze a introduzir uma outra imagem~tempo, que diz respeito nao
mais ordem, mas "serie do tempo". Esse tipo de imagem-tempo, que existiria em Jean
Rouch, Pierre Perrault, Shirley Clarke, Cassavetes, Godard, tambem rompe com a representafao indireta e com o curse empirico do tempo, mas porque "reline o antes e o depois
em urn devir, em vez de sepanlAos: seu paradoxa e introduzir urn intervale que dura no
pr6prio memento" (cf. I-T, PS4-s, 197-202). Nas "Conclus5es", Deleuze volta a essa dis~
tin~ao, vendo na ordem do tempo "uma ordem de coexistencias ou de simultaneidades"
e na serie do tempo "urn devir como potencializa~ao, como serie de potencias" (cf. I-T,
P35961).
A IMAGEM-TEMPO
em Jean Epstein), mas foram normalizadas pela imagem-movimento, parque para subordinar o tempo, medir o tempo, o movimento precisa ser normal, centrado.
A narra~ao cristalina implica um desmoronamento dos esquemas sens6rio-motores, que dao Iugar a situa~oes 6ticas e sonoras puras, em que o
personagem torna-se vidente. As anomalias de movimento, os movimentos
anormais, falsos, produzidos por um tempo cronico, nao cronol6gico, ganham independencia, tornando-se essenciais em vez de serem acidentais
ou eventuais, como na narra~ao organica. A muta~ao que da origem a imagem-tempo se produz quando as aberra~oes de movimento, os movimentos
descentrados, ganham independencia. Eo reino do falso raccord, como em
Dreyer e Resnais. Um movimento anormal, aberrante, que foi conjurado
pela imagem-movimento, poe em questao o tempo como representa~ao indireta ou niimero do movimento, porque escapa do centro, das rela~oes de
numero, dando ao tempo a possibilidade de surgir diretamente, livre do encadeamento motor. "Se o movimento normal subordina o tempo, do qual
ele nos da uma representa~ao indireta, o movimento aberrante testemunha
uma anterioridade do tempo, que ele nos apresenta diretamente, do fundo
da despropor~ao das escalas, da dissipa~ao dos centros, do falso raccord das
pr6prias imagens."''
Dessa anterioridade do tempo em rela~ao ao movimento resulta que a
narra~ao deixa de ser veridica, de visar a verdade, de pretender ser verdadeira ate mesmo na fic~ao, para se tornar falsificadora. Assim como a descri~ao cristalina nao pressupoe mais uma realidade, a narra~ao tambem nao
remete mais a verdade. A descri~oes puras correspondem narrativas falsificadoras. Todo esse ponto e inspirado em Nietzsche e sua critica da verdade.
Deleuze diz explicitamente que foi Nietzsche quem, com sua teoria da vontade de potencia, substituiu a forma do verdadeiro pela potencia do falso. E
aponta os principais pontos da critica nietzschiana da verdade.
Primeiro, a critica da cren~a em um mundo verdadeiro. Com isso Deleuze esta aludindo principalmente ao celebre texto de Crepusculo dos !dolos, "Como o 'mundo verdadeiro' acabou convertendo-se numa fabula", onde
Nietzsche apresenta como etapas da "hist6ria de um erro" as concep~oes
platonica, crista, kantiana e positivista de "mundo verdadeiro", para defender que ele eliminou o mundo verdadeiro e, por conseguinte, tambem o
aparente, isto e, a oposi~ao entre mundo verdadeiro e mundo aparente. Esse
texto e, a meu ver, a formula~ao mais radical de Nietzsche sabre a questao
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tuir o julgamento pelo afeto. "0 afeto como avalia9ao imanente em vez do
julgamento como valor transcendente: 'gosto ou detesto' em vez de 'julgo'.''SS
Dito de modo mais preciso: Welles foi o primeiro a dar a imagem cinematognifica a potencia do falso. E potencia do falso nao se contrapoe a cria9ao
de verdade, ou a potencia artistica criadora, pois Deleuze diz claramente:
"0 artista e criador de verdade, pois a verdade nao tern de ser alcan9ada,
encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada."s 6
Mas, alem de partir das instancias da descri9ao e da narra9ao para definir o regime cristalino, Deleuze tambem parte da narrativa (rikit). Enquanto
a narra9ao dizia respeito ao desenvolvimento do esquema sens6rio-motor, a
narrativa diz respeito ao desenvolvimento da rela9ao sujeito-objeto, das imagens subjetivas e objetivas. Em Imagem-movimento, ele come9ava o estudo
da imagem-percep9ao investigando como a distin9ao entre as imagens objetivas e subjetivas se manifesta no cinema, dando duas defini96es nominais,
provis6rias. A imagem-percep9ao subjetiva seria aquela em que o conjunto
e visto por alguem que faz parte dele, como, por exemplo, urn personagem
com OS o)hos feridos Ve as coisas sem nitidez, OU uma dan9a e mostrada da
perspectiva de quem esta dan9ando. Por outro !ado, a imagem-percep9ao seria objetiva quando a coisa ou o con junto e visto do ponto de vista de alguem
exterior ao conjunto. Agora, ele volta a considerar objetivo o que a camera
ve e subjetivo o que o personagem ve. E isso o leva a pensar a narrativa organica como desenvolvimento dos dois tipos de imagem, objetivas e subjetivas, e a narrativa cristalina como a que questiona a distin9ao do objetivo e
do subjetivo, mas tambem sua identifica9ao. Como em Orson Welles ou no
"cinema-verdade" de Jean Rouch, cineasta que destrona a forma da narra9ao
veraz ou o modelo de verdade e se torna criador de verdade.
Mas ele tambem se apropria da no9ao de imagem "subjetiva indireta livre", que Pasolini formula a partir do discurso indireto livre, de Bakhtin, para
ultrapassar o subjetivo e o objetivo da percep9ao por uma forma pura que se
erige em visao autonoma do conteudo, correlacionando uma imagem-subjetiva e uma imagem-objetiva, em que a ultima transforma a primeira no sentido de produzir uma reflexao da imagem numa consciencia-camera, numa
camera consciencia de si. Uma imagem subjetiva seria urn discurso direto:
o espectador ve o que o personagem ve. Uma imagem objetiva, urn discurso
indireto: 0 espectador ve 0 personagem e sabe 0 que ele esta vendo. 0 cinema de poesia de Pasolini e baseado num discurso indireto livre que consiste, diz Deleuze, "numa enuncia9ao tomada em urn enunciado que por sua
A IMAGEM-TEMPO
vez depende de uma outra enuncia9ao. Por exemplo, 'Ela reline sua energia:
antes ser torturada do que perder a virgindade'.''* E Deleuze explicita essa ideia
dizendo que para Bakhtin, de quem tirou o exemplo citado, o discurso indireto livre seria urn agenciamento de enuncia9ao operando ao mesmo tempo
dois atos de subjetiva9ao, constituindo dois sujeitos, urn desdobramento ou
diferencia9ao do sujeito.
Jsso tern como consequencia que, no caso do cinema de poesia, pensado por Pasolini como equivalente do discurso indireto livre, tem-se uma
imagem subjetiva indireta livre: "Urn personagem age na tela e supoe-se
que veja o mundo de certa maneira. Mas, ao mesmo tempo, a camera o ve
e ve seu mundo de urn outro ponto de vista que pensa, reflete e transforma
0 ponto de vista do personagem ... a camera nao oferece apenas a visao do
personagem e do seu mundo, ela impoe outra visao na qual a primeira se
transforma.''S7 Na teoria do "discurso indireto livre" ou da "subjetiva indireta
livre" de Pasolini, o que Deleuze chama de narrativa cristalina seria uma
"pseudonarrativa", uma simula9ao, uma narrativa simuladora, que destrona
a narrativa veraz.s8
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OELEUZE E 0 CINEMA
A IMAGEM-TEMPO
De leuze tam bern faz- como sempre inspirado em Kafka- uma reflexao sobre a politica, a partir da distin~ao entre o cinema classico e o moderno. Ela diz respeito, primeiro, a rela~ao entre o cinema e o povo. Sua
ideia e que, no cinema classico, o povo esti presente, mesmo que como
oprimido, enganado, submetido, cego, inconsciente, como nos filmes sovieticos de Eisenstein, Pudovkin, Dziga Vertov e Dovjenko e nos filmes americanos de King Vidor, Frank Capra e John Ford. Dai a ideia de que o cinema
como arte de massa pode ser por excelencia a arte revolucionaria, ou democra.tica, que faz das massas urn verdadeiro sujeito. Mas, com o nazismo, o
stalinismo, a decomposi9ao do povo americano, o cinema politico moderno
passa a ter como base que o povo nao existe, que falta o povo. Isso, para Deleuze, aparece com clareza no "terceiro mundo", onde as naqoes oprimidas,
exploradas, permaneciam como minorias, em crise de identidade coletiva.
Essa constata9iiO de que falta urn povo nao e uma renuncia ao cinema politico, mas a base na qual ele se funda no terceiro mundo e com as minorias.
Sua tarefa e justamente contribuir para a inven9aO, a cria9a0 de urn povo.
"No momento em que o senhor, o colonizador, proclama 'nunca houve povo
aqui', o povo que falta e urn devir, ele se inventa, nas favelas e nos campos,
ou nos guetos, com novas condi~oes de !uta, para as quais uma arte necessariamente politica tern de contribuir.""
Segundo, essa reflexao sobre a politica diz respeito a rela~ao do cinema
com 0 politico e o privado. A esse respeito, sua ideia e que o cinema classico
mantem a fronteira entre as duas instancias, o que permite passar, pela tomada de consciE!ncia, de uma for9a social a outra, de uma posil'ao politica a
outra. Assim, a mae, no filme de Pudovkin de mesmo nome (1926), ao tomar
consciencia da )uta pohtica do filho, toma o seu Iugar, ou, em As vinhas da
ira (1940), de John Ford, em que eo filho que continua a !uta da mae. Ja no
cinema moderno, o privado se confunde com o social ou o politico. Nao ha
mais revolu~ao considerada como urn salto do antigo ao novo. Ha coexisti!ncia de etapas sociais muito diferentes. Como em Deus e o diabo na terra do sol
(1964), de Glauber Rocha, em que os mitos do povo, o profetismo eo banditismo, sao o avesso arcaico da vio!E!ncia capitalista, como se o povo voltasse
contra si proprio a violencia que sofre. Trata-se de urn cinema de agita~ao
que "consiste em tudo colocar em transe, o povo, seus senhores e a propria camera, em levar tudo a aberra~ao, tanto para comunicar as violencias quanto
para introduzir o privado no politico e o politico no privado (Terra em transe,
1967)".6' Ou, como em Le regne du jour (1966), Un pays sans bon sens (1971),
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. DELEUZE E 0 CINEMA
(1-T, p.329).
A !MAGEM-TEMPO
realizar a critica do mito, a crise permite extrair o ato de fala fabulador. Nao
mais urn mito de urn povo passado, mas a fabula~ao do povo por vir. Em
suma, ''atraves do transe ou da crise, constituir urn agenciamento que retina
partes reais, para faze-las produzirem enunciados coletivos, como a prefigurac;ao do povo que falta". 6'
Os componentes da imagem
as alas, a musica, formam urn continuum que, mesmo podendo se diferenciar, faz parte da imagem visual. 0 cinema permanece, com o cinema falado
classico, uma arte profundamente visual.
A diferen~a entre o cinema classico e o cinema moderno nao coincide
com a ruptura entre o mudo e o falado, que nao e essencial. Por urn !ado,
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Cinema e diferenc;a
Havera uma superioridade de um cinema sabre o outro? Se pensarmos na
afirma9ao de Deleuze de que o cinema moderno "nao e alguma coisa mais
bela, mais profunda, nem mais verdadeira; e outra coisa", ou de que nao
ha hierarquia em termos de melhor e pior entre o cinema moderno e o cinema classico,67 poderiamos supor que os cinemas da imagem-movimento
e da imagem-tempo tem a mesma importi\ncia para ele. Mas isso nao me
parece verdade. Pais, quando se compara o que ele diz dos dais tipos de
cinema, ve-se claramente uma continuidade entre sua filosofia da diferen9a
e o cinema moderno - do qual ele e urn contemporaneo que sempre aco-
A IMAGEM-TEMPO
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D,ELEUZE E 0 CINEMA
Foucault e Kant
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inspirada em Nietzsche, sua resposta seja muito diferente da que foi dada
par Kant.
Estudei a posi<;ao singular de Kant no pensamento de Deleuze, mostrando como a filosofia kantiana constitui um dos principais instrumentos
conceituais para a elabora<;ao e estrutura<;ao de seu sistema. 0 que significa
Kant para Deleuze? Antes de tudo, a descoberta da "diferen<;a transcendental", ou o fato de o sujeito ser constituido par duas formas irredutiveis que fazem com que ele seja receptivo, afetado, e determinante, espontaneo. 0 que
aproxima Deleuze de Kant e, deste modo, a novidade kantiana de considerar
o conhecimento a partir de uma diferen<;a de natureza, e nao apenas de grau,
entre a sensibilidade, faculdade de intui<;6es, e o entendimento, faculdade
de conceitos. 0 conhecimento e uma sintese do heterogeneo. Procurei inclusive aprofundar essa questao da diferen<;a das faculdades privilegiando o
"paradoxa do tempo'', segundo o qual "eu penso" s6 determina minha existencia, "eu sou", sob a forma de um eu passivo no tempo. Meu objetivo, entao, foi mostrar como a valoriza<;ao da diferen<;a no interior do sujeito entre
o eu transcendental e o eu fenomenal a partir de uma forma pura e vazia do
tempo evidencia que Deleuze le Kant na perspectiva da questao da diferen<;a
e de sua rela<;ao com o pensamento. Assim, quando ele interpreta o paradoxa
kantiano do tempo a partir da questao central de sua filosofia, o que orienta
a tor<;ao caracteristica de seu procedimento de colagem eo interesse em conceber o tempo como a diferen<;a transcendental que introduz uma fissura,
uma rachadura no sujeito. Pais e esse procedimento que est\ presente na
inten<;ao deleuziana de definir o saber em Foucault como um composto de
duas formas heterogeneas, disjuntivas, uma tendo primado sobre a outra.
Mas o acordo esta Ionge de ser total. Pois, como vimos, a principal critica deleuziana a filosofia de Kant diz justamente respeito ao fato de a rela<;iio entre as faculdades ser um acordo harmonioso ou uma colabora<;ao sob
a forma do mesmo. Considerando esse principia do senso comum um dos
postulados da representa<;ao, Deleuze vai, entao, seguir dais caminhos que
lhe permitem extrair da questao kantiana da rela<;ao das faculdades uma filosofia da diferen<;a. 0 primeiro percorre as tres Criticas para dar conta do
deslocamento, com o sublime, na Critica da faculdade do juizo, da questao da
condi<;ao de possibilidade para a questao, mais fundamental segundo ele,
da genese: no caso do sublime, o desacordo entre a imagina<;iio e a razao
e o principia genetico do acordo das faculdades. Trata-se, portanto, de um
acordo engendrado no desacordo.
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uma filosofia da diferen~a que se expressa pela disjun~ao das formas do saber que tem o poder como condi~ao genetica funcionando como diferenciador da diferen~a.
A relac;ao diferencial
A busca do tipo de rela~ao entre termos ou entre series e sempre o que move
Deleuze em suas analises dos pensadores, sejam filosofos ou nao. A afirma~ao do privilegio da rela~ao aparece desde seu primeiro livro, Empirismo e
subjetividade, e se intensifica nos textos seguintes sobre Hume, que consideram o empirismo importante por fazer das rela~oes o verdadeiro objeto da
filosofia. Uma das originalidades do empirismo, para Deleuze, e a ideia de
que as rela~oes sao auto no mas, exteriores e heterogeneas aos termos. Essa
ideia o leva, por exemplo, a dizer que, com Hume, "o verdadeiro mundo
,empirista desdobra-se pela primeira vez em toda a sua extensao: mundo
,de exterioridade, mundo em que o proprio pensamento est;\ numa rela~ao
Lfundamental com o De-fora, mundo onde ha termos que sao verdadeiros
atomos e rela~oes que sao verdadeiras passagens externas - mundo onde
a conjun~ao 'e' destrona a interioridade do verbo 'e', mundo de Arlequim,
mundo de cores variadas (bigarrures) e de fragmentos nao totalizaveis onde
nos comunicamos por meio de rela~oes exteriores". No prefacio a edi~ao
americana de Empirismo e subjetividade, Deleuze volta amesma ideia, ao dizer a respeito de Hume: "Ele fundou a primeira grande logica das rela~oes,
mostrando que toda relas;ilo (nao apenas os 'matters of facts', mas as rela~oes
de ideias) era exterior a seus termos. Assim, ele constitui um mundo da experi<lncia extremamente diverso, segundo um prindpio de exterioridade
das rela~oes: partes atomicas, mas com transla96es, passagens, 'tendencias'
que vao de umas as outras:'* Atomismo e associacionismo.
0 aspecto critico da filosofia de Deleuze tem sempre como alvo a re1?resenta9ao considerada como subordina9ao da diferen~a a identidade. Mas
e preciso compreender que para nao reduzir a rela~ao a uma identifica9ao
nao basta privilegiar a conjun9ao, pensar com e em vez de e. Pois ha no
procedimento filosofico deleuziano o projeto ainda mais importante de afir"
'"Hume", in ID, p.228; DRF, p.342. Cf. D, p.68-n Nessa passagem de Dicilogos, Deleuze\1
contrap5e Sartre, "que ficou preso nas armadilhas do verbo ser", a Jean Wahl, "que levou o 1
mais longe possivel a arte do E, a gagueira da linguagem, o uso minoritario da lingua".
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A ARTE E A FILOSOFIA
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sim~
plicidade ou totalidade virtual, e a divisao ou o dualismo genetico que produz e proveniente da diferenc;ac;ao (diferenciation) dessa virtualidade pura
e simples. Divisao agora significa a atualiza9ao dessa virtualidade segundo
linhas divergentes que diferem por natureza. Nao ha, portanto, semelhan9a
entre o virtual e o atual. Ao atualizar-se, o virtual se diferencia. A diferen9a-l
9ao e a atualiza9ao de uma virtualidade que persiste atraves de suas linhas)
divergentes atuais. Ela explica, desenvolve por linhas divergentes o que
estava envolvido. E, na filosofia bergsoniana, e o conceito de impulse vital
(elan vital) que designa a diferen9ac;ao da diferenp, a atualiza9ao do virtual
por linhas de diferen9a9ao tao importante para a concep9ao deleuziana da
genese como processo de atualiza9ao. 0 impulse vital e a durac;ao en quanta
305
gicamente, como fundado nas c_oisas, nas rela<;5es entre as coisas e entre as durat;Oes, ele
\1
306
outra coisa. Assim, devido aos atributos, que constituem a essencia da subs. tancia e contem a essencia dos modos, ha ao mesmo tempo comunidade ou
identidade de forma e diferen~a de essencia entre a subs tancia e os modos.
A partir dai, Deleuze aprofunda essa problematica explicitando uma
dupla genese caracteristica da ontologia de Espinosa: primeiro, a genese no
sentido de constitui9ao logica da substancia, que se elabora atraves de uma
teoria da distin~ao formal, ou da distin~ao real nao numerica, e explica a
passagem das primeiras proposi~6es da Etica, que demonstram a existencia
de uma substancia par atributo, as proposi~oes que afirmam haver apenas
uma substancia para todos os atributos; segundo, a genese no sentido de
produ9ao fisica dos modos, atraves de distin96es modais intrinsecas e extrinsecas que dizem respeito as quantidades intensivas e extensivas contidas
no atributo e que sao partes da essen cia ou potencia da substancia.
Par que a teoria da univocidade do ser e tao importante para a elabora9ao da filosofia de Deleuze? A essa questao so ha uma resposta: pela possibilidade de afirmar uma sintese disjuntiva ou o carater sintetico, e nao analitico, da disjun9ao, com a divergencia eo descentramento que ela acarreta.
Uma prova e essa afirma~ao de L6gica do sentido: "A filosofia se confunde
com a ontologia, mas a ontologia se confunde com a univocidade do ser (a
analogia sempre foi uma visao teologica, e nao filosofica, adaptada as formas de Deus, do mundo e do eu). A univocidade do ser nao quer dizer que
haja urn unico ser: ao contrario, OS entes sao multip!os e diferentes, sempre
produzidos por uma sintese disjuntiva, eles proprios disjuntos e divergentes, membra disjuncta. A univocidade do ser significa que o ser e Voz, que
ele se diz em urn mesmo 'sentido' de tudo aquila de que ele se diz. Aquila
de que ele se diz de modo algum e o mesmo. Mas ele e o mesmo para tudo
aquila de que se diz.">O Pois e essa concep~ao da univocidade que, exigindo
que a substancia seja afirmada dos modos, e nao o inverse, afasta Deleuze de
Espinosa e o faz buscar em Nietzsche a "subversao categorica" pela qual o
ser se diz do devir ou a identidade, do diferente."
Mas, antes de situar a posi9ao fundamental de Nietzsche no ambito dessas
leituras, e importante mostrar como Leibniz figura nelas. Pois, se ao Iongo
de sua vida intelectual Deleuze conviveu com alguns filosofos, livros importantes como Espinosa e o problema da expressdo, L6gica do sentido, Diferenya e
repetiqao evidenciam que Leibniz e urn deles, e isso se manifesta ainda mais
claramente com A dobra: Leibniz eo barroco, publicado em 1988.
307
308
DEL~UZE,
A ARTE E A FILOSOFIA
to rna passive!, traqa uma linha barroca reunindo- como diferenqas que se
assemelham - arquitetos, pintores, musicos, poetas, literatos, cientistas,
fil6sofos. Amplia, deste modo, o conceito de barroco e revela a atualidade
de Leibniz. 0 resultado e o proprio Deleuze aparecer como pensador barroco, ao !ado de Mallarme, Proust, Michaux, Borges, Kleist, Wagner, Debussy, Cage, Boulez, Stockhausen, Berio, Klee, Dubuffet, Hantai, Raymond
Ruyer, Whitehead.
Como isso e passive!? Por urn criterio aparentemente simples que orienta
o livro: para o pensamento barroco, em todas as suas manifestaqoes, quer tenha como elemento conceitos filos6ficos, funqoes cientificas ou sensaqoes
artisticas, pensar e dobrar. Ou mais precisamente, e barroco todo aquele
que cria urn mundo que se dobra, desdobra, redobra. No barroco tudo se
dobra a seu modo: a cor, a luz, o som; o tecido, o marmore, o cobre, o papel;
o corpo, a roupa; a 3.gua, a terra, o ar ... Assim como os livros anteriores de
309
310
e,
todos os niveis. Para utilizar a formula sempre presente em seus livros e que
reaparece em A dobra: o elemento genetico eo diferenciador da diferen9a.
Leibniz, fil6sofo da diferen9a? Nao totalmente, como poderia parecer.
A partir dessa estrutura- a alma, o corpo e a rela9ao entre eles atraves do
mundo -, Deleuze analisa os principais conceitos da filosofia de Leibniz:
razao suficiente, indiscerniveis, vinculum, harmonia preestabelecida, compossibilidade, incompossibilidade ... , ressaltando, mais do que nos livros anteriores, sua importancia para a constitui9ao de uma filosofia da diferen9a.
Mas, ainda dessa vez, nao vai com ele ate o fim.
Diferenqa e repetiqao e L6gica do sentido consideravam um erro de Leibniz submeter as series a uma condi9ao de convergencia, sem ver que a propria divergencia e um objeto de afirma9ao ou que as incompossibilidades
pertencem a um mesmo mundo. E o livro sabre o cinema moderno, escrito
pouco antes de A dobra, nao diz coisa diferente." Ora, e exatamente com
a mesma critica a ideia de convergencia que Deleuze, mais uma vez, se
distancia de Leibniz. Ao mostrar que o mundo e uma infinidade de series
convergentes em torno dos pontos singulares, A dobra deixa clara que, para
Leibniz, seas series divergem na vizinhan9a de suas singularidades, um outro mundo aparece, incompossivel com o primeiro.
Pensar as divergencias de series como fronteiras entre mundos incompossiveis aparece mais uma vez a Deleuze como uma limita9ao da filosofia de
Leibniz. Como sempre, ele prefere a ideia- exposta em A dobra, a partir de
Whitehead, a quem um capitulo do livro e dedicado, e dos musicos que emanciparam a dissonancia e abriram a musica a uma politonalidade - de que as
incompossibilidades, as bifurca96es, os desacordos, as divergencias pertencem
ao mesmo mundo, mundo ca6tico, caosmo, mundo de capturas mais do que
de clausuras, pura diversidade disjuntiva. Pensar um mundo sem prindpios
onde se da a existencia de todos os mundos incompossiveis: eis a tarefa perigosa que Deleuze assinala para a filosofia a partir da leitura de Leibniz.
Dai A dobra considerar o barroco do seculo XVII um esplendido momenta de crise, uma transi9ao ou uma ultima tentativa de reconstruir uma
razao chissica- a razao teol6gica- repartindo em mundos possiveis as divergencias que a amea9am e pretendendo resolver os desacordos por acordos, as dissonancias por uma harmonia universal. Para Deleuze, em ultima
anilise, o barroco deu Iugar a um neobarroco, o leibnizianismo a um neoleibnizianismo que dobra, desdobra, redobra series divergentes no mesmo
mundo. Ideia que -com outra terminologia- sempre constituiu o amago
311
312
de sua filosofia e volta, mais uma vez, nesse livro sobre Leibniz, como uma
repeti~ao da diferen~a. 0 que nos leva, em ultima analise, a Nietzsche.
A doutrina do pensamento
Mas isso nao e tudo, pois essa teoria diferencial do pensamento existente
na interpreta~ao deleuziana dos fil6sofos tambem e exposta de urn ponto
de vista sistematico- independentemente da leitura de urn fil6sofo ou nao
Analisei detalhadamente essa teoria das faculdades que tern sua formula~ao mais brilhante em Diferenqa e repetiqao. Mas, para que nao se pense
que isso e apenas urn momento de sen pensamento, depois abandonado, e
A interpreta~ao deleuziana de Nietzsche privilegia principalmente duas rela~5es disjuntivas. A primeira diz respeito as for~as e leva Deleuze a definir
urn corpo fisico, biol6gico, social como uma multiplicidade de for~as heterogeneas, irredutiveis, em !uta, sendo umas dominantes, ativas, e outras
dominadas, reativas. A partir dai, ele define a vontade de potencia como
prindpio genetico e diferencial das for~as, principia interno de produ~ao
ou determina~ao da qualidade da for~a e da quantidade da rela~ao entre as
for~as. Assim, vontade e fon;a estao em niveis diferentes: a for~a e empirica,
isto e, quantitativa e qualitativa; a vontade, principia transcendental ou genetico das for~as, e intensiva e diferencial, e sen devir ativo.
Mas a vontade de potencia s6 pode exercer plenamente essa funqao de
principia diferencial, ou de diferenciador da diferen~a, por sua rela~ao com
o eterno retorno. Deleuze explicita essa nova problematica nos termos de
uma rela~ao entre sensibilidade e pensamento, considerando a vontade de
potencia como o devir sensivel ou a sensibilidade diferencial das for~as e o
eterno retorno como o pensamento mais elevado ou mais abissal. Sua interpreta~ao identifica a vontade afirmativa de potencia a diferen~a em si
mesma e o eterno retorno ao pensamento capaz de criar a vontade de potencia como positividade, como forma superior, porque torna passive! pensar diferencialmente a diferenqa em vez de subordina-la a identidade. No
eterno retorno, a identidade nada mais e do que a repeti~ao da diferen~a.
Que pensamento e esse? 0 da univocidade do ser. 0 que leva Deleuze a
caracterizar a filosofia de Nietzsche como uma ontologia em que ser e devir
sao pensados pela rela~ao entre eterno retorno e vontade de potencia. Deste
modo, 0 eterno retorno e 0 ser univoco que se diz do devir ativo das forqas
ou da vontade de potencia, o revir produzido pelo limiar de intensidade ou
pelo estado de excesso da diferen~a.
313
114
315
I
que a cria<;iio de conceitos e uma constru<;iio sobre urn plano, ou que filosofar, alem de criar conceitos, e tambem tra<;ar urn plano.
0 que e esse plano de consistencia ou mais exatamente plano de imanencia dos conceitos, segundo elemento da constru<;iio filos6fica? Se o conceito
e urn todo fragmentado, uma multiplicidade de componentes heterogeneos,
intrinsecamente relacionados, 0 plano e unico: e urn todo nao fragmentado,
aberto, informe, ilimitado, "o absoluto ilimitado", o "horizonte absolute", o
"solo absolute", o "movimento infinito".' 6 Pois esse meio indivisivel, que se
move por ele mesmo infinitamente, que evaria<;iio pura, e 0 suporte dos conceitos, suporte onde os conceitos, que o preenchem, se repartem, se distribuem. Os conceitos existem relativamente ao plano sabre os quais eles se
delimitam, aos problemas que eles devem responder: "Urn conceito tern
sempre a verdade que lhe cabe em fun<;ao das condi<;6es de sua cria<;iio."''
Assim, se Deleuze chega a dizer que o plano de imanencia e pre-filosofico, nao e no sentido de algo que preexiste, mas de algo que, nao existindo
fora da filosofia, e seu solo, sua funda<;ao, sua suposi<;ao, sua pressuposi<;iio,
sua condi<;ao interna. "Ele e o mais intimo no pensamento e, no entanto, o
de-fora absoluto."' 8 0 exemplo de Deleuze retoma uma ideia de Diferenya e
repeti~ao: "em Descartes, tratava-se de uma compreensao subjetiva e implicita suposta pelo Eu penso como primeiro conceito", isto e, para Descartes,
todo mundo sabe o que significa pensar, todo mundo tern a capacidade de
pensar, todo mundo quer a verdade.'9 Assim, sem se confundir com o conceito- ele e pre-conceitual-, 0 plano e a propria imagem do pensamento,
a imagem que a filosofia cria do que significa pensar.
Mas, se o plano e de imanencia, isso nao impede que haja ilus6es que o
cercam, funcionando como miragens do pensamento. A primeira dessas ilus5es e a transcend~ncia, pois a transcendencia e uma caracteristica mais da
religiao do que da filosofia; de direito, a filosofia e imanente. E, a esse respeito, o livro traz o grande elogio a Espinosa: "Quem sabia plenamente que
a imanencia so pertencia a si mesma, sendo assim urn plano percorrido pe
los movimentos do infinite, preenchido pelas ordenadas intensivas, e Espinosa. Assim, ele e o principe dos filosofos. Talvez o unico a nao ter aceitado
nenhum compromisso com a transcendencia, a te-la expulsado de todos os
lugares"; "Espinosa, o tornar-se fil6sofo infinite. Ele mostrou, erigiu, pensou 0 'melhor' plano de imanencia, isto e, 0 mais puro, aquele que nao se da
ao transcendente nem propicia o transcendente, aquele que inspira menos
ilus6es, maus sentimentos e percep<;6es err6neas".'o
eu
317
18
coadaptaqao. Deleuze chama de "gosto" a faculdade filosofica de coadaptaqao que regula a criaqao dos conceitos, ou e a regra de correspondencia dos
tres elementos. Considerando o conceito a soluqao ou a resoluqao de um
problema, o plano de imanencia as condiq5es do problema e o personagem
conceitual a incognita do problema, ele defende que as tres atividades que
comp5em o construtivismo nao cessam de se revezar, uma precedendo a
outra, isto e, todas em pressuposiqao redproca: uma consistindo em criar
conceitos como casos de soluqao, a outra em traqar um movimento sabre o
plano e uma terceira em inventar um personagem como incognita do problema, como aquila a ser determinado na soluqao de um problema.
Os aliados externos
Privilegiei, na interpretaqao do pensamento de Deleuze, sua leitura dos filosofos. Entre outras razoes porque considero que a estrutura e o modo de
fnncionamento de sua filosofia, mais do que pelo extrafilosofico, explica-se
pela retomada criadora, no pensamento de filosofos que escolheu como
intercessores, dos conceitos que !he possibilitaram constituir sua filosofia
como um pensamento diferencial. Mas isso nao significa ignorar seus importantes estudos sabre domfnios exteriores a filosofia. A relaqao entre disciplinas sempre foi muito intensa no procedimento filosofico de Deleuze,
pois, como tenho esclarecido, o objetivo principal de sua filosofia e investigar 0 que seja pensar, e 0 pensamento nao e exclusividade da filosofia, mas
uma propriedade de qualquer tipo de saber.
Por isso, ao considerar o discurso cientifico ou as expressoes artfsticas
e literarias, ele esta sempre criando conceitos a partir do que foi pensado,
com elementos proprios, em outros domfnios; esta sempre transformando
em conceitos o exerdcio nao conceitual de pensamento existente nesses outros campos com o objetivo de realizar seu projeto filosofico de constituiqao
de uma filosofia da diferenqa.
No caso da literatura, numa epoca em que ainda nao distinguia com precisao arte e filosofia pela diferenqa entre sensaqao e conceito, Deleuze pensa
a Recherche de Proust como "eminentemente filosofica". Com isso ele quer
dizer que, sendo uma busca inconsciente e involuntaria da verdade, alem
de um sistema de pensamento, ela e um sistema que se opoe a filosofia da
e,
eo
encontro
contingente com o que forqa a pensar, e nao uma boa vontade previa do
pensador, que produz a necessidade de um ato de pensamento. Fazendo violencia ao pensamento, os signos forqam a pensar ou a buscar o sentido, a
essencia. Assim, se a Recherche e o relata de um aprendizado temporal que
converge para a arte, e porque aprender e interpretar, e interpretar e explicar ou explicitar o signo enunciando o sentido, ou a essencia, que nele esta
oculto ou latente. 0 que Deleuze chama aqui de essencia, utilizando uma
palavra usada varias vezes por Proust, e muito importante. Pois e ela que
constitui a unidade do signo imaterial e do sentido espiritual de um modo
bem preciso: como aquilo que "dirige o movimento deles", que "poe um no
outro"; alem disso, e mais precisamente, essa essen cia, que relaciona signo e
sentido, e a diferenqa ultima e absoluta, a diferenqa interna, qualitativa. Assim, a perfeita unidade ou adequaqao entre signa e sentido, que caracteriza
a boa interpretaqao, so existe na obra de arte, que transforma o tempo perdido em tempo redescoberto e possibilita conferir a cada tipo de signa averdade que !he e propria. Esse ponto de vista superior, artfstico, e a diferenqa.
Se, por outro !ado, tomarmos em consideraqao, de um modo geral, a
leitura que Deleuze faz dos literatos, e passive! dizer que ele se utiliza da
literatura para pensar conceitos importantes de sua filosofia, como o devir,
a diferenqa, o limite, a intensidade, as forqas ... Mas o privilegio de duas
caracterfsticas importantes de sua maneira bastante singular de pensar aliteratura permite relacionar todos esses conceitos suscitados pela leitura de
seus escritores favorites.
A primeira caracteristica diz respeito a linguagem literaria. 0 que Deleuze valoriza na Jinguagem sao OS efeitos de sintaxe que possibiJitam que
os escritores criem uma nova lingua- agramatical ou assintatica -, produzam um devir-outro da lingua, insurgindo-se contra a lingua padrao. Por
isso, quando analisa Bartleby, o escrivao, de Melville, pretende mostrar que,
ao criar uma zona de indiscernibilidade entre o preferivel e o nao preferido,
sua formula "Preferiria nao" mina OS pressupostos que permitem a lingua-
319
320
Assim, seu interesse por Francis Bacon explica-se, antes de tude, por
ele encontrar no pintor irlandes um exercicio do pensamento que pretende
neutralizar a narrac;ao, a ilustrac;ao, a figurac;ao. Francis Bacon: l6gica da
sensaqao mostra isso de dois modes. Primeiro, distinguindo tres elementos
fundamentais na pintura de Bacon, !res elementos pictoricos constantes: a
grande superficie plana, o contorno e a figura. A grande superficie plana e
a estrutura material espacializante, a armadura, o plano de fundo. A figura e a
forma deformada, desfigurada. Ja 0 contorno redondo ou oval e 0 limite entre os dois outros elementos, limite que assegura a comunicac;ao entre eles.
0 que introduz o segundo aspecto importante da analise, pois essa comunicac;ao se faz de tal modo que a figura, com suas deformac;oes, torna visiveis
forc;as invisiveis que povoam o mundo e das quais a grande superficie plana
da testemunho. Bacon e um pintor original em relac;ao a duas tentativas
contemporaneas importantes de ultrapassar a representac;ao nas artes plitsticas: a pin lura abstrata de Mondrian e Kandinski, a qual rejeita a figurac;ao
classica privilegiando as formas abstratas e reduzindo o caos ao minima, e o
expressionismo abstrato, a action painting de Pollock, que dissolve todas as
formas e possibilita que o caos se desenvolva ao maximo. Mas se isso aeonIeee -levando Deleuze a privilegia-lo como intercessor- e porque Bacon
apresenta em seus quadros uma figura nao figurativa, desfigurada, deformada por forc;as invisiveis que vem de fora e a atingem atraves do contorno
onde ela se localiza. Assim, ao explicar a natureza da violencia na pintura de
Bacon e mostrar, por exemplo, por que ele pinta o grito mais do que o horror, Deleuze esta chamando a atenc;ao para o fato de ele ser um pintor das
forc;as, da intensidade, ou para a preeminencia da forc;a sobre a forma. Alem
disso, esta defendendo que, por apresentar esse trabalho de deformac;ao no
proprio curso de sua realizac;ao, num entrelac;amento belicoso entre acaso
e controle- uma composic;ao do caos, um caosmo -, Bacon pinta nao so
forc;as, mas tambem o proprio tempo.
Epossivel dizer algo semelhante em relac;ao ao cinema. Com a ressalva
de que seu aliado e muito mais 0 cinema moderno, da imagem-tempo- interpretado, em continuidade com a ambic;ao de sua filosofia, como um pensamento da diferenc;a -,do que o cinema cL:\ssico, da imagem-movimento.
Isso pede ser visto pela maneira como o cinema iniciado com o neorrealismo e analisado como uma ruptura com o esquema sens6rio-motor ou uma
criac;ao de situac;oes oticas e sonoras puras. Pois, com o inicio do cinema moderno, a percepc;ao nao se prolonga mais em ac;ao, mas se relaciona diretamente com o pensamento, possibilitando a substituic;ao do cinema de ac;ao
por um cinema de voyance, de videncia. 0 cinema moderno da uma visao
pura ou superior, eleva a faculdade de ver ao limite, possibilita um exercicio
transcendente da faculdade de sentir capaz de suspender o reconhecimento
sensorio-motor e proporcionar um conhecimento e uma ac;ao revolucionarios, pela revelac;ao de alguma coisa de intoleravel, de insuportavel.
Mas essa revoluc;ao se aprofunda com a crias;ao de uma imagem-tempo
concebida como imagem-cristal, que permite mostrar o tempo diretamente,
o tempo puro, em seu desdobramento ou sua diferenciac;ao, enquanto na
321
)22
lnvariante e
varia~oes
Ao apresentar sucintamente as grandes articula~oes das leituras que Deleuze realiza de fil6sofos e nao fil6sofos, nao estou querendo, evidentemente, sugerir que e]as pretendem reduzi-los ao mesmo, no sentido de encontrar uma identidade que OS assimile. Cada interpreta~ao deleuziana e
sistematica, sempre pretendendo dar conta de modo global dos prindpios
constitutivos de um pensamento. Vimos isso o tempo todo. No entanto, se
as repetil'5es do exerdcio do pensamento dos varios criadores agenciados
pela colagem ou trazidos a cena de seu teatro filos6fico constituem um sistema, e um sistema aberto, que nao totaliza, no sentido em que e impassive! estabelecer uma correspondencia biunivoca entre os termos de proveniencia diferente.
323
Notas
A geografia do pensamento
(p.l137)
1.
6. lM, p.17.
7 "Portrait du philosophe en spectateur", in DRF, p.196.
8. "Les intercessers", in P, p.168. 0 texto de Deleuze mais explicito sobre a rela<;ao entre
ciencia e filosofia Co capitulo "Functivos e conceitos", de 0 que a filosofia?; sobre a sensas:ao ou os agregados sensiveis, o capitulo "Percepto, afeto e conceito", do mesmo livro.
9 QPh?, p.12; cf. QPh?, p.8o e "Qu'estce qu'un dispositif?", in DRF, p.320.
10. Sobre a hecceidade, cf. D, p.51; MP, p.310, 318-24, 332.
11. Cf. QPh?, p.29; DR, p.n6.
12. Crftica da razdo pura, 24, B 152-3.
13.!-T, p.365.
14. "Preface pour l'Cdition italienne de Mille plateaux", in DRF, p.288.
15. D, p.21-2; cf. ''Lettre a un critique severe", in P, p.14.
16. Cf., por exemplo, MP, p.464; LS, 18' serie, p.1734; D, p.8.
-,,
326
DELE~ZE,
A ARTE E A FILOSOF!A
NOT AS
PARTE 1
nascimento da representa~ao
IP-39561
1. LS, P347 As principais referencias a Platao estiio em: LS, 1~ e 18~ series e "Platao eo simulacra", P-34761; DR, p.82-95, 165-88, 184-94, 340-1, 349-51; PS, p.1935.
2. DR, p.25343 MP, P457 nota.
4- LS, "Simulacre et philosophic antique", P347
5 Kant, Pro1eg6menos, 32.
6. DR, P340.
7 Ibid, p.91.
8. Ibid, p.165-6, para as duas cita~5es; cf. LS, "Simulacre et philosophic antique", P353
g. Cf. Arist6teles, Primeiros anaUticos, I, 31.
10. DR, p.87.
11. Ibid, p.8J. A explica<;iio do mCtodo de divisiio pelo exemplo da pesca com linha encontra-.se no Sofista, 218e-221c. "Ve-se, por exemplo, no Polftico, 266b-d, a que ponto a determina<;ao de espcies e apenas uma aparencia ir6nica, e niio o objetivo da divisao plat6nica" (DR, p.84, nota).
12. Cf. DR, p.82-3, 166.
13- Cf. LS, "Simulacre et philosophie antique", p.349; DR, p.878.
14. Foucault, "Teatrum Philosophicum", inDUs et 6crits I, Paris, Gallimard, 1994, P77
15. DR, p.166.
16. LS, "Simulacre et philosophie antique", p.357; cf. DR, P95
17. "Lettre-preface aJean-Clet Martin, in DRF, P339
r8. DR, P355
19. Cf. LS, "Simulacre et philosophie antique", P3S34; DR, P-44, 83, 166, 341.
20. Essa analise e feita em DR, P4S-S7
21. Metafisica, X, 8, 1058b e ws8a, respectivamente.
22. DR, P-478.
23. Ibid, p.48.
24. Ibid, p.51; cf. P49
25. Ibid, P49
26. Essa lista estit ern Categorias, 3, 4, 25.
27. Metafisica, 4, 2, 1003a, 33-4, e 1003b, s-10, respectivamente; cf. 4, 2, wosa 7; 7, 1, 1028a,
10-20; 7 4 1030b3.
28. LS, 2~ sCrie, p.15.
PARTE 2
327
328
NOT AS
situar mais uma vez Espinosa na tradi~ao scotista; cf. SPE, p.q3, nota 2, p.179, nota.
25. Cf. SPE, p.1846.
26. Cf. ibid, p.1go.
27. SPP, p.46-7.
28. Sabre o assunto, cL SPE, p.24751, 232-3.
29. Ibid, p.212.
30. Ibid, p.1g8. Sobre a no<;ao espinosista de estrutura, cf. tambem p.257.
31. Sabre essas expressOes e sua relac;:ao, cf. ibid, p.216-8, 282.
32. SPP, p.w6.
33 SPE, p.136.
34- Ibid, p.217.
35 Espinosa, carta XIX a Blyenbergh, citada em SPP, p-45; cf. S, p.242.
36. Cf. SPP, p.75; SPE, p.226. Sabre a problemitica do berne do mal e do born e do mau, cf.
SPE, p.225-33 e SPP, cap. III.
37 SPE, p.2oo.
38. SPP, p.6g.
39 Cf. ibid, p.6870, 105, 108-g.
40. SPE, p.1g8.
41. Ibid, p.218-g.
42. Ibid, p.136.
43 Ibid, p.258; cf. p.276.
44- Ibid, p.216.
PARTE 3
329
30
P-42.
12. Kant, Critica da razilo pura, 24, B 152~3.
13. "Sur quatre formules ... ", op.cit., p.30. Retomado, com modifica~Oes, em CC, p.43~4.
14- DR, p.82.
15. Ibid, p.l]S. Sobre o sense comum, cf. PhCK, p.29-37, 48-52, 66-g, eo artigo "L'ide de
genese dans l'esthtique de Kant", in ID.
16. PhCK, p.68, 83; cf. ''!:idee de genese ... ", op.cit., p.98, 99
17- Cf. PhCK, p.69-70; "L'idee de genese ... ", op.cit., p.87-8.
18. "L'idee de genese ... ", op.cit., p.88.
19. NPh, p.58.
20.
21. Cf. DR, p.224. Sobre o rnetodo de genese interna de Salomon Maimon, cf. tam bern PLB,
p.u8-9.
22. Kant, Critica da razO.o pura, B 176~7.
23. DR, p.224-5.
24. "Methode de dramatisation", in ID, p.138. Cf. texto semelhante em DR, p.281-2.
25. Kant, Crftica da razi'i.o pura, ''A disciplina da razilo pura", 1a se~ao, B 741.
26. Ibid, "Introdw;ao", V, B 17
27. PhCK, p.27.
28. Ibid, p.28.
29. DR,
p.220-1.
P95. 202.
40. Cf. ibid, p.201.
41. "Methode de dramatisation", op.cit., p.135
PARTE 4
NOT AS
3 DR, p.170.
4- Ibid, p.174.
5 Idem.
6. Ibid, p.2oo-1.
7 PS, p.186-7.
8. NPh, p.u8.
g. LS, 12~ serie, p.103.
10. PhCK, p.27.
n. Citado em DR, p.174
12. Ibid, p.291.
13. Sobre o assunto, c. LS, 12a serie; DR, Pl75 287-93
14. MP, "Traite de nomadologie: la machine de guerre", p.466.
15. DR, p.172.
16. Ibid, p.193, 185, 194, 175, respectivamente.
17. Ibid, p.172-3.
18. MP, "Traite de nomadologie: la machine de guerre", p.467.
19. DR, p.186, 187.
20. ES, p.123.
21. "Hume", in ID, p.227-8; cf. DRF, p.342; D, p.68-7322. "A quoi reconnait-on le structuralisme?", in ID, p.244.
23. Cf. ES, p.125-6, 5
24- DR, p.186.
25. Cf. PS, p.23, 189, 192. Sobre a relar;:ao entre signo e pensamento, cf. sobretudo cap.I, II e
a conclusao da 1~ parte.
26. DR, p.287.
27. Ibid, P-?98o.
28. Ibid, p.297.
29. Cf. Kant, Critica da razO:o pura, A 11, B 25.
30. DR, p.186.
31. Ibid, p.307.
32. ''A quoi reconnait-on le structuralisme?", op.cit., p.243.
33 DR, p.3o8.
34 Ibid, P55
35 Ibid, p.310-1, 313, respectivamente.
36. Ibid, p.183.
37 B, p.51-2.
38. Cf. PS, p.76; B, P-55; DR, p.184-5, respectivamente.
39 F, p.us.
40. DR, p.249.
41. Cf. ibid, p.184, 30442. NPh, p.12443- PS, p.144, u6.
44 Cf. PhCK, p.69-71; ID, p.86-9; CC, p.47-9; DR, p.187, nota; I-T, p.205.
45 Cf. DR, p.178; PhCK, p.29; DR, 187, nota.
46. DR, p.187.
47- Ibid, p.184, 190, 250.
48. Ibid, p.188.
331
332
49 Ibid, p.215.
so. 1-T, P-33940.
51. DR, p.190.
52. Sobre a no,ao de multiplieidade, cf. B, cap.!!; DR, p.236-8; MP, p.146, 457, 292-7.
53 DR, p.191.
54 Ibid, p.247, nota; cf. tambem B, P37 Sabre a problemoitica do virtual e da atualizac;ao,
que analisarei a seguir, cf. B, p.g6-105; DR, p.269-76.
55 DR, p.269-70.
56. Cf., por exemplo, PS, 72, 74; B, p.gg; ''A quoi reconnait-on le structuralisme?", op.cit.,
p.zso; DR, p.26g. A frase de Proust encontra-se em Le temps retrouve, Pleiade, IV, P4SL
57 Cf. B, P337; DR, p.269-71.
s8. Cf., sobre tudo isso, "A quoi reconnait-on le structuralisme?", op.cit, p.246-g.
59 DR, p.2378.
6o. "A quoi reconnait-on le structuralisme?", op.cit., p.252.
61. DR, p.24462. Ibid, p.356.
63. Cf. ibid, p.315.
6+ Ibid, p.285.
65. Ibid, P3S8.
66. Sobre a relac;ao entre intensidade, atualizaqao e individuac;ao, cf. sobretudo DR, p.314-27.
67. Ibid, p.317.
PARTE 5
1. D, p.z3-42. NPh, p.61; PS, p.16o. Sabre essa questao, cf. tambem "La pensee nomade", in ID, p.355-6o;
"Cinq propositions sur la psychanalyse", in ID, p.3834; "Quatre propositions sur la
psychanalyse", in DRF, p.778.
3- MP, p.s8-6o. Os outros estao nas p.82, 86-7, 109-11, 112, 137, 175, 177, 518,627-8.
4- Cf. MP, p.87, nota, 175, nota, 86.
5- MP, "Sur quelques regimes de signes", p.181; cf., p.91, 180-2, 629-30, 636-41.
6. F, p.64; cf. p.6o.
7 Ibid, p.66.
8. Sobre o assunto, cf. ibid, p. 26 e 60-4, 73
9 Ibid, p.72.
10. Ibid, P73. 7411. MP, ''Postulats de la linguistique", p.110; cf. p.86, 175.
12. F, P73
13. Ibid, p.67.
14. Ibid, P74
15. Ibid, p.n; cf. P35
16. Cf. ibid, p.78.
17. Ibid, p.42 e 90, respectivamente.
18. Ibid, p-42; cf. p-41-51, go-2.
19. Ibid, P79
20. Cf. ibid, p. 79, So.
NOT AS
333
334
PARTE 6
Deleuze e a literatura
NOT AS
(p.191-2211
40. Sobre esses exemplos, cf. D, PS34, 88-g; MP, "Devenir-intense, devenir-animal, devenir-imperceptible", p.2g8.
41. Sobre lingua maier e menor, cf. MP, "Postulats de la linguistique", p.127-35.
4 2 K, P-49
43 Cf. MP, p.131; ID, P354 Sobre per que Deleuze e Guattari teriam chegado a conclusao de
que Kafka e o autor do texto sobre as literaturas menores e de que se trata de urn texto
"sem territ6rio", cf. "Deleuze et Kafka: !'invention de la litterature mineure", in De leuze
et les ecrivains, erg. per Bruno Gelas et Herve Micolet, Paris, Cecile Default, 2007.
44- Cf. MP, p.127.
45 Cf. "Qu'est-ce que l'acte de cnation?", in DRF, p.302; QPh?, p.105; "ContrOle et devenir",
in P, p.235.
46. "La litterature et la vie", op.cit., p.14.
47 Cf., a esse respeito, o capitulo de Dicilogos "Sobre a superioridade da literatura angloamericana".
48. Cf. K, p.29-33.
49 "Cinq propositions sur la psychanalyse", in ID, p.383.
so. Cf., por exemplo, A-CE, p.n, go.
51. Cf. "Louis Wolfson, ou le precede", op.cit., p.22, 28, 33; "Re-presentation de Masoch", in
CC, P-7L
52. "La littrature et la vie", op.cit., p.134.
53 Cf. "Louis Wolfson, ou le precede", op.cit., p.32.
54 Essa analise e retomada em MP, "Trois nouvelles ou 'qu'est-ce qui s'est pass?"', p.242~5.
ss- D, p.so.
56. LS, 20a serie, p.1g8.
57 Ibid, 22~ srie, p.219.
sB. D, p.67.
59 LS, 21~ srie, p.205.
PARTE
7 j Deleuze e a pintura
(p.22344)
David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon, trad. bras. CosacNaify, 2007, p.ug.
2. Cf., per exemplo, as imagens 17, 18, 25, 35, 36, 46, 47, 56, 82 da lista des quadros de Bacon
da tradu~ao brasileira de Francis Bacon, 16gica da sensap'io.
3 David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon, op.cit., p.12, 65.
4- FB, P435 David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon, op.cit., p.126, 128.
6. FB, P-45
7 David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon, op.cit., p.18 e 56.
8. FB, p.31-2. Cf. David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon, op.cit., p.23 e 46.
9 David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon, op.cit., p.160-1, 166.
10. John Russell, Francis Bacon, trad. fr. Paris, Thames & Hudson, 1994, p.131.
11. Artaud, "Pour finir avec le jugement de Dieu, Conclusion", in Oeuvres completes, XIII,
Paris, Gallimard, 1974, p.104. Deleuze se refere a esse poema em A~CE, cap.I, p.15; FB,
cap.VII, p.51~2; MP, 6, p.186, 196, 202; "Pour finir avec le jugement", in CC, p.16o, 164.
12. Artaud, 84 s-6, 1948.
13. "Rendre audibles des forces non~audibles", in DRF, p.145
1.
335
NOT AS
14. Sobre as referencias de Deleuze ao tempo, cf. FB, P54 89, 142, 148, 150-1.
15. Essas cita<;5es a respeito do movimento centrifuge estao em FB, p.23, 24-5, 25, 26.
16. Cf., por exemplo, as imagens 5, 10, 14 central, 17 central, 18, 41, 53 central, 61 direita e
esquerda, 70 central, 76 centraL
PARTE 8
Deleuze eo cinema
IP-'4596}
1. Cf., sobre esses pontos,A evo/u~ao criadora, Sao Paulo, Martins Fontes, 2005, P334-7
2.
1-M, P-7
5 Ibid, P3S78.
6. Cf. ibid, p.363.
7- 1-M, p.13.
8. Cf. Bergson, A evoiuqao criadora, op.cit., P3SS. 356, 363; 1-M, p.14, 15.
9- Cf. 1-M, p.18, 19; sabre o aberto, cf. I-T, p.233.
w. Cf. 1-M, p.23, 46, 47
11. 1-M, p.8s; 1-T, p.4748. Sobre essa dedu<;iio, cf. Dork Nabunyan, Gilles De leuze. Voir, parler,
penser au risque du cinema, Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2006, P49 52, 60-7.
12. 1-M, p.86; Bergson, Materia e mem6ria, trad. br., Sao Paulo, Martins Fontes, 2006, p.u.
13. 1-M, p.88.
14. Bergson, Materia e mem6ria, op.cit., p.36. Nos livros sobre o cinema essas afirma<;5es
estiio em 1-M, p.84, 89.
15. Bergson, Materia e mem6ria, op.cit., p.36.
16. 1-M, p.9o.
17. Ibid, p.91-2.
18. Bergson, Materia e memOria, op.cit., P74
19. Sobre a relac;ao entre percepc;iio e ac;ao, cf. I~M, P94-S
Ibid, p.96 e p.96-7, respectivamente.
21. Sobre a montagem no cinema clissico, cf. principalmente 1-M, capitulo III.
22. Ibid, p.nL
20.
33 Ibid, p. 220.
34 Ibid, p.268.
35 Fran<;ois Truffaut, Le cinema selon Hitchcock, Paris, Seghers, 1974, p.286.
36. I-T, p.213; cf. p.so, 230.
37 I-M, p.2789
38. Ibid, p.28439 1-T, p.w.
40. Ibid, p.31-2.
4L Ibid, p.28.
42. Ibid, P95
43 DR, p.m.
44 Bergson, Materia e memOria, op.cit., p.148. A respeito das apresenta<;Oes deleuzianas das
teses de Bergson sobre o tempo, cf. I-T, p.108-10; DR, p.no-s; B, p-45-57; PS, p.70-2;
NPH,p.54
45 PS, p.70-2; B, PSS nota 1.
46. Cf. r:r, p.121 e 129.
47 Ibid, p.130.
48. Ibid, p.14L
49 Cf. ibid, p.189.
so. Ibid, p.142.
SL Ibid, P-5452. Ibid, p.179-8o.
53 Ibid, Pl73
54 Ibid, p.19L
55 Ibid, p.1845.
s6. Ibid, p.191.
57 1-M, p.w8.
58. 1-T, p.194
59 Ibid, p.223.
6o. Ibid, p.283.
61. Ibid, p.28s.
62. Ibid, p.291.
63. Ibid, p.303.
64. Ibid, p.324.
65. Ibid, p.328.
66. Cf. ibid, PS96o, 146, 136.
67. Ibid, p.58 e "Preface pour !'edition americaine de L'image-mouvement", in DRF, p.252.
68. 1-T, p.273.
69. Ibid, p.121.
70. Ibid, p.276.
71. Ibid, p.2347.
(p.297323}
1. Cf. "Ecrivain non: un nouveau cartographe", Critique 343, 1975, p.1216, 1219.
2. LS, 24" serie, p.236-7.
337
38
3 Os textos de Deleuze sabre os estoicos se encontram em LS, sCries 2, 10, 18, 19, 20, 23, 244 LS, 24~ serie, p.235.
5 B, p.L
6. "La conception de la difference chez Bergson", in ID, P49; cf. B, p.22.
7 "La conception de la difference chez Bergson", op.cit., 47,48-9, so, 51, 59, 65.
8. Ibid, p.51.
9 ID, p.46, 48; B, p.93, cf. tambem p.6, 8, 31 (nota); DR, p.3o8-g.
10. LS, 25~ sCrie, p.247; cf. 24~ sCrie, p.236-41.
11. Cf. DR, P59
12. Cf. I-T, p.170-1, onde Deleuze contrap5e Leibniz a Borges e a Nietzsche.
13. A formula~ao mais sinttica dessas tres grandes formas do pensamento esta em QPh?,
p.186.
14. Critica da razdo pura, II, "Doutrina transcendental do mCtodo", cap.l, "A disciplina da
razao pura", B 741.
15. QPh?, p.12.
16. Sobre essas express6es, cf. ibid, p.38, 39, 44, 40.
17. Ibid, p.312.
18. Ibid, P59
19. Ibid, P43 6o.
20. Ibid, p.49, 59
21. Ibid, p.32.
22. Ibid, P33
23. Ibid, p.62.
24. PS, p.11425. Ibid, p.81-2.
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40
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