Mielopatia Por Deficiência de Vitamina B12
Mielopatia Por Deficiência de Vitamina B12
Mielopatia Por Deficiência de Vitamina B12
A mielopatia por deficiência de vitamina B12 ma- Apresentamos o caso de um paciente com qua-
nifesta-se inicialmente por parestesias e fraqueza, dro de mielite transversa secundária a deficiência de
comprometendo os quatro membros num padrão vitamina B12.
simétrico. Nas fases avançadas, ocorre paraplegia e
graus variados de espasticidade. A ocorrência de ní-
vel sensitivo raramente é observada1. O diagnóstico CASO
Homem, 49 anos, com diabetes mellitus tipo 2 e
laboratorial inicial baseia-se na dosagem sérica de
hipotireoidismo decorrente de tireoidectomia por doença
vitamina B12, que na maioria dos casos se encontra
de Graves, com história familiar de anemia perniciosa. Ini-
diminuída 2.O tratamento consiste na reposição ciou sintomas neurológicos há um ano caracterizados por
parenteral de vitamina B12. A resposta ao tratamento quadro progressivo de parestesias nos quatro membros,
está relacionada à gravidade do quadro e tempo en- paraplegia flácida e arreflexa, anestesia completa abaixo
tre o início dos sintomas e tratamento1. de T8 e incontinência urinária e fecal.
1
Residente em Neurologia do Instituto de Neurologia Deolindo Couto (INDC)– Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFR), Rio de
Janeiro RJ, Brasil; 2Médica Neurologista do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da UFRJ;
3
Professora Titular de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da UFRJ; 4Residente em Neurocirurgia do HUCFF-UFRJ, 5Residente
em Neuropediatria do Instituto Fernandes Figueira (IFF), 6Residente em Patologia do HUCFF-UFRJ, 7Professor Titular de Neurologia da
Faculdade de Medicina da UFRJ; 8Chefe do Serviço de Neurologia do HUCFF-UFRJ.
Recebido 25 Junho 2001, recebido na forma final 27 Agosto 2001. Aceito 17 Setembro 2001.
Dr. Luiz Felipe Rocha Vasconcellos - Rua Barão da Torre 209 / 102 B – 22411-001 Rio de Janeiro RJ - Brasil. E-mail. [email protected]
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O exame do líquido cefalorraquidiano (LCR) e a resso- gastrintestinais3. As causas incluem anemia pernicio-
nância magnética (RM) foram normais. A eletroneuromio- sa, doença de Crohn e Whipple, gastrectomia parcial,
grafia (ENMG) evidenciou polineuropatia de padrão axonal esprue, esclerodermia, alcoolismo, hipertireoidismo,
nos membros inferiores. Sorologias para HIV, HTLVI, HbsAg anemias hemolíticas, alimentação exclusivamente
e VDRL foram negativas e o anti-HCV foi positivo. O hemo-
vegetariana, linfoma, exposição a óxido nítrico, HIV,
grama mostrou anemia megaloblástica. A dosagem de vi-
sendo que a causa mais frequente é anemia pernici-
tamina B12 foi menor que 50 pg/ml (deficiência grave). O
anticorpo antifator intrínseco foi positivo e a biópsia de
osa4. A anemia perniciosa decorre da ausência do
corpo gástrico demonstrou gastrite atrófica, compatível fator intrínseco que é uma proteína secretada pelas
com diagnóstico de deficiência de vitamina B12 por ane- células parietais necessária para a absorção de vita-
mia perniciosa. mina B12. No caso apresentado foi comprovada tal
O quadro neurológico não se modificou apesar da etiologia através de biópsia gástrica e dosagem de
melhora da anemia megaloblástica com reposição paren- anticorpo antifator intrínseco.
teral de cianocobalamina, havendo normalização do VGM.
A deficiência de vitamina B12 pode ainda ocor-
Evoluiu com infecção respiratória e óbito após 3 meses de
internação.
rer em alguns pacientes com esclerose múltipla (EM).
Foi realizada necropsia e o estudo morfológico da Há alteração no metabolismo desta vitamina nestes
medula espinhal demonstrou quadro de esclerose combi- pacientes, de causa ainda não esclarecida5. Reynolds
nada da medula envolvendo todos os níveis, sobretudo o et al.5 preconizam a dosagem de cianocobalamina
segmento torácico, onde a degeneração mielino-axonal nos pacientes com EM, pois quando coexiste esta
era muito grave e se estendia às raízes e gânglios sensiti- deficiência pode haver agravamento do quadro, sen-
vos (Figs 1 e 2). do esta uma causa tratável. Outra forma de apre-
Além dos tratos córtico-espinhais laterais e anterior e sentação que já foi associada à deficiência de vita-
da coluna dorsal, classicamente envolvidos nessa mielo- mina B12, é a de oftalmoplegia internuclear. Assis e
patia, havia também degeneração do tracto espino-talâ-
Fonseca6 relataram o caso de uma paciente com
mico, justificando o nível sensitivo (Fig. 3).
quadro de mielopatia e neuropatia associado a
oftalmoplegia internuclear decorrente de mielose
DISCUSSÃO funicular. A etiologia foi comprovada através da pro-
A deficiência de vitamina B 12 pode levar a altera- va de Schilling que demonstrou diminuição da ab-
ções hematológicas, neurológicas, psiquiátricas e sorção da vitamina B12 radioativa marcada por
Fig 2. Degeneração da coluna dorsal e perda mielino- axonal. Luxol fast blue.
Fig 3. Degeneração do tracto córtico-espinhal anterior e parte do espino-talâmico anterior. Luxol fast blue.
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cobalto. A ENMG descartou lesão neurogênica ou ácido metilmalônico na urina. A dosagem de vita-
miopática6. mina B12 tem sensibilidade e especificidade limita-
das. Apesar de ser infrequente pode-se ter deficiên-
O óxido nítrico, usado em anestesias, pode ser
cia de vitamina B12 com nível sérico normal ou até
fator desencadeante de degeneração subaguda com-
aumentado10. A hepatopatia, por exemplo, pode au-
binada em pacientes com deficiência de vitamina
mentar os níveis das proteínas transportadoras (trans-
B12 assintomáticos7. Pacientes submetidos a cirur-
cobalaminas I e III) com consequente aumento do
gias e que desenvolvem após dias ou semanas qua-
nível sérico de cianocobalamina11. A dosagem de ho-
dro de mielopatia, neuropatia sensitiva, alterações
mocisteína e ácido metilmalônico tem melhor sen-
da sensibilidade profunda e encefalopatia associa- sibilidade e especificidade que a cianocobalamina13.
dos ou não, devem ser investigados para uma possí- Stabler et al.12 realizaram estudo em uma popula-
vel deficiência de vitamina B12 7. ção idosa e demonstraram que até 15% desta po-
Os sintomas neurológicos compreendem deficiên- pulação apresentava deficiência de vitamina B12, e
cias motoras simétricas com graus variados de espas- todos aqueles casos com significado clínico apresen-
ticidade associados à hiper ou hiporreflexia, ataxia, tavam hiperhomocisteinemia concomitante.
parestesias, alterações da sensibilidade profunda, al- No hemograma observa-se anemia e menos co-
terações cognitivas, distúrbios esfincterianos, dimi- mumente leucopenia, além de plaquetopenia. A ane-
nuição da acuidade visual1. A paraparesia ou tetra- mia megaloblástica está presente na maioria dos ca-
paresia decorre de um comprometimento das vias sos sendo que em até 1/3 dos casos pode estar ausen-
piramidais associando-se em geral a hipopalestesia te. Healton et al.2 em estudo realizado com 143 paci-
e/ou abatiestesia dos membros, por comprometi- entes que apresentavam deficiência de vitamina B12,
mento cordonal posterior. As parestesias ocorrem observaram que em 27,4% o hematócrito era normal
devido a polineuropatia, que na maioria das vezes e 23% apresentavam VGM normal. A biópsia de me-
tem padrão axonal. O quadro cognitivo caracteriza- dula óssea é, em geral, hiperplásica, com predomínio
se por síndrome demencial de padrão subcortical, de precursores eritrocitários11. O paciente relatado
sendo uma das causas tratáveis de demência4 . A apresentava anemia com VGM elevado, sendo estes
deficiência de vitamina B12 pode raramente levar a achados os mais freqüentes de acordo com a litera-
alterações visuais que ocorrem devido à atrofia óp- tura pesquisada. No presente caso houve normali-
tica. Canelas8, em estudo com 110 casos de mielose zação do VGM com o tratamento. A dosagem do
funicular, observou os seguintes achados ao exame anticorpo antifator intrínseco é positiva nos casos
físico: apalestesia (96,4%); distúrbio da sensibilida- de anemia perniciosa, como no caso relatado.
de postural (65,7%); ataxia apendicular (74,5%); si- A ENMG nos casos de polineuropatia revela, em
nal de Romberg (83,2%); sinal de Babinski (46,5%) geral, diminuição ou ausência dos potenciais de ação
e distúbios esfincterianos (24%)8. sensitivos e velocidade de condução normal11.