Arq 20121218183902 1

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 80

INSTITUTO JUNGUIANO DO RIO GRANDE DO SUL IJRS

ASSOCIAO JUNGUIANA DO BRASIL AJB


FORMAO PARA ANALISTA

ANITA OLIVEIRA MUSSI KLAFKE

QUANDO A PSIQUE GANHA CORPO


UMA COMPREENSO ARQUETPICA DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES

PORTO ALEGRE-RS
2011

INSTITUTO JUNGUIANO DO RIO GRANDE DO SUL IJRS


ASSOCIAO JUNGUIANA DO BRASIL AJB
FORMAO PARA ANALISTA

QUANDO A PSIQUE GANHA CORPO: UMA COMPREENSO ARQUETPICA


DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES

ANITA OLIVEIRA MUSSI KLAFKE

Monografia apresentada ao Instituto Junguiano do Rio


Grande do Sul - IJRS e Associao Junguiana do
Brasil - AJB, como requisito parcial para obteno do
ttulo de analista pela International Association for
Analytical Psychology - IAAP.
Orientador: Prof. Dr. Walter Boechat

PORTO ALEGRE-RS
2011

Pretender de cada analista uma pequena


contribuio terica cultura que ele
expressa representa o mnimo ao qual
nenhum

analista

honesto

subtrair. (Aldo Carotenuto)

deveria

se

SOU GRATA

minha filha Clara, pela clareza do amor


que nos une;
minha me, pela importncia da relao
me e filha;
minha irm, por estar sempre ao meu lado
e, s minhas sobrinhas Isabela e Valentina,
minhas filhas do corao;
s minhas amigas, irms de alma e, s
minhas pacientes, pelo carinho e confiana;
A todas as mulheres, companheiras neste
caminho de redeno do feminino.

LISTA DE ILUSTRAES

Fotografia 1 O Rapto de Persfone.....................................................................56


Fotografia 2 A Madona Negra de Einsiedeln......................................................72

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo a compreenso da psicodinmica dos


transtornos alimentares e seu significado no universo feminino, enfatizando a
anorexia, por meio de uma viso arquetpica da psicologia analtica junguiana. O
trabalho se justifica pela constatao do aumento da incidncia desses transtornos e
seus sintomas geradores de outras patologias na populao em geral.
Considerando-se os significados que as patologias ligadas alimentao assumem
na nossa cultura ocidental, patriarcal e capitalista, sendo inclusive motivo de
discriminao em diversos seguimentos sociais, a presente pesquisa pode ser
considerada atual e importante para a reflexo acerca dessa problemtica, tanto
para a sade pessoal quanto para a sade coletiva. O mtodo de pesquisa utilizado
foi o bibliogrfico e a observao clnica. Com base nos parciais da doena,
observados na prtica clnica, buscou-se a amplificao simblica dos sintomas,
atravs da mitologia, a fim de identificar a estrutura arquetpica destes transtornos
corporais e ampliar as possibilidades de tratamento. Os distrbios corporais foram
considerados tambm com base numa viso da dissociao do Ego/Si-mesmo e da
Persona/Sombra, tendo como busca a totalidade corpo/psique, por meio da
redeno da alma individual e coletiva.

Palavras-chave: Transtornos alimentares. Anorexia. Arqutipos. Corpo/psique.

ABSTRACT

WHEN THE PSYCHE GETS BODY


An archetypical understanding of eating disorders
The present study has the objective of understanding the psychodynamic of eating
disorders and its meaning in the female universe, emphasysing anorexia, through an
archetypical view from a junguian analytical psychology. This work is justified by the
verification of the increase of these disorders and its generating symptoms of other
pathologies in the population. Having in mind the meaning that these pathologies
related to eating have in our ocidental culture, patriarcal and capitalist, being even
reason for discrimination in several social groups, the present research can be
considered current and important for the reflection on this issue, as for personal and
group health. The research method used was bibliographical and clinical observation.
Based on the partials of the disease, observed in clinical practice, the symbolic
amplification of the symptoms was sought, through mithology in order to identify the
archetypical structure of the body disorders and to extend the possibilities of
treatment. The body disorders were also considered from a view of disassociation of
Ego/ Self and from Person / Shadow, having as a goal the totality of body/psyche,
through the redemption of the individual and group soul.
Key words: Eating disorders. Anorexia. Archetypes. Body/psyche.

SUMRIO

1 INTRODUO.......................................................................................................08

2 CONSIDERAES GERAIS SOBRE OS TRANSTORNOS ALIMENTARES..... 11


2.1 A ditadura da beleza......................................................................................... 11
2.2 O que normal e o que patolgico?............................................................ 13
2.3 Um exemplo clnico: a questo do mal no tratamento dos transtornos
alimentares.............................................................................................................. 15
2.4 Uma viso junguiana da psicossomtica...................................................... 21
2.4.1 Meta-individuao..........................................................................................25
2.4.2 O mtodo o caminho.................................................................................. 28

3 ASPECTOS ARQUETPICOS DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES.............. 32


3.1 Compulso alimentar....................................................................................... 32
3.2 Obesidade e histeria: uma relao dionisaca............................................... 39
3.2.1 A imagtica dionisaca.................................................................................. 40
3.3 A maldio de Eco: uma abordagem arquetpica da anorexia..................... 45
3.4 Quando a psique ganha corpo........................................................................ 55
3.5 O casamento do corpo e da psique: uma reflexo mitopotica sobre a
busca da totalidade............................................................................................... 61

4 CONCLUSO........................................................................................................ 67

5 REFERNCIAS..................................................................................................... 74

6 OBRAS CONSULTADAS..................................................................................... 78

1 INTRODUO

No caso do sofrimento psicolgico, que sempre isola o indivduo das


chamadas pessoas normais, tambm da maior importncia
entender que o conflito no apenas um fracasso pessoal, mas ao
mesmo tempo um sofrimento comum a todos, um problema que
caracteriza toda uma poca. (JUNG, 2007, p. 116, 232)

A epidemia do culto ao corpo, baseada em padres coletivos de beleza,


transformou a psicopatologia dos transtornos alimentares num fenmeno cultural.
Partindo deste ponto de vista, os distrbios do comportamento alimentar
podem ser compreendidos como uma metfora psicolgica dos sintomas corporais
em geral, baseados no problema da dissociao mente/corpo da era moderna.
No se pode negligenciar o aspecto sociocultural destas patologias, uma
vez que a formao da auto-imagem corprea e dos hbitos alimentares de cada
pessoa so fortemente influenciados pela maneira como os membros de uma
sociedade pensam e agem com relao ao que seja ter um corpo e uma
alimentao saudveis e esteticamente apreciveis, conforme ressalta Silva (2005).
Segundo a autora citada, nos tempos primitivos, a grande maioria das
figuras divinas era de mulheres. Com o processo de urbanizao, a grande Deusa
se transformou num autoritrio e repressor Deus. Com o apoio desse Deus
poderoso e punidor, os homens rudes garantiram sua condio social superior e as
mulheres foram colocadas em uma condio inferior que contrariava totalmente sua
herana evolutiva. (SILVA, 2005).
Por isso, o mito da beleza no tem nada a ver com as mulheres; ele diz
respeito s instituies masculinas e ao poder institucional dos homens. O mito da
beleza foi concebido pelos homens do poder para determinar o comportamento
feminino e no a aparncia de fato. (SILVA, 2005).
Analisando os fatores socioculturais, comentam Salzano e Cords (2006)
que o papel esperado das mulheres pela sociedade atual aumenta a vulnerabilidade
busca desenfreada pela beleza e pelo corpo perfeito. E, que o esteretipo da
mulher feminina e ideal o de algum magra, que se importa com a aparncia e luta
para melhor-la, no medindo esforos para alcanar este objetivo.
Com a ajuda relevante da mdia, o mito da beleza foi sendo

9
aperfeioado com o objetivo de diminuir o poder individual da mulher
em todos os nveis [...]. A beleza, como trampolim para o poder, foi
redefinida de forma a prometer s mulheres o tipo de poder que o
dinheiro, de fato, d aos homens. Nos anos 1980, a beleza j
apresentava, em questo de status para as mulheres, o mesmo papel
que o dinheiro representava para os homens. Esta relao mostra, de
forma clara, uma postura defensiva diante de concorrentes
agressivas em relao masculinidade ou feminilidade. Em pensar
que, nos tempos primitivos, no havia concorrncia, e sim parceria e
cumplicidade em prol da sobrevivncia da espcie humana (SILVA,
2005, p. 29).

A partir destes dados, possvel compreender a prevalncia destes


transtornos alimentares em mulheres, iniciando na adolescncia e se estendendo
cada vez mais na vida adulta, at aps os 40 anos de idade (Salzano & Cords,
2006).
Entende-se, tambm, que os transtornos alimentares, bem como os
distrbios da auto-imagem e insatisfao corporal, em geral, so sintomas tpicos de
uma sociedade patriarcal, sendo a mulher a maior vtima deste regime masculino
ditatorial.
Os anos de experincia clnica no tratamento de transtornos alimentares
aliados ao estudo do pensamento junguiano levaram a uma compreenso desse
fenmeno, ampliando a aplicao das abordagens teraputicas propostas pela
psicologia analtica.
Com base nos parciais da doena e por meio de amplificaes simblicas
dos sintomas, este estudo visa compreender a psicodinmica dos transtornos
alimentares, bem como o significado desta patologia na nossa cultura, identificando
os fatores arquetpicos subjacentes sua etiologia.
A patologia dos transtornos alimentares tambm foi considerada do ponto
de vista da psicossomtica, buscando uma compreenso destes sintomas numa
dimenso mais profunda da psique, a fim de contribuir para o alcance da meta de
integrao do corpo e da psique, ampliando a conscincia individual e coletiva.
O estudo foi desenvolvido iniciando-se por uma reflexo acerca da
ditadura da beleza como padro de comportamento tpico da cultura atual,
discutindo-se sobre os contornos patolgicos do comportamento na busca
desenfreada pela beleza. Este tema tambm estudado por meio de um exemplo
clnico de tratamento de transtorno alimentar. Na seqncia, o texto trata do
desenvolvimento de uma viso junguiana da totalidade mente/corpo a partir do
conceito de psicossomtica, analisando-se a meta da individuao e o mtodo

10

teraputico numa concepo analtica.


No terceiro captulo so estudados os aspectos arquetpicos dos
transtornos alimentares, desde a compulso alimentar, a obesidade e histeria, at
uma abordagem arquetpica da anorexia, realizando-se, na sequncia, uma reflexo
baseada na mitologia, sobre a unio mente/corpo.
Finaliza-se com a apresentao das concluses em forma de reflexes
sobre o tema, uma vez que no se tem a pretenso de esgotar as possibilidades de
ampliao deste estudo.

11

2 CONSIDERAES GERAIS SOBRE OS TRANSTORNOS ALIMENTARES

2.1 A DITADURA DA BELEZA

Na arte, como 'na vida, a matria d substncia alma. As imagens


so as metforas que tornam evidente, perante nossos olhos, nossa
condio espiritual'. (MARION WOODMAN, 2003, p. 243).

Analisando a realidade contempornea e suas patologias, nota-se o


quanto a importncia da beleza para o bem-estar fsico e psicolgico foi literalizada
na cultura ocidental.
Ela representa sucesso profissional, social e afetivo. Pelo menos, o que
sugere a mdia em geral, atravs de programas de televiso, dos livros de autoajuda, e, at mesmo, da prpria medicina com sua moderna tecnologia esttica.
Porm, do ponto de vista da psique, a questo mais complexa, pois
quando literalizada perde seu significado. Da mesma forma, a literalizao da beleza
acabou se transformando num vcio de comportamento, que determina o esprito da
poca atual, na qual a cultura da persona rejeita a sombra, dissociando o "FEIO" do
"BELO".
A dissociao mente-corpo coloca a cincia em "Xeque", na medida em
que no encontra soluo para este conflito, o qual se apresenta em forma de
patologias que desafiam cada vez mais a medicina e a psicologia.
Na atual sociedade de consumo, h uma preocupao enorme com a
aparncia e, portanto, uma supervalorizao do corpo, que se tornou um objeto de
admirao.
O culto ao corpo, ento, passou a ser uma exigncia, denominada, hoje,
ditadura da beleza. A ditadura da beleza se constitui pela grande importncia que se
d beleza fsica de poucos, transformando isto num modelo ideal, sem levar em
conta as diferenas individuais.
Hoje, os jovens esto muito mais preocupados em cuidar da sua
aparncia do que da sua sade fsica e mental; e so eles as maiores vtimas deste
forte apelo esttica, porque so pressionados a se enquadrarem neste padro de
beleza ditado pela moda; porm, nessa busca, a maioria fracassa. A principal

12

conseqncia disto so os distrbios alimentares, pois a ditadura da beleza a


ditadura da magreza; e ser belo, hoje, significa ser magro.
Este pensamento conseqncia de valores sociais distorcidos, que
acabam provocando um efeito contrrio, ou seja, a beleza se manifesta atravs do
seu oposto, seu lado feio ou mal, que aparece, compensatoriamente, em forma de
doenas, como a obesidade, a anorexia e a bulimia.
Estas so patologias nas quais a insatisfao com a aparncia ocupa
grande parte da vida psquica de uma pessoa, comprometem seu trabalho, estudos
e suas relaes afetivas. E, as pessoas que tem uma auto-imagem distorcida so
mais suscetveis ditadura da beleza e mais propensas ao desenvolvimento de
distrbios alimentares.
A insatisfao ou distoro da imagem corporal, embora estejam
presentes em diversos quadros psiquitricos, como nos quadros de depresso e
ansiedade, tm nos transtornos alimentares sua importncia mais relevante.
A insatisfao com a prpria imagem tem sua origem na primeira infncia,
na relao de maternagem em que no se consegue estabelecer uma empatia e, a
criana no se sente suficientemente compreendida e aceita como . Esta falta de
reflexo geralmente compensada por um excesso de exigncia que resulta numa
carncia profunda de afeto e numa ferida na auto-estima. De acordo com SchartzSalant (1982, p. 60):
Ser refletido ser compreendido, sentir que algum segue
empaticamente nossos pensamentos, sentimentos, experincias etc.
Uma deficincia flagrante da nossa cultura consiste em valorizar
muito mais o estar certo do que o estar envolvido numa ligao. E, no
entanto, a reflexo de outra pessoa requer uma disposio para
entrar no mundo dessa pessoa, para suspender o julgamento crtico e
refletir o que est sendo oferecido.

A cultura e a mdia, portanto, tm uma responsabilidade secundria, na


deformao da auto-imagem. E, os pais, como os primeiros responsveis, podem
educar suas crianas e adolescentes para serem os melhores, os mais belos, os que
precisam acertar e vencer, incentivados por um esprito de competio e pela busca
de aceitao social; ou, ao contrrio disso, podem incentiv-los a serem eles
mesmos, demonstrando-lhes que so aceitos como so e que devem se sentir bem
e satisfeitos com a natureza que lhe prpria.

13

2.2 O que normal e o que patolgico?

James Hillman (1993), referindo-se ao diagnstico de narcisismo, disse


que o espelho passou a ser a metfora predileta e a adolescncia e a infncia o
topos principal, resultando numa sndrome contempornea, num distrbio de carter,
relativamente ignorada nos primeiros 75 anos da psicanlise.
Hoje em dia, as pessoas no se olham no espelho para admirar a prpria
imagem, mas se olham em busca de falhas e imperfeies que precisam ser
corrigidas, da o aumento exagerado das cirurgias e tcnicas de correo, em idades
cada vez mais precoces. Elas nunca esto satisfeitas. E o problema no est na
imperfeio, mas na no aceitao destas imperfeies. Neste sentido, a satisfao
total no s impossvel, mas desnecessria, desde que possamos suportar e lidar
com nossos limites.
Esta busca obsessiva pela beleza e a falta de percepo corporal, do
ponto de vista arquetpico; ou seja, de um padro coletivo de comportamento, pode
ser considerada um sintoma titnico, que a ausncia de limites humanos.
Associando ao pensamento de Hillman (1993, p. 141), quando ele fala
sobre "o que enorme feio", poderia dizer que ditadura da beleza a ausncia
dos Deuses. Segundo ele, sem o governo benevolente da divindade, a Onipotncia,
a Oniscincia e Onipresena se tornam Deuses e, sem os Deuses os Tits retornam.
A ditadura da beleza conseqncia do narcisismo contemporneo, que
nada mais do que a re-edio do titanismo.
Para Hillman (1993, p. 132), o narcisismo, descrito classicamente por
Freud em 1922,
[...] uma ausncia ou um distrbio da 'libido objetal', aquele desejo
que se estende ao mundo 'l fora'. Ao contrrio, o desejo jorra para
dentro, ativando nossa subjetividade isolada. A beleza do mundo
perde o fascnio, perde o eco que atrai minha ateno. Porque a
beleza do mundo no mais atrai, procuro e encontro essa beleza num
olhar autocentrado. Isso narcisismo e, como revela a origem da
prpria palavra no conto de Ovdio, narcisismo um distrbio da
beleza, a face do mundo abandonada, a libido sem objeto, voltada em
direo ao sujeito narcsico, desordenando seu carter. Narciso foi
cativado no por si mesmo, no pelo reflexo, mas pela beleza.

Todo carter narcisista est profundamente identificado com a persona,

14

gerando uma inflao, que pode ser projetada no corpo. Neste sentido, o Si-mesmo,
no carter narcisista aparece dividido, dissociando o corpo da alma; assim como, o
belo do feio. Neste sentido, o conceito de beleza se reduz ao ponto de vista da
persona, cuja viso unilateral causa a represso da beleza, de acordo com Hillman
(1993). Pois, segundo ele, hoje somos inconscientes da beleza, somos antiestticos,
estamos anestesiados, psiquicamente.
A ditadura da beleza e seus sintomas podem ser entendidos como
conseqncia de uma sociedade com problemas narcisistas no transformados.
Trata-se de um problema de ordem moral, porque a beleza pode ser definida tanto
esteticamente quanto de um ponto de vista tico: o belo e o feio; o bom e o mal.
Assim, a ditadura da beleza pode ser considerada uma questo da
sombra coletiva; e, portanto, somente atravs dela possvel corrigir a persona
narcisista e arrogante do homem moderno.
A transformao do narcisismo exige a integrao dos aspectos divididos
do Si-mesmo atravs da sombra; ou, em outras palavras, atravs do retorno dos
Deuses, que tem a tarefa de punir o homem pela sua Hybris; ou seja, pelo ato de
transgresso dos seus limites humanos.
Muitas meninas, "mulheres" e "homens", meninos, tambm, esto
identificados com os padres de beleza da persona, presos num ideal narcisista de
perfeio, distantes da vida e da alma, tornando-se pessoas apticas, entorpecidas,
narcotizadas.
De acordo com o pensamento de Hillman (1993), o excesso s pode ser
contido pelo retorno dos Deuses. Segundo ele, um dos caminhos para a cura do
narcisismo ou titanismo de hoje, que so os excessos, as enormidades, as manias e
compulses o despertar das emoes, como a raiva, o medo, a vergonha, por
serem reaes que informam nosso corpo e esprito sobre como existir.
Sabe-se que Dionsio foi um dos inimigos dos Tits, representando
arquetipicamente, uma fora de oposio ao titanismo. O retorno do dionisaco a
liberao de tudo o que pertence alma, a beleza e a feira que est em cada uma
e todas as coisas, e se expressa por meio da vida corprea de cada pessoa.
De acordo com Hillman (1993, p. 150), a cura para este entorpecimento
psquico, esta inconscincia que leva morte da alma, passa por uma reao
esttica, pelo sentido da beleza como fora arquetpica, que se desloca do universal
para o particular, despertando os sentidos para o verdadeiro xtase criativo. Para

15

ele, "o retorno ao mundo, e o retorno ao mundo almado, requer o retorno da


primazia dessas emoes vivificantes, protetoras da vida e reconhecedoras do
mundo".

2.3 Um exemplo clnico: a questo do mal no tratamento dos transtornos


alimentares

S aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos. (JUNG,


1987, p. 43, 258)

Uma paciente com um quadro de transtorno alimentar que estava


evoluindo para uma anorexia teve o seguinte sonho: estava num velrio; viu um
fantasma passar por ela; percebeu que era ela mesma; como se fosse sua parte
ruim; olhou para o caixo que estava vazio e mandou o fantasma entrar; fechou com
uma tampa de vidro.
Associou este sonho Igreja, que condena todos os pecados. A sua me
pertencia a esta Igreja e, ela, porque no freqentava mais, se sentia uma ovelha
desgarrada; representando o seu conflito entre o bem e o mal, o certo e o errado e,
os seus sentimentos de culpa e solido.
Este sonho traz o tema da morte como um smbolo do sintoma
apresentado. O fantasma a prpria alma sem corpo, aprisionado no caixo com
tampa de vidro. Esta imagem remete ao processo alqumico de vitrificao, que
um tipo de inflao da prata, que ocorre quando se est preso ou identificado com a
imagem, que neste caso pode ser entendido como a persona da paciente. Segundo
Hillman (2010), a vitrificao nos fecha para a conscientizao, tornando-nos
vidrados em nossa individualidade pessoal.
Para Woodman (apud ROBELL, 1997, p. 38):
O vidro um isolante (insulator) que no conduz calor, e a mulher
aprisionada num caixo de vidro no est em contato com a paixo
pela vida. Ela olha de dentro para fora, ansiando por aquilo que os
outros tomam como certo. De sua priso, os menores detalhes da
vida adquirem uma beleza mstica. Em sua solido, ela fantasia suas
emoes, mas no h um 'eu' com o qual experienciar sentimentos
reais. A vida no flui para ela.

16

Estas analogias permitem pensar no tratamento dos transtornos


alimentares como um trabalho com esta psique aprisionada e distante do corpo. A
vitrificao enquanto processo psquico representa o risco de se ficar preso a
comportamentos viciados e no suscetveis a mudana, como ocorre quando o
corpo e a beleza so literalizados.
O corpo magro ou anorxico, tambm uma representao literal desta
alma sem corpo. Neste sentido, parafraseando Gustavo Barcellos, o corpo invisvel
se vale do visvel para ser compreendido. A falta de corpo na anorexia simboliza a
falta de substncia da alma, a falta de matria psquica. E, temos uma necessidade
arquetpica de dar corpo alma, ou seja, de dar vida para que ela se expresse.
Estas associaes chamam a ateno para a questo da sombra, que
para a escola Junguiana o lado da personalidade sentido como o mal, o lado
ameaador e indesejado que se tenta reprimir e, que aparece no corpo em forma de
sintomas.
A sombra um arqutipo, uma parte da constituio da personalidade,
existente em todo ser humano, que se ope outra parte desta mesma constituio
que a persona, compreendida como aquele lado aceitvel da personalidade que
est a servio do ideal do ego, o qual se constitui pelos padres de comportamento
que modelam a personalidade consciente.
Suzanne Robell (1997, p. 47), em seu trabalho sobre anorexia, demonstra
que "a moda de ser magra e a anorexia nervosa so a manifestao de uma mesma
questo do inconsciente, ainda desconhecida para ns". E ainda, afirma que "a
anorexia nervosa uma forma de o inconsciente manifestar, de forma patolgica e
compensatria, algum contedo que, por enquanto, nos escapa".
A partir das associaes destes pacientes, entende-se que este contedo
inconsciente desconhecido que tenta se expressar pelo corpo, como via de acesso
conscincia a sombra, com toda sua fora vital. A sombra aquele lado oculto,
inconsciente, recalcado, que estando dissociado da conscincia forma um complexo
autnomo, que se manifesta como doena.
O que se vislumbra mais que uma patologia psquica, mas um problema
moral, pois a sombra representa o bem e o mal dentro de cada pessoa e pode ser
compreendida tanto do ponto de vista individual quanto coletivo.
O tratamento dos distrbios alimentares, sejam especficos ou no,
depende de uma compreenso profunda da inter-relao entre o inconsciente

17

pessoal e o inconsciente coletivo no contexto cultural. Segundo Lee (apud ROBELL,


1997, p. 18), "assim como os mdicos, os pacientes com a anorexia nervosa so
inevitavelmente um produto de seu tempo e cultura".
A minha experincia neste campo tem sido com pacientes com sintomas
generalizados

de

transtornos

alimentares,

que

se

caracterizam por

uma

preocupao excessiva com o corpo e a aparncia e, principalmente, por uma


necessidade de controle e busca pela perfeio; apresentam, geralmente,
inapetncia ou crises compulsivas, s vezes seguidas de vmitos. Os casos de
transtornos alimentares especficos que se enquadram no diagnstico de anorexia
ou bulimia nervosa so menos freqentes, porque a maioria das pessoas que
sofrem de transtornos alimentares no costuma buscar ajuda e, quando chegam
clnica psicolgica porque j se encontram num estado grave, e precisam ento,
serem encaminhados e levados pela famlia.
Nesse sentido, corrobora-se com Suzanne Robell, quando diz que a
psicologia ainda no est completamente preparada para tratar de pacientes
anorxicas, pois, segundo ela, os modelos psicodinmicos e de estrutura de
personalidade no so suficientes para isso e seu mtodo falho.
Talvez a falha maior, e tambm a mais antiga na histria da psicologia,
especificamente da psicanlise, seja que, como o que ocorreu com as histricas do
sculo passado, ainda sabe-se muito pouco sobre o corpo na clnica psicolgica.
Esta dissociao ainda muito presente, tanto por parte dos profissionais de sade
quanto por parte dos pacientes, o que acaba dificultando muito o tratamento e a cura
destas patologias.
A questo do mal no tratamento dos transtornos alimentares remete a
algo que pertence a todos e que se manifesta de forma patolgica naqueles que de
alguma forma esto mais suscetveis projeo da sombra coletiva. Segundo
Sanford (1988, p. 75),
Algumas pessoas parecem estar fadadas a viver a personalidade da
sombra para o benefcio do resto de ns [...] isso significa que, at
que a espcie humana se torne mais consciente da sombra, algumas
pessoas estaro fadadas a carreg-la.

Fazemos parte de uma cultura em que o controle do corpo e da comida,


para manter o corpo esbelto e belo, est a servio de um padro de perfeio, ou

18

daquilo que se julga perfeito e bonito. Parece que, de acordo com estes ideais, no
h espao para a sombra. Todas as tendncias psicolgicas que no se enquadram
nestes padres so excludas da conscincia, ou permanecem como potenciais
nunca vivenciados.
De acordo com Sanford (1988, p. 67), "a personalidade da sombra
tambm pode ser encarada como uma vida no vivida". Isto significa que a sombra
no pode ser compreendida somente em termos negativos, mas com todas as suas
qualidades e potenciais necessrios para a totalidade do Si-mesmo, os quais,
portanto, devem ser integrados conscincia. A realizao da personalidade
individual depende desta energia vital contida na sombra. Como disse Jung (1985, p.
56, 132):
Esconder sua qualidade inferior, bem como viver sua inferioridade,
excluindo-se, parece que so pecados naturais. E parece que existe
como que uma conscincia da humanidade que pune sensivelmente
todos os que, de algum modo ou alguma vez, no renunciaram
orgulhosa virtude da autoconservao e da auto-afirmao e no
confessaram sua falibilidade humana. Se no o fizerem, um muro
intransponvel segreg-los-, impedindo-os de se sentirem vivos, de
se sentirem homens no meio de outros homens.

Ainda, para Sanford (1988), o grande valor da sombra est na sua


importncia para o desenvolvimento do autoconhecimento. , pois, no confronto
com a sombra que est a chave para a conscincia individual, atravs da
diferenciao do coletivo.
Neste sentido, ressalta-se a idia de Suzanne Robell, quanto
importncia do animus, como funo discriminadora e curativa na anorexia nervosa.
O animus apontado pela autora como um princpio discriminador da psique, como
questo central na compreenso da anorexia, explicando que nestes casos h uma
ferida na estruturao do animus como arqutipo que permite uma feminilidade
madura.
Enquanto arqutipo, o animus est a servio do Self, com a funo de
integrar os contedos da sombra, auxiliando na relao da conscincia com o
inconsciente mais profundo. No seu aspecto negativo, porm, quando no foi
adequadamente desenvolvido, ele se torna um complexo autnomo e passa a atuar
a servio do ego, impedindo a relao com o mundo interno da psique.
Nos transtornos alimentares, pode ser observada esta dinmica de

19

represamento da libido atravs de um animus negativo, que atua como um


espartilho cada vez mais apertado (cuja verso atual so as cintas modeladoras, as
cirurgias plsticas e as lipoaspiraes), forando as mulheres a se submeterem a
padres rgidos de comportamento e pensamento, onde, como num crcere privado,
a nica sada a morte, que simbolicamente a perda da liberdade de ser quem
realmente se deseja ser. No caso da paciente citada, parece que a Igreja, que,
tambm representa a figura materna com seu animus negativo, cumpre este papel,
com o qual a paciente est presa e identificada.
O animus parece fazer um pacto com a sombra, impedindo a menina de
crescer, de sair da sua inconscincia e ingenuidade e de se tornar senhora da sua
prpria vida. Este conluio resulta na negao da sombra, que, dissociada, se
apresenta projetada no alimento ou no corpo, como smbolos de todo mal que se
deseja eliminar, seja pela negao como no caso das anorxicas ou pela
represso na obesidade , mecanismos reforados pelos rgidos padres do
animus, que tortura e devora o feminino, deformando no s o corpo, mas a viso da
realidade e, principalmente, sua auto-imagem.
Os problemas alimentares, assim como a preocupao excessiva com o
corpo, parecem ser a manifestao da angstia de ser mulher, do feminino reprimido
e de suas necessidades vitais, que se expressam pela via somtica como nica
forma de obter reconhecimento. Como um substitutivo moderno da histeria, estas
patologias apontam para uma necessidade da psique de ser reconhecida como uma
realidade interna e de ser assim tratada.
Em seu livro Alimento e Transformao, Eve Jackson (1999, p. 157)
afirma que "a psique tem a necessidade de ser vista, homenageada e amada". E,
ainda:
Quando a ateno se desloca do peso fsico para a realidade interna,
por mais que no comeo isso d uma sensao de vazio,
desvalorizao ou susto, o corpo invisvel comea a ser alimentado, e
a possibilidade de um relacionamento novo e amistoso com o corpo
fsico pode comear a existir. (JACKSON, 1999, p. 157).

A resistncia ao mundo interno aparece no discurso das pacientes com


distrbios alimentares como um medo da sombra inconsciente projetada no alimento
que rejeitado, assim como rejeitam muitas de suas necessidades e instintos que
integram sua totalidade psquica.

20

Segundo Hillman (1984, p. 110),


O cultivo da personalidade frequentemente se inicia na sombra, na
autocompaixo e no sentimento para consigo mesmo. Da
necessidade de sentir-se acariciado, ouvido e cuidado que surge a
verdadeira capacidade de cuidar de si mesmo.

tratamento

dos transtornos alimentares exige

um olhar,

um

reconhecimento e acolhimento destes aspectos sombrios, integrando os valores


desprezados e negligenciados da personalidade, como uma forma nova de vir ao
mundo, atravs de uma conscincia mais profunda do existir individual.
Jackson (1999, p. 158), de uma forma bela, conclui que:
Cada pessoa nasceu como uma criatura mpar e tem contribuies
particulares a dar. A semente interna da individualidade conhece
obscuramente que tipo de fruto seu destino produzir, e que tipos de
circunstncias lhe so mais propcias para que desabroche. Mas esse
conhecimento est em geral muito profundamente escondido e,
quaisquer tentativas de nos moldar, segundo ideais importados da
inconscincia coletiva, projetados no corpo, apenas nos colocam
contra ns mesmos. desse embate com o que no , que a pessoa
real pode vir luz.

A paciente do sonho, que inicialmente, chegou com a busca de matar seu


lado mal, aps alguns meses de terapia, durante o desenvolvimento deste trabalho,
trouxe um poema que pode ser considerado como um smbolo do processo de
compreenso e de tratamento desta grande ferida da alma:
Saindo do Casulo
Para ser sincera
Cansei do que querem que eu seja
Traga aqui uma caixa
E jogue essas sujeiras dentro
Tirem essas cobranas
Desviem esses olhares raivosos
Rasguem esses roteiros que tentam escrever para mim...
Deixem-me em paz
Quero sonhar meus profundos desejos sem ter essas exigncias
No vou leiloar minha opinio
Porque quero esse papel
Vestirei vestidos negros e rasgados
At que meu traje de gelo esteja pronto
E se quiser me colocar nessa pose de sapatinhos brilhantes
Ah, vamos debater
No vou comer
Vou correr
E meu silncio vai te entorpecer
Deixe-me crescer sozinha

21
Todas essas opinies esto indo para receita de minha frmula
secreta.1

Neste poema, sair do casulo sugere o desejo de se libertar da persona,


que gera uma viso cristalizada da vida, impedindo a alma de se expressar atravs
de formas e limites que lhe so prprios.
Fazendo uma analogia do sonho inicial com o pensamento alqumico, que
se utiliza de metforas orgnicas e fsicas para compreender os processos
psquicos, pode-se pensar no trabalho com a sombra, como um antdoto para estas
iluses idealsticas acerca da natureza humana e, portanto, como forma de
tratamento e busca da cura destas patologias alimentares.
Atravs da sombra se pode corrigir a persona, e a alma ganha corpo;
pois, segundo Jung (1985), a sombra no o essencial, mas, sim, o corpo que
produz a sombra. Assim como na alquimia, o remdio para a vitrificao, segundo
Hillman (2010), volatizar o fixo e coagular as fantasias em formas e limites:
Nada acontece na alma a menos que seus estados gasosos se
tornem slidos, e suas naturezas se tornem mveis. Todos os vos
dispersos e as soberbas arrogncias do esprito necessitam de
fixao. Ao mesmo tempo, aquelas certezas que sentimos
inquestionveis precisam encontrar asas e decolar. Volatizar o fixo
perceber que as coisas como elas so no so como so. Nada
acontece at que possamos enxergar atravs do fixo como fantasia e
coagular a fantasia em formas e limites. O pr-requisito para o
branqueamento simplesmente essa incorporao do esprito e essa
inspirao do corpo. At que ocorra essa ao simultnea no
sentimos a realidade psquica. Perpetuamos o 'reino dos dois' (corpo
X esprito, interno X externo) e somos atormentados com todo tipo de
'deciso difcil'.

2.4 Uma viso Junguiana da psicossomtica

A arte requer o homem inteiro. (JUNG, 2007, p. 66, 400).

A psicossomtica um termo utilizado para descrever fenmenos


resultantes de uma interao recproca entre as reaes orgnicas e emocionais,
nos quais, tanto o psquico pode estar afetando o somtico, quanto o somtico pode
1

Poema de paciente em tratamento.

22

estar afetando o psquico. Mais do que isso, trata-se de um processo evolutivo em


que ocorrem interaes funcionais e de homeostase, de equilbrio entre estas duas
dimenses, que so pensadas separadas, mas que constituem uma unidade. O
psquico tem uma funo na manuteno do equilbrio vital do ser humano to
importante quanto a do somtico.
Do ponto de vista da economia psicossomtica, o psiquismo oferece
recursos mais evoludos, constituindo-se na sua capacidade de simbolizao para
lidar

com os

conflitos,

aos

quais

o funcionamento

psicossomtico

est

constantemente submetido. Existe uma interao permanente entre essas duas


dimenses, em que um desequilbrio da capacidade de lidar com uma certa
experincia no plano psquico pode fazer com que surja uma resposta somtica em
seu lugar.
Esta viso, portanto, muito mais ampla e complexa do que a viso
simplista e reducionista que considera existir uma relao causal direta entre
problemas psquicos e o adoecer. Infelizmente esta a viso mais freqente, que se
d provavelmente em funo de uma interpretao distorcida do conceito de
psicossomtica.
Considerando o desenvolvimento humano como um contnuo que parte
de estruturas simples, menos complexas, para estruturas cada vez mais complexas,
o funcionamento psquico o que h de mais complexo do ponto de vista da
evoluo. Ele no depende de automatismos (como a multiplicao celular, por
exemplo), e tem uma certa autonomia para lidar com as situaes de conflito. A
partir do momento em que existe uma deficincia da dimenso psquica em lidar
com o conflito, o organismo naturalmente apelar para respostas menos evoludas,
da ordem do comportamento (das descargas propiciadas pelos comportamentos
impulsivos) ou da ordem das desorganizaes somticas, como as doenas
orgnicas, que podem ser mais ou menos graves, crnicas ou agudas, reversveis
ou irreversveis.
O que diferencia a forma de reao de cada pessoa frente s
adversidades o tipo de funcionamento psquico, que se define pelo grau de
ativao da atividade simblica do psiquismo, que o pano de fundo que subsiste
em cada uma dessas manifestaes. Da mesma forma, quanto ao atendimento e
tratamento destes pacientes, o que diferencia a abordagem psicossomtica da
abordagem mdica tradicional, sem dvida a escuta e a ateno dada

23

participao da dimenso psquica no processo de adoecer.


Esta tentativa de comunicao entre o psquico e o somtico
exatamente o que define a abordagem psicossomtica. Este dilogo , sem dvida,
uma tentativa difcil do ponto de vista terico, mas facilmente perceptvel na prtica
clnica, sendo que a psicossomtica s pode existir numa prtica interdisciplinar
entre o saber psquico e o somtico.
O conceito de interdisciplinaridade parte do princpio de que nenhuma
disciplina por si s d conta do sujeito. Na medicina o objeto de trabalho o corpo
do sujeito, enquanto para a psicologia a psique, porm o objetivo de ambas as
especialidades comum, a sade. Portanto, a interlocuo entre a medicina e a
psicologia fundamental, porque ambas lidam com o humano.
A busca da compreenso dos sintomas corporais na clnica psicolgica
uma preocupao desde a fundao da Psicanlise por Freud, atravs da sua
experincia com as histricas. Em Jung, encontramos ao longo da sua obra,
referncias constantes de que o corpo e a psique reagiam como uma unidade,
embora no de forma sistematizada como um conceito especfico, como denominouse a psicossomtica, em 1918, por Heinroth. A partir de ento, este conceito se
disseminou em duas principais escolas, a Escola de Chicago, organizada por Franz
Alexander, e a Escola de Paris de Psicossomtica, formada por Pierre Marty,
Dejours e Joyce McDougall, entre outros.
Considerando as contribuies das duas escolas, principalmente para a
psicologia e a medicina, pode-se dizer que a psicossomtica hoje, mais do que um
conceito, um novo paradigma, uma nova forma de ver o ser humano que leva em
conta todas as suas dimenses. uma abordagem que considera o ser humano na
sua totalidade, pois, o fenmeno psicossomtico aponta para a dialtica corpomente sintetizada na unidade biopsicossocial do sujeito.
difcil ver o indivduo de outra forma que no com uma viso
psicossomtica, uma vez que toda sua linguagem psicossomtica por ser uma
expresso tanto fsica quanto psquica. Neste sentido, a doena no pode ser
definida como psicossomtica, mas a viso clnica sim, enquanto abordagem
terico-prtica.
O termo "psicossomtica", porm, ainda muito questionado por ser
dissociativo e reducionista, e, por isso, considerado na atualidade, ultrapassado.
Abre-se ento um novo campo de estudo a ser explorado, onde o conceito e o

24

mtodo se interpem num mesmo fenmeno psicodinmico.


um termo cujo significado ambivalente, apontando dois sentidos, um
causal e outro prospectivo. O primeiro sugere uma patologia, o problema da
dissociao corpo-mente, o segundo aponta a soluo, a meta que a integrao
destes opostos.
A

medicina,

por

tradio,

tende

compreender

fenmeno

psicossomtico do ponto de vista causal, tendo como foco a doena; enquanto a


psicologia, que tem como objeto de estudo o homem na sua integralidade, entende a
psicossomtica como um mtodo de abordagem do ser humano, que tem como
finalidade o seu desenvolvimento, a sua sade tanto fsica quanto psicolgica,
embora, na prtica, tambm, a psicologia tenda a dissociar, ao enfatizar mais os
fatores psquicos.
Partindo do princpio de que a psicologia visa atender as demandas do
esprito e a medicina as demandas do corpo, cada uma, a partir de um ponto de
vista especfico, pressupe-se que este novo campo exija fundamentalmente um
outro, ou terceiro ponto de vista, que seria o ponto de vista da alma, onde corpo e
esprito so um s. Segundo Hillman:
Perdemos a terceira posio intermediria que o lugar da alma: um
mundo de imaginao, paixo, fantasia [...] que, por um lado, no
nem fsico e material nem, por outro lado, espiritual e abstrato, ainda
que ligado aos dois. Tendo seu prprio reino, a psique tem sua
prpria lgica-psicologia que no nem uma cincia das coisas
fsicas nem uma metafsica de coisas espirituais. (apud AVENS,
1993, p. 17).

Para este autor, a psicologia no deve ser uma cincia das coisas fsicas
nem espirituais, mas um ponto de vista especial que inclui todos os outros ramos do
conhecimento, pois a perspectiva psicolgica est presente em tudo o que os
homens fazem, pensam e sentem.
O referencial da psicossomtica dependeria de uma terceira viso, onde
todas as polaridades podem ser vistas como parte da mesma unidade, pois sem
elas a totalidade no seria uma realidade possvel. Neste sentido, a Psicologia
Analtica de Jung pode oferecer uma viso mais ampla da relao corpo-mente,
contribuindo para o desenvolvimento da clnica mdica e psicolgica.

25

2.4.1 Meta-individuao

A individuao um "mysterium coniunctionis" (mistrio de unificao),


um processo de integrao dos opostos numa mesma unidade que o Si-mesmo,
ou

uma

"complexio

oppositorum"

(complementaridade

dos opostos).

Jung

denominou Si-mesmo a totalidade objetiva da psique em oposio subjetividade


da psique do eu. O Si-mesmo, ou Self, abrange o todo, os aspectos obscuros e
luminosos, o masculino e o feminino, o consciente e o inconsciente. o arqutipo da
totalidade, da inteireza, que Jung diferenciou da perfeio.
O conceito de individuao de Jung, que a pedra que fundamenta toda
sua teoria, um movimento de busca desta totalidade que conduzido pela alma,
que a instncia psquica que rege este processo. A psique do ponto de vista
junguiano no baseada no crebro ou no intelecto, mas na alma, como uma
terceira realidade entre a mente e a matria. Ou seja, a alma o terceiro elemento,
a psique que se reveste de um lugar, no excluindo a realidade fsica ou material.
A alma ou psique para a psicologia analtica deve ser entendida como
geradora do smbolo, que para Jung, "provm tanto da conscincia como do
inconsciente e capaz de unir ambas as partes" (JUNG, 2000b, p. 170, 280). O
smbolo movimenta a libido, integrando os opostos, corpo-psique. Segundo Avens
(1993, p. 86), "quando a realidade psquica estabelecida, a alma torna-se
verdadeiramente o intermedirio, que contm a possibilidade de reunificao da
mente e do corpo". A alma, atravs da imaginao, entendida como a realidade
psicolgica em si, unifica o que est dentro e o que est fora, a experincia, o
princpio de relao entre todas as realidades, materiais e espirituais. "A alma no
nem o sujeito pensante, atuante, que deseja, nem o corpo material, que percebe,
mas sim o sujeito que vivencia". (AVENS, 1993, p. 85).
Para Jung, a linguagem da alma a imaginao, a metfora e o smbolo;
a imaginao subjacente a todos os processos perceptuais e cognitivos, sendo
que nada pode ser conhecido antes que surja como uma imagem psquica; primeiro
vem a imagem, atravs da imaginao, depois a percepo, primeiro a fantasia
depois a realidade. Para Jung, a alma imaginal a "me de todas as possibilidades",
ligando os mundos interno e externo. (AVENS, 1993, p. 49).
A linguagem, segundo Cassirer (apud AVENS, 1993, p. 117), tem origem

26

na imaginao, entendida como "a representante de uma totalidade", como "o


primeiro universal". Segundo ele, os smbolos, diferentemente das imagens mticas,
nascem quando a imagem adquire a funo de representao, servindo como
substitutos para as coisas e eventos do mundo fsico, sendo parte do mundo
humano de significado e racionalidade o globus intellectualis do animal simblico.
A transio da imagem para o smbolo uma realizao tardia, sendo que o homem
vai adquirindo a conscincia do smbolo ao longo do seu desenvolvimento. Esse
processo evolutivo, na cultura ocidental, foi interrompido, causando uma dissociao
entre consciente e inconsciente.
A concepo junguiana da totalidade corpo/mente consiste numa viso
que se fundamenta na imaginao, que real, no sentido de ser praticamente
corprea, pelo fato da imaginao originar-se no corpo. Atravs da imaginao o
arqutipo do Si-mesmo se revela como corpo simblico ou psquico, conferindo uma
alma individual, atravs da qual a vida se realiza plena de sentido.
Diferentemente da psicanlise, a psicologia junguiana considera o
imaginrio no como um disfarce de desejos inconscientes, mas como totalmente
significativo em seu contedo manifesto. Segundo Jung: "a imagem e o significado
so idnticos e, medida que a primeira toma forma, assim o segundo torna-se
claro. Realmente, a configurao no precisa de nenhuma interpretao: retrata seu
prprio significado". (AVENS, 1993, p. 52).
O corpo fsico a imagem do Si-mesmo que quer se expressar, a
representao da totalidade do indivduo; e o rgo doente parte dissociada desta
totalidade, o Si-mesmo, que precisa ser integrada conscincia, e ativada no
processo de individuao da personalidade. O corpo da forma como imaginado ou
sentido uma representao externa do mundo interno do indivduo, carregando em
si um significado que precisa ser integrado conscincia, como num processo de
encarnao do esprito no corpo, ou seja, da humanizao do homem.
Jung, ao tratar do corpo, nos seminrios Zaratustra, faz uma distino
entre inconsciente somtico e inconsciente psquico, em que, acordo com Boechat
(2005, p.108), ele retoma a antiga questo do corpo sutil, que aparece nas religies
de povos antigos, e a redefine em termos da psicologia atual como o inconsciente
somtico, uma regio limtrofe entre a psique e a matria, locus fundamental para
Jung, pois nele se entrelaam o consciente e o inconsciente, ambos mergulhados no
corpo fsico.

27

Segundo Schawartz-Salant (1982, p. 162):


O inconsciente somtico, ou corpo sutil representa o inconsciente, tal
como o percebe o corpo e, de acordo com Jung o inconsciente est
no corpo e, a nica forma pela qual pode ser experimentado. Ele
afirma que: o Si-mesmo , a um s tempo, corpo e psique, e que o
corpo apenas a manifestao externa do Si-mesmo. E mais, que a
alma a vida do corpo. Se no vivemos no corpo, se no
representamos o Si-mesmo, em sua natureza mpar, ele se rebela.

De acordo com esta viso, pode-se dizer que o processo de individuao


acontece no corpo. E, que a alma o psquico na vida, portanto, d carne um
corpo. Neste sentido, o Si-mesmo precisa ser incorporado seno manifesta-se como
a sombra negativa atravs de sintomas corporais. Considerando que o sintoma um
aspecto da sombra que se precipitou no corpo fsico, necessrio integrar esta
sombra na conscincia, transformando assim a doena numa potencialidade a
servio da vida.
Segundo Jung,
No gostamos de admitir nosso prprio lado de sombras. Muitas
pessoas em nossa sociedade civilizada perderam sua sombra,
livraram-se dela, tornando-se apenas bidimensionais: perderam a
terceira dimenso e, geralmente com ela, o prprio corpo. O corpo
o amigo mais duvidoso, por produzir coisas de que no gostamos [...]
por isso ele frequentemente a personificao do lado sombrio do
eu. (JUNG, 2007, p. 39, 40)

Para a psicologia analtica o conceito de Si-mesmo ocupa uma posio


central porque como centro regulador e representante da totalidade do sujeito tem
como meta a individuao, "o realizar-se do Si-mesmo", que o processo de
crescimento, diferenciao e realizao das potencialidades do indivduo.
A individuao faz parte da concepo junguiana de homem, como um
processo natural de tornar-se um homem completo, que surge do interior, num
desenvolvimento autodirigido, que para Jung arquetpico, ou seja, comum a todas
as coisas vivas: "a individuao uma expresso do processo biolgico [...] atravs
do qual todas as coisas vivas tornam-se aquilo que, desde o princpio, foram
destinadas a ser" (JUNG apud CLARKE, 1993, p. 205).
Se o processo de individuao acontece no corpo, os fenmenos
psicossomticos tambm podem ser compreendidos como uma patologia do ego
dissociado do Self, devido a sua identificao com a persona. Todo processo de

28

identificao impede a individuao. De acordo com Boechat (2005, p. 109):


A persona um complicado sistema de relao do indivduo com a
sociedade, construda a partir do que ele quer parecer para ela, e por
outro, das demandas da prpria sociedade. A persona polar com o
arqutipo da anima, a alma que contm os smbolos e imagens
psicolgicas, presidindo, portanto, o processo de individuao. Jung
chama a ateno para o perigo de uma identificao com a persona,
com ela o indivduo chega a perder contato com a anima e seus
smbolos.

Somente, na medida em que a conscincia se afasta da identificao com


o ego, se transforma em conscincia do corpo. quando a psique ganha corpo e, a
vida ganha sentido.
A personalidade somtica no simboliza, so pessoas concretas que tem
muita dificuldade de fazer conexo com seus sentimentos, devido a um ego frgil e
muito identificado com a persona. A anima que o elemento de conexo fica
dissociado, impedindo o ego de reconhecer as emoes. O corpo, ento o
smbolo, onde ficam projetados estes sentimentos.
A abordagem psicossomtica poder ser considerada uma forma de ver o
indivduo do ponto de vista do Si-mesmo, cuja percepo integra corpo-psique numa
mesma unidade; pois, corpo e psique diferem entre si somente do ponto de vista da
conscincia, do ego, cuja viso polarizada, se tornando por isso patolgica. O
autoconhecimento, portanto, uma tarefa muito difcil porque no significa descobrir
o eu, mas revelar o Si-mesmo, pois o eu divide a totalidade, separando o corpo da
alma, impedindo o processo de realizao da totalidade do indivduo.

2.4.2 O mtodo o caminho

Nas conferncias de Tavistock, de 1935, onde Jung abordou de forma


mais direta o tema mente-corpo, ele diz que este um problema extremamente
difcil, cuja compreenso depende das diferenas de carter e temperamento de
cada indivduo.
Aqueles que por temperamento preferem a teoria da supremacia do
corpo afirmaro que os processos mentais so epifenmenos da

29
qumica fisiolgica. Os que acreditam mais no esprito adotaro a
tese contrria: o corpo o apndice da mente e a causalidade reside
no esprito. A questo tem aspectos filosficos e, por no ser filsofo,
no posso arrogar a mim a deciso. Tudo o que se pode observar
empiricamente que processos do corpo e processos mentais
desenrolam-se simultaneamente e de maneira totalmente misteriosa
para ns. por causa de nossa cabea lamentvel que no podemos
conceber corpo e psique como sendo uma nica coisa;
provavelmente so uma s coisa, mas somos incapazes de conceber
isso. (JUNG, 2007, p. 49-50, 69).

Atravs da conscincia, no possvel abordar os dois aspectos, somapsique, simultaneamente, pois a informao obtida do inconsciente somtico limita a
informao do inconsciente psquico e vice-versa. A conscincia, que opera por
meio do pensamento precisa ser sacrificada para acessar o inconsciente somtico,
atravs do processo imaginrio mais prximo da funo da sensao e do
sentimento, numa relao mais estreita com o corpo.
Trata-se de uma viso mais feminina do que masculina, da funo de
Eros e menos do Logos, que neste caso interfere na expresso natural do indivduo,
no seu processo imaginativo.
Com a aquisio da conscincia, o mundo passa a ser visto de forma
polarizada, causando assim distanciamento do prprio corpo, do qual se passa a ter
vergonha por ser considerado inferior do ponto de vista do intelecto. O tratamento
dos distrbios corporais, portanto, requer a incluso do inconsciente, que a parte
do psquico relegada sombra.
O sacrifcio do esprito em benefcio do estar no corpo pode estimular o
inconsciente de modo a levar a imaginao a aparecer. O acesso atravs da
imaginao permitiria o resgate daquela parte do Si-mesmo do indivduo que ficou
perdida, deixando este empobrecido, como se o sentido da vida ficasse contido no
corpo e, inacessvel conscincia.
Para resgatar este sentido e integr-lo, re-significando sua existncia,
necessrio que o indivduo fale, compreendendo ento, que se trata de uma
linguagem primitiva, metafrica que se expressa atravs de um rgo que como um
smbolo revela alguma coisa; embora inicialmente atravs de uma imagem que
gradualmente, como num processo de aquisio da linguagem vai adquirindo
significado, podendo ento, ser expresso por meio do pensar; porm, de um
pensamento que no se situa no crebro, mas passa pelo corpo inteiro.
Jung em seus escritos sobre sua passagem pela ndia, diz que "a vida na

30

ndia no se retraiu para dentro da cabea; ainda o corpo todo que vive" (JUNG,
2000c, p. 216, 988). Observou, tambm, que o tipo de pensamento do povo
indiano muito peculiar. Segundo ele, o indiano no pensa, ele antes, percebe o
pensamento, semelhante ao primitivo, que percebe os efeitos. Segundo Jung,
Os indianos no so afetados por contradies aparentemente
intolerveis. Se existirem, porque so a peculiaridade deste pensar,
e a pessoa no responsvel por elas. Ela no as cria, j que os
pensamentos aparecem por si mesmos. O indiano no procura no
universo detalhes infinitesimais. Sua ambio ter um conspecto do
todo [...] O pensar do indiano um aumento de viso e no um
ataque predatrio aos campos ainda no conquistados da natureza.
(JUNG, 2000c, p. 227, 1012).

Embora, o contexto histrico-cultural do homem ocidental se caracterize


por uma atitude lgica em oposio viso analgica, tpica das culturas orientais,
podemos utilizar estas diferentes concepes da realidade, no com a finalidade de
adaptao coletiva mas, como forma de ampliao da nossa realidade psquica
individual.
O homem ocidental se viu partido em uma personalidade consciente e
outra inconsciente, se tornando um homem racional por um lado e, por outro
totalmente irracional e distante dos seus instintos. Isso pode explicar muitas das
doenas da humanidade. A cultura oriental pode ser um smbolo para o homem
ocidental, na busca da integrao da psique individual e coletiva.
Jung via no smbolo a possibilidade de uma ao mediadora entre
consciente/inconsciente, tendo a funo de conciliar os opostos, como uma ponte
entre os aspectos antagnicos da psique. Atravs desta funo transcendente
possvel imaginar o corpo como sendo a psique e a psique como um corpo, como
uma conjunctio superior. O equilbrio do organismo depende da cooperao entre
consciente e inconsciente. Neste sentido, os smbolos tm uma funo valiosa.
Sobre o processo da coiunctio, que a metfora alqumica da unio dos
opostos, Jung usa uma frase da alquimia, "in habentibus symbolon facilis est
transitus" (que significa, "para os que possuem o smbolo a travessia fcil"), para
explicar a importncia da atividade simblica no deslocamento da energia do instinto
e a liberao de toda esfera biolgica da presso dos contedos inconscientes.
Segundo ele, a ausncia do smbolo sobrecarrega a esfera do instinto. (JUNG, 2007,
p. 118, 460).

31

A existncia corprea precisa estar conectada existncia espiritual ou


psquica, o que s possvel por meio de uma atitude simblica, cuja viso atribui
um sentido a todo evento, seja ele externo ou interno, fortalecendo assim a relao
Ego/Si-mesmo.
O objetivo do tratamento dos pacientes acometidos por distrbios
alimentares seria, ento, levar o paciente a vivenciar sua realidade psquica, a partir
das suas percepes e relaes com o mundo externo e interno. A construo da
sua personalidade em direo a uma identidade psquica, e no somente fsica,
passa pelo desenvolvimento da sua capacidade discriminativa, que consiste em dar
lugar para eles falarem, se expressarem, identificarem seus sentimentos e integrlos como partes da personalidade a ser completada, transformando o corpo
biolgico em corpo psicolgico ou simblico. Este processo de construo necessita
de um espao vivencial, onde o terapeuta precisa levar o paciente a uma
representao, a uma imagem, que pode ser feita por meio dos diversos recursos e
tcnicas imaginativas utilizadas pela clnica junguiana, como desenhos, pinturas,
modelagem, caixa-de-areia, ou atravs dos mitos e metforas, que so as
representaes coletivas do inconsciente, cujo ponto de vista geral so de grande
valia no tratamento dos transtornos corporais, porque ampliam a compreenso dos
sintomas.
Este trabalho requer uma nova viso na relao terapeuta-paciente, que
inclui a concepo de um princpio acausal, que Jung denominou de sincronicidade;
que, por sua vez, um fenmeno de difcil compreenso porque diferentemente da
concepo causalista, reducionista, tpica da cultura ocidental, expressa uma
existncia simultnea de fatos, como se fossem um s, apesar de no captarmos
esta integrao. Atravs do princpio da sincronicidade possvel compreender os
sintomas fsicos e psquicos como expresso da totalidade do indivduo, superando
o conceito dissociativo da psicossomtica.

32

3 ASPECTOS ARQUETPICOS DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES

3.1 Compulso alimentar

Tentar a semana inteira ser Deus ou Deusa redunda no avesso disso,


no final de semana: o animal. No existe equilbrio humano no
viciado. (MARION WOODMAN, 2003, p. 75).

Qu fome esta que quanto mais cheia mais vazia a pessoa se sente?
A compulso por comida, assim como por lcool, drogas, sexo, dinheiro,
pelo poder e pela beleza ou pelo consumo em geral, se transformou num vcio
cultural.
Marion Woodman (2003, p. 62), no captulo "Vcio e Espiritualidade,
explica que ser viciado significa ser empurrado por uma energia interior na direo
de um dado objeto, que quanto mais o sujeito tem, mais precisa consegui-lo e, que
os viciados tendem a se deslocar de um vcio para outro, como, por exemplo, da
obesidade anorexia e ao alcoolismo. Sobre esta terrvel nsia do vcio, ela diz:
como se nossa civilizao inteira alimentasse a fome, no para
satisfaz-la, mas para nos tornar mais famintos. Existe essa
sensao de: 'Eu quero mais, mais e mais alguma coisa'. Nos
distrbios da alimentao-descontrole-anorexia-bulimia voc encontra
a mesma compulso. Os viciados fazem tudo o que podem para se
disciplinar, e podem conseguir um excelente desempenho entre sete
da manh e nove da noite. Depois vo para a cama. A fora do Eu
decai e, de repente, o inconsciente vem tona. Assim que irrompe o
inconsciente com todas as suas pulsaes instintivas, o Eu perde o
controle. Ento o vcio torna-se um tirano. Sua voz a de uma criana
perdida, morta de fome: 'Eu quero, eu quero, eu quero, e vou ter'.
Essa uma maneira como o fraco confunde o forte. (WOODMAN,
2003, p. 64).

Nos quadros de obesidade e nos transtornos alimentares encontramos


esta relao viciada de compulso e abstinncia com a comida. A compulso
alimentar classificada como um transtorno psiquitrico e, se caracteriza pela
ingesto de grande quantidade de comida, em curto perodo de tempo, com a
sensao de perda de controle sobre o ato alimentar. Esta perda de controle do Eu
significa que o "fraco confunde o forte", conforme demonstrado na fala de Woodman
(2003, p. 63). A autora citada chama o inconsciente, de lado fraco ou viciado, por

33

no ser reconhecido e, por isso, exerce uma fora compensatria unilateralidade


da conscincia. A compulso, portanto, um ato impulsivo, que remete
instintividade, ao inconsciente com todas as suas foras pulsionais.
Por instinto, no se pode entender apenas um fenmeno fisiolgico. Jung
deu muita importncia ao lado instintivo do homem, que necessita ser humanizado
por meio de seu processo de individuao. Para ele,
O instinto uma misteriosa manifestao de vida, de carter em parte
psquico, em parte fisiolgico. Ele pertence s funes mais
conservadoras da psique e difcil ou mesmo impossvel modific-lo.
Distrbios patolgicos de adaptao como neuroses etc., por esta
razo se explicam antes pelo posicionamento diante do instinto do
que por uma modificao do mesmo. Esse posicionamento, no
entanto, um problema complicado, altamente psicolgico, que
certamente no seria problema se dependesse do instinto. As foras
motoras da neurose provm de uma srie de propriedades do carter
e de influncias do ambiente que, em conjunto, resultam na atitude
que torna possvel um modo de vida que satisfaa os instintos.
(JUNG, 1989, p. 126, 199).

Partindo do princpio de que o vcio um desejo que no encontra seu


verdadeiro objeto, compreende-se a compulso como um sintoma de um instinto
no satisfeito e, portanto, atuado.
Esta nsia dirigida para um determinado fim o que Jung entendeu como
libido ou energia psquica e, diferentemente do termo introduzido por Freud, que o
definiu como uma energia exclusivamente sexual, Jung considerou como fenmeno
energtico, qualquer outro anseio ou desejo, como a fome e o que quer que se
compreenda como instinto. Jung, em sua obra "Smbolos da Transformao",
discorda da teoria sexual das neuroses, de Freud, e defende uma teoria psicolgica,
ampliando o conceito de "tender para", de modo geral:
[...] realmente sabemos muito pouco sobre a natureza dos instintos
humanos e sua dinmica psquica para poder atribuir a primazia a um
nico instinto. mais prudente por isso, ao falarmos de libido,
entender com este termo um valor energtico que pode transmitir-se
a qualquer rea, ao poder, fome, ao dio, sexualidade, religio,
etc., sem ser necessariamente um instinto especfico. (JUNG, 1989,
p. 124, 197).

O conceito de libido para Jung est associado ao conceito de instinto,


porm no so a mesma coisa. Para ele,

34
A libido um appetitus em seu estado natural. Filogeneticamente so
as necessidades fsicas como fome, sede, sono, sexualidade, e os
estados emocionais, os afetos, que constituem a natureza da libido.
Todos estes fatores tm suas diferenciaes e sutis ramificaes
nesta to complicada psique humana. (JUNG, 1989, p. 123, 194).

Segundo Jung, appetitus e compulsio so propriedades de todos os


instintos e, a libido um appetitus como fome e sede. Todo movimento de impulso a
algo est ligado libido, mas a libido no o instinto em si, mas a vontade, a fora e
o desejo de existir. No se pode dissociar instinto e vontade, pois, de acordo com
Jung "s vemos um instinto vital contnuo, uma vontade de existir, que pela
conservao do indivduo busca alcanar a propagao da espcie". (JUNG, 1989,
p. 123, 195).
Para refletir sobre a questo inicial que fome esta? necessrio
pensar o corpo e a psique de forma integrada. Jung deixa isto bem claro quando diz
que
A alma vive unida ao corpo, numa unidade indissolvel, por isto s
artificialmente que se pode separar a psicologia dos pressupostos
bsicos da biologia, e como esses pressupostos biolgicos so
vlidos no s para o homem, mas tambm para todo o mundo dos
seres vivos, eles conferem aos fundamentos da Cincia uma
segurana que supera os do julgamento psicolgico que s tem valor
na esfera da conscincia. (JUNG, 1998b, p. 51, 232).

No transtorno da compulso alimentar no a fome biolgica que


necessita ser satisfeita, mas a fome psquica, cuja base instintiva. Esta
instintividade, porm, no est sob o domnio da conscincia e, portanto, escapa do
controle do Eu.
A fome psquica seria o que Jung chamou de instinto modificado, ou
psiquificao, que o instinto como fenmeno psquico, que a assimilao do
estmulo a uma estrutura psquica complexa.
Para Jung, instinto um dado j psiquificado de origem extrapsquica:
O instinto psiquificado perde sua inequivocidade at certo ponto, e
ocasionalmente chega a ficar sem sua caracterstica mais essencial
que a compulsividade, porque j no mais um fato extrapsquico
inequvoco, mas uma modificao ocasionada pelo encontro com o
dado psquico. (JUNG, 1998b, p. 52, 235).

O instinto vai perdendo seu carter compulsivo na medida em que

35

psiquificado, ou seja, integrado conscincia; o Eu consciente capaz de conter


esta fora instintiva na medida em que vai compreendendo seu sentido.
Jung postulou cinco grupos principais de instintos: a fome, a sexualidade,
a atividade (ao), a reflexo e a criatividade, os quais so dotados de uma
capacidade de variao e transformao. O instinto de fome um exemplo disto:
Inequvoco como possa ser o estado fsico de excitao chamado
fome, as conseqncias psquicas dele resultantes podem ser
mltiplas e variadas. No somente as reaes fome ordinria
podem ser as mais variadas possveis, como a prpria fome pode ser
desnaturada e mesmo parecer como algo metafrico. Podemos no
somente usar a palavra 'fome' nos seus mais variados sentidos, mas
a prpria fome pode assumir os mais diversos aspectos, e
combinao com outros fatores. A determinante originariamente
simples e unvoca, pode se manifestar como cobia pura e simples ou
sob as mais variadas formas, tais como a de um desejo e uma
insaciabilidade incontrolveis, como por ex. a cupidez do lucro ou a
ambio sem freios. (JUNG, 1998b, p. 52, 236).

Esta variabilidade pode ser observada em todos os instintos. "Como a


fome, tambm a sexualidade passa por um amplo processo de psiquificao que
desvia a energia, originariamente apenas instintivamente, de sua aplicao
biolgica, dirigindo-a para outros fins que lhe so estranhos". (JUNG, 1998b, p. 53,
239).
Jung nunca negou a importncia da sexualidade no comportamento
humano, pelo contrrio, no tinha dvidas de que se tratava de um dos contedos
psquicos de maior carga afetiva; apenas questionou, dizendo que:
As restries de natureza moral e social que se multiplicam medida
que a cultura se desenvolve fizeram com que a sexualidade se
transformasse, pelo menos temporariamente, em supervalor,
comparvel importncia da gua no deserto. O prmio do intenso
prazer sexual que a natureza faz acompanhar o negcio da
reproduo se manifesta no homem, j no mais condicionado por
uma poca de acasalamento, quase como um instinto separado. Este
instinto aparece associado a diversos sentimentos e afetos, a
interesses espirituais e materiais, em tal proporo que, como
sabemos, fizeram-se at mesmo tentativas de derivar toda cultura
destas combinaes. (JUNG, 1998b, p. 53, 238).

Para Jung, a fome como expresso caracterstica do instinto de


autoconservao sem dvida um dos fatores mais primitivos e mais poderosos que
influenciam o comportamento humano. Para ele, a vida do homem primitivo, por ex.,
mais fortemente influenciada pela fome do que pela sexualidade. Neste nvel de

36

conscincia primitiva "a fome o A e o O da prpria existncia".


Analisando o desenvolvimento da humanidade, Jung observou que, o
medo de inimigos e da fome era um problema para o homem primitivo, maior que a
sexualidade, pois segundo ele, mais fcil ter uma mulher do que os mantimentos
necessrios. E, para ele, ento, o medo das conseqncias da inadaptao motivo
convincente para a restrio do instinto.
Analisando-se a compulsividade do homem contemporneo, encontra-se
o mesmo medo, uma luta pela autoconservao e adaptao social. Jung disse que
o medo impede a progresso da libido, que quando represada por um obstculo no
regride necessariamente para objetos sexuais antigos, mas para atividades rtmicas
infantis que so o modelo primrio tanto do ato da alimentao quanto do ato sexual.
"Para a luta da vida necessria a libido toda" (JUNG, 1989, p. 297
463). O temor da vida um impedimento interdependncia e individuao
levando o indivduo neurose. Para Jung,
O incesto no o nico aspecto caracterstico da regresso, mas
tambm a fome, que faz a criana procurar a me. Quem desiste do
trabalho de adaptao e regride ao seio da famlia, em ltima anlise
da me, espera ser ali no s aquecido e amado, mas tambm
alimentado. Se a regresso tiver carter infantil, ela visa incesto e
alimentao, embora sem confessar esta inteno. (JUNG, 1989a, p.
324, 519).

A compulso alimentar, pode ser compreendida como um sintoma da


regresso da libido at as camadas mais profundas da psique. Como j foi dito, a
compulsividade uma caracterstica dos instintos e, os processos instintivos
pressupem os processos inconscientes, que so os fenmenos psquicos em que
falta a qualidade da conscincia. Jung classificou o inconsciente em pessoal e
coletivo, sendo o primeiro formado pelos complexos e o segundo pelos instintos e
arqutipos.
O instinto essencialmente um fenmeno de natureza coletiva, isto ,
universal e uniforme, que nada tem a ver com a individualidade do ser
humano os arqutipos tm esta mesma qualidade em comum com
os instintos, isto , so tambm fenmenos coletivos. (JUNG, 1998b,
p. 69-70, 270).

Instintos e arqutipos, para Jung, so conceitos complementares, por ele


definidos da seguinte forma:

37
Os instintos so formas tpicas de comportamento, e todas as vezes
que nos deparamos com formas de reao que se repetem de
maneira uniforme e regular trata-se de um instinto, quer esteja
associado a um motivo consciente ou no [...]. Os arqutipos so
formas de apreenso, e todas as vezes que nos deparamos com
formas de apreenso que se repetem de maneira uniforme e regular,
temos diante de ns um arqutipo, quer reconheamos ou no seu
carter mitolgico. (JUNG, 1998b, p. 71-73, 273-280).

O inconsciente coletivo constitudo, portanto, pela soma dos instintos e


dos seus correlatos, os arqutipos, pois, segundo Jung, assim como cada indivduo
possui instintos, possui tambm um conjunto de imagens primordiais.
Na minha opinio, impossvel dizer o que vem em primeiro lugar: se
a apreenso ou o impulso a agir. Parece-me que os dois constituem
uma s e mesma coisa, uma s e mesma atividade vital que temos
de conceber como dois processos distintos, a fim de termos uma
compreenso melhor. (JUNG, 1998b, p. 74, 282).

Mais uma vez, Jung deixa claro que a distino corpo-psique est a
servio da compreenso destes fenmenos pela conscincia, pois os processos
psquicos constituem uma totalidade, ao longo da qual a conscincia desliza de um
plo a outro, provocando a unilateralidade caracterstica do homem moderno. De
acordo com Jung, quando a conscincia se aproxima do plo instintivo, ela cai sob
sua influncia e predominam os processos compulsivos. Ao contrrio, quando a
conscincia se aproxima do outro extremo onde predomina o esprito, predomina a
vontade, a razo; sendo que quando predomina o instinto, falta desempenho
intelectual e tico e, quando predomina a razo, falta a naturalidade.
A soluo para esta dissociao est naquilo que Jung chamou de
"percepo da realidade da sombra", que:
o processo de tomada de conscincia da parte inferior da
personalidade, processo este que no deve ser entendido falsamente
no sentido de um fenmeno de natureza intelectual, porque se trata
de uma vivncia e de uma experincia que envolvem a pessoa toda.
(JUNG, 1998b, p. 145, 409).

A neurose pressupe sempre duas tendncias opostas e, uma delas pelo


menos, inconsciente. A integrao da sombra consiste na assimilao da parte
inferior ou como j foi dito, do lado fraco do ser humano. O processo civilizatrio de
aculturao e progresso da humanidade acontece pela progressiva subjugao do
animal no homem. Este processo de domesticao no acontece sem a represso

38

da natureza animal que, naturalmente se revolta, porque tem sede de liberdade. Da


ocorre o que Jung chamou de enantiodromia, que um movimento compensatrio
da psique, o estar dilacerado nos pares contrrios. A lei da enantiodromia uma
espcie de fora contrria que domina a psique, impelindo-a a transpor os limites do
humano, gerando os excessos, a compulso, a inflao. Esta a manifestao do
arqutipo. Ela no a soluo do problema, mas apenas uma funo reguladora,
que como uma lei, serve para advertir o homem quanto ao perigo da unilateralidade.
Jung chamou a ateno para este problema do homem contemporneo advertindo
quanto tendncia de excluir o irracional da cultura. Segundo ele, o irracional no
pode e no deve ser extirpado. "Os Deuses no podem e no devem morrer".
(JUNG, 1990, p. 64, 111). Se a compulso um sintoma da possesso pelo
arqutipo, que arqutipo este que se manifesta pela comida, pelo excesso e pelo
corpo?
Sabe-se que Dioniso o deus do irracional e, representa o lado inferior,
reprimido do homem moderno e a compulso alimentar pode ser entendida como
um sintoma da sombra dionisaca.
O confronto com a sombra implica no confronto com o arqutipo e o
instinto. Segundo Jung,
um problema tico de primeira ordem, cuja urgncia, porm s
sentida por aquelas pessoas que se vem em face de necessidades
de tomar uma deciso quanto assimilao do inconsciente e a
integrao de sua personalidade. Mas esta necessidade s acomete
aqueles que se do conta de estarem com uma neurose ou de que
nem tudo vai bem com sua constituio psquica. Mas estes,
certamente, no so a maioria. (JUNG, 1998b, p. 145, 410).

Com base nestas concepes de Jung, pode-se concluir que quanto mais
o indivduo nega ou rejeita seu lado instintivo, mais desumano ele se torna,
perdendo o controle dos prprios limites, se tornando uma ameaa para si-prprio.
E, que a fome uma expresso do medo primitivo da morte; a angstia da luta
pela sobrevivncia, num mundo ameaado pela superpopulao e pela violncia. A
compulso alimentar, neste contexto, um sintoma da loucura do homem
contemporneo, que, na sua inconscincia faminto de si-mesmo e, no seu
desespero acaba consumindo a prpria alma.

39

3.2 Obesidade e histeria: uma relao dionisaca

A Organizao Mundial da Sade (OMS) estima que um bilho de


pessoas em todo o mundo tem excesso de peso ou obesidade. E, sabe-se que o
excesso de peso um fator de risco no desenvolvimento de muitas doenas, como
hipertenso, diabetes, doenas cardiovasculares, pulmonares, neurolgicas e at
alguns tipos de cncer, como tambm transtornos de ordem psicossocial.
Atualmente, a obesidade considerada uma epidemia no mundo inteiro e, no Brasil,
a regio Sul estatisticamente uma das regies com maior incidncia de pessoas
obesas no pas.
A obesidade uma doena crnica, que emerge da interao entre vrios
fatores biolgicos, psicolgicos e socioculturais , sendo, portanto uma doena de
causa multifatorial, a qual exige uma abordagem interdisciplinar que integre os
aspectos fsicos e psicossociais do sintoma. A integrao destes fatores, talvez seja
um dos maiores desafios no trabalho com a obesidade, justificando a baixa adeso
aos tratamentos.
Trabalhar com obesos ou com sobrepesos pode ser to difcil quanto
emagrecer, porque a maioria dos pacientes quer uma soluo rpida, e acabam
recorrendo a alternativas que prejudicam ainda mais a sua sade, que fica
negligenciada em funo da cultura narcisista que impem ao corpo. Uma beleza
vazia e sem alma. Alm disso, a obesidade considerada de caracterstica
recidivante, porque os fatores psquicos e de manuteno da obesidade so de
grande poder e, quando no so includos, levam ao fracasso do tratamento. Por
isso, a necessidade e a importncia de se compreender o significado da obesidade
no sentido psicolgico, porque nessa compreenso que reside a possibilidade de
tratamento e de cura. (WOODMAN, 1980).
Compreender o sintoma, portanto, fundamental para o tratamento. Jung,
ao falar sobre a neurose deixou isto bem claro:
A psicanlise est numa posio bem mais moderna, no que se
refere avaliao dos sintomas, do que os outros mtodos
psicoteraputicos. Estes partem da pressuposio de que a neurose
uma configurao absolutamente doentia. Em toda terapia
neurolgica, at hoje nunca se pensou em ver na neurose tambm
uma tentativa de cura e portanto, atribuir um sentido teleolgico bem

40
especial s configuraes neurticas. A exemplo de todas as
doenas, tambm a neurose um compromisso entre as causas
patognicas e a funo normal. A partir da febre, a medicina moderna
no s identifica a prpria doena, mas v nela uma reao oportuna
do organismo; assim tambm a psicanlise no v eo ipso na
neurose o antinatural e o doentio, mas contendo ela um sentido e
finalidade. (JUNG, 1998a, p. 182, 415).

A busca do sentido dos sintomas s possvel atravs da interao da


psique com o corpo, proposta pela psicossomtica e que corresponde ao processo
de individuao para a psicologia junguiana.
Marion Woodman (1980) em seu livro "A coruja era filha do padeiro", ao
tratar da obesidade, diz que o processo de individuao pode ser observado no
corpo. Ao refletir sobre o corpo obeso, ou com peso acima do normal, que uma
queixa que vem aumentando a cada dia na clnica psicolgica, podemos pensar em
Dionsio, a partir de Lpez-Pedraza (2002), que o considera como um veculo
metafrico para conectar-se com o corpo.
Para Marion Woodman (1980), a obesidade um sintoma neurtico da
cultura ocidental, que se caracteriza pela represso do feminino, que somatizado, se
manifesta de forma demasiado palpvel no corpo da pessoa obesa.
Podemos pensar este corpo como um mistrio que pede para ser
revelado a cada grama que engorda, impondo assim a necessidade de uma reflexo
profunda sobre o sofrimento do homem contemporneo.

3.2.1 A imagtica dionisaca

Dioniso um deus de natureza muito complexa e de muitas facetas,


sendo tambm um desafio compreend-lo. Como diz Lpez-Pedraza (2002, p. 7):
como empreender uma aventura rumo ao desconhecido; uma
aventura, na qual no podemos encontrar explicaes racionais.
Quando nos aproximarmos da imagtica dionisaca, ns nos
encontraremos com sua natureza contraditria e com sua
irracionalidade; mas precisamente essa irracionalidade de Dioniso
nos servir de veculo metafrico para explorar zonas de 'sombra' na
natureza humana.

Sanford (1995), em seu livro "Destino, Amor e xtase", diz que Dioniso

41

era um deus com uma misso, revelar o divino para a humanidade atravs de um
mistrio, o musterion de Dioniso, que no sentido grego, s poderia ser conhecido
atravs de uma experincia iniciatria. Esse musterion era to profundo e estranho
que ele importava o mistrio da vida. Neste ensaio ele fala da loucura dionisaca
como sendo estranha e maravilhosa e, que compreend-la significava compreender
o significado da vida.
Sabe-se que Dioniso , acima de tudo, o deus da loucura, a qual do ponto
de vista da psicologia analtica emerge para compensar uma atitude unilateral da
conscincia, como tambm, a tendncia cultural de se identificar demais com a
razo em detrimento das emoes. A loucura, portanto, o irracional, e representa
tudo aquilo que rejeitado e reprimido no mundo de hoje. Trata-se da sombra, do
feminino reprimido, que vem ao longo dos sculos se manifestando de formas
diferentes e, intrigando os profissionais da sade.
Com o Renascimento, a loucura, que na Idade Mdia era considerada
bruxaria e coisa do diabo, passou a fazer parte das discusses acadmicas e
filosficas

sendo

considerada

uma

patologia,

denominada

histeria,

cuja

sintomatologia era varivel e capaz de causar alteraes corporais, sem nenhuma


justificativa fsica para sua origem.
Histeria vem de hystera, que significa tero. H pelo menos 4.000 anos
Hipcrates e Plato supunham que
O tero era um animal vivo, capaz de migraes pelo corpo, que
provocariam os mais diversos distrbios, inclusive uma forma aguda
de 'sufocao da matriz'. Estando sufocada a mulher ficaria lvida,
rangendo os dentes, perderia a voz e depois os sentidos. De modo
geral esta doena era considerada de bom prognstico, pois, se
tratada, ela regredia rapidamente. O tratamento consistia em fazer
descer a matriz, por meio fsico, com massagens, ou atravs do
olfato, fazendo a doente cheirar coisas ftidas, ao mesmo tempo em
que perfumes eram aspergidos sobre o baixo ventre, para atrair o
tero. (VILA, 2002, p. 62).

Segundo Plato, o que se chamava de matriz ou tero era como um ser


vivo, que tinha seu desejo, o de fazer crianas. Ento, quando a matriz ficava estril
por muito tempo, ela se irritava perigosamente, ficando agitada em todo corpo, o que
ocasionava obstruo da passagem do ar, colocando o corpo nas piores angstias,
ocasionando outras doenas de qualquer espcie. (TRILLAT, 1991 apud VILA,
2002).

42

A histeria, portanto, milenar; porm, somente a partir de Freud, atravs


da sua prtica clnica com pacientes histricas, a doena passou a ser tratada como
uma manifestao do inconsciente, revelando uma nova forma de compreender o
ser humano, em que o sintoma tinha um significado psquico que necessitava ser
compreendido. Jung, em seu trabalho sobre a psicologia dos fenmenos chamados
ocultos, demonstrou a dificuldade, desde aquela poca, de diagnosticar a histeria.
Ele escreveu:
Acontece s vezes que estados tpicos de epilepsia sejam colocados,
por pessoas competentes, diretamente em paralelo com estados
sonamblicos, ou considerados diferentes do estado histrico
somente pela ocorrncia de autnticas convulses [...]. No campo da
inferioridade psicoptica de colorao histrica encontramos
fenmenos que trazem em si diferentes quadros clnicos, mas sem
que possamos atribu-los com certeza a nenhum destes em
particular. (JUNG, 1994, p. 26-27, 30 e 34).

Apesar das tentativas cartesianas das cincias mdicas, como tambm


da prpria psicologia, de modificar ou eliminar o conceito de histeria, com o
propsito nada inocente, de banir a idia de inconsciente, ela continua a existir e,
pela sua plasticidade e mutabilidade, foi se adaptando aos novos tempos. Jung
tambm pde observar isto, na sua experincia com histricas:
Os casos de histeria que analisei eram, em parte, extremamente
diversos quanto aos sintomas, mas sua estrutura psicolgica
apresentava semelhana impressionante [...]. As concluses de
Freud se aplicam a um nmero muito grande de casos de histeria
que, at agora, no puderam ser exatamente delimitados como
grupos clnicos. (JUNG, 1998a, p. 24, 62).

De acordo com vila (2002, p. 212), em seu livro "Doenas do corpo e


Doenas da Alma", a medicina procurou subjugar a histeria:
A eliminao dos itens histeria e psicossomtica do Cdigo
Internacional de Doenas (C.I.D. 10) no representou o seu
esclarecimento, mas,muito pelo contrrio, a sua excluso uma
renncia ao esclarecimento, ao menos ao esclarecimento
psicodinmico.

Segundo ele, tanto os fenmenos histricos ou somticos continuam


existindo e insistindo. Assim como existem cada vez mais obesos, ou pessoas que
insistem em engordar?

43

Sim, Marion Woodman (1980, p. 102-118) afirma que a obesidade um


dos principais sintomas de neurose no mundo atual. Segundo ela, "a 'loucura'
dionisaca inerente ao ato compulsivo de comer pode ser uma moderna expresso
daquilo que se conhecia antigamente como 'possesso' e numa poca mais recente,
como 'histeria'".
Pensar, ento, na obesidade como um sintoma histrico contemporneo
pode significar a compreenso do mistrio da relao mente-corpo, pois, a
obesidade tambm pode ser considerada um sintoma da dissociao ainda no
superada pelo homem moderno.
Lpez-Pedraza (2002, p. 21) conta que, segundo o mito rfico, Dioniso
nasceu da unio de Zeus, o deus da luz, criador de imagens, com sua filha
Persfone, a rainha do mundo subterrneo, que personifica as escuras foras do
invisvel reino dos mortos, e esta unio representa Dioniso na sua complexidade de
opostos. Nas palavras do autor:
Com esta imagtica rfica, consideramos a seduo e
desmembramento do menino Dioniso, pelas mos dos tits, como
uma imagem arquetpica. O desmembramento uma imagem de
horror e uma metfora conhecida da loucura: na linguagem da
psiquiatria, entende-se como uma psique partida em pedaos,
cindida. (LPEZ-PEDRAZA, 2002, p. 21).

Atravs desta imagtica dionisaca possvel relacionar a histeria com a


obesidade, como um sintoma arquetpico que representa esta dissociao corpomente, ao longo da histria da humanidade.
Na concepo rfica do mito, Dioniso e os tits representam duas foras
opostas da natureza humana. Este conflito, segundo Lpez-Pedraza (2002), a
essncia do mito, o qual nos conecta com os aspectos mais arcaicos da psique.
possvel compreender como um sintoma do titanismo no mundo moderno, esta
fora, que se caracteriza pelo excesso, pela ausncia de forma e de limites.
Parece tratar-se de algo que pode ser apenas sentido, algo ainda no
nominado ou significado. Por isso, a agressividade dos tits se manifesta em forma
de sintoma, sendo o excesso de peso o titanismo de hoje.
Para Lpez-Pedraza (2002, p. 18), a tarefa daqueles que no desejam
ver-se

arrastados

pelo

titanismo

coletivo

de

hoje

consiste

em

pensar

constantemente no titanismo e aprender dele, tentar tornar-se consciente dele e, o

44

mais difcil de tudo, refleti-lo. Segundo ele, o mito rfico tem proporcionado analogias
para uma sombra in vivo, que no tem outra imagem nem configurao seno a do
excesso.
A obesidade um sintoma compulsivo que se caracteriza pelo excesso e
falta de limites. Porm, a obesidade, mais do que uma patologia a ser tratada, talvez
seja o fio de Ariadne para a compreenso do sofrimento humano no seu sentido
mais profundo.
Esta outra histria, onde Dioniso aparece: o heri Teseu tinha como
tarefa libertar o povo ateniense da tirania do rei Minos, o Rei de Creta, que era muito
temido por sacrificar jovens, colocando-os no labirinto habitado pelo Minotauro, o
qual tinha aparncia de touro e comia carne humana, e ningum que l entrava de l
saa, pois eram devorados pelo monstro. Uma vez Teseu se ofereceu como
voluntrio para o sacrifcio ao Rei Minos. Ariadne, apaixonada pelo jovem Teseu,
deu ele um fio, com o qual aps conseguir destruir o monstro, conduziu os jovens
para fora do labirinto, libertando-os. Ariadne fugiu com Teseu para a Grcia e este
abandonou sua benfeitora que foi ento encontrada por Dioniso. Este encontro
representa o amor do deus pelas mulheres, as quais tornavam-se suas seguidoras,
que eram conhecidas como mnades, que significa "as mulheres loucas"
(SANFORD, 1995, 132).
Por outro lado, quando era desprezado pelas mulheres, Dioniso as
transformava em morcegos. De acordo com a interpretao de Sanford (1995, p.
133):
[...] talvez porque o morcego seja uma criatura 'louca' um mamfero
que voa e as mulheres, por terem rejeitado a divina loucura do
deus, foram punidas pela loucura simbolizada pelo morcego. Esse
deus de xtase claramente simboliza um poder que pode atuar tanto
para o bem quanto para o mal, que pode inundar uma alma de alegria
e paz, fazendo com ela esquea as dores e desapontamentos da
vida, ou lanar sobre a pessoa uma terrvel fatalidade.

A loucura de Dioniso pode ser tanto destrutiva quanto libertadora e parece


que o lado destrutivo aparece pela voracidade, que se v tanto no Minotauro quanto
no morcego; ambos smbolos do titanismo. Estes seres devoradores representam
aspectos da sombra do deus reprimido que somatizado como obesidade.
Com o avano da medicina, os sintomas conversivos clssicos da histeria
so cada vez mais raros, porm a estrutura histrica, que se caracteriza pela

45

dissociao e represso, pouco se modificou e, se manifesta hoje sob outras formas


de sofrimento psquico e fsico, como a depresso e a obesidade.
possvel inferir que a obesidade venha, assim com a histeria nos
ltimos sculos, desafiar o conhecimento cientfico, principalmente, na sua
concepo mente-corpo.
Atualmente, a queixa das histricas : "estou gorda". O corpo reprimido
precisa ser resgatado. A banalizao da histeria vem patologizando cada vez mais o
corpo. E a obesidade, considerando suas co-morbidades, parece ser um
agravamento do sintoma histrico ao longo dos tempos, devido falta de
tratamento.
Se Dioniso o corpo, ento, ele precisa ser resgatado, pois atravs dele,
talvez, seja possvel compreender a obesidade tanto no seu aspecto somtico
quanto psquico.
Ao olhar a cultura ocidental a partir da metfora dionisaca, percebe-se o
titanismo projetado no corpo, a partir da perda do seu significado, da sua forma, do
seu limite, se expressando compulsivamente, numa tentativa desesperada de ser
redescoberto, no sentido de descobrir o que est encoberto ou reprimido; ou seja, as
emoes, paixes, sentimentos, impulsos, instintos, imagens da alma que habita
este lugar.
E, a alma na nossa cultura foi condenada morte, est encarcerada,
perdida e presa no labirinto-corpo; e, enlouquecida e somatizada, anseia por
liberdade.

3.3 A maldio de Eco: uma abordagem arquetpica da anorexia

O narcisismo um padro que se configura em toda estrutura de


personalidade, servindo como um paradigma de estruturao geral da psique,
porque corresponde ao senso de identidade pessoal.
Atravs da compreenso desta estrutura possvel compreender vrias
condies psicolgicas e principalmente lidar com personalidades dominadas por
esta condio. Da mesma forma que todas as pessoas possuem caractersticas
narcsicas em sua personalidade, possuem tambm caractersticas da dinmica de

46

Eco, que representa um dos aspectos das desordens narcisistas.


Revisando o mito de Narciso a partir da sua verso clssica, que aparece
em Metamorfhoses, de Ovdio, destaca-se o episdio de Eco, como um padro
arquetpico presente na psicodinmica dos transtornos alimentares e da autoimagem. O sintoma da anorexia pode ser visto em Eco, a personificao da jovem
anorxica que vai se esvaindo at a morte. Ela a imagem da psique sem corpo,
que produz um eco que no reflete, ineficaz, porque est preso s aparncias e a
superficialidade das coisas.
Atravs de Eco, talvez se possa ampliar a compreenso desta patologia e
a direo do processo de cura proposto pelo inconsciente mais profundo. Pois,
segundo Von Franz, no inconsciente coletivo so encontradas representaes de
processos de cura tpicos para doenas tpicas (1980). Ela prope o estudo dos
contos e mitos como uma forma de compreender as estruturas bsicas da psique
humana e suas possveis transformaes.
De acordo com o mito, quando Narciso completou 16 anos, muitos jovens
e muitas donzelas se apaixonaram por ele. Mas, com toda sua beleza, era to frio e
orgulhoso, que nunca seu corao foi tocado.
Uma vez, quando estava caando um veado, foi perseguido por uma
ninfa, de voz estranha e retumbante, Eco, ela no podia ficar em paz quando os
outros falavam, nem comear a falar quando algum no lhe dirigisse a palavra.
Nesta poca, Eco tinha forma, no era apenas uma voz, mas, embora falasse muito,
s tinha o poder de repetir das palavras que ouvia, a ltima que escutasse. Isto
acontecia porque ela havia sido amaldioada por Hera, por ajudar as ninfas a
fugirem enquanto falava sem parar com a deusa, que quando se deu conta que
estava sendo enganada disse a Eco que sua lngua, pela qual tinha sido trada, teria
seu poder reduzido ao mais nfimo uso da palavra. Assim passou a repetir somente
as ltimas frases de um discurso e devolver as palavras que ouvia.
O drama do mito comea com a ninfa sendo amaldioada por Juno/Hera,
que a reduz a um eco. Segundo Schwartz-Salant (1982), havia um problema de
poder em jogo, entre Hera e Zeus, havendo uma constelao materna negativa na
aflio de Eco, a qual estava a servio do Pai, alienada do arqutipo da me, sendo
sua condio final como voz sem corpo, uma caracterstica da alienao maternal e
constitui uma razo pela qual seu eco ineficaz.
No mito, a me Lirope, a representante da Uroboros matriarcal, que

47

concebe Narciso, atravs da violao por Cfiso, o pai, representante da nova


conscincia a ser formada. Como Uroboros matriarcal, Lirope, que uma ninfa, um
aspecto quase incorpreo, simboliza a totalidade das potencialidades de expresso,
ou seja, a pr-forma substancial da manifestao das coisas, a matria-prima do vira-ser, segundo Raissa Cavalcanti (1992).
De acordo com esta autora, Lirope oferece a Narciso imagens de suas
prprias

possibilidades

que

tanto

podem

levar

um

desenvolvimento

quanto aprision-lo a uma regresso e fixao; pois, do ponto de vista negativo e


matriarcal, Lirope essa fragilidade que no resiste a imposio do novo, e
sua receptividade ao nascimento de Narciso ao mesmo tempo vivido como ataque,
violao e submisso a Cfiso. Observa-se ento um comportamento ambivalente,
um conflito que

dificulta a

integrao

dos opostos,

consciente-inconsciente,

causando uma perturbao do eixo ego-self. Lembramos que para Jung, o Simesmo ao mesmo tempo corpo e psique, formando uma totalidade. Nas
desordens

narcsicas,

por

haver

uma

perturbao

inicial

dentro

dessa

conflitiva apresentada, corpo e psique esto dissociados e os aspectos vivenciais


do Si-mesmo so s parcialmente vividos; ou numa outra linguagem, impedidos de
serem vividos como um Self, um desses aspectos fica sombra, se tornando por
isso negativo.
Segundo Jung, o inconsciente neste estgio inicial de desenvolvimento
est no corpo, atravs dele que o inconsciente pode ser experimentado. No mito,
esta diviso aparece em Eco, cujo corpo trado, o receptculo feminino, a me, a
matria do vir-a-ser, se manifesta como um aspecto negativo, patolgico,
amaldioado, como um corpo de ninfa, no humano, no consistente, assim como
ocorre na anorexia, onde o Self no consegue ser integrado ao corpo, impedindo
que a vida se realize. Surge ento esse ser difano, espiritual, s pai, s voz, e uma
voz repetitiva e pobre, onde h voz no h corpo e onde h corpo no h voz.
Tambm se pode afirmar que essa voz no tem corpo, s persona, s o
outro e o corpo fica como busca desesperada e impossvel de um ideal (Narciso),
negando o corpo, sua dimenso limitada, material e prpria. Esta ciso representa a
morte tanto psiquicamente como fisicamente.
Do ponto de vista clnico, Lirope reflete uma conscincia primitiva que se
deixa aprisionar pela carncia de recursos devido inconscincia de suas
potencialidades que tendem a ser projetadas no outro, constelando a raiva e a

48

inveja. Esta mesma constelao arquetpica aparece tambm em Eco, embora de


uma forma menos regressiva e arcaica. Lirope o tipo de me que se encontra nos
quadros dos distrbios narcsicos. Uma me com esta dinmica determina a
dificuldade de formao de um objeto bom tanto quanto a formao da imagem da
me ausente, morta, que constela a imagem da criana morta, do sentimento de
vazio interior e falta de sentido e crena na vida.
Por ser incorprea, Lirope no pode refletir Narciso, o qual se torna
carente de reflexo, e como mostra Cavalcanti, esta falta de espelhamento faz
Narciso excluir este mundo interno e ficar preso na imagem externa de si-mesmo,
espelhando a imagem idealizada e perfeita, para gratificao narcsica de sua me.
Raissa Cavalcanti (1992, p. 109) afirma que "Lirope reflete para Narciso que ele
deve ser como ela espera que ele seja: perfeito. Lirope espera que Narciso seja
especial, isto , belo, e a sua beleza quer dizer simbolicamente, perfeio".
A beleza significa possuir a perfeio do Self; portanto, permanecer no
estado de fuso com o Self no estado de perfeio paradisaca. As expectativas de
Lirope em relao a Narciso refletem seus desejos regressivos de fuso com o Self,
a volta da totalidade perfeita.
Lirope representa o potencial para a individualidade e individuao num
nvel mais arcaico, o qual reativado por Eco atravs da maldio imposta por
Nmesis.
Nmesis a deusa da justia divina, representante do castigo divino
imposto queles que cometem a "hybris", que a ultrapassagem do "mtron", que
o limite prprio de cada ser humano. A ultrapassagem do "mtron" sempre uma
desmedida, uma violncia cometida contra si mesmo e contra os deuses.
Psicologicamente, significa a onipotncia e a inflao do ego. Representa uma falha
ou falta de limites, como um ato necessrio para desencadear o processo de
desenvolvimento, individuao e cura do heri.
A maldio sofrida por Eco, quando esta trai Hera, tem um propsito. Em
seu livro "O Mito de Narciso, o Heri da Conscincia", Raissa Cavalcanti (1992, p.
125) descreve Nmesis, como aquela que distribui o destino de Narciso e Eco:
Essa deusa no tem representao antropomrfica, o revela ser um
contedo arquetpico profundo da psique coletiva constelado no
processo de individuao. Seu aparecimento se d principalmente
nos mitos de heris, os arqutipos representantes do processo de
busca da diferenciao egica na individuao. Nmesis expressa o

49
aspecto do princpio ordenador do Self, na qualidade tica e moral, o
impulso para o desenvolvimento. Ela representa o arqutipo da velha
sbia, que por meio da punio provoca a busca do desenvolvimento.
Ela age atravs da retirada de um bem que impulsiona o heri a
buscar ou desenvolver um bem maior. atravs de sua punio que
o heri levado a percorrer o seu caminho e a enfrentar as batalhas
necessrias ao seu desenvolvimento.

Eco, depois de ser amaldioada, foi tomada de paixo por Narciso, queria
se aproximar dele, com palavras e splicas de amor, mas sua natureza no lhe
permitia mais isso; ela ento, ficou a espera dos sons para que pudesse transformar
em sua prprias palavras. Narciso, perdido dos seus companheiros, perguntou: "h
algum aqui?"; Eco respondeu: "aqui". "Aproxima-te", e ela: "aproxima-te". Ele olha,
no v ningum e outra vez pergunta: "por que foges de mim?"; e ouve como
resposta suas prprias palavras. Ele pra e diz: "aqui nos encontraremos". Eco, com
todo prazer responde: "nos encontraremos". Para transformar suas palavras em
ao, sai da vegetao e tenta abraar Narciso, que assustado foge dela dizendolhe: "retira as mos, no me abraces! Que eu morra antes de conceder-te poder
sobre mim!"; "Conceder-te poder sobre mim", diz ela e se cala.
Rejeitada, ela se recolhe floresta, oculta sua face envergonhada e,
passa a viver em cavernas vazias. Desprezada, seu amor se transforma em
desespero, ela se torna descarnada e enrugada e perde todo o vio do seu corpo
que se desmancha no ar. Restando apenas sua voz e seus ossos, depois apenas
sua voz, porque dizem que seus ossos se transformaram em pedra. Somente a voz
ainda vivia nela.
O drama que se d na relao entre Narciso e Eco representa um
aspecto oposto do narcisismo, que do ponto de vista clnico o sentimento de
perda, de inferioridade, de desvalia, de rejeio, oculto pela aparncia onipotente de
narciso. a perda da auto-estima, da identidade, que aparece em forma de
sintomas psquicos e corporais. a falta de substncia, de corpo, que gera
insegurana. As jovens anorxicas personificam este padro, cujo corpo e voz
refletem um padro coletivo onde a individualidade e as diferenas no so
reconhecidas. So inconscientes de si-mesmas e tem uma viso idealizada da vida,
do outro e de si-mesmas como nica forma de existir, tal qual Eco em relao a
Narciso.
Eco submissa a Narciso. Sua fala, "conceder-te poder sobre mim",
reflete a perda da prpria voz, que sua essncia, a expresso da sua alma,

50

atravs da qual pode formar vnculos criativos.


Assim, como desprezou Eco, Narciso desprezou outras ninfas e da
mesma forma outros homens. Uma destas jovens, elevando as mos aos cus,
pediu: "pois que ele possa amar a si mesmo e no obter aquilo que ama!". A deusa
Nmesis ouviu sua prece.
O tema da maldio, portanto, se repete no mito. Primeiro Eco e depois
Narciso so punidos por Nmesis. A Deusa da vingana, Nmesis, conhecida
tambm, por ser a "divindade invejosa". Segundo Helmut Schoeck (apud
SCHWARTZ-SALANT, 1982), Nmesis e a inveja esto estritamente vinculadas
entre si.
Tanto Narciso quanto Eco so alvos de uma maldio, como
conseqncia da ofensa contra Eros, contra o amor-objeto ou envolvimento ertico
com outro. Eco personifica a rejeio do sujeito a si-prprio.
O que se manifesta, portanto, o aspecto da inveja associado ao
dio, que costuma ser revertido sobre o si-mesmo e que se evidencia
sob a forma de dio do sujeito a si prprio. Na realidade, como se
costuma observar, o problema do carter narcisista, assim como de
Narciso, no o amor, mas sim o dio a si prprio. (SCHWARTZSALANT, 1982, p. 116).

Emoes como raiva, dio e inveja, so muito presentes nos transtornos


de personalidade narcisistas, ocupando um papel central na sua fenomenologia.
Considera-se o problema da inveja e da raiva como resultado da falta de empatia,
materna, uma carncia crnica do reflexo.
Neste sentido, a inveja configura-se como o lado sombrio do narcisismo, o
lado oculto, inconsciente e, portanto temido.
comum se encontrar este tipo de conflito na dinmica das pacientes
com transtornos alimentares e da auto-imagem, atravs da comparao, da busca
de identificao, dos sentimentos de auto-depreciao, da idealizao do outro que
aparece como uma forma de defesa contra a inveja. Estas so caractersticas
negativas da constelao da dinmica Eco.
Neste sentido, a busca do ideal e da perfeio, caractersticas deste tipo
de personalidade, seria resultado de uma maldio.
Eco pode ser considerada como smbolo do sofrimento narcisista. A
inveja dominante na interao entre Narciso e seus pretendentes, transformada em

51

dio,

se

manifesta

em

forma

de

sintomas

na

personalidade

narcisista,

principalmente na distoro da auto-imagem e na descorporificao, podendo levar


morte.
De acordo com Schwartz-Salant (1982), os pretendentes de Narciso
sentiam inveja porque ele representava um objeto desejado e inatingvel e, esta
emoo pode, em casos graves, levar ao suicdio, assim como aparece em outra
verso do mito, em que um dos pretendentes de Narciso sente-se to miservel que
ameaa atentar contra a prpria vida; e, Narciso ajuda, lhe enviando uma espada!
O tema da maldio aponta para o problema da inveja, como um sintoma
da ferida do carter narcisista, geralmente ativada pela primeira vez pelas mes
narcisistas, tipo Lirope, cujo sofrimento no redimido foi projetado no filho Narciso,
que o vivenciou atravs da sua sombra. Eco a sombra de Narciso e por isto
portadora da ferida que necessita ser tratada, atravs da reflexo e retirada das
projees, e integrada conscincia, como uma forma de redeno do feminino
reprimido.
Nmesis representa a segunda me do heri que impe a experincia do
sentimento de culpa primrio, necessrio para a constituio do ego e da
conscincia dos limites e responsabilidades humanos. "Nmesis, atravs do 'pathos'
que imputa ao heri, mostra ao mesmo tempo o caminho para a redeno"
(CAVALCANTI, 1992, p. 127). Como representante arquetpica da justia,
representa o desejo do Self de se expressar de forma singular e para isso impe,
atravs do sofrimento, a necessidade de buscar o equilbrio. Depende do
comportamento do heri, do seu comprometimento psquico, atravs do nvel de
relao Ego-Self, ou seja, do seu "ethos", o seu desenvolvimento e redeno.
O castigo de Nmesis pode ser vivido como ddiva, se o heri for capaz
de compreender o significado do seu ato, atravs da discriminao do bem e do mal,
como conexo com a sabedoria do inconsciente. Neste sentido, Nmesis a lei
interna que regula as relaes a partir de uma nova conscincia do Eu, cujo
conhecimento serve de antdoto contra a inflao, ou "hybris".
Eco, na sua qualidade de ninfa, com sua natureza incorprea,
inconsciente de si-mesma, do seu "mtron", comete a "hybris", e se torna vtima dos
desgnios de Nmesis.
Originalmente, era chamada Acco, "a voz da criao" ou "o ltimo eco da
voz".

52

Assim como Lirope, Eco nega seus potenciais e valores atribuindo ao


outro aquilo que lhe pertence, buscando neste outro a complementao daquilo que
lhe falta. Eco, portanto, deseja a unio dos opostos, e busca em Narciso seu oposto
complementar.
Este impulso para a conjuno, reflete ao mesmo tempo, a busca de
conexo entre o Self e o Ego e suas necessidades simbiticas; porque precisa da
voz do outro para se expressar. Eco depende do outro para ter existncia psquica.
Como j foi dito, Eco faz parte do sqito de Hera, a deusa do
casamento, da unio dos opostos, dos valores da conscincia e do inconsciente.
Eco, porm ajuda Zeus a enganar Hera e por isto punida com a perda da voz. De
acordo com Raissa Cavalcanti (1992, p. 133), neste momento,
Hera uma expresso da deusa da justia Nmesis. Ela pune Eco
por tentar ludibriar os valores da conscincia e agir de forma
indiscriminada, colocando-se a servio de polaridades opostas, sem
procurar fazer a integrao discriminada destes opostos.

Hera pune Eco por estar a servio do outro e negar sua individualidade. A
perda da voz significa a perda da identidade, a falta de experincia psquica, a perda
do corpo que lhe confere presena como indivduo.
O mito mostra que quando "a voz da criao", que o canal para a
expresso da individualidade, colocada a servio da realizao do outro, ela deixa
de ser criativa, assumindo um carter considerado ilcito, que se expressa de forma
patolgica.
Podemos

observar

esta

falta

na

psicodinmica

dos

transtornos

alimentares, atravs da idealizao do outro em detrimento do prprio valor, a


excessiva disponibilidade para o outro como forma de obter reconhecimento e amor,
necessidade de ser perfeita como forma de ser amada, baixa auto-estima,
dependncia e submisso.
A personalidade Eco renuncia o alimento, o prprio prazer, em troca do
reconhecimento do outro ainda que pela submisso ou obedincia. Devido a sua
incapacidade de discriminao do bem e do mal se relaciona de forma idealizada,
negando a sombra e sua auto-imagem positiva que fica projetada no outro, atravs
de uma ligao simbitica idealizada.
Ao mesmo tempo, a privao da sua voz, seu maior bem, sua identidade,

53

leva pela falta, ao desejo de se expressar, sendo a maldio de Eco, que um


aspecto do narcisismo, tambm, um caminho para a sua cura. Conforme cita
Cavalcanti (1992, p. 140):
A beleza de Eco implica sofrimento e est relacionada com 'passio',
do latim, e 'pathos', do grego. O 'pathos' de Eco se d atravs do
sofrimento. A experincia da dor opera a transformao da psique em
corpo e do corpo em psique. Eco antes era um ser puramente
psquico; agora adquire consistncia, adquire corpo por meio da dor.
A percepo do corpo o campo onde se inscreve o ego, a noo da
individualidade. O corpo fornece os limites e contornos do indivduo.
Eco adquire a conscincia do eu atravs do sofrimento do corpo, e a
se localiza a beleza de Eco, na sua transformao pela dor.

Eco amaldioada e privada da sua voz, sua expresso, seu desejo e


individualidade. Sua realidade psquica rejeitada, assim como sua relao criativa
com o mundo. a voz da alma que necessita ser despertada, atravs do corpo que
sofre.
Segundo Raissa Cavalcanti (1992), o sofrimento de Eco leva percepo
do eu e sua individuao.
De acordo com Ovdio, pelo sofrimento do amor o corpo de Eco
definha, isto , se transforma. Ela emagrece e enruga e a umidade do
seu corpo se dissolve no ar. Mas sua voz e seus ossos permanecem;
e depois s a voz, porque os ossos se transformam em pedra.
(CAVALCANTI, 1992, p. 141).

Raissa Cavalcanti (1992) descreve o processo de transformao de Eco,


como um processo alqumico, da busca da pedra individual, atravs da qual Eco
adquire forma, totalidade, e perde sua qualidade de ninfa. Para ela,
Sua voz e seus ossos so os ltimos elementos que restam da sua
transformao. A voz a sua essncia, aquilo que realmente ela ,
por que Eco 'a voz da criao'. Os ossos significam o aspecto
incorruptvel do corpo, aquilo que permanece; a essncia, a
semente que dar origem ao renascimento. Os ossos representam a
estrutura nica e mais profunda de cada um; eles simbolizam o Self.
A transformao dos ossos em pedras mostra que o processo atingiu
seu objetivo final: a Lpis foi encontrada. (CAVALCANTI, 1992, p.
141).

Analisar o mito de Narciso desta perspectiva de Eco uma tentativa de


pensar como o inconsciente se prope a efetuar a cura da anorexia.
A anorexia considerada uma doena de ordem narcsica, e a figura de

54

Eco, como um dos aspectos do narcisismo, parece representar uma sada, a direo
de cura para Narciso. Atravs de Eco, Narciso chega ao seu reflexo na gua e,
ento, pode entrar no mundo simblico, o qual requer a vivncia do luto, da falta e
da capacidade de reparao, criando assim uma imagem simblica do objeto. Esta
a base somtica e psquica para a formao do smbolo, segundo Raissa Cavalcanti
(1992). A partir do episdio do reflexo, a voz, expresso da psique, se torna imagem,
ou smbolo do corpo. A desmedida de Narciso que ele se identifica com a imagem,
literalizando o smbolo, o qual perde seu significado. Isso conseqncia da
maldio.
O sintoma da anorexia, portanto, pode ser compreendido simbolicamente
como um caminho para a individuao, atravs da integrao do corpo somtico
com o corpo psquico ou simblico. Conforme ensinou Jung, muitas vezes a pessoa
adoece para poder se curar.
De acordo com a Psicologia Analtica, a neurose ou a doena uma
oportunidade de cura. O que caracteriza a gravidade da doena e seu potencial de
cura a forma crnica que ela assume.
A maldio nos contos de fadas e nos mitos representa um complexo
doente que gera um comportamento destrutivo o qual necessita de redeno.
De acordo com Marie-Louise Von Franz (1980), qualquer complexo
arquetpico pode ser alvo de maldio. Na anorexia, a doena se instala atravs do
complexo materno, devido carncia de reflexo positivo, o qual Eco, carrega a
tarefa herica de redimir; e, o faz por meio do sintoma. A perda da voz, como motivo
de redeno aparece em outros contos de fadas, como na histria dos Doze Irmos,
ou na histria dos Seis Cisnes, onde a princesa sacrifica sua fala para salvar os
irmos.
Para Von Franz (1980, p. 22):
Estar enfeitiado significa que uma certa estrutura da psique est
mutilada ou danificada em seu funcionamento e o todo , por
conseguinte afetado, pois todos os complexos vivem, por assim dizer,
dentro de uma ordem social dada pela totalidade da psique.

Nos transtornos narcisistas existe uma perturbao do eixo ego-self, o


que resulta na chamada ferida narcsica, comprometendo o desenvolvimento da
personalidade como um todo.

55

Entender a mensagem dos mitos , pois, compreender a mensagem do


inconsciente, que, segundo Von Franz (1980, p. 32),
como um ser amaldioado, um contedo que ficou retido numa
esfera intermdia devido a condies do inconsciente que no lhe
permitiam vir superfcie; se o fizermos recuar e depois o deixamos
vir tona em seu pleno significado original, o efeito destrutivo deste
contedo desaparece.

A autora diz tambm que "quando se trata da questo de redimir algum,


isto , uma parte de sua prpria psique, sempre uma questo de lhe dar a espcie
correta de expresso, o tipo certo de material de fantasia dentro do qual o indivduo
possa expressar-se". (VON FRANZ, 1980, p. 129).
No existe uma resposta convencional para um complexo individual,
conforme ensina Von Franz. Mas, no tratamento de sintomas como a anorexia, a
compreenso das possibilidades curativas por parte do analista atravs de uma
viso arquetpica da psique um instrumento apaziguador, permitindo que este
(terapeuta) ecoe a fala do paciente lhe conferindo significado e corpo psquico.

3.4 Quando a psique ganha corpo

Na anorexia, assim como nos transtornos dismrficos em geral, o corpo


fsico no constitui uma imagem substancializada, mas apenas uma imagem sem
corpo. uma imagem patolgica, disforme, que pede uma forma, uma definio,
uma identidade. uma espcie de corpo plstico, que enche e esvazia, se
moldando, como um produto manufaturado e reciclvel.
A anorexia uma das doenas da modernidade, onde a necessidade de
atender s demandas scio-culturais se tornou uma forma de sobrevivncia, levando
as pessoas a se formarem e se transformarem de acordo com os padres externos;
e, para isto, basta um aceno do mundo da moda, da cincia, da medicina, da
psicologia de auto-ajuda, da tecnologia para tornar a existncia apenas uma imagem
virtual.
Esta reflexo foi baseada no material clnico extrado das imagens
simblicas e do discurso de mulheres entre 20 e 50 anos em tratamento

56

psicoterpico, cujo tema central o corpo feminino. Para a psicologia analtica este
tema arquetpico constela o que chamamos de complexo materno.
O complexo materno, no universo feminino, o ncleo da relao
primordial me-filha, constituindo a base instintiva e corporal da psique. Trata-se de
um duplo aspecto de um mesmo tema mitolgico a mulher na sua totalidade,
considerando que toda mulher tem ao mesmo tempo uma me e uma filha dentro de
si-mesma, que, do ponto de vista da psicologia arquetpica muito bem
representada pelo mito de Demter e Persfone.
Fotografia 1 - O Rapto de Persfone

Fonte: Fotografia tirada de escultura do acervo da autora

Segundo o mito, Persfone ou Cor, era uma deusa jovem, esbelta e


bonita, e, segundo Homero, que descreve a verso mais conhecida do mito, um dia
ela estava colhendo flores e, atravs de uma fenda aberta na terra foi raptada por

57

Hades e levada para o inferno fazendo dela sua noiva cativa. Demter, sua me
mitolgica, desesperada pediu ajuda a Zeus e Hermes, o deus mensageiro, para
resgatar a filha. Enquanto permanecia no inferno, Cor, desolada, no comia nem
bebia nada; porm, quando Zeus fez um acordo com Hades para que deixasse ela ir
embora com Hermes, Hades lhe ofereceu sementes de rom e ela aceitou. Se ela
no tivesse comido teria sido devolvida me, mas tendo comido o alimento tinha
que ficar parte do tempo no inferno com Hades e a outra parte com sua me no
mundo superior. Porm, quando se transformou em rainha dos infernos, sendo
chamada ento, de Persfone, permaneceu como guia dos heris e heronas que
desciam para o mundo inferior.
Sua importncia central nos Mistrios de Elusis est associada ao ciclo
de renovao da vida aps a morte, que psicologicamente representa o processo de
transformao da personalidade Cor, a jovem raptada, em Persfone, aquela que
se tornou mulher e rainha do mundo inferior.
A anorexia pode ser compreendida a partir destes dois padres
arquetpicos, ou padres de comportamento: Cor e Persfone.
A Cor, segundo Bolen (1990, p. 278), a "jovem annima", a mulher
que no sabe "quem ela " e est inconsciente de seus desejos e foras. A
Persfone a mulher que adquiriu uma nova conscincia de si-mesma e da vida.
Na nossa cultura a mulher criana, passiva, dependente, insegura, que
quer sempre agradar se adaptando ao desejo do outro, como forma de evitar a
agressividade, que reprimida se transforma em depresso. O sintoma depressivo,
nestas mulheres, esconde uma sombra exigente que se volta contra a me, ficando
idealmente presa ao pai; da a negao do corpo feminino.
A anorxica a mulher identificada com a Cor, cativa no mundo das
trevas, deprimida, frgil tanto fsica quanto psiquicamente. O sintoma da anorexia
uma fase de doena psicolgica que a mulher tipo Cor atravessa no seu processo
de transformao. O rapto simboliza a ruptura psquica, a anorexia como um
sintoma psictico, dissociativo, onde a mente e o corpo esto separados.
A anorxica a jovem raptada, que cai no abismo do inconsciente, em
direo s profundezas da psique. Esta descida inicialmente vivenciada de forma
patolgica por ser um processo inconsciente.
Em "O caminho para a iniciao feminina", Sylvia Perera (1985, p. 77-78)
ao abordar o tema da descida no processo de individuao feminina, afirma que:

58
As descidas mais difceis so as que vo s profundezas primitivas e
urobricas, onde sofremos algo semelhante ao esquartejamento total
[...] precisamos passar por algumas mais fceis, para afrouxarmos
endurecimentos e gerarmos energia, antes de nos arriscarmos nas
descidas fragmentadoras at as profundezas de nossas feridas
primordiais, e trabalharmos ao nvel psicossomtico do sofrimento
bsico.

O motivo da descida no processo analtico representa o movimento de


verticalidade, de conexo do que est em cima e o que est embaixo, do mundo
superior e do inferior, da conscincia e do inconsciente, da mente e do corpo.
Descer significa ir em direo ao inconsciente, aprofundar, cair no mundo das
trevas, no desconhecido, na escurido da alma.
De acordo com Jung (1997), ascensus e descensus, altura e
profundidade, para cima e para baixo descrevem um realizar dos opostos, que
lentamente leva ou deve levar a um equilbrio entre eles. Segundo ele, a descida
deve ser entendida analiticamente como a separatio (separao), ou dissoluo da
personalidade e a subida como recomposio da totalidade.
Este movimento de queda que se v no mito do rapto de Persfone por
Hades pode ser observado na psicologia dos transtornos alimentares, pois, a mulher
anorxica a filha raptada, que s consegue se separar da me, romper o vnculo
de dependncia atravs de um ato violento. A anorexia um sintoma deste ato, um
acting-out, a necessidade de separao literalizada e somatizada.
A mulher anorxica, psicologicamente falando, uma puella, ou menina,
uma criana dependente do outro, que pouco ou nada sabe de si; e que por isso,
tem uma necessidade de aprovao externa compulsiva. Porm, inconscientemente,
ela deseja existir por si-mesma, deseja ser dona da prpria vida, mas devido a esta
inconscincia do seu desejo, busca ter o controle da sua vida atravs do controle do
que come. Este pensamento concreto, primitivo, infantil em relao comida remete
fase do desenvolvimento em que a criana comea a se diferenciar da me
reagindo ao seu controle onipotente. Esta fase da relao marcada pelo "no"
como limite entre o eu e o outro e pela tenso psquica correspondente. No comer
uma forma de dizer "no", quando este limite ainda no est internalizado em
forma de desejo; ou seja, o "no" uma tentativa da menina de ser ela mesma, mas
devido sua inconscincia ou onipotncia infantil, este "no" s pode vir atravs da
sua sombra exigente que acaba produzindo a negao de si-mesma e do seu corpo,
como uma imagem do feminino rejeitado.

59

A comida um smbolo alqumico da coagulatio, que psicologicamente


representa o processo de corporificao, de fixao da identidade; o processo de
desenvolvimento do ego e seu fortalecimento em direo individuao da
personalidade.
Nos pacientes com transtornos alimentares, a questo da morte pode ser
compreendida como um medo simblico do impulso para a individuao, sendo o
desafio da anlise, transformar este impulso em desejo, o qual coagula a psique,
libertando o indivduo da priso no paraso da inconscincia.
Segundo Jacob Boehme (apud EDINGER, 1985), ao desejar, a vontade
se contrai e se torna substancial. Assim, criam-se trevas dentro dela, ao passo que,
sem o desejo, no haveria seno quietude eterna, sem substancialidade. O desejo
humaniza porque impe escolhas e limites.
Cor, antes de ser raptada era uma mulher-criana e, embora tenha
sofrido um ato de violncia, esta foi uma experincia transformadora. Aps aceitar o
alimento ela se tornou mulher de Hades, a rainha do mundo infernal. Nesta fase, ela
adquire uma nova identidade, passando a ser chamada de Persfone.
Segundo Perera (1985), as descidas mais profundas levam organizao
e transformao radicais da personalidade consciente. E o tratamento da anorexia
consiste em oferecer o alimento psquico que nutra a alma da paciente, gerando
crescimento para que ela se transforme na mulher Persfone.
Tornar-se uma Persfone significa adquirir uma nova conscincia de simesma e da realidade da vida. Significa despertar, perceber seus conflitos e suas
potencialidades e aprender a lidar com eles a partir de formas e limites que lhe so
prprios.
A mulher, vtima de transtornos alimentares, por ser inconsciente da sua
identidade verdadeira, se sente incapaz de lidar com os conflitos da vida real,
tendendo ao isolamento ou fuga pela fantasia, como forma de evitar o sofrimento.
Na medida em que ela vai adquirindo forma ou um corpo individual,
atravs do trabalho analtico, ela vai se sentindo mais forte e capaz no mundo, e o
que antes era vivenciado como medo se torna desejo. Neste estgio de
transformao, o sofrimento inicial da descida sentido como realizao, quando a
mulher experimenta novas possibilidades de vida, e um sentimento de renovao e
singularidade nunca antes vivenciado. Pois, ao descer, a mulher est integrando a
sombra, aceitando a si-mesma como na realidade e, assim aceita a vida.

60

A sexualidade, antes adormecida, despertada, e a mulher mais


consciente dela mesma se torna livre para fazer suas escolhas. Ela sai do cativeiro
da persona, da menina boazinha, inocente e dependente que se adapta a tudo e a
todos, para se tornar uma pessoa inteira, uma mulher capaz de dirigir sua prpria
vida.
Ela pode dizer "no" sem se sentir culpada, e dizer "sim" sem se sentir
obrigada. No tendo mais o compromisso de agradar a todos, ela compromete-se
apenas com a sua verdade e se torna fiel a si-mesma.
A anorexia como sintoma, durante o tratamento torna-se um smbolo do
processo de morte e renascimento. A identidade infantil representada pelo corpo
anorxico tem que morrer para que nasa um novo corpo, com uma identidade
firmada na realidade; um ego prprio, individual, que se alimenta da fonte do Simesmo e no apenas do coletivo.
A psique ganha corpo quando desce abaixo dos padres idealizados do
coletivo que a violentaram, dissociando sua parte inferior, instintiva, da sua parte
superior, espiritual. Esta descida vivenciada como uma depresso onde a mulher,
segundo Perera (1985), forada a introverter-se e oferecer-se a si-mesma em
sacrifcio, para passar pelo esquartejamento dissolvente da velha identidade.
O logos da psique, enquanto universo da mente ou intelecto, precisa ser
integrado matria, ao corpo, que anima o esprito e traz sentido vida. Este
processo de volta mente-corpo, totalidade da psique, se d na relao
transferencial, onde o analista deve servir de portador das projees da alma da
paciente, valorizando as necessidades e desejos individuais acima das convenes
sociais e impessoais.
A anlise deve ser o espelho que projeta o verdadeiro Eu, nutrindo a autoestima do paciente com um alimento que lhe prprio, como aparece neste exemplo
de uma paciente anorxica em sua avaliao do processo de anlise aps um ano
de tratamento:
Tentei produzir um texto para a sesso de hoje contemplando um
pouco do meu tempo de terapia. Segue ento a minha verso de
Alice no pas das Maravilhas: Eu estava caindo, caindo no buraco
sem fim. Mas nunca chegava no fundo, porque eu era muito leve e
sem foras. Qualquer vento ou obstculo me derrubava. E caindo
naquele buraco fui vendo espelhos, muitos espelhos. Virei de cabea
para baixo e me vi de fora chorando como uma criana, vi as
cicatrizes de meus pais e de minha irm estampadas no meu rosto.

61
Eu estava apenas comeando a descobrir o monstro que eu tinha
dentro de mim. Um monstro que passava fome e queria virar fada.
Sozinha caindo em um buraco. Era sonho ou realidade? No mundo
real, eu queria as fantasias dos sonhos, e continuava sozinha porque
as pessoas reais eram diferentes das do sonho e isso desagradava
muito a algum to 'perfeito'. Cordas foram aparecendo para mim.
Algumas me cortaram os dedos e outras eram falsas. Eu continuava
caindo. Senti medo da morte, da cruz, e de mim mesma. Alguns
remdios de fora ajudaram, mas precisava encontrar os de dentro.
Era isso ou o sofrimento, a dor! Se Alice caiu tanto quanto eu, no
sei, mas naquele tempo todo pensei em tanta coisa que esqueci que
estava em um buraco. Quando esqueci desse mundo, toquei os ps
no cho e foi muito leve caminhar sentindo a terra aos meus ps. E a
2
histria mudou.

3.5 O casamento do corpo e da psique: uma reflexo mitopotica sobre a


busca da totalidade

O propsito deste estudo pensar a relao corpo-psique do ponto de


vista dos transtornos alimentares porque esta patologia reflete a dissociao do
corpo e da alma na cultura ocidental, se tornando um smbolo para a compreenso
dos transtornos corporais em geral.
Ao longo destas reflexes, surgiram imagens arquetpicas, ou seja, temas
que se repetem na dinmica das pessoas que sofrem de transtornos alimentares e
que parecem ter uma conexo entre si.
Inicialmente aparece Dioniso como smbolo da histeria, ou da loucura do
corpo, da compulsividade, da voracidade, da vida instintiva e inconsciente; depois,
Persfone como smbolo da psique que ganhou corpo atravs do seu encontro com
Hades.
Hillman (1980) associa Hades a Dioniso, o que leva a pensar que do
ponto de vista arquetpico, a psicodinmica dos transtornos alimentares tem ecos
dos mistrios dionisacos.
Nos mistrios dionisacos, a vida era celebrada em conexo com o corpo,
num movimento espontneo que surgia das profundezas. Dioniso como deus do
irracional, o deus da loucura e do xtase o representante dos instintos e das foras
arquetpicas que habitam o inconsciente.

Texto produzido por paciente.

62

Estes impulsos vindos do inconsciente ameaam a conscincia e os


padres coletivos com os quais o ego se identifica, ficando, portanto, excludos na
sombra da psique. Por ter um carter inconsciente, a sombra se manifesta atravs
de sintomas fsicos e psquicos; porm, na cultura ocidental, o fsico e o psquico so
considerados coisas de naturezas distintas e no como diferentes formas de
manifestao da mesma coisa. A sombra da psique fica, ento, dissociada, e os
aspectos projetados no corpo ficam excludos, por serem considerados literalmente
como materiais.
Por isso, a alquimia nos alerta quanto ao cuidado com o fsico no
material; o que significa ver no material apenas seu aspecto concreto, enquanto
devemos buscar ver no material o metafrico, ou seja, o seu significado.
Em psicoterapia, isto significa sair do literalismo do ego, atravs de uma
viso simblica do material, libertando a alma, que a qualidade imaginativa da
psique, que est aprisionada no corpo, que, por sua vez, fica reduzido a um crcere
privado.
Este reducionismo se deu porque o corpo, na nossa cultura, foi
literalizado na medida em que foi transformado num produto cuja concretude
destituda de qualquer sentido de alma.
Por isso, o corpo como uma matria dissociada da psique, tem sofrido de
um transtorno de valor ao virar moeda de troca coletiva. O corpo, como objeto de
troca, substitui a relao entre o indivduo e o mundo, levando a perda da alma, na
medida em que o indivduo deixa de existir, por tornar-se apenas um corpo.
Este corpo sem alma o que Hillman chama de carne, para diferenciar o
fsico do psquico. Para ele, corpo o paralelo fsico da psique, da mesma forma
que a carne o para a mente (HILMAN, 1984, p. 130). Psicologicamente, pode-se
entender o corpo como uma imagem do Si-mesmo, enquanto a mente uma
imagem do ego, sendo que o trabalho analtico pressupe transformar a carne em
conscincia corporal atravs da experincia do inconsciente, porque, segundo Jung
(1991, p. 20, 790) o inconsciente a raiz de todas as experincias da unidade;
a matriz de todas as formas arquetpicas ou naturais e a conditio sine qua non do
mundo das manifestaes exteriores.
Hillman (1984) tambm diz que o caminho do corpo se faz muito mais
pelo inconsciente do que pelo consciente. O que significa, na clnica psicolgica, que
no trabalho com a psique o ego apenas auxiliar, porque se o ego se torna o centro

63

do processo, perde-se o sentimento de unidade e a funo simblica da psique; ou


seja, a funo da alma. E a perda da alma, reduz o corpo a apenas carne.
Da a importncia da anlise do inconsciente em relao aos sintomas
fsicos, tanto quanto em relao s suas manifestaes psquicas, porque atravs
desta aproximao com o Si-mesmo que se d a integrao das partes dissociadas
da personalidade gerando o sentimento de unidade.
Portanto, voltar a ser um implica em descer s profundezas para alm
destes padres coletivos que distanciam o ego do Si-mesmo, ampliando a
conscincia numa relao mais feminina e receptiva com o inconsciente,
transformando assim a experincia da carne em corpo psquico ou simblico.
Descer nas profundezas da psique ir ao encontro de Hades/Dioniso,
que psicologicamente significa trabalhar com o material inconsciente, com a sombra,
onde encontramos tambm, as razes do corpo, sua base instintiva. Chegar neste
lugar, no mundo de Hades, significa incorporar o inconsciente, o lado obscuro da
psique, rompendo com os literalismos habituais atravs do resgate da funo
simblica, ou da capacidade imaginativa da psique, que a alma.
Esta transformao leva unicidade ou corporalidade da psique, que
uma qualidade de Dioniso como deus da vida instintiva e inconsciente onde habitam
as foras primordiais da psique.
Estes impulsos vitais s podem existir atravs de um corpo que a matriz
da identidade onde est projetada a auto-imagem do indivduo e atravs da qual ele
se relaciona com o mundo. A relao com este corpo leva percepo da totalidade
ou do Si-mesmo, sendo que a experincia da individuao se d atravs desta
integrao do corpo e da psique na medida em que o ego se aproxima do Simesmo.
Pode-se imaginar Dioniso, portanto, como o arqutipo da totalidade ou Simesmo, por ser considerado o deus da vida indestrutvel, denominado Zo.
Zo uma palavra grega usada para diferenciar a vida ilimitada da vida
finita ou limitada, denominada em grego como bos. Segundo Kernyi (2002, p. 20),
zo no morte, o fio a que cada bos individual se pendura, e que zo vem a
ser o mnimo de vida com que a biologia comea.
Zo tambm, umas das vrias denominaes de Dioniso, o qual
considerado um dos maiores deuses da religio grega. Relacionada a este arqutipo
da vida infinita, representado pelo deus Dioniso, encontramos na mitologia grega

64

Ariadne, ou senhora do labirinto, segundo a verso mais conhecida do mito do


Minotauro e Perseu.
De acordo com Kernyi (2002), a imagem do labirinto associada a
imagem da espiral, por seguir um movimento concntrico, cujo processo de rotao
sobre o prprio eixo, chamado de circunvoluo, est diretamente relacionado zo,
aquele que permeia todas as coisas. O labirinto, alm de ser a morada do
Minotauro, era tambm o cenrio de uma dana executada atravs de voltas e
contravoltas, como um culto senhora do labirinto.
Segundo Junito Brando (1996), na mitologia grega, os labirintos eram
lugares iniciticos que simbolizavam o retorno ao tero materno, onde o iniciado
passava por um processo de transformao, sendo o fio de Ariadne, o cordo
umbilical que permite a sada para a luz.
E, de acordo com Kernyi (2002), para Homero, Ariadne era mais que a
filha do rei Minos, e ela pertencia a Dioniso como donzela ou esposa. Era a primeira
figura feminina do mundo dionisaco, considerada a verdadeira rainha de Creta. A
morte e a tumba eram os elementos do seu culto, sendo o seu tmulo o altar onde
eram feitas as oferendas. Por isso, era considerada uma deusa sombria, que tinha
ligao com a lua.
Na Creta antiga do perodo minico, as moedas cunhadas com a figura do
rei Minos foram substitudas pela cabea de Ariadne que aparecia coroada com
espigas de trigo. Esta imagem da deusa era associada com a deusa Persfone,
sendo Persfone um nome da senhora do labirinto.
A imagem de Persfone como esposa de Dioniso, remete ao mundo dos
mortos como limite da vida corprea, o que, psicologicamente representa a
conscincia da morte.
A conscincia da finitude humana, do ponto de vista da individuao,
um processo dinmico de transformao da personalidade, atravs de voltas e
contravoltas, onde o culto vida est indissoluvelmente ligado ao culto morte.
E, assim como nos rituais dionisacos, em que a dana da vida era
celebrada pelas mulheres, mais conhecidas como mnades ou Bacantes, o
movimento da vida gerado pelo aspecto feminino da psique, o qual precisa ser
reconhecido e exaltado.
No perodo arcaico da cultura grega, Ariadne e Persfone eram
reconhecidas como sendo uma deusa s, e a primeira entre as mulheres de Dioniso,

65

sendo o casamento de Dioniso e Ariadne, nos primrdios da era cretense, o ncleo


do rito dionisaco, o casamento maior, segundo Kernyi:
Assim como Dioniso a realidade arquetpica de zo, Ariadne a
realidade arquetpica do dom da alma, do que faz de um vivente um
indivduo. A alma um elemento essencial de zo, que dela carece
para transcender o estado seminal. Zo exige alma, e toda
concepo psicogonia. Em cada concepo nasce uma alma. A
imagem deste evento a mulher como concebedora, que d alma a
viventes, e o reflexo desta imagem a lua, sede mitolgica da alma.
Em imagem e em reflexo, a fonte feminina de almas, para a Creta
Minica, era a grande deusa, Ria e Persfone - uma dade s em
aparncia, fundamentalmente uma unidade. (KERNYI, 2002, p.
108).

Dioniso e Ariadne so um par divino, um casal sagrado, cuja unio


representa, segundo Kernyi (2002, p. 109): a eterna passagem de zo na, e pela,
gnese dos viventes.
Psicologicamente, pode-se entender Dioniso/Zo como o arqutipo do Simesmo, ou da vida ilimitada que atravessa a dimenso da vida humana, atravs da
sua conexo com Ariadne, que representa o corpo com sua energia feminina, que
tem o fio da vida que liga o indivduo, o humano sua dimenso divina ou totalidade.
O casamento de Dioniso e Ariadne ou Persfone, representa a vida
humana e o seu processo de transformao do nascimento morte com todas as
suas dores e vicissitudes.
Como arqutipo da origem da vida, Dioniso em sua unio com a senhora
do labirinto, ou tero arquetpico, fertiliza o feminino e promove a vida. Este padro
arquetpico corresponde experincia criativa da vida, onde os padres rgidos da
personalidade so dissolvidos e transformados continuamente, renovando a energia
vital. Aqueles que experimentam esta conexo atravs do fio de Ariadne, que
simboliza a essncia do feminino, conseguem libertar a alma e sentir a vida em sua
plenitude.
Psicologicamente, esta experincia arquetpica da unio uma vivncia
nica e individual, cujo significado pertence psique que a experimenta. Como
sugere o mito, o processo de individuao um mistrio, cujo ncleo representado
pela imagem do casamento sagrado ou hierogasmos, que o processo da
integrao do corpo com a alma.
Embora a experincia do arqutipo seja individual, ela representa uma
verdade objetiva que conduz ao conhecimento de uma realidade, onde corpo e alma

66

so um s porque um no pode existir sem o outro.


Pois, o corpo sem a alma matria sem vida, assim como a alma sem o
corpo a vida no materializada. Ambos desejam um ao outro e quando este desejo
no satisfeito, transforma-se em compulso, causando os grandes males do
homem contemporneo.
Por mais dissecado e estudado que o corpo seja, ele continua sendo um
enigma que vai se revelando atravs da experincia da vida e da busca do seu
significado individual. Metaforicamente, o corpo um labirinto, um espao sagrado
onde a vida e a morte se encontram. E, o trabalho da individuao acontece neste
lugar inicitico, no corpo inconsciente, onde o fio de Ariadne simboliza a funo da
alma, que o aspecto feminino da psique, que liga o mundo interno e externo do
indivduo. Este movimento gerado pela alma corresponde dana da vida
representada nos ritos dionisacos em homenagem a este casal divino.
Isto significa que, para a conscincia, o corpo e a psique sempre estaro
dissociados e, somente atravs do inconsciente, com um olhar metafrico podemos
imaginar este casamento. Dioniso e Ariadne ou Persfone, representam esta unio,
a imagem arquetpica da totalidade, do casamento do corpo e da psique, da
unidade, da fonte da vida que jorra do inconsciente.
Portanto,

abordagem

da

totalidade

mente/corpo

exige

um

aprofundamento que a conscincia racional e limitada no capaz de alcanar. Da


a importncia dos mitos como via de acesso ao inconsciente, e dos smbolos com a
sua funo transcendente, integradora e transformadora dos opostos. Pois, tratar a
psique o mesmo que tratar o corpo, assim como atravs do corpo se chega
psique, desde que um ponto de vista no exclua o outro.
Tratar o ser humano que sofre, conduzi-lo ao encontro com o Simesmo, ajudando-o a atravessar as barreiras do medo em direo ao inconsciente,
este desconhecido, este outro, que ao mesmo tempo seu par divino espera da
unio.

67

4 CONCLUSO

A nossa primeira obrigao como psiclogos entender a situao


psquica do nosso tempo e ter dela uma viso clara, para
percebermos as questes e exigncias do nosso tempo. (JUNG apud
SANNINO, 1992, p. 97).

A experincia clnica no tratamento de mulheres com transtornos


alimentares permitiu a identificao do que havia de comum entre elas e a busca de
paralelos mticos com o objetivo de ampliar a compreenso sobre este tema. Estas
ampliaes mitolgicas, associadas s vrias fontes tericas, permitiram concluir
que os transtornos alimentares so sintomas cuja etiologia abrange tanto o particular
quanto o coletivo; e a transformao psicolgica da mulher individual gera uma
transformao transgeracional.
Na sua histria individual, a mulher, vtima deste transtorno, carrega no
seu corpo uma ferida ancestral, que pertence relao primordial me e filha;
personificadas pelas imagens mticas de Demeter e Core/Persfone, cujo culto tem
uma importncia central nos mistrios gregos de transformao em Elusis. Este
processo de transformao psicolgica, portanto, ocorre tanto no nvel pessoal
quanto no nvel arquetpico da psique.
A anorexia, especificamente, reflete a literalizao desta necessidade
profunda de transformao, projetando no corpo a morte psquica. Do ponto de vista
individual, a menina precisa ser separada da me pessoal e guiada em direo
me arquetpica, impessoal, que a fonte de vida que contm o alimento espiritual
que a alma necessita. Em psicoterapia, este movimento de descida atravs das
camadas mais profundas da psique um trabalho com os dois mundos, com o
mundo de cima, ou da conscincia e, o mundo de baixo, do inconsciente, atravs
do qual o ego vai se fortalecendo e se tornando capaz de conter a tenso entre
estes opostos.
Neste sentido, a mulher portadora de distrbio alimentar pode ser vista
como a mensageira destes dois mundos. Ela carrega atravs do seu sintoma, o
segredo, o sentido, e por que no dizer a cura, para o grande mistrio da
dissociao corpo e alma. Pois, na medida em que ela aprende a conter as energias
instintivas que provm do inconsciente por meio da conscincia, estas energias

68

ganham forma e corpo e ela se torna quem ela potencialmente, de acordo com o
movimento de individuao descrito por Jung.
Os transtornos alimentares podem ser compreendidos como um caminho
de resgate da alma e do feminino, em que a doena representa um rapto psquico
necessrio para a transformao psicolgica, quando a menina dependente e
inconsciente tem que morrer para dar lugar ao nascimento da mulher, consciente e
inteira.
A construo e o desenvolvimento da identidade da mulher tm como
base o processo de identificao me e filha. E a estrutura psquica me/filha est
fundada nas bases arquetpicas da psique; e s por meio dos mitos possvel
aproximar-se desta fonte. Para melhor compreender estas estruturas psicolgicas
parte-se do particular em direo ao coletivo, para ento retornar e transformar o
indivduo.
Arquetipicamente, os transtornos alimentares representam o lado sombrio
rejeitado da alma, o feminino, que quer ser reconhecido e alimentado. So
necessidades profundas da psique que ficam margem, negadas pela cultura
patriarcal e materialista da nossa poca em que o corpo fsico est dissociado da
alma, ou psique. E, a alma, negligenciada, se projeta no corpo de forma patolgica
reclamando seu reconhecimento.
A cultura patriarcal, que tem origem nos ensinamentos cristos onde os
princpios masculinos discriminativos geraram a separao entre o bem e o mal, o
certo e o errado, atravs da conscincia racional, rejeitou e negou os aspectos
irracionais da existncia.
Esta dissociao resultou na submisso do corpo, que representa o
irracional, instintivo e inconsciente, mente racional e lgica, representante da
conscincia. As energias femininas, irracionais, ilgicas, as sensaes e emoes
inconscientes foram reprimidas.
A mulher, pela sua natureza feminina, tem sofrido profundamente na
cultura patriarcal que privilegia os valores masculinos. E o movimento feminista, por
sua vez, tem sido um grito de guerra que somente refora os princpios masculinos,
porque luta com as mesmas armas do preconceito que dissocia homens e mulheres,
exigindo um padro de igualdade que no corresponde natureza destes opostos.
A feminilidade, ao contrrio, representa a aceitao e o respeito pelas
diferenas. um movimento de acolhimento, de comunho por meio de Eros, como

69

fora primordial, que rege a vida e no a morte; pois, o princpio feminino no


motivado pela luta, mas pela entrega.
A Ditadura da Beleza a guerra entre o belo e o feio, o certo e o errado,
onde o corpo fsico e o psquico se tornam inimigos. A mulher a maior vtima deste
regime ditatorial e patriarcal. E, parece que esta oposio entre os valores
masculinos e femininos tem causado muito sofrimento para a alma individual e
coletiva.
Esta rejeio ou medo do irracional na nossa cultura a causa das
compulses, da ansiedade, dos excessos, que nada mais representam que o medo
da vida com todas as suas contradies e imperfeies. Neste sentido, as mulheres
perderam a conexo com a sua natureza feminina e, por isso, ficaram aprisionadas
pelo poder patriarcal, submetidas a um padro exterior rgido e exigente.
Partindo do pressuposto de que os distrbios alimentares so sintomas
de uma cultura narcisista, onde a aparncia est dissociada da essncia e o corpo
da alma, assim como o belo do feio e o bem do mal, percebe-se uma forma tpica ou
arquetpica de comportamento, como denominou Jung; que no caso dos distrbios
corporais pode ser compreendida por meio da relao persona/sombra ou Ego/Simesmo, que so elementos estruturantes da psique.
A viso psicossomtica apresentada neste trabalho parte do princpio de
que os aspectos sombrios quando reprimidos so projetados no corpo em forma de
sintomas, assim como, o sofrimento e a insatisfao decorrentes desta inconscincia
levam a uma busca compulsiva pela individuao ou totalidade, porm de forma
literal e patolgica.
Pois a individuao no a busca da perfeio, mas da inteireza, da
realizao do potencial individual; um movimento regido pelo feminino, que o
princpio da vida e fonte da criao. E, quando parte deste potencial de vida no
desenvolvido, se manifesta em forma de patologia.
Os transtornos alimentares, simbolicamente, representam bem esta nsia
ou busca pela inteireza, onde a fome fsica um paralelo da fome psquica, do corpo
sem alma, do Eu sem o Si-mesmo; pois, quanto mais o Eu se distancia do centro da
personalidade, ou Si-Mesmo, ou quando a Persona se ope essncia da
personalidade, maior a instabilidade psicolgica e a tendncia a patologizao.
Esta busca pela alma individual, pelo corpo psquico contido no corpo
fsico, exige o sacrifcio do Eu consciente, do ego onipotente, como na morte de

70

Narciso, que representa a entrada no inconsciente, no mundo de Hades, guiado pela


Eco anorxica.
As imagens mticas da anorexia se configuram na sua forma patolgica
no

padro

Eco/Narciso

Core/Demter

na

sua

forma

redimida

em

Persfone/Ariadne que representam o resgate e o desenvolvimento do feminino, por


meio da conexo com a sua fonte primordial.
Narciso e Eco, assim como Core, podem ser identificados por meio da
sua inconscincia infantil, o primeiro estgio do caminho da individuao nestes
pacientes, sendo a patologia dos transtornos alimentares o incio do processo de
cura e transformao da psique; uma vez que a doena e a cura so plos opostos
de um mesmo processo.
Arquetipicamente, a psicodinmica dos distrbios alimentares simbolizada
pelos excessos, pela comida e pelo corpo, pode ser compreendida pela mitologia
grega do Deus Dioniso, que era ao mesmo tempo o deus da loucura, da vitalidade e
da transformao psicolgica.
Dioniso representa a vida que est no inconsciente, o corpo conectado
com a alma, sendo uma imagem arquetpica da totalidade corpo/psique; pois, entrar
em contato com Dioniso significa integrar os aspectos femininos e masculinos da
psique, uma vez que Dioniso era considerado um deus andrgino porque estava
sempre acompanhado de mulheres. Ele era uma divindade que amava as mulheres
e lhes proporcionava prazer e liberdade, ao contrrio da rigidez e da depresso
caractersticas da vida moderna.
As divindades ctnicas, assim como Dioniso e Hades, representam os
aspectos inconscientes negligenciados na cultura moderna. Ir ao encontro do Deus
Dioniso nas profundezas do Hades significa tambm ir ao encontro da Deusa
Ariadne ou Persfone, que representam as foras femininas primordiais da psique
aps passarem pelo processo de transformao.
Antes de sofrer esta transformao, este potencial permanece na sombra,
e aparece somatizado sob a denominao de patologias modernas ou patologias do
vazio. Estes males da modernidade, entre eles, os transtornos alimentares, so
sintomas que representam a dissociao entre o mundo da conscincia, o mundo
concreto da matria e o mundo inconsciente, instintivo e espiritual da psique.
No segundo estgio, portanto, encontra-se Persfone aps ser raptada
por Hades/Dioniso, o deus dos mortos e do renascimento. Psicologicamente, por

71

meio da anorexia, a jovem levada para o mundo inferior, em direo ao


inconsciente, ao desconhecido de si-mesma, para depois retornar desta experincia
amadurecida e transformada.
E este rapto de Persfone, como afirma Hillman (2010), no ocorre
apenas uma vez na vida, pois, como uma mudana radical na alma um
acontecimento mtico que sempre est acontecendo. Ele considerado um padro
bsico da psicodinmica, pois o rapto de uma alma inocente por Hades uma
necessidade fundamental para uma mudana psquica.
A conexo do corpo e da psique consiste, ento, na harmonia entre os
mundos interno e externo. Esta conexo o que Jung denominou de sincronicidade,
que quando o mundo interior e o exterior se tornam um s, ou seja, se unem pelo
mesmo significado.
Este

processo

de

integrao

ocorre

atravs

do

trabalho

de

autoconhecimento quando a mulher aprende a lidar com estas duas realidades,


identificando o que h de verdadeiro em cada ponto de vista e compreendendo que
a vida em essncia um grande paradoxo, que no tem que ser resolvida, mas
experimentada. Se libertar da rigidez dos contrrios um caminho para a soluo do
conflito entre ser quem se deseja ser ou ser apenas quem se .
A coniunctio ou o casamento do corpo e da alma o objetivo da grande
obra que a vida, que, ao mesmo tempo, um grande mistrio, e, por isso, est
alm dos limites da conscincia; exigindo acima de tudo, coragem, confiana e
entrega.
Analisando-se

os

aspectos

das

imagens

de

deusas

ctnicas,

pertencentes a um perodo antigo e matriarcal, quando havia cultos de venerao


Deusa-Me, observa-se que Demter/Persfone, Ariadne, sis, Sofia, esto
profundamente associadas s imagens crists da Virgem Maria e Madonas Negras,
e so todas representantes arquetpicas da Grande Me, do Grande Feminino, que
representa a fonte de nutrio e criao da psique, a origem da vida e sua totalidade
terrena e espiritual; o princpio e o fim, a origem e o destino de todas as coisas.
Na ltima etapa deste trabalho, quando o limite da capacidade consciente
de compreenso sobre esta questo to profunda, que a dissociao do corpo e
da psique, foi esgotado surgiu a oportunidade de uma viagem Sua, onde
cultuada uma imagem da Virgem Negra, a Madona Negra de Einsiedeln, que uma
representao dos aspectos sombrios da Virgem Maria; que est incompleta na

72

forma como apresentada pela Igreja. Ela simboliza o corpo, a sexualidade, a


humanidade integrada a uma sabedoria profunda e a espiritualidade.

Fotografia 2 - A Madona Negra de Einsiedeln

Fonte: Fotografia tirada de escultura do acervo da autora

A Madona Negra de Einsiedeln, assim como outras deusas negras, est


em poucos lugares do mundo, em que nos tempos antigos se realizava o culto a sis,
antes dos primeiros cristos construrem os santurios da Virgem Maria. Segundo
Von Franz (2003), a Virgem Negra apenas uma substituio da esttua de sis.

73

Esta experincia pessoal com a imagem da Madona Negra foi tocante,


porque ela representa a fora arquetpica da Grande Me, a me impessoal, atravs
da qual nos conectamos com a totalidade da vida. A energia que dela emana
transcende os aspectos pessoais da psique e, por isso, assim como nos Mistrios de
Elusis, e no possvel explicar atravs da conscincia, porque uma experincia
predominantemente emocional e inconsciente.
Psicologicamente, a imagem da Madona Negra de Einsiedeln repleta de
smbolos, cuja reflexo no caberia aqui, mas optou-se por cit-la em razo de ela
sintetizar e amplificar o que se procurou transmitir por meio destas reflexes. Ela
representa, acima de tudo, um chamado para a entrega ao inconsciente, deixando a
velha personalidade baseada nos padres rgidos da conscincia morrer para que
ocorra uma ampla transformao. Por isso, esta imagem personifica uma fora
arquetpica que est emergindo do inconsciente coletivo e que necessria para
este grande processo de mudana na conscincia da humanidade.
Como ensina Marion Woodman (1993), para a conscincia feminina, o
espiritual e o fsico so dois aspectos da mesma realidade. Ainda, sobre a Madona
Negra de Einsiedeln, Von Franz (2003) diz que as pessoas acreditam que ela mais
benevolente com as imperfeies da humanidade. Isso tipicamente feminino.
Segundo Gustafson (2009), o que a ordem coletiva no pode aceitar, a
Madona Negra pode. Para ele, os mensageiros de Deus representam, em termos
psicolgicos, os mensageiros do centro interior que Jung chamou de Si-mesmo; e,
quando o ego se rende, as foras psquicas se tornam mais poderosas e se pode
alcanar valores mais profundos e um nvel de maturidade espiritual superior.
Assim, ao se trabalhar profundamente a psique individual transforma-se a
psique coletiva. E o resgate do indivduo atravs da sua liberdade de expresso faz
a psique ganhar corpo e fora frente ao poder dominante da matria.
Diante de tudo isso, conclui-se que somente quando a realidade externa
do mundo estiver em harmonia com a realidade interna, individual e coletivamente,
poder ocorrer uma profunda evoluo da humanidade em direo a um nvel
superior de conscincia, onde o homem e a natureza, o masculino e o feminino, o
corpo e a alma, sero UM novamente.

74

5 REFERNCIAS

AVENS, Roberts. Imaginao realidade: o nirvana ocidental em Jung, Hillman,


Barfield e Cassirer. Traduo de Catherine Jean Greenlees e Sonia Maria Caiuby
Labate. Petrpolis, RJ: Vozes, 1993. (Coleo Psicologia Analtica)
VILA, A.L. Doenas do corpo e doenas da alma. So Paulo: Escuta, 2002.
BOECHAT, Walter. Cuidado, ateno e escuta em psicoterapia: novas abordagens
possveis e a totalidade corpo-mente. In: WERRES, Joyce Lessa (org). Ensaios
sobre a clnica junguiana. Porto Alegre, RS: Imprensa Livre, 2005.
BRANDO, Junito de Souza. Mitologia grega. 10. ed. Vol. I. Petrpolis,RJ:
Vozes,1996.
CAVALCANTI, Raissa. O Mito de Narciso: o heri da conscincia. So Paulo:
Cultrix, 1992.
CLARKE, J. J. Em busca de Jung: indagaes histricas e filosficas. Traduo de
Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.
EDINGER, Edward F. Anatomia da psique: o simbolismo alqumico na psicoterapia.
Traduo de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonalves. So Paulo: Cultrix,
1985.
GUSTAFSON, Fred. The black madona of Einsiedeln: an ancient image for our
present time. Einsiedeln: Daimon Verlag, 2009.
HILLMAN, James. Encarando os deuses. Traduo de Cladio Giordano. So
Paulo: Cultrix/Pensamento, 1980.
______. Uma busca interior em psicologia e religio. 3. ed. Traduo Araceli
Martins Elman. So Paulo: Paulus, 1984. (Coleo Amor e Psique)
______. Cidade & alma. Traduo de Gustavo Barcellos e Lcia Rosenberg. So
Paulo: Studio Nobel, 1993.
______. Re-vendo a psicologia. Traduo de Gustavo Barcelos. Petrpolis-RJ:
Vozes, 2010. (Coleo Reflexes Junguianas)

75

JACKSON, Eve. Alimento e transformao: imagens e simbolismo da alimentao.


Traduo de Maria Silva Mouro Netto. So Paulo: Paulus, 1999. (Coleo Amor e
Psique)
JUNG, Carl Gustav. A prtica da psicoterapia: contribuies ao problema da
psicoterapia e psicologia da transferncia. 4. ed. Traduo de Maria Luiza Appy.
Petrpolis, RJ: Vozes, 1985. (Obras completas de C.G. Jung Volume XVI/1)
______. O eu e o inconsciente. 9. ed. Traduo de Dora Ferreira da Silva.
Petrpolis, RJ: Vozes, 1987. (Obras completas de C.G. Jung Volume VII/2)
______. Smbolos da transformao: anlise dos preldios de uma esquizofrenia.
2. ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 1989. (Obras completas de C.G. Jung Volume V)
______. Psicologia do inconsciente. 7. ed. Traduo de Maria Luiza Appy.
Petrpolis, RJ: Vozes, 1990. (Obras completas de C.G. Jung Volume VII/1)
______. Psicologia e religio oriental. 5. ed. Traduo de Pe. Dom. Mateus
Ramalho Rocha, OSB. Petrpolis, RJ: Vozes, 1991. (Obras completas de C.G. Jung
Volume XI/5)
______. Estudos psiquitricos. Traduo de Lcia Mathilde Endlich Orth.
Petrpolis, RJ: Vozes, 1994. (Obras completas de C.G. Jung Volume I)
______. Misterium coniunctionis. Pesquisas sobre a separao e a composio
dos opostos psquicos na Alquimia. 3. ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 1997. (Obras
completas de C.G. Jung Volume XIV/1)
______. Freud e a psicanlise. 3. ed. Traduo de Lcia Mathilde Endlich Orth.
Petrpolis, RJ: Vozes, 1998a. (Obras completas de C.G. Jung Volume IV)
______. A natureza da psique. 4. ed. Traduo de Pe. Dom Mateus Ramalho
Rocha. Petrpolis, RJ: Vozes, 1998b. (Obras completas de C.G. Jung Volume
VIII/2)
______. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. 6. ed. Traduo de Pe.
Dom Mateus Ramalho Rocha. Petrpolis, RJ: Vozes, 2000a. (Obras completas de
C.G. Jung Volume IX/2)
______. Civilizao em transio. 2. ed. Traduo de Lcia Mathilde Endlich Orth.
Petrpolis, RJ: Vozes, 2000b. (Obras completas de C.G. Jung Volume X/3)

76

______. A vida simblica: escritos diversos. 3. ed. Traduo de Araceli Elman,


Edgar Orth. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007. (Obras completas de C.G. Jung Volume
XVIII/1)
______. Ab-reao, anlise dos sonhos, transferncia. 3. ed. Traduo de Maria
Luiza Appy. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007. (Obras Completas de C.G.Jung Volume
XVI/2)
KERNYI, Carl. Dioniso: imagem arquetpica da vida indestrutvel. Traduo de
Ordep Trindade Serra. So Paulo: Odysseus, 2002.
LPEZ-PEDRAZA, Rafael. Dioniso no exlio: sobre a represso da emoo e do
corpo. Traduo de Roberto Cirani. So Paulo: Paulus, 2002. (Coleo Amor e
Psique)
PERERA, Sylvia Brinton. Caminho para a iniciao feminina. Traduo Araceli
Martins Elman. So Paulo: Paulinas, 1985. (Coleo Amor e Psique)
ROBELL, Suzanne. A mulher escondida: anorexia nervosa em nossa cultura. So
Paulo: Summus,1997.
SCHWARTZ-SALANT, Nathan. Narcisismo e transformao do carter: a
psicologia das desordens do carter narcisista. Traduo de Adail Ubirajara Sobral e
Maria Stela Gonalves. So Paulo: Cultrix, 1982. (Coleo Estudos de psicologia
Junguiana por Analistas Junguianos)
SANFORD, John A. Mal, o lado sombrio da realidade. 3. ed. Traduo de Slvio
Jos Pilon, Joo Silvrio Trevisan. So Paulo: Paulus, 1988. (Coleo Amor e
Psique)
______. Destino, amor e xtase: a sabedoria das deusas gregas menos
conhecidas. Traduo de Cludia Gerpe Duarte. So Paulo: Paulus, 1999. (Coleo
Amor e Psique)
SANNINO, Annamaria. Mtodos do trabalho corporal na psicoterapia junguiana:
teoria e prtica. So Paulo: Moraes, 1992.
SALZANO, Fabio T.; CORDS, Tki A. Sade mental da mulher. So Paulo:
Atheneu, 2006.

77

VON FRANZ, M. L. O gato: um conto da redeno feminina. 2. ed. Traduo de


Euclides Luiz Calloni. So Paulo: Paulus, 2003. (Coleo Amor e Psique)
______. O significado psicolgico dos motivos de redeno nos contos de
fada. So Paulo: Cultrix, 1980 (Coleo Estudos de psicologia Junguiana por
Analistas Junguianos)
WOODMAN, Marion. A coruja era filha do padeiro: obesidade, anorexia nervosa e
o feminino reprimido. Traduo de Adail Ubirajara Sobral. So Paulo: Cultrix, 1980.
(Coleo Estudos de psicologia Junguiana por Analistas Junguianos)
______. A feminilidade consciente: entrevistas com Marion Woodman. Traduo
de Maria Silva Mouro Netto. So Paulo: Paulus, 2003.

78

6 OBRAS CONSULTADAS

ASSOCIAO BRASILEIRA DE NORMAS TCNICAS. NBR 14724:2011,


Informao e documentao - Trabalhos acadmicos Apresentao. Rio de
Janeiro, 2011.
______. NBR 6023:2000, Informao e documentao Referncias Elaborao. Rio de Janeiro, 2000.
______. NBR 10520:2001, Informao e documentao - Apresentao de
citaes em documentos - Regras gerais. Rio de Janeiro, 2001.
JUNG, Carl Gustav. Os arqutipos e o inconsciente coletivo. Traduo de Maria
Luiza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrpolis, RJ: Vozes, 2000. (Obras
completas de C.G. Jung Volume IX/1)

Você também pode gostar