Sade em Piva - Clara Carnicero de Castro
Sade em Piva - Clara Carnicero de Castro
Sade em Piva - Clara Carnicero de Castro
13 a 17 de julho de 2008
USP So Paulo, Brasil
Sade em Piva
Doutoranda Clara Carnicero de Castro1 (USP)
Resumo:
No se criminoso por fazer a pintura das bizarras inclinaes que a natureza inspira, disse
Sade. Pelos muitos caminhos por onde meu corao me arrasta, no pode ser que eu no encontre uma verdade, disse Artaud, em palavras que Roberto Piva reproduziu em seu quarto. No
por acaso, portanto, que Sade figura reverenciada na obra de Piva. Sustentando a tese de que o
prazer tem um papel constituinte na estruturao do sujeito e de que no existe nenhuma grandeza
moral no mundo capaz de elevar-se acima da percepo sensvel, o marqus forneceu a Piva argumentos que autorizavam o exerccio pleno e irresponsvel da liberdade: contra as responsabilidades pelas sensaes, segundo o autor em Piazzas. Trata-se de avalizar o completo desregramento das sensaes. E tanto em Sade, como em Piva, exatamente a transgresso dos limites por
meio da experincia sensvel que possibilita a descoberta da unidade profunda do homem.
Palavras-chave: Piva, Roberto; Sade, Marqus de; literatura libertina; ertica literria; poesia brasileira contempornea.
Introduo
A idia de que o primado do desejo tem o papel de operador central no sujeito remonta tradio de pensamento que se inicia em Hobbes, passa por Malebranche, Locke, Condillac, Hevltius,
La Mettrie e culmina na literatura libertina francesa, atingindo seu extremo limite na obra do
Marqus de Sade. A hiptese mais especificamente sustentada por Sade a de que no existe nenhuma grandeza moral capaz de se elevar acima da massa indiferenciada das sensaes humanas e
que o acesso ilimitado ao mundo sensvel pode expor a unidade profunda do homem. Embora argumentada de modo indito, tal suposio, segundo Monzani, no foi criao do marqus. Foi, sim,
sua prpria articulao das premissas bsicas acerca dos fundamentos da vida passional desenvolvidas pelos filsofos citados anteriormente (MONZANI, 1995, p. 11-13).
Roberto Piva publicou seus escritos em trs grandes surtos: na primeira metade dos anos de
1960, na segunda dos 70 at a primeira dos 80 e no final dos 90 at o presente. Seus escritos foram
reorganizados por Alcir Pcora e publicados novamente em trs belos livros entre 2005 e 2008 pela
editora Globo. Por mais distante que sua obra esteja no tempo, no espao e na forma da tradio das teorias passionais referidas acima, ela parte das mesmas premissas. No entanto, desenvolvese, obviamente, de modo muito diverso. certo que a obra de Piva tem inmeras influncias e segue mltiplas correntes filosficas e literrias. Estud-la em todas as suas bases pode ser trabalho de
uma vida. Entretanto, a referncia e reverncia que o autor faz ao marqus no so arbitrrias e no
podem ser ignoradas. Por conseguinte, especula-se que a argumentao da onipotncia do desejo,
especificamente a da corrente sadiana, alm de ser uma destas, esteja, talvez, em meio s mais primrias e fundamentais.
Sendo assim, a inteno desta apresentao no fazer um estudo de todos os aspectos pertinentes para a anlise da literatura de Piva, mas apenas expor de que maneira as idias do marqus
dialogam com a obra do poeta.
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subverso da sociedade e da prpria realidade, de modo que j no pode ser entendida ou exercida
seno como fruto da violncia (PCORA, 2005, p. 11). Nesta introduo mesmo antes do encontro com os poemas do escritor e, neles, com as inmeras referncias e homenagens que o mesmo faz
ao divino marqus j possvel reconhecer os mltiplos traos comuns entre esses dois espritos
libertinos e libertrios.
O Postfcio de Piazzas, no qual o prprio poeta explica suas motivaes e intenes, um
grande exemplo do que foi dito:
As cavilosas maquinaes contra a Vida como conseqncia de um Eu Ideal (Deus,
Pai, Ditador) nos obrigando a renncias instintivas, nos transformando em conflituados neurticos sem possibilidades de Brecha alguma, reduzindo a vcio o nosso
espontneo interesse pelo sexo, o cristianismo como a escola do Suicdio do Corpo
revelou-se a grande Doena a ser extirpada do corao do Homem. (PIVA, 2005,
p.128-129).
Com efeito, na prosa sadiana, Deus, sociedade e at mesmo a natureza so entendidos como
absolutos pr-fabricados cujo valor o homem no pode reconhecer, pois, como uma mscara, escondem-no de si mesmo, produzindo uma idealizao quimrica da verdade. Conforme Annie Le Brun,
preciso revelar a realidade material de tudo aquilo que escondido por uma imaterialidade, ou
seja, fazer uma limpeza ideolgica capaz de reter as fantasias inculcadas no indivduo pela sociedade e religio (BRUN, 1982, p. 242). E somente atravs do imaginrio do excesso e de sua prtica
contnua e radical que o homem consegue livrar-se do crculo vicioso de falsas representaes, atingindo um maior esclarecimento da realidade individual e do mundo.
Assim, fcil constatar que em ambos os autores a total liberao se d apenas por meio da
experincia sensvel, que extirpa do corao do homem a grande doena no caso de Piva ou a
idealizao quimrica no caso de Sade. A idia do Eu Ideal (Deus, Pai e Ditador), em Piva, implica a figura da autoridade que impe a manuteno do poder por meio de falcias que objetivam o
amansamento do corpo e da mente, logo, a renncia dos instintos naturais: o Suicdio do Corpo, a
transformao dos homens em conflituados neurticos.
Para Sade, as leis so relativas, os legisladores inbeis e um sistema que s pune, ineficaz.
Leis criadas para todos nunca podero satisfazer as necessidades de um indivduo em particular. Entre o pacto social que restringe o desejo e o estado de guerra que restringe a segurana, o libertino
sadiano opta sempre pelo ltimo, preferindo o risco e o direito ilimitado ao gozo. Prefere um modo
de vida que chega nas franjas do anarquismo, se que no est nele (MONZANI, 1995, p.111), e
possibilita a plena satisfao do desejo. Igualmente, no Manifesto da selva mais prxima, Piva prope um modo de vida alternativo, catico e anrquico, livre dos sistemas repressores:
do Caos, da Anarquia social que nasce a luz enlouquecedora da Poesia / Criar novas religies, novas formas fsicas, novos anti-sistemas polticos, novas formas de
vida / Ir deriva no rio da Existncia. (PIVA, 2006, p.149).
E, no Poema Porrada, deixa claro que, assim como os libertinos sadianos, no pagar o preo
pela paz, no se juntar massa frgil :
Eu estou farto de muita coisa / no me transformarei em subrbio / no serei uma
vlvula sonora / no serei paz / eu quero a destruio de tudo que frgil: / cristos
fbricas palcios / juzes patres e operrios. (PIVA, 2005, p.66).
O resultado, portanto, dessa revolta contra o pacto social a recusa do interesse coletivo a favor do particular. E, nesse aspecto, os autores caminham juntos, pois compartilham a urgncia no
ato de elevar-se acima da classe dominante repressora que apaga o interesse individual em prol da
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utilidade pblica. Se todas as virtudes so definidas pela utilidade pblica, logicamente o vcio
que define o interesse individual. E se este anormal sociedade, pois no se adapta a ela, no h
como evitar: ao buscar a plena satisfao pessoal, o homem sempre ser criminoso. A arte, assim,
no apenas forma de expresso, mas o meio e a mensagem de libertao do indivduo da priso
formada pelas representaes fantasiosas que o escravizam:
O objetivo de toda Poesia & de toda Obra de Arte foi sempre uma mensagem de
Libertao Total dos Seres Humanos escravizados pelo masoquismo moral dos
Preconceitos, dos Tabus, das Leis a servio de uma classe dominante cuja obedincia leva-nos preguiosamente a conceber a Sociedade como uma Mquina que decide quem normal & quem anormal. Para a Sociedade Utilitarista do nosso tempo, a prova mxima de normalidade a adaptao do indivduo famlia & comunidade. Numa sociedade assim estruturada, todas as virtudes, digo Todas, esto
a servio do Princpio da Utilidade. (Piva, 2005, p.130).
Mostra tambm, no Manifesto utpico-ecolgico em defesa da poesia & do delrio, como a civilizao, dissimuladamente, destri o homem, destituindo-o de seu ncleo biolgico e espao vital.
Aqui, a renncia ao imperativo categrico dos sentidos provoca mal-estar fsico e psicolgico e impossibilita o homem a pensar por si mesmo. Ocupado em tempo integral pelo Estado, o sujeito
adestrado perde o acesso ao conhecimento:
Estamos sendo destrudos em nosso ncleo biolgico, / nosso espao vital & dos
animais est reduzido a / propores nfimas / quero dizer que o torniquete da civilizao est / provocando dor no corpo & baba histrica / o delrio foi afastado da
Teoria do conhecimento. (PIVA, 2006, p.143).
O Estado mantm as pessoas ocupadas o tempo integral / para que elas NO pensem eroticamente, poeticamente, libertariamente. (PIVA, 2006, p. 145).
Em Sade, a personagem do livro Infortnios da virtude, Justine, exemplifica o ato descrito por
Piva de no pensar eroticamente, poeticamente, libertariamente: iludida por preconceitos, cega diante da verdade, a herona prova, numa srie de infortnios, a deteriorao das idias e, conseqentemente, a deteriorao do corpo. A excessiva realizao da experincia sensvel condio da existncia do libertino sadiano. Aquele, pois, que no consegue sobrepor-se ao imaginrio infestado de
fantasias e preconceitos, que incapaz de transferir as idias para o campo ertico e o erotismo para
o campo da idias, est fadado destruio ou, menos radical, como escreve o poeta, a ter dor no
corpo & baba histrica, a ser um conflituado neurtico.
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Em Sade, crimes e vcios passam a ser trocas de energia e exemplos da autonomia do indivduo. O remorso torna-se um sentimento intil, prprio dos fracos, produzido por uma conscincia
quimrica e preconceituosa. Representa apenas o medo de agir contra o que socialmente proibido.
Assumi-lo, seria privar-se do prazer sensvel e renegar os instintos naturais. A nica lei permitida
fazer aquilo que agrada e jamais recusar nada ao imperativo do desejo:
No hesitemos, portanto, entre dois modos, do qual um, a virtude, conduz somente
inao mais estpida e montona, e o outro, o vcio, a tudo que o homem pode
esperar de mais delicioso sobre a terra. (SADE, p. 201, 1978).
Tais idias so possivelmente compartilhadas por Piva, como se v em Ode a Fernando Pessoa:
Resumirei para Ti a minha histria: / Venho aos trambolhes pelos sculos, / Encarno os fora-da-lei e todos os desajustados, / No existe um gngster juvenil preso
por roubo e nenhum louco sexual que eu no acompanhe para ser julgado ou condenado; / Desconheo exame de conscincia, nunca tive remorsos, sou como um
lobo dissonante nas lonjuras de Deus. (PIVA, 2005, p.24).
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Sem esquecer as diferenas, o tema da violncia, nos dois os escritores, pode ser entendido
como um desenvolvimento do mote transgressivo, ou seja, da tentativa de radicalizao pela exausto das possibilidades do excesso. E, tambm, como o nico meio de sobrevivncia dentro do estado de guerra. Antes praticar e lidar com a violncia individual que resignar-se ao domnio do Estado: Fazemos uma afirmao de que os atos individuais de violncia so sempre preferidos violncia coletiva do Estado (PIVA, 2005, p. 131). Nos dois sentidos, Piva anda juntinho de Sade:
as nuvens caoavam os bigodes enquanto masturbavas colrico sobre o / cadver
ainda quente de tua filha menor. (PIVA, 2005, p.48).
Onde procurar / o sangue que se / ALONGA / pelo / solo / ssssssspleesinergia / canhes lascivos / gemido / de / garoto / ferido. (PIVA, 2006, p 40).
vou moer teu crebro. vou retalhar tuas / coxas imberbes & brancas. / vou dilapidar
a riqueza de tua / adolescncia. vou queimar teus / olhos com ferro em brasa. / vou
incinerar teu corao de carne & / de tuas cinzas vou fabricar a / substncia enlouquecida das / cartas de amor. (PIVA, 2006, p. 109).
Suas coxas se retesam / & voc chora um pouco / venha, lamba minha mo & / se
prepare para um milho / de comas loucas loucas. (PIVA, 2006, p. 38).
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A variedade das paixes tem como objetivo prolongar ao mximo a liberdade libertina. Sem
riscos, longe do pacto social, mas na autonomia de si, o devasso pode consumir tudo o que lhe
aprouver.
Segundo Claudio Willer, tambm encontramos, na potica de Piva, o imprio da diversidade, onde tudo permitido, regido pela erotizao da erudio (WILLER, p. 163-165, 2005). Assim
como em Sade, no imprio da diversidade de Piva, v-se o esforo em explorar a variedade qualitativa e o excesso quantitativo das paixes. Primeiramente, de forma mais tnue, como no convite ao
banquete de vinho e pizza:
Agora, vem comigo ao Bar, e beberemos de tudo nunca passando pelo caixa, / Vamos ao Brs beber vinho e comer pizza no Lucas, para depois vomitarmos / tudo
em cima da ponte. (PIVA, 2005, p.23).
E, de forma mais intensa, juntam-se, na imagem potica, sangue, smen, dejetos e cadveres:
Meu impulso de conquistar a Terra violentamente descendo uma rua gasta / (...) / o
sangue fermenta debaixo das tbuas / (...) / onde est tua alma sempre que o velho
Anjo conquista as rvores com seu smen? / (...) / colunas de vmitos vacilam pelos olhos dos loucos / corpos de bebs mortos apontam na direo de uma praa vazia / (...) no ar no vento nas poas as bocas apodrecem enquanto a noite / solua no
alto de uma ponte. (PIVA, 2005, p. 59).
No limite, vemos em Osso e liberdade a descrio de Oscar Amsterdam, um libertino pivaniado altura dos de Sade. A personagem tem prazeres requintados: gosta de ser sodomizado por
mulheres munidas de falos de borracha, alimenta-se com carne de tatu, coleciona amantes para envenen-los aps ter-se saciado sexualmente, jogando-os no rio Tiet para, em seguida, jantar frango
com polenta, bebendo cerveja e declamando poemas de Lorenzo de Mdici:
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Ona Humana quis saber se Plen conhecia um garoto meio / pirado chamado Oscar Amsterdam que tinha vcios / requintados & que gostava de ser comido por
mulheres / aparelhadas com falos de borracha & que gostava de se / banquetear
com carne de tatu assado no restaurante / Sujinho aos sbados & colecionar amantes revisionistas para envenen-los (influncia dos personagens de O prncipe) & /
jog-los no rio Tiet depois de ter saciado feito uma / Messalina adolescente seu
apetite sexual louco & ter a cara / dura de ir jantar frango com polenta & declamar
poemas / de Lorenzo de Mdici bebendo cerveja ... (PIVA, 2006, p. 61).
Nesse sentido, Piva deve incomodar tanto quanto Sade, pois tambm faz questo de operar
acima das odiosas convenes sociais e das opinies pblicas. Desagradar uma infeliz conseqncia, mas o caminho da transgresso tem objetivos maiores e mais importantes, como a iluminao, a conquista do conhecimento, a descoberta:
Numa noite em que Johnny Alf dava canja no Cambridge, noite de desejar morrer,
esquecer tudo, que testemunha a confuso a loucura de minha mente com um Amor
to sujeito decomposio, querendo fazer-me compreender & gritar to desolado
de maneira a desatinar novamente todas as criaturas, esta mesma noite, tremendo
como uma verdadeiro anjo estragado pela INTERRUPO CRIADORA, no instante em que dvidas, dvidas no me obrigavam a renunciar ao prazer do passado
integrando a Dor Esfarrapada do Mundo no ansioso reconhecimento da Realidade,
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eu desejei enfocar de uma maneira muito independente, minha & seguir adiante,
desejando viver, buscando vida sempre. (PIVA, 2005, p.128).
Concluso
Pretendeu-se, nesta apresentao, analisar as relaes entre a prosa do Marqus de Sade e a
potica de Roberto Piva. A inteno, em nenhum momento, foi exaurir o assunto, que amplo demais para uma curta comunicao. Porm, as anlises aqui feitas mostram que o dilogo entre os
autores, apesar de to distantes na histria, na geografia e nos gneros praticados, por demais pertinente e fornece boa base para a compreenso da obra de Piva, to complexa e ainda pouco estudada. Salienta-se, tambm, que no a filosofia sadiana que entregar a chave de seus escritos, mas
que aquela, como foi visto, elucida pontos cruciais destes. Bem, esto lanadas as sementes para futuros estudos das relaes entre os dois autores.
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