Corpos em Transito e o Transito Dos Corpos - Laura Lowenkron
Corpos em Transito e o Transito Dos Corpos - Laura Lowenkron
Corpos em Transito e o Transito Dos Corpos - Laura Lowenkron
Laura Lowenkron
Ncleo de Estudos de Gnero pagu
Bolsista FAPESP de ps-doutorado2
Tomando como ponto de partida a proposta do seminrio que deu origem a este
artigo de pensar as conexes entre corporalidades e espacialidades3, analiso prticas
investigativas e procedimentos administrativos policiais que delimitam quais corpos
podem ou no ser inscritos na categoria social, poltica e criminal trfico de pessoas.
Em termos jurdicos, como veremos, esta noo se define por uma particular articulao
entre modalidades de deslocamento espacial e formas de explorao que, sem ignorar
a dimenso econmica, so imaginadas primordialmente como corporais (violao da
integridade fsica) e/ou sexuais (ofensa dignidade sexual). Portanto, assim como
ocorre na gesto de corpos de refugiados e favelados, estamos diante de um desses
processos nos quais os sujeitos existem porque pensados e produzidos em relao a um
espao (Vianna e Facundo, 2015: p??).
Na geopoltica internacional do trfico de pessoas, o Brasil visto atualmente
como um pas de origem, trnsito e destino de vtimas de trfico de pessoas (Senado
Federal, 2011, p. 5). No mbito do marco legal brasileiro, coexistem duas definies
jurdicas de trfico de pessoas: a do Protocolo Adicional Conveno das Naes
Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo Preveno,
1
Verso preliminar de artigo produzido para a coletnea (Ins)crituras: sobre mapas e marcas corporaisespeciais, organizada por Adriana Vianna e Silvia Aguio (no prelo).
2
Processo 2012/11629-4.
3
O material etnogrfico e as primeiras reflexes, bastante preliminares, deste texto foram apresentados no
seminrio (Ins)crituras: sobre mapas e marcas corporais-especiais, organizado por Adriana Vianna no
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, em 2014. Em seguida, discuti o mesmo trabalho no grupo de estudos
coordenado por Adriana Piscitelli no Ncleo de Estudos de Gnero Pagu/Unicamp. Agradeo
especialmente a elas, mas tambm a todos/as colegas que participaram destes dois encontros e debates,
pelas generosas interlocues e importantes crticas e sugestes.
Segundo o Protocolo (ONU, 2000), por trfico de pessoas entende-se o recrutamento, o transporte, a
transferncia, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo ameaa ou ao uso da fora ou a
outras formas de coao, ao rapto, fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou situao de
vulnerabilidade ou entrega ou aceitao de pagamentos ou benefcios para obter o consentimento de
uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de explorao (art. 3, a). Deve-se entender por
explorao, segundo o Protocolo, no mnimo, a explorao da prostituio de outrem ou outras
formas de explorao sexual, o trabalho ou servios forados, escravatura ou prticas similares
escravatura, a servido ou a remoo de rgos (art. 3, a, parte final). O Protocolo prev ainda, em seu
art. 3, que: o consentimento dado pela vtima de trfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de
explorao descrito na alnea a) do presente artigo ser considerado irrelevante se tiver sido utilizado
qualquer um dos meios referidos na alnea a); o recrutamento, o transporte, a transferncia, o
alojamento ou o acolhimento de uma criana para fins de explorao sero considerados trfico de
pessoas mesmo que no envolvam nenhum dos meios referidos da alnea a) do presente Artigo; e, por
fim, o termo criana significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.
O art. 231 do Cdigo Penal (CP) define o trfico internacional de pessoa para fim de explorao
sexual como promover ou facilitar a entrada, no territrio nacional, de algum que nele venha a
exercer a prostituio ou outra forma de explorao sexual, ou a sada de algum que v exerc-la no
estrangeiro. Pena - recluso, de 3 (trs) a 8 (oito) anos. 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar,
aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condio, transport-la,
transferi-la ou aloj-la. 2o A pena aumentada da metade se: I - a vtima menor de 18 (dezoito)
anos; II - a vtima, por enfermidade ou deficincia mental, no tem o necessrio discernimento para a
prtica do ato; III - se o agente ascendente, padrasto, madrasta, irmo, enteado, cnjuge, companheiro,
tutor ou curador, preceptor ou empregador da vtima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigao
de cuidado, proteo ou vigilncia; ou IV - h emprego de violncia, grave ameaa ou fraude. 3o Se o
crime cometido com o fim de obter vantagem econmica, aplica-se tambm multa. O art. 231-A do
CP, por sua vez, define o trfico interno de pessoa para fim de explorao sexual como promover ou
facilitar o deslocamento de algum dentro do territrio nacional para o exerccio da prostituio ou outra
forma de explorao sexual. Pena - recluso, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Pargrafos com redao
idntica a do art. 231 definem outras aes que podem ser punidas bem como as causas de aumento de
pena e de multa.
Ao todo, constavam no sistema da delegacia da Polcia Federal no Rio de Janeiro na qual pesquisa foi
realizada 14 inquritos policiais referentes a este crime (e mais de 300 de pornografia infantil, por
exemplo), entre os quais 11 foram por mim consultados. Na poca, esta delegacia reunia o maior nmero
de inquritos policiais em andamento relacionados ao crime de trfico de pessoas para fim de explorao
sexual (arts. 231 e 231-A do CP) do Brasil.
etnografia dos inquritos voltados para a apurao deste delito permitiram-me entender
principalmente como eles desconstroem a materialidade e a autoria do crime a partir de
um processo de descaracterizao de seus personagens sociais, o criminoso e a
vtima.
Apesar de o contraste entre as duas definies jurdicas (a do Cdigo Penal e a do
Protocolo de Palermo) ser importante para entender este processo, ele no suficiente
para definir quais deslocamentos podem ou no ser enquadrados nesta categoria. A
partir de uma etnografia dos processos de construo ou, como mais frequente, de
desconstruo do crime de trfico de pessoas em investigaes e inquritos da Polcia
Federal, este artigo analisa os trnsitos dos corpos por diferentes categorias, mostrando
como os sujeitos administrados so produzidos e definidos a partir de seus
deslocamentos entre espaos geogrficos, sociais, morais e institucionais.
Em termos analticos, parto do pressuposto de que a materialidade dos corpos que
serve de base para desconstruo da materialidade do crime de trfico de pessoas no
preexiste s formas de gesto e classificao que os inscrevem em regimes sensoriais e
discursivos especficos, mas, sim, um efeito de um processo de materializao
governado por normas reguladoras, como sugere Butler (2002)7. Assim, sugiro que os
policiais, ao demarcarem, circunscrevem e diferenciarem aqueles que podem ou no ser
geridos a partir da categoria criminal do trfico de pessoas, acabam produzindo os
corpos que governam. Buscando chamar ateno para as dimenses sensoriais mais
sutis dessas prticas administrativas, mostro como o trfico de pessoas definido no
apenas em relao s leis penais que o definem juridicamente, mas tambm s
sensibilidades sociais dos agentes responsveis pela gesto cotidiana dos corpos e das
condutas que se amoldam ou no ao fato tpico8.
Por meio da narrativa etnogrfica de alguns casos, evidencio as articulaes entre
classificaes jurdicas (como a noo de vtima, criminoso, testemunha),
marcadores sociais de diferena (como gnero, sexualidade, idade, etnia, classe e
nacionalidade) e categorias sensoriais esttico-morais (como beleza, feiura, odor,
sujeira) no processo de gesto, demarcao e produo de corporalidades e
desconstruo de criminalidades. Meu argumento o de que, ao no poderem ser
facilmente capturados pela categoria criminal do trfico de pessoas, certos corpos
A abjeo entendida aqui segundo o conceito de Judith Butler (2002): O abjeto designa (...) aquelas
zonas invivveis, inabitveis da vida social que, entretanto, esto densamente povoadas por quem no
goza da hierarquia dos sujeitos, mas cuja condio de viver abaixo do signo do invivvel necessria
para circunscrever a esfera dos sujeitos. Esta zona de inabitalidade constituir o limite que define o
terreno do sujeito. (BUTLER, 2002, p. 19-20, traduo minha)
Para uma anlise etnogrfica sobre o processo de reduo a termo nos inquritos de trfico de
pessoas na Polcia Federal, ver Lowenkron e Ferreira, 2014.
Isso mostra como marcas estticas, constitudas a partir da articulao entre gnero,
classe, idade e raa, alm da postura das supostas vtimas, influenciam a avaliao
policial a respeito do potencial de vitimizao (ou da vulnerabilidade). Por outro lado,
no apenas a beleza, mas tambm a feiura e outras marcas corporais de precariedade
7
social podem servir para desconstruir a vtima ideal e idealizada deste crime. Isso ficou
evidente a partir de um caso de uma brasileira deportada da Europa, que tinha marcas de
agresso, tortura e violncia pelo corpo e foi reconhecida como vtima de trfico de
pessoas na Secretaria Estadual de Direitos Humanos e Assistncia Social no Rio de
Janeiro, mas no na Policia Federal - ou, ao menos, no pelo delegado que lhe atendeu
pessoalmente nesta delegacia 11.
Segundo este mesmo delegado, a chefe da Unidade de Represso ao Trfico de Pessoas (URTP),
situada na Diviso de Direitos Humanos do rgo central do Departamento de Polcia Federal, em
Braslia, no gostou sobre como ele reportou, por telefone, suas impresses sobre este caso. Ele
argumenta, contudo, que fez o seu trabalho, registrando o depoimento tal qual lhe foi relatado.
cicatrizes que seu corpo performaticamente despido estampava, bem como as imagens
fotogrficas dos atos de tortura que havia sofrido registradas em seu celular. Naquela
repartio burocrtica, as leses corporais e fotografias foram eficazes no apenas como
estratgia de sensibilizao moral, mas tambm como evidncias que comprovavam a
autenticidade de sua narrativa de vitimizao. Essas mesmas marcas e imagens no
foram igualmente suficientes e eficientes para afastar as suspeitas que pesavam sobre
seu corpo feio e acabado na Polcia Federal. Aos ouvidos quase sempre
desconfiados e olhar masculinizado do delegado de Polcia Federal, a narrativa foi
desqualificada como uma histria hollywoodiana.
Alm da audio e da viso, a sua ntida confiana em um apurado sexto sentido
policial parece ter sido decisiva nesta avaliao. Ao me contar sobre o caso, o
delegado disse que era tudo mirabolante demais para ser verdade, principalmente por
envolver denncias contra autoridades consulares. Segundo a sua perspectiva, aquele
corpo que no guardava mais qualquer sinal de juventude e repleto de cicatrizes e
marcas de violncia e sofrimento foi reconhecido menos como o de uma vtima do
que o de uma mulher feia e acabada ou, nas palavras do delegado, uma prostituta que
perdeu os atrativos e acabou se dando mal na Europa. Sobre a desimportncia atribuda
s imagens de tortura no celular, outro policial comentou simplesmente que prticas
sadomasoquistas fazem parte dos jogos erticos no mundo da prostituio. As
mltiplas reaes emocionais e significados atribudos s marcas corporais e s
fotografias de violncia mostram que, como adverte Sontag (2003: 68), no se pode ter
como lquido e certo o efeito de uma imagem.
A representante da Secretaria de Direitos Humanos e Assistncia Social reclamou
que o policial sequer quis olhar diretamente as fotos ou apreender o aparelho celular, o
que mostra como silncios podem ser produzidos no apenas a partir do que no dito
ou escutado nos depoimentos (Vianna, 2014), mas tambm de uma recusa visual. No
pretendo sugerir com isso que o policial estivesse intencionalmente buscando ocultar
tais imagens para proteger os acusados, como ocorre em outros contextos (Farias,
2014). Segundo a sua prpria justificativa, elas simplesmente no importavam para a
investigao o que sugere que imagens de atos de tortura naquele corpo no eram
suficientemente importantes para serem registrados nos autos. Ao no terem sido
10
12
A apreenso consiste na deteno fsica do bem material desejado e que possa servir como meio de
prova para a demonstrao da infrao penal. O ato, por sua vez, se formaliza em um auto
circunstanciado, o qual contm a descrio completa de todo o acontecido, devendo ser assinado pelos
executores e testemunhas presenciais (Capez, 2003: 273).
13
Ao analisar testemunhos de mulheres na Comisso da Verdade e Reconciliao da frica do Sul, a
autora destaca que a linguagem no se reduz s palavras, incluindo tambm gestos e silncios e que estes
ltimos devem ser respeitados. Segundo ela, o silncio um discurso legtimo sobre a dor e existe uma
responsabilidade tica de reconhec-lo como tal (Ross, 2003: 49, traduo minha).
11
14
Uso ao longo do texto o pronome masculino o ao me referir ao transexual ou travesti porque era
dessa maneira que os policiais se referiam a ele neste caso. Vale notar, ainda, que os dois termos
eram usados alternativamente no contexto estudado e, por isso, segui o mesmo padro ao longo da minha
descrio etnogrfica, sem problematizar as diferenas conceituais que poderiam existir em outros
campos.
15
Apesar de no estar explicitado na denncia, este ltimo comentrio permitiria que os transexuais
hospedados no albergue pudessem ser legalmente classificados no s como potenciais vtimas de
trfico de pessoas e explorao sexual, mas tambm eventuais criminosos por praticarem ato
obsceno (art. 233 do Cdigo Penal - Praticar ato obsceno em lugar pblico, ou aberto ou exposto ao
pblico. Pena - deteno, de trs meses a um ano, ou multa).
16
Art. 229 do Cdigo Penal - Manter, por conta prpria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra
explorao sexual, haja, ou no, intuito de lucro ou mediao direta do proprietrio ou gerente. Pena recluso, de dois a cinco anos, e multa.
12
17 Art. 230 do Cdigo Penal - Tirar proveito da prostituio alheia, participando diretamente de seus
lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exera. Pena - recluso, de um a quatro
anos, e multa.
13
14
Agradeo a Paula Togni e Carol Pavajeau Delgado por me chamarem ateno para a importncia da
classe neste contexto e Iara Beleli, Adriana Piscitelli e Jos Miguel Olivar pela sugesto de incorporar
este texto de Bourdieu.
21
Agradeo Letcia Ferreira pela indicao desta referncia (Ferreira, 2013).
15
me foi relatado ou do que eu j tenha visto em outras oitivas que presenciei nesta
delegacia indica que ele no tenha sido tratado com o devido respeito profissional por
parte dos policiais. Mas, nos bastidores, virou objeto de mais risos e piadas, que,
naquele contexto, tambm me divertiram, o que mostra que eu havia sido efetivamente
afetada22 pelo humor policial. Saber rir nas horas certas algo importante para a
definio e movimentao de nossos corpos em campo 23, j que o riso uma das chaves
utilizadas para determinar a competncia de uma pessoa para transitar por determinado
espao moral e social (Miller, 1997). Importante notar que tudo isso , ao mesmo
tempo, social e obrigatrio e, no entanto, violento e natural (Mauss, 1980, p. 60).
O escrivo e o delegado que realizaram a oitiva comentaram oralmente e
informalmente, com uma mistura de pena e ironia, que, alm de ser muito feio, o
travesti parecia estar drogado com remdios psiquitricos (como comprovava o seu
atestado mdico) e fedia muito. Vale lembrar que nossas crenas sobre cheiro esto
diretamente associadas a convenes morais de higiene e assepsia, como nota Miller
(1997). Segundo o autor, o cheiro , assim, dotado de um particular poder
contaminador, estando situado no lugar mais baixo da hierarquia moral dos sentidos, em
contraste com a viso e a audio, que so portas de entrada privilegiadas para o
conhecimento e os prazeres intelectuais e contemplativos. Desse modo, a metfora
detetivesca de que os investigadores farejam os suspeitos, ao se tornar muito literal no
contexto desta oitiva policial, acabou produzindo nojo, riso, repulsa e piedade, isto ,
sentimentos morais que produzem e reforam desigualdades sociais (Lutz e AbuLughod, 1990; Miller, 1997; Coelho, 2010).
No papel, estas emoes e sensaes foram evidentemente traduzidas em outros
termos e convertidas menos em indcios de materialidade do crime do que em
vulnerabilidades sociais que contriburam para desconstruir a figura idealizada do
criminoso, j que o trfico internacional de pessoas politicamente construdo e
socialmente imaginado como um negcio lucrativo. Em seu relatrio, o delegado
destacou a inexistncia de indcios do crime citado na denncia. A feiura e o
fedor foram substitudos por expresses capazes de inscrever o corpo do investigado
em mapas sociais mais precisos. O acusado foi descrito como humilde,
22
Favre-Saada (1990) utiliza esta expresso no contexto de seu estudo sobre a feitiaria na regio do
Bocage francs para se referir ao livre jogo de afetos, inicialmente desprovido de representao, que se
atualiza em situaes de comunicao involuntria e no intencional entre o etngrafo e seus
interlocutores durante o trabalho de campo.
23
Agradeo a John Comerford por me chamar ateno sobre a necessidade de refletir sobre o riso.
16
24
17
Art. 149 do Cdigo Penal. Reduzir algum condio anloga de escravo, quer submetendo-o a
trabalhos forados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condies degradantes de trabalho, quer
restringindo, por qualquer meio, sua locomoo em razo de dvida contrada com o empregador ou
preposto. Pena - recluso, de dois a oito anos, e multa, alm da pena correspondente violncia. 1o Nas
mesmas penas incorre quem: I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
com o fim de ret-lo no local de trabalho; II - mantm vigilncia ostensiva no local de trabalho ou se
apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de ret-lo no local de trabalho.
2o A pena aumentada de metade, se o crime cometido: I - contra criana ou adolescente; II - por
motivo de preconceito de raa, cor, etnia, religio ou origem.
18
26
A interpretao de que certos erros e lacunas de procedimentos e documentos burocrticos podem estar
relacionados desimportncia atribuda a determinados corpos inspirada no trabalho etnogrfico de
Letcia Ferreira (2009) sobre corpos no identificados no Instituto-Mdico Legal do Rio de Janeiro.
19
uma coleira de cachorro, jogando gua fervente ou queimando seu corpo com pontas de
cigarro, dando pancadas com rolo de massas nas partes internas das pernas, entre outras
agresses fsicas cotidianas materializadas na forma de ferimentos, queimaduras e
cicatrizes por todo seu corpo.
A partir de uma denncia annima, que informava que o chins buscava meios de
se comunicar com os clientes da pastelaria para pedir ajuda, policiais civis dirigiram-se
at o local para fazer a busca. Vale destacar que busca a expresso tcnica usada
para denominar estas operaes policiais cujo objetivo principal a coleta de provas
capazes de incriminar o alvo, mas que neste caso tambm foi concebida e descrita
como uma operao de resgate da vtima. A vtima foi encontrada muito
assustada e com diversos ferimentos no rosto, na cabea e nas pernas, conforme
descreveram os policiais que participaram da operao no boletim de ocorrncia e
atestavam as fotografias, o boletim de atendimento mdico do hospital e o laudo de
exame de corpo de delito do Instituto Mdico-Legal, segundo o qual:
a exuberncia, a quantidade e a diversidade de tipos de leses
observadas sobre o corpo periciado, em quase todas as
principais regies corpreas, bem como as flagrantes
caractersticas de diversidade temporal, atestadas pelas
diferentes fases de evoluo cicatricial, vendo-se a coexistncia
de leses, recentes e antigas, em uma mesma regio do corpo,
no deixam dvida sobre o carter de continuidade e crueldade
sobre elas empregado.
Os policiais, que realizaram ainda a priso em flagrante do acusado, destacaram
tambm as precrias condies de higiene local, incompatveis com um lugar que se
prope comercializar alimentos, sem contar o insalubre estado do alojamento no qual a
vtima mantinha residncia. A partir disso foi acionada a vigilncia sanitria, que, aps
inspecionar o local, interditou o estabelecimento comercial por encontrar condies
higinico-sanitrias insatisfatrias. Se a sujeira foi registrada por ser importante na
caracterizao das condies degradantes de trabalho que definem, em parte, o tipo
penal de trabalho escravo (art. 149 do CP), neste caso ela parece ter ficado em
segundo plano ao longo da narrativa dos autos em funo da centralidade e da fora
esttico-moral adquirida pelas imagens e repetidas descries das marcas corporais de
violncia.
Para alm de sua reiteradamente lembrada etnia/nacionalidade, eram estes
ferimentos que dominavam as descries policiais sobre a sua aparncia violentamente
20
como prev o art. 231 do Cdigo Penal. Dessa maneira, acabou instaurando um
inqurito para apurao do crime de reduo condio anloga a de escravo. Este
enquadramento penal tornou-se objeto de crticas e controvrsias classificatrias
devidamente documentadas, visto aquele crime j havia siso processado e condenado na
Justia Estadual (constituindo um bis in idem27). A alternativa mais correta, diziam
alguns policiais federais, seria enquadrar o caso nas infraes de ingresso irregular
de estrangeiro e de ocultao de estrangeiro em situao irregular, definidas no art.
125 do Estatuto do Estrangeiro 28.
Enquanto vtima de trfico de pessoas o chins poderia obter um visto
humanitrio de permanncia (previsto na resoluo 93 de Conselho Nacional de
Imigrao)29, como chegou a apontar uma delegada do rgo central da Polcia Federal
em Braslia, responsvel pela coordenao do Servio de Proteo Testemunha, em
um expediente avulso anexado ao inqurito. Enquanto imigrante irregular que foi
submetido a trabalho escravo, ele s no foi imediatamente deportado por estar
provisoriamente sob a tutela do Estado sob a condio de testemunha protegida no
curso de um processo criminal da Justia estadual (como vtima dos delitos de
trabalho escravo e tortura). Houve um delegado federal, da Diviso de Direitos
Humanos do rgo central da PF em Braslia, que sugeriu, por meio de um despacho,
haver indcios do crime de falsidade ideolgica30 por ocasio de sua passagem pelo
ponto de controle imigratrio, uma vez que o chins declarou estar viajando como
turista, j sabendo que o motivo era diverso.
Diante da inexistncia do tipo penal de trfico internacional de pessoas para fim
de trabalho escravo, no qual as condutas investigadas na Polcia Federal pudessem ser
27
28
Art. 125 - constitui infrao, sujeitando o infrator s penas aqui cominadas: (...) VII - empregar ou
manter a seu servio estrangeiro em situao irregular ou impedido de exercer atividade remunerada.
Pena - multa de 30 (trinta) vezes o Maior Valor de Referncia, por estrangeiro; (...). XII - introduzir
estrangeiro clandestinamente ou ocultar clandestino ou irregular. Pena: deteno de 1 (um) a 3 (trs)
anos e, se o infrator for estrangeiro, expulso (Lei 6.815 de 1980, Estatuto do Estrangeiro).
29
O visto de permanncia de um ano pode ser concedido, mediante pedido de autoridade policial, judicial
ou instituies que trabalham no atendimento de vtimas, caso o estrangeiro esteja no Brasil em situao
de vulnerabilidade e seja vtima do crime de trfico de pessoas, segundo a definio do Protocolo de
Palermo. A resoluo normativa prev ainda que o estrangeiro possa decidir se voluntariamente
colaborar com eventual investigao ou processo criminal em curso, no sendo esta uma exigncia para
obteno do visto.
30 Falsidade ideolgica, art. 299 do CP - Omitir, em documento pblico ou particular, declarao que
dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declarao falsa ou diversa da que devia ser escrita,
com o fim de prejudicar direito, criar obrigao ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena - recluso, de um a cinco anos, e multa, se o documento pblico, e recluso de um a trs anos, e
multa, se o documento particular.
22
Agradeo a Angela Facundo e Adriana Vianna por chamarem a ateno sobre as tecnologias de
fixao desses corpos em xodo, como uma forma de governo no somente dos corpos, mas tambm dos
seus movimentos e trnsitos possveis, nos termos de Facundo, na primeira verso de seu texto desta
coletnea, baseado em sua tese de doutorado (Facundo, 2014).
23
que processa feiura, deformidade, mutilao e a maioria das coisas que percebida
como violncia (Miller, 1997: 81, traduo minha). Entretanto, procurei chamar
ateno tambm para a importncia de outros sentidos mais negligenciveis, como o
olfato, o tato e a intuio, na avaliao e (des)materializao dos corpos e dos indcios
do crime.
Sendo assim, o caminho que optei para explorar as conexes entre corporalidades,
espacialidades e formas de gesto (ou inscritura/escrituras) foi buscar entender quais so
as marcas que importam para a constituio da materialidade dos corpos capazes de
descontruir a materialidade do crime de trfico internacional de pessoas na Polcia
Federal. Para a compreenso deste processo, foi importante pensar as formas de gesto e
as categorias ali mobilizadas em comparao com maneiras alternativas de classificar,
administrar e inscrever esses corpos em trnsito em outros espaos sociais e
institucionais. O foco da ateno analtica deslocou-se, assim, dos corpos em trnsito
para o trnsito dos corpos32.
Isso implicou observar, em cada contexto, quais so as diferenas que fazem
diferena, pergunta chave que orienta a perspectiva das chamadas anlises
interseccionais, como ressaltam as apresentadoras de um dossi recente sobre o tema
na revista Signs (Cho, Crenshaw, Source, 2013). Levar a srio esta questo significa
explorar as diferenas que so carregadas de sentido e tornam-se significativas no
entrelaamento com o poder em cada contexto. Segundo essas autoras, o que define esta
perspectiva analtica no o uso do termo interseccionalidade33 e nem de uma lista de
citaes padronizadas, mas uma abordagem do problema da identidade/diferena que
concebe as categorias no como distintas, mas permeadas por outras categorias, fluidas
e cambiantes, e sempre em processo de criar e serem criadas por dinmicas de poder.
Como tambm esclarece Piscitelli (2008b), mais do que simplesmente articular
categorias identitrias (como gnero, raa, sexualidade, idade, classe e nacionalidade),
anlises interseccionais procuram entender como diferentes modalidades e categorias de
diferenciao constituem-se mutuamente em contextos sociopolticos particulares e,
principalmente, como os sujeitos so constitudos nesse processo em meio a mltiplas
relaes de poder e a dinmicas diversificadas de sujeio e resistncia. Isso resulta em
32
Para interessantes anlises interseccionais sobre os processos de trnsito dos corpos entre categorias de
diferenciao (como a racializao e sexualizao da nacionalidade, atravessada por gnero) a partir de
seus deslocamentos por espaos geogrficos, ver Piscitelli (2013) e Togni (2014).
33
Para um panorama do campo de estudos interseccionais e das questes que o definem, alm do referido
dossi da Signs, no Brasil, ver Piscitelli (2008b) e Moutinho (2014).
24
34
Agradeo a Adriana Piscitelli e Silvia Aguio, entre outras/os colegas, pelos comentrios crticos e
sugestes que me permitiram sofisticar analiticamente a articulao entre categorias sensoriais e
marcadores sociais de diferena.
26
27
28
TEIXEIRA, Flavia do Bonsucesso. 2008 LItalia dei Diveti: entre o sonho de ser
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30