Minha Senhora de Mim Maria Teresa Horta
Minha Senhora de Mim Maria Teresa Horta
Minha Senhora de Mim Maria Teresa Horta
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Se ampliarmos, entretanto, nosso olhar para outras
literaturas, o paradigma de interesses intertextuais de
Maria Teresa Horta mantm-se: por um lado, os clssicos
que lhe enrijeceram a formao desde cedo; por outro,
a presena da voz da mulher, ou seja, de tudo quanto
escrito por mulheres. Este segundo segmento de seus
interesses se desdobra, evidentemente, pela incorporao,
em seu imaginrio, de todo o universo mito-potico da
Europa Central em que princesas, prncipes e castelos
por um lado, e fadas, bruxas, feiticeiras todas vozes
sistematicamente silenciadas pela histria oficial por
outro, chegam at ns por caudalosa produo literria,
em que as leituras infantis no deixam de ter importncia
central. Ainda nessa esfera, incluem-se os anjos, que, mais
do que pertencentes tradio judaico-crist, em Maria
Teresa Horta surgem como o desdobramento do mesmo
imaginrio referido anteriormente: so anjos sexuados e
laicizados e, por isso, figuras banidas de nossa actica
cultura oficial. Como se pode perceber , mais uma vez,
a opo por trazer luz o que ficou sempre esquecido nas
sombras.
Mas, enfim, no tema propriamente dito da proposta
para hoje, escolho, entre tantas possibilidades, a que
considero mais interessante para esta ocasio. Como
anunciei, trata-se de ver como se d a relao da poesia
de Maria Teresa Horta com as cantigas trovadorescas e
como estas se desdobram em outras relaes na Literatura
Portuguesa.
A poesia de Maria Teresa Horta sem dvida visitou
os cancioneiros galaico-portugueses. No estou a falar
nenhuma novidade; entretanto, a maneira como tal contato
se d me parece bastante interessante de ser lembrada.
O retorno s origens trovadorescas da lrica, tanto
na Literatura Portuguesa como na Literatura Brasileira,
um caminho sempre retomado por nossos poetas e no
fato raro. No entanto, nova a maneira como isto se d
na trajetria da poetisa: em Maria Teresa Horta, o retorno
s cantigas tem a fora de um resgate.
Ao acompanhar passo a passo sua trajetria potica,
v-se a olho nu que sua poesia a afirmao da voz
feminina. De incio, a construo de uma voz prpria,
mas tambm a de uma voz que empresta seu timbre s
mulheres silenciadas. E sua voz, inegvel, d corpo ao
corpo da mulher.
Neste sentido, o corpo feminino, obviamente presente
desde o seu primeiro volume de poesia, Espelho inicial,
de 1960, era, no entanto, visto muitas vezes como espao
de perda (sobretudo prpria).
Entretanto, Minha senhora de mim, de 1971, o seu
nono livro de poemas, representou, em minha visada
sobre o conjunto de sua obra, um momento de virada, em
que sua potica assume inteiramente o corpo como espao
de encontro (sobretudo de si). Claro que tal realizao
Navegaes, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 39-43, jan./jun. 2009
Bridi, M.V.
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certa orientao sexual vista, no ocidente ps-medieval,
como transgressora.
Mas Maria Teresa Horta, em Os anjos (1983) e em
Minha me meu amor (1986), passa a escrever sobre o
corpo, tomando-o como suporte fsico dos poemas, no
sentido em que um pintor toma a madeira ou a tela como
suporte de sua pintura. A imagem do corpo radicalizase definitivamente. Nos dois casos, o corpo feminino
aparece em desabrido dilogo com tradio antiqssima
(tradio essa, proverbial e ambiguamente, vedada
mulher, sobretudo no espao da cultura judico-crist): a
do culto ao corpo e ao amor fsico, encarnada pela Afrodite
Pandmia (em oposio Afrodite Urnia, advinda dos
Cus) e pelo mito do Andrgino.
A Afrodite Pandemia, na origem, j se opunha
Urnia por seu carter popular e, portanto, voltado ao plano
fsico da sexualidade, em detrimento da intelectualidade
que transferia dignidade a outra. Entretanto, ao submeter
o corpo ao prestgio que a reflexo intelectual lhe
empresta, como faz, por exemplo, Simone de Beauvoir
em O segundo sexo, ou a dinmica potica como ocorre
na poesia de Teresa Horta, o corpo transmigra de um lugar
sem valor (e dignidade) para um outro positivo que, em
ltima instncia, se aproxima do que a tradio havia
outorgado Afrodite Urnia. Da mesma forma, recorrer
ao Andrgino possibilita uma unidade utpica entre
o masculino e o feminino, bem como um trnsito (no
menos utpico) entre esses lugares e papis. No preciso
recordar a freqncia desse mito ou de outros anlogos
em vrias culturas e como tem sido apropriado pelas
cosmogonias, reflexes filosficas e criaes poticas
como metfora da origem.
As imagens do Anjo e da Me, que so, respectivamente, centrais em Os anjos e em Minha me meu
amor, correspondem ambas a aspectos dessa tradio, em
que tanto Afrodite como o Andrgino manifestam-se como
pura ambigidade. O corpo, esta instncia to reprimida
na cultura ocidental, aparece nomeado em plenitude na
construo das imagens poticas, como lugar de encontro
e silncio, sempre inteiramente dito, sem linguagem
decorosa, apesar dos interditos que o rondam.
Uma das epgrafes de Os anjos, citao de palavras
Charlotte Wolff, empresta inequvoco sentido prpria
obra como um todo que tem um dos eixos de construo
de suas imagens constitudo a partir do universo da androginia: A identidade de gnero de todo o ser humano uma
identidade fmea/macho ou macho/fmea ou, por outras
palavras, uma identidade andrgina. Tal iluminao
caminha ao lado e complexifica a figura do anjo que, para
alm de sua convencional assexualidade, no livro aparece
como a corporificao da identidade feminina quando a
perspectiva de quem olha positiva. No fragmento do
poema Anjos Mulheres VI, os versos dizem:
Navegaes, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 39-43, jan./jun. 2009
Bridi, M.V.
Somos os anjos
do destino
com a alma
pelo avesso
do tero
Voamos a lua
menstruadas
Os homens gritam
so as bruxas
As mulheres pensam
so os anjos
As crianas dizem
so as fadas
Fadas?
filigrana cintilante
de asas volteando
no fundo da vagina
(1983, p. 112-113)
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Diante da fora destas imagens poticas, reconhecemos a riqueza e a profundidade de ecos clssicos e
contemporneos em Maria Teresa Horta, que, como um
espelho a refletir o sol, faz incendiar uma potica nica
e iluminadora.
Referncias
HORTA, Maria Teresa . Minha me meu amor. Lisboa: Rolim,
1986.
HORTA, Maria Teresa. Os anjos. Lisboa: Litexa, 1983.
HORTA, Maria Teresa. Poesia completa 1967-1982. Lisboa:
Litexa, 1983. 2v.
LAPA, M. Rodrigues. Lices de literatura portuguesa. poca
Medieval. 6. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1966.
S-CARNEIRO, Mrio. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1995.
S DE MIRANDA, Francisco de. Obras completas. Lisboa:
S da Costa, 1942.