As Mil e Uma Noites

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AS MIL E UMA NOITES

INTRODUO

O presente trabalho tem por escopo apresentar de maneira sucinta o


contedo relativo obra As Mil e Uma Noites, conforme ministrado em sala de aula no
presente semestre como parte da disciplina Introduo Literatura rabe. Durante esses
pouco mais ou menos de quatro meses, tivemos a oportunidade de aprender a respeito de
diversas obras da literatura rabe e seu contexto histrico-cultural, o que incluiu desde a
poesia pr-islmica, passando pelos poemas suspensos, pelo prprio Alcoro que, em
termos literrios, qui possa ser entendido como um misto muito bem elaborado de prosa
e de poesia , pelos textos epistologrficos dos primrdios do isl, pelo(s) conceito(s) de
adab (sobre o qual falaremos brevemente mais adiante) e sua importncia na literatura
rabe, por obras de cunho fabular e tratados de natureza poltica, bem como brevemente
pela literatura documental e de cunho anedtico, chegando por fim anlise de algumas
obras de fico, mormente Os Sete Vizires e As Mil e Uma Noites.
Nesse

contexto,

coube-nos

escolher,

dentre

os

tantos

temas

supramencionados, um para a feitura do trabalho de concluso da disciplina. Assim, elegi


As Mil e Uma Noites e isso por uma srie de motivos. Primeiramente, em razo de uma
preferncia pessoal e uma espcie de curiosidade fascinante que a obra sempre me causou,
desde a infncia, conquanto eu aqui no tivesse tido a oportunidade de conhec-la de fato.
E, somando-se a isso, tambm a familiaridade do tema embora nunca a tivesse lido antes,
tinha uma vaga ideia de seu contedo, contexto e, sobretudo, de sua importncia histrica e
cultural e igualmente o fato de ele haver sido uma das matrias mais ricamente
exploradas ao longo do curso foram de grande importncia para a escolha desse tema.
Assim, o presente trabalho comear por dar uma breve definio ou
delineamento ao que seja a obra As Mil e Uma Noites, caracterizando-a como parte
integrante da literatura de adab e, para tanto, tentar-se- circunscrever o conceito deste
ltimo termo, embora ele seja notadamente fluido e amplo para, em seguida, abordar
algumas questes importantes relativas obra, como, por exemplo, aquela relativa s
tradues, s fontes e compilao dos textos que hoje compem o que se conhece como o

texto de As Mil e Uma Noites, finalizando com uma anlise sobre o papel de Sherazade e
uma possvel interpretao sua segundo a qual sua atuao seria uma representao da
importncia do poder ou dom da palavra.

2. AS MIL E UMA NOITES: UMA BREVE DESCRIO

As Mil e Uma Noites (em rabe chamadas Alf Layla wa-Layla)


constituem uma notria e amplamente conhecida compilao, em lngua rabe, de uma
srie de pequenas histrias tradicionais originrias do Oriente Mdio, agregadas como uma
nica obra durante o perodo medieval (i.e., entre os sculos V e XV d.C., mormente a
partir do sculo IX).
A origem das histrias remonta ao folclore e literatura 1 rabe, persa,
indiana, egpcia e mesopotmica. Acredita-se, por exemplo, que o que hoje conhecemos
como As Mil e uma Noites e atribumos literatura rabe tenha sido em grande parte
influenciada pela obra de carter fabular e de origem indiana conhecida como
Panchatantra2, e isso principalmente em razo da similaridade que existe entre as
estruturas das duas obras (mormente no que diz respeito ao modelo de histria guardachuva ou de histrias dentro de histrias, amplamente utilizado em ambas).
De todo modo, conforme ficar ainda mais evidente em tpico especfico
abaixo, dada a imensa variedade e diversidade de manuscritos que deram ou teriam dado
origem ao livro das Mil e uma Noites, existem tambm hoje diversas verses suas, as quais
variam quanto presena ou no de determinados contos, ou mesmo quanto ao nmero e
ao prprio contedo de algumas das histrias compiladas.
Contudo, em todas as verses, o que h de comum o fato de a cadeia de
histrias ser introduzida por um prlogo (ou prlogo-moldura i.e., a histria que estaria
no incio de tudo e que teria dado lugar narrativa das demais histrias a histria das

1 Aqui, entenda-se literatura no apenas como obras registradas por escrito, mas, tambm, e qui principalmente, histrias e poesia da
tradio oral.

2 MARZOLPH, Ulrich. The Arabian Nights in Transnational Perspective. Wayne State University Press: 2007, p. 119 e ss.

histrias3) no qual se conta que Sherazade, esposa do rei Shariar, narra as histrias
maravilhosas que do origem obra na tentativa de escapar da morte j que o rei, aps
haver sido trado por sua primeira esposa, havia passado a casar-se com uma nova mulher a
cada noite, mandando matar cada uma delas na manh seguinte. , assim, por meio da
narrativa das histrias arrebatadoras e surpreendentes que Sherazade consegue entreter o
rei e distra-lo, interrompendo a histria a cada manh a fim de manter acesa a curiosidade
do rei e, consequentemente, garantir que no seria morta por ele, ao menos at a noite
seguinte, quando continuaria a contar a histria. Ao final das histrias, o rei se arrepende
de sua atitude descontrolada com as esposas anteriores e acaba por no assassinar
Sherazade.

3. LITERATURA DE ADAB E AS MIL E UMA NOITES

Conforme j referido acima (v. Introduo), o termo adab em rabe


engloba uma srie de conceitos e possui um significado amplo, que costuma ser traduzido
para o portugus como decoro/decoroso, (pessoa) cultivada (num sentido cultural, ligado
ao conhecimento em diversas reas) ou letrada, alm de ser entendido tambm como
educao e/ou boas maneiras e instruo (tambm no sentido de conhecimento, ou sua
aquisio). Segundo Messiane Brito dos Santos4, o termo, que originalmente tinha um
sentido mais ligado ao conceito de norma de conduta ou costume socialmente aceito,
ao longo da histria da lngua rabe veio a ter seu sentido cada vez mais ampliado e
estendido, passando a abarcar tambm os sentidos de boa educao, cortesia ou
civilidade, algo que no latim talvez pudesse equivaler ao conceito de urbanitas.
Mais tarde, ainda como parte desse processo de expanso do conceito de
adab, o termo veio tambm a ser usado com relao intelectualidade, passando a
designar tambm o conhecimento da poesia, oratria, retrica, gramtica, filologia e
histria, tanto (e principalmente, talvez) no que diz respeito s tradies tribais quanto ao
3 JAROUCHE, Mamede Mustafa (trad.). Livro das Mil e uma Noites. 3 ed. So Paulo: Globo. 2006. P. 21.
4 SANTOS, Messiane Brito dos. O adab nas Mil e Uma Noites: a histria do segundo dervixe. Verso corrigida V1. So Paulo:
Universidade de So Paulo, 2014. 104 f. Tese (Mestrado em Letras) Programa de Ps Graduao em Estudos Judaicos e rabes do
Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, So Paulo,
2014.

que concerne a outras civilizaes ou culturas (i.e., no rabes) o que em geral refletia a
ideia daquilo a respeito do qual um homem erudito ou cultivado (adib) deveria ter
conhecimento a fim de ser tido por sua comunidade como tal. Assim, o conceito de adab
passava a abarcar o conhecimento de dimenses to diversas quanto a tica ou moral,
esttica, poltica, cultural, comportamental, relacional, deontolgica e subjetiva5.
Nesse contexto, notadamente durante o califado abssida, houve uma
grande produo de textos cujo mote central era a produo do adab, ou cuja inteno era
a de dar alguma espcie de orientao a quem desejasse ser tido como um adib, os quais de
uma maneira geral viriam a ser chamados ou conhecidos como obras de adab.
Com o declnio e posterior queda do califado abssida, passa-se a
observar um processo de paulatina restrio ao significado do termo adab embora, notese, seu significado ainda hoje englobe muitos conceitos diversos e, por isso mesmo, sua
traduo nem sempre seja de fcil feitio, ao menos quando se trata de lnguas como a
nossa, que no possuem termo semelhantemente amplo para sua designao , at que
chegasse a um ponto em que, de uma maneira geral, o termo passasse a designar mais
objetivamente as belles lettres i.e., poesia e prosa elegantes, culturalmente entendidas
como literatura.
nesse contexto que se pode compreender a obra das Mil e Uma Noites,
em cujo prprio prembulo se l: ... a elaborao deste agradvel e saboroso livro tem por
meta o benefcio de quem o l: suas histrias so plenas de decoro [adab], com
significados agudos para homens distintos i.e., a obra em si explicita desde o incio essa
sua inteno de ser instrutiva, no sentido de gerar essa espcie de conhecimento amplo, que
diz respeito aos vrios aspectos da vida humana, e de orientar seus leitores a fim de que
estes aprendam o que tido como bom comportamento o bem-fazer e o bem-viver e, ao
mesmo tempo, impe-se (a obra) como obra de literatura elevada, produzida de acordo
com as exigncias do bem escrever de ento e por algum que, consequentemente, seria
tudo como um adib a seu tempo. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que poderia ser
considerada como uma concatenao de fbulas cujo propsito seria o de mero
entretenimento, constitua tambm um conjunto de histrias com a habilidade de transmitir
ao leitor conhecimento acumulado acerca de diversos aspectos da vida do homem,
adquirindo, com isso, maior valor cultural.
5 SANTOS, Messiane Brito dos. Ob. Cit., p. 12.

4. COMO CHEGOU AT NS O QUE HOJE SE CONHECE COMO AS MIL E


UMA NOITES

Conforme j comentado anteriormente, so muitos os manuscritos que


deram origem ao que hoje se conhece como o livro das Mil e Uma Noites e, alm disso,
muitas foram (e so), tambm, as suas tradues e edies. A mais antiga referncia a um
manuscrito rabe das Mil e uma noites remonta ao sculo IX d.C. e est contida no
fragmento de um manuscrito (documento apcrifo de 879 d.C.), no qual se faz meno ao
ttulo da obra (livro que contm histria(s) [ou: a histria] das mil noites [ou: histrias
pertencentes s mil noites]) e no qual se encontram tambm algumas linhas iniciais do
prlogo, nas quais Duniazade (irm ou escrava de Sherazade) pede a algum (no
nomeado) que conte a histria que ele(a) (i.e., o narrador a quem Duniazade se dirige)
havia prometido na noite anterior.
Existem fortes indcios de que o agrupamento de histrias que deu
origem s Mil e Uma Noites tenha sua origem em tradues de contos de cunho
fantstico/fabular, originalmente escritos em persa, grego e snscrito (como o caso do
Panchatantra, conforme mencionado anteriormente). o que se nota, por exemplo, por
meio dos nomes das personagens: embora os nomes das principais personagens sejam de
origem iraniana, acredita-se que o prlogo-moldura seja de origem indiana, enquanto, por
outro lado, a maior parte de nomes mencionados ao longo da histria de origem rabe.
Esse fato, somado variedade de contos e da distribuio geogrfica de sua origem (i.e.,
contos originrios da ndia, do Ir, do Iraque, do Egito, da Turquia e mesmo da Grcia),
bem como diversidade estilstica que existe entre os contos, tornam a possibilidade de
uma autoria una praticamente impossvel, ou ao menos bastante improvvel.
De todo modo, o fato que, ainda hoje, muito pouco ou quase nada se
sabe a respeito das histrias que integravam as primeiras verses das Mil e Uma Noites em
rabe, j que as fontes por meio das quais podemos ter acesso a esses manuscritos
constituem nada mais que fragmentos de texto e menes esparsas em outras obras.
Hoje, entende-se que o livro das Mil e Uma Noites uma obra composta,
i.e., um apanhado de diversos contos tradicionais/populares, possivelmente passados de

gerao em gerao oralmente durante sculos, atravs dos quais tais histrias foram sendo
modificadas e ganhando diversas verses, at serem compiladas por diferentes autores ou
grupos de autores e tornadas uma s obra, como se v hoje. Igualmente, entende-se hoje,
de uma maneira geral, que, dentre o conjunto de contos que compem as Mil e Uma Noites
em suas diversas verses, predominam duas camadas ou dois ramos de contos no que
diz respeito sua origem: um deles de origem sria e o outro, posterior historicamente e
mais extenso que o primeiro, teria sido escrito no Egito (conforme classificao feita pela
primeira vez por August Mller em 1887). Contudo, vale dizer que, aps Mller, diversas
outras verses e tradues de textos relacionados s Mil e Uma Noites foram sendo
encontrados conjuntos que variavam no apenas no teor das histrias, mas tambm na
sua abrangncia temporal e geogrfica, entre outros aspectos.
A primeira traduo das Mil e Uma Noites feita e publicada na Europa
foi a de Antoine Galland (Les Mille et Une Nuits, contes arabes traduits en franais, 12
vol. (Volumes 1-10 publicados entre 1704-1712; volumes 11 e 12 publicados em 1717)), a
qual tomou por base principalmente um compilado de textos de origem sria, embora tenha
tambm utilizado outras fontes. Mais tarde, outras tradues/reedies importantes viriam
a ser a Vulgata egpcia de 1835, e As Mil Noites e Uma Noite, de Richard Burton, cujos
primeiros 10 volumes foram publicados em 1885, sendo os 6 complementares publicados
entre 1886-1888.
De todo modo, diante de tantas vicissitudes relativas forma original em
que teriam sido concebidas as Mil e Uma Noites, a nica afirmao certa que se pode fazer
a respeito de que a histria bsica de Sherazade e do rei Shariar, apresentada no prlogomoldura e que serve como elo de ligao entre as demais histrias subsequentes, j existia
e estava presente na obra, como mencionamos, acima, desde o sculo IX.

5. SHERAZADE E O PODER DA PALAVRA: UMA SIGNIFICAO POSSVEL


PARA AS MIL E UMA NOITES

No prlogo-moldura do texto ora em anlise, Sherazade aparece na


histria como a filha do gro-vizir do rei Shariar este ltimo que, aps descobrir ter sido
trado por sua esposa e chegar concluso de que todas as mulheres do mundo eram,

invariavelmente, prfidas e tendentes traio, resolve que a cada noite se casaria/dormiria


com uma virgem, matando-a pela manh a fim de aniquilar qualquer possibilidade de
voltar a ser trado futuramente. O gro-vizir, que era, afinal, quem tinha a desagradvel
tarefa de entregar ao rei as donzelas e, depois, pela manh, mata-las, acaba por lhe
entregar Sherazade, sua prpria filha, que na verdade se oferece para tanto, sob o
argumento de ter uma soluo para a situao.
Sherazade sabia que, ao contar as mil e uma histrias ao rei, e nisso
apoiada em diversos artifcios e habilidades que possua para tanto, seria capaz de no
apenas entret-lo e distra-lo de seu propsito fatal, mas, mais do que isso, de ensin-lo por
meio de histrias plenas de adab a ser um homem mais sbio e, por fim, convenc-lo a
no mais perseguir aquele seu propsito original.
Por meio de sua habilidade e, qui principalmente, por meio da
proximidade, da sensualidade (no sentido de apelo aos sentidos corpreos/fsicos), da
nfase, do ritmo e do tom nico e especial que somente a oralidade capaz de imprimir
narrativa de uma histria, Sherazade capaz de passar trs anos nterim durante o qual
ela d luz a trs filhos do rei tendo o todo-poderoso sulto sob seu poder, e de faz-lo
com sutileza que o rei sequer se apercebe desse fato. Em outras palavras, conquanto fosse
mulher o que naquele perodo englobava uma srie de significados, que em geral
refletiam uma inferioridade hierrquica da mulher em relao ao homem, principalmente
num cenrio em que tal homem fosse o sulto , Sherazade tinha esse poder de manipular
num bom sentido a palavra falada a fim de no apenas salvar sua vida, mas possibilitar
que a justia fosse restabelecida e o sulto se tornasse um governante (e um homem)
melhor e mais justo para seu povo.
Pode-se, assim, entender (embora evidentemente esse no seja o nico
ponto de vista possvel) que a histria que reside por trs das Mil e Uma Noites deseja
enfatizar exatamente o poder da palavra e, principalmente, da palavra externada
oralmente, em pessoa , bem como a maneira como o seu poder de persuaso pode ser
usado no apenas para finalidades pessoais ou de natureza individual, mas tambm para o
bem geral ou coletivo.

BIBLIOGRAFIA:

MARZOLPH, Ulrich. The Arabian Nights in Transnational Perspective. Wayne

State University Press: 2007, p. 119 e ss.


JAROUCHE, Mamede Mustafa (trad.). Livro das Mil e uma Noites. 3 ed. So

Paulo: Globo. 2006. P. 21.


MENESES, Adlia Bezerra de . Do Poder da Palavra: ensaios de literatura e

psicanlise. 2 ed.. 2. ed. So Paulo: Duas Cidades, 2004. v. 1. P. 39 - 56.


SANTOS, Messiane Brito dos. O adab nas Mil e Uma Noites: a histria do
segundo dervixe. Verso corrigida V1. So Paulo: Universidade de So Paulo,
2014. 104 f. Tese (Mestrado em Letras) Programa de Ps Graduao em Estudos
Judaicos e rabes do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.

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