BENEDETTI. Primavera Num Espelho Partido Mario Benedetti
BENEDETTI. Primavera Num Espelho Partido Mario Benedetti
BENEDETTI. Primavera Num Espelho Partido Mario Benedetti
Crditos
Mario Benedetti
c/o Guillermo Schavelzon & Asoc. Agencia Literaria
[email protected]
Todos os direitos desta edio reservados
Editora Objetiva Ltda.
Rua Cosme Velho, 103
Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090
Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825
www.objetiva.com.br
Ttulo original
Primavera con una esquina rota
Capa
Andrea Vilela de Almeida
Imagem de capa
Arthur Tress / Photonica / Getty Images
Preparao de texto
Elisabeth Xavier de Arajo
Reviso
Tamara Sender
Lucas Bandeira de Melo
Ana Kronemberger
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CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B398p
Benedetti, Mario
Primavera num espelho partido [recurso eletrnico] / Mario Benedetti ; traduo Eliana
Aguiar. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2011.
recurso digital
Traduo de: Primavera com una esquina rota
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
176p. ISBN 978-85-7962-104-8 (recurso eletrnico)
1. Romance uruguaio. 2. Livros eletrnicos. I. Aguiar, Eliana. II. Ttulo.
11-5370. CDD: 868.993953
CDU: 821.134.2(899)-3
Sumrio
Capa
Folha de Rosto
Crditos
Dedicatria
Intramuros (Esta noite estou s)
Feridos e contundidos (Fatos polticos)
Dom Rafael (Derrota e rota)
Exlios (Cavalo verde)
Beatriz (As estaes)
Intramuros (Como andam seus fantasmas?)
O outro (nica testemunha)
Exlios (Convite cordial)
Feridos e contundidos (Uma ou duas paisagens)
Dom Rafael (Uma culpa estranha)
Intramuros (O rio)
Beatriz (Os arranha-cus)
Exlios (Vinha da Austrlia)
O outro (Querer, poder etc.)
Dom Rafael (Com a ajuda de Deus)
Feridos e contundidos (Um medo terrvel)
Intramuros (O complementar)
Exlios (Um homem num saguo)
Beatriz (Este pas)
Feridos e contundidos (Sonhar acordada)
Dom Rafael (Loucos lindos e feios)
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Dedicatria
memria de meu pai (1897-1971)
que foi qumico e boa gente.
Esta noite estou s. Meu companheiro (algum dia voc saber seu nome)
est na enfermaria. boa gente, mas de vez em quando no to mau
ficar sozinho. Posso refletir melhor. No preciso armar um biombo para
pensar em voc. Voc vai dizer que quatro anos, cinco meses e catorze
dias tempo demais para se pensar. E tem razo. Mas no tempo demais
para pensar em voc. Aproveito para escrever porque h lua. E a lua
sempre me tranquiliza, como um blsamo. Alm do mais, ilumina,
mesmo que precariamente, o papel, e isso tem l a sua importncia
porque no temos luz eltrica a essa hora. Nos dois primeiros anos no
havia nem mesmo a lua, de modo que no me queixo. Sempre tem algum que est pior, como conclua Esopo. E at pior do que o pior, concluo eu.
curioso. Quando algum est fora e imagina que, por uma
razo ou outra, poderia passar vrios anos entre quatro paredes, pensa
que no conseguiria aguentar, que seria simplesmente insuportvel. No
entanto, suportvel, como pode ver. Eu, pelo menos, suportei. No nego que passei por momentos de desespero, alm daqueles em que o
desespero inclui sofrimento fsico. Mas agora estou me referindo ao
desespero puro, quando se comea a calcular, e o resultado esta jornada
de clausura multiplicada por mil dias. Apesar de tudo, o corpo mais adaptvel do que o esprito. O corpo o primeiro a se acostumar aos novos
horrios, a suas novas posturas, ao novo ritmo de suas necessidades, a
seus novos cansaos, a seus novos descansos, a seu novo fazer e a seu
novo no fazer. Se tem um companheiro, voc pode, inicialmente,
consider-lo um intruso. Mas pouco a pouco vai se transformando em
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Voc sempre briga com Lucila. Deve ser uma forma que vocs tm de se gostar. Porque so amigas, no ?
Somos.
E ento?
Das outras vezes brigamos quase como um jogo, mas ontem
foi srio.
Ah sim.
Falou de papai.
Graciela tira os culos outra vez. Agora demonstra interesse.
Bebe a limonada de um s gole.
Disse que se o papai est preso porque deve ser um
delinquente.
E voc, o que respondeu?
Disse que no. Que um preso poltico. Mas depois pensei
que no sabia bem o que era isso. Ouo sempre, mas no sei bem o que
.
E foi por isso que brigou?
Por isso e tambm porque me disse que em casa o pai dela
diz que os exilados polticos vm para c e tiram o trabalho das pessoas
do pas.
E o que respondeu?
Bem, no sabia o que dizer e ento dei um tapa nela.
Assim o pai dela vai poder dizer tambm que os filhos dos
exilados agridem sua filha.
Na verdade no foi um tapa, s um tapinha. Mas ela reagiu
como se tivesse machucado.
Graciela se abaixa para ajeitar a meia e tambm para ganhar uma
trgua ou refletir.
Bater nela no certo.
Imagino que no. Mas o que ia fazer?
Tambm verdade que o pai dela no deveria dizer essas
coisas. Ele, sobretudo, deveria nos compreender melhor.
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O essencial adaptar-se. J sei que com essa idade difcil. Quase impossvel. E contudo. Afinal de contas, meu exlio meu. Nem todos tm
um exlio prprio. A mim quiseram empurrar um alheio. Tentativa
intil. Transformei-o em meu. Como foi? Isso no importa. No um
segredo nem uma revelao. Eu diria que preciso comear apoderandose das ruas. Das esquinas. Do cu. Dos cafs. Do sol, e o que mais importante, da sombra. somente quando algum chega a perceber que
uma rua no lhe estrangeira que a rua para de v-lo como um estranho.
E assim com todo o resto. No princpio, andava com uma bengala,
como convm, talvez, a meus sessenta e sete anos. Mas no era coisa da
idade. Era uma consequncia do desalento. L, sempre fazia o mesmo
caminho ao voltar para casa. E aqui isso me fazia falta. As pessoas no
entendem esse tipo de nostalgia. Acreditam que a nostalgia s tem a ver
com cus e rvores e mulheres. No mximo, com militncia poltica. A
ptria, enfim. Mas eu sempre tive nostalgias mais cinzentas, mais opacas.
Essa, por exemplo. O caminho de volta para casa. Uma tranquilidade,
um sossego, saber o que vem depois de cada esquina, de cada sinal, de
cada banca de jornal. Aqui, em compensao, comecei a caminhar e me
surpreender. E a surpresa me fatigava. E ainda por cima, voc no chega
em casa, mas chega residncia. Cansado de surpreender-me, isso sim.
Talvez tenha sido por isso que recorri bengala. Para amenizar tantas
surpresas. Ou talvez para que os compatriotas que ia encontrando me
dissessem: Mas, dom Rafael, l o senhor no usava bengala, e eu
pudesse responder: Bem, vocs tambm no usavam palet. Surpresa
por surpresa. Um desses assombros foi uma loja com mscaras de cores
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um pouco abusivas, hipnotizantes. No conseguia me habituar s mscaras, embora sempre tenham sido as mesmas. Mas junto com a recorrncia das mscaras, repetia-se tambm o meu desejo, ou talvez minha
expectativa, de que as mscaras mudassem, e diariamente me assombrava
ao encontrar as mesmas. E ento a bengala me ajudava. Por qu? Para
qu? Bem, para apoiar-me quando essa modesta decepo me assaltava,
quer dizer, quando comprovava que as mscaras no haviam mudado. E
devo reconhecer que minha expectativa no era to absurda. Porque a
mscara no um rosto. um artifcio, no? Um rosto s muda por
acidente. Em sua estrutura, digo; no em sua expresso, que, essa sim,
varivel. Em compensao, uma mscara pode mudar por mil motivos.
Digamos: por ensaio, por experimentao, por ajuste, por melhoria, por
deteriorao, por substituio. S depois de trs meses compreendi que
no podia esperar nada das mscaras. No iam mudar, aquelas insistentes, aquelas turronas. E comecei a fixar-me nos rostos. E afinal, foi
uma boa troca. Os rostos no se repetiam. Vinham para mim, e deixei a
bengala. J no precisava mais me apoiar para suportar o espanto. Talvez
um rosto no mude com os dias, mas com os anos; no entanto, os que
vinham a mim (com exceo de uma mendiga ossuda e tmida) eram
sempre novos. E com eles vinham todas as classes sociais, em carros impressionantes, em carrinhos modestos, em nibus, em cadeiras de rodas
ou simplesmente caminhando. Parei de sentir falta do caminho, montevideano e conhecido, da volta a casa. Na nova cidade havia novas rotas.
De rota vem derrota, j sei. Nossa derrota pode no ser total, mas
derrota. J tinha entendido, mas pude confirm-lo totalmente quando
dei minha primeira aula. O aluno ps-se de p e pediu permisso para
perguntar. E perguntou: Mestre, por que razo seu pas, uma democracia liberal estabelecida, passou to rpido a ser uma ditadura militar?
Pedi que no me chamasse de mestre. No nosso costume. Mas pedi
isso apenas para poder organizar a resposta. Repeti o consabido: que o
processo comeou muito antes, no na calma, mas no subsolo da calma.
E fui anotando na lousa as vrias rubricas, os perodos, as caracterizaes,
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No se atrevia a ordenar que o cavalo trotasse ou galopasse, porque a instruo do mdico era de que as pupilas no se movimentassem, e no tinha
muita certeza, em sua recente descoberta, se a pupila enclausurada sentiria
ou no a tentao de seguir o galope do cavalo verde. Mas em troca tomava
todas as liberdades ao conceber quadros imveis. Digamos: trs meninos (dois
louros e um pretinho, como na publicidade dos grandes monoplios norteamericanos), o primeiro com skate, o segundo com um gato e o terceiro
jogando com um bilboqu. Ou ainda, por que no?, uma moa nua, cujas
medidas pode escolher cuidadosamente antes de concretizar a imagem.
Ou uma ampla panormica de uma praia montevideana, com uma rea de
barracas de cores muito vivas e outra, em compensao, quase deserta, com
um velho, barbudo, de short, acompanhado de um co que contempla o dono
em estado de rgida lealdade.
Ento o telefone tocou e foi muito fcil esticar a mo. Era uma boa
amiga que, claro, sabia da operao, mas que no perguntou como estava
nem se tudo tinha corrido bem. Tambm sabia que o apartamento de Las
Heras e Pueyrredn no dava para a rua, exceto por uma janelinha do banheiro de onde se viam trs ou quatro metros da praa. No entanto, disse:
Estou ligando s para voc se debruar na varanda e ver que lindo desfile
militar, bem em frente sua casa. E desligou. Ento ele disse mulher que
olhasse pela janelinha do banheiro. O previsvel: uma blitz.
Temos que queimar algumas coisas, disse ele, e imaginou o olhar
preocupado de sua mulher. Apesar da urgncia, tratou de tranquiliz-la um
pouco: No tem nada de clandestino, mas se entram aqui e encontram
coisas que podem ser compradas em qualquer quiosque, como os relatos de
Che ou a Segunda Declarao de Havana (no digo Fanon ou Gramsci ou
Lukcs, pois no sabem quem so), ou alguns nmeros da revista Militncia
ou do jornal Notcias, isso basta para nos trazer problemas.
Ela foi queimando livros e jornais, dando olhadas espordicas ao
pedacinho de praa. Teve que abrir outras janelas (as que davam para o
jardim dos fundos, que separava os dois blocos) para que sassem a fumaa e
o cheiro de queimado. E assim foi durante vinte minutos. Ele tratava
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de orient-la: Olhe, na segunda estante, o quarto e o quinto livros esquerda, Esttica e marxismo, em dois tomos. Viu? timo, na estante de
baixo esto Relatos da guerra revolucionria e O Estado e a Revoluo.
Ela perguntou se devia queimar tambm O cinema socialista e
Marx e Picasso. Ele disse que queimasse primeiro os outros. Esses eram mais
fceis de explicar. No jogue as cinzas na lixeira. Use a descarga. A fumaa o fez tossir um pouco. Ser que no vai fazer mal a seus olhos? Pode
ser, mas temos que escolher o mal menor. Alm do mais, creio que no. Esto
bem tapados.
O telefone voltou a tocar. A amiga de novo: E ento? Gostou do
desfile? Pena que terminou to rpido, no ? Sim, disse ele respirando
fundo, foi magnfico. Que disciplina, que cor, que elegncia. Os desfiles de
soldadinhos me fascinavam desde quando era um moleque. Obrigado por
avisar.
Bom, no precisa queimar mais. Ao menos por hoje. J se foram.
Ela tambm respirou, recolheu com a p as ltimas cinzas, jogou na
privada, deu a descarga, verificou se tinham sido levadas pela gua, lavou as
mos e veio sentar-se, j relaxada, ao lado da cama. Ele conseguiu pegar sua
mo. Amanh queimamos o resto, disse ela, mas com calma. Tenho
pena. So textos dos quais preciso, s vezes.
Tratou ento de pensar no cavalo verde sob a chuva. Mas sem saber
bem por que, o cavalo agora era preto retinto e montado por um robusto cavaleiro que usava quepe mas no tinha rosto. Pelo menos ele no conseguia
distingui-lo na parede interior de suas plpebras.
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embebeda, de acordo com sua prpria exigncia ou humores ou necessidades ou bodes ou descaramento e no de acordo com a rigidez dos
imaculados ou a presso do puritanismo. Que maravilha o puritanismo,
pensa Rolando Asuero fazendo uma careta. E se detm com deleite no
exemplo ao norte do rio Bravo. Que maravilha. Campanha moralista
contra o martni ou o bourbon de cada crepsculo, mas em prol do napalm de cada aurora.
Ah, se pudesse jogar no imperialismo a culpa por essas olheiras.
Mas no. nica testemunha a luz do lampio.3 No precisa de terapia
coletiva ou individual. foda o exlio, no? At o pobre analista passou
maus bocados. L, negou-se a entregar as fichas de seus pacientes subversivos e menos ainda as dos subversivos impacientes. E claro, passou
maus bocados. A cana tem sua prpria terapia, no admite competidores. nica testemunha. Silvio morto, Manolo em Gotemburgo,
Santiago na Penal. E Mara del Carmen, viva da represso, vendendo
bugigangas. E Tita, separada de Manolo, juntada agora com um garoto
muito srio (vou me amigar com o Sardina Estvez, escreveu um ano
antes), nada menos que em Lisboa. E Graciela aqui, desajustada e linda,
com a Beatricita de Santiago e trabalhando como secretria. E ele? Puta,
que olheiras.
A gente deste bendito e maldito pas realmente simptica. Ele,
para que neg-lo, gosta desses sorridentes, sobretudo delas. Mas h dias e
noites em que sente falta do subentendido. Dias e noites em que tem
que explicar tudo e escutar tudo. Uma das pequenas vantagens de fazer
amor com uma compatriota que, num instante dado (essa hora zero
que sempre soa depois das urgncias, do entusiasmo e do vaivm),
quando no se est para muita conversa, pode se dizer ou ouvir um
lacnico monosslabo e essa palavrinha se enche de subentendidos, de
significados implcitos, de imagens em comum, de passados compartilhados e sabe-se l mais o qu. No h nada que explicar nem que lhe expliquem. No necessrio se lamuriar. As mos podem ir sozinhas, sem
palavras, as mos podem ser eloquentssimas. Os monosslabos tambm,
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referido contrato estava atualmente no Ministrio do Trabalho e que o Ministrio das Relaes Exteriores, em seus mais altos escales, tinha conhecimento desses trmites. O inspetor ficou um pouco desconcertado com o alto
escalo, mas ento outro funcionrio, certamente superior hierarquicamente,
disse de outra mesa e em voz alta: No lhe coloque mais objees! Ele vai
continuar a destru-las com raciocnios vlidos. Tem que ir direto ao ponto.
E dirigindo-se a mim: O governo peruano quer que saia do pas! Minha
pergunta lgica: Pode-se saber por qu? No, nem ns sabemos a razo. O
ministro envia a ordem e ns a cumprimos. Quanto tempo tenho? Se for
possvel, dez minutos. Como no vai ser possvel, pois no tem como ir embora to rpido, direi que ir na primeira oportunidade em que isso for possvel: uma, duas horas. Posso escolher para onde vou? Para onde gostaria
de ir? Considere que no vamos pagar sua passagem. Como fui ameaado
de morte na Argentina pela AAA, a Aliana Anticomunista Argentina, e
como j trabalhei em Cuba por dois anos e meio, em outras pocas, e ainda
tenho possibilidades de trabalho, quero saber se tenho permisso para ir para
Cuba. No. No temos voos para Cuba e o senhor tem que partir o mais
rpido possvel. Bem, ento me diga quais so as minhas opes reais.
So as seguintes: ou o deixamos na fronteira com o Equador por via terrestre ou usa a sua passagem area de volta para Buenos Aires.
Pensei rapidamente e no me seduziu a ideia de um caminho militar me deixando, no meio da madrugada, na fronteira de um pas que eu
no conhecia na poca, de modo que disse: Buenos Aires. Nunca estive no
Equador. Tive que assinar um documento no qual me perguntavam como
recebia meus rendimentos no Expresso. Disse que recebia na Caixa e reiterei
a existncia do contrato, do trmite no Ministrio do Trabalho etc.
Voltamos ao apartamento. No incio, deram-me 15 minutos, depois
uma hora, e, medida que faziam ligaes telefnicas e no conseguiam
lugar em nenhum voo para Buenos Aires, fui ganhando mais tempo. No entanto, s me permitiram levar uma mala, de modo que tive que deixar muita
coisa para trs.
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O inspetor me disse ento (a essa altura dos acontecimentos, j estavam me tratando melhor) que meu caso no era de expulso nem de deportao e que, portanto, no colocariam em meu passaporte o carimbo deportado. Para a deportao explicou necessrio um decreto supremo,
o que no tinha ocorrido em meu caso. Por isso, era apenas um convite cordial para que fosse embora imediatamente. Perguntei o que aconteceria se
no aceitasse o convite. Ah, teria que ir do mesmo jeito. Disse-lhe que,
nesses casos, costumamos dizer em meu pas: Estou cagando para a
diferena.
Pedi que me deixassem ligar para algum em Lima. No permitiram. Estava incomunicvel. Em troca, consentiram que fizesse ligaes
internacionais. Portanto, telefonei para meu irmo em Montevidu para que
dissesse a minha mulher que fosse se encontrar comigo em Buenos Aires. Tentei ligar tambm para duas ou trs pessoas em Buenos Aires, mas no consegui completar a ligao. Minha preocupao era conseguir que algum me
esperasse em Ezeiza. Pedi que pelo menos me deixassem falar com a dona do
apartamento. Disseram que podia ligar, desde que informasse que tinha
resolvido ir embora do Peru imediatamente e que, portanto, deixaria o
apartamento. Disse que uma ligao desse tipo no se faz e que ela sempre
teve comigo um comportamento muito correto. Sugeri que eles ligassem. Disseram que no.
Ao cabo de alguns minutos o inspetor perguntou que condies eu
colocava para falar com a proprietria. Disse que falaria com ela se pudesse
dizer que estavam me expulsando. Finalmente, aceitou. Liguei, ento, para
a mulher, s trs da manh. A pobre quase desmaiou. Ai, senhor, fazer isso
com um cavalheiro como o senhor! Expliquei que deixaria uma lista das
coisas que ficavam no apartamento e que eram minhas, e que mais tarde
mandaria alguma indicao sobre o destino das mesmas.
A essa altura, os sujeitos j estavam to suaves que me pediram um
pster com uma de minhas canes, que estava na parede, e um outro pediu
que lhe desse um de meus livros. No acha que vai compromet-lo?, perguntei. Esperemos que no, disse sem muita convico.
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Como a essa altura da noite fazia muito frio, dois dos homens
(eram quatro no total) pediram permisso ao chefe para buscar agasalhos.
Ele concordou. Continuei arrumando minha mala sob o olhar vigilante de
meus guardas. De repente, notei que ambos tinham adormecido. Roncavam
to pacificamente que tirei os sapatos para que meus passos no carpete no
perturbassem seu sono. Tive uma hora e meia para arrumar melhor a mala,
e o cano do incinerador de lixo tambm teve bastante trabalho.
Ao cabo dessa hora e meia, calcei novamente os sapatos e sacudi discretamente o inspetor: Desculpe acord-lo, mas se sou to subversivo que resolveram me expulsar do pas, por favor no durmam e tratem de me vigiar. O inspetor explicou que estavam trabalhando desde cedo e estavam
muito cansados. Disse que compreendia, mas que a culpa no era minha.
s quatro e meia samos os cinco (os outros dois tinham voltado com
seus agasalhos) num carro grande e preto. Passamos pelo apartamento da
proprietria. Entregaram-lhe as chaves e o inventrio. Essa viagem foi meu
nico motivo real de preocupao, j que me levaram por um caminho que
no era o habitual. Totalmente escuro, entre terrenos baldios, iluminado
apenas pelos faris do carro. Demoramos muito mais do que normalmente.
Quando reconheci de longe a torre do aeroporto, confesso que respirei um
pouco melhor. J no aeroporto, s pude embarcar no voo das 9 a.m. de
sbado. Felizmente era a Aeroper. No conseguiram um lugar para mim
no voo das 8, que era da LAN.
No recebi, em momento algum, qualquer coisa para comer ou beber. Fiquei vinte e quatro horas sem tocar em comida. Acredito que isso se
devia simplesmente ao fato de eles no terem dinheiro, pois tambm no
comeram nada. Quando o inspetor me entregou os documentos junto da escada do avio, disse: O senhor certamente vai partir ressentido com o governo, mas no guarde ressentimentos dos peruanos. E apertou minha mo.
4 Polica de Investigaciones del Per. (N. do E.)
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Intramuros (O rio)
Venho do rio. Acha que estou um pouco louco? Nem muito nem pouco.
Se no enlouqueci em outras circunstncias, creio que a essa altura j estou vacinado contra a loucura. E no entanto, venho do rio. H algumas
semanas descobri o sistema. Antes, as recordaes assaltavam-me sem ordem. De repente, estava pensando em voc ou em Beatriz ou no Velho,
e dois segundos depois num livro que li na poca do ginsio, e quase
imediatamente em algumas das sobremesas que a Velha me fazia,
quando vivamos na rua Hocquart. Ou seja, as recordaes me dominavam. E uma tarde pensei: vou pelo menos libertar-me desse domnio. E
a partir de ento sou eu quem dirige minhas lembranas. Parcialmente,
claro. Sempre h certos momentos do dia (geralmente quando o desnimo me invade ou me sinto fodido) em que as recordaes ainda me
pegam desprevenido. Mas no o habitual. O normal agora que eu
planeje a memria, isto , que decida o que vou recordar. E assim decido
recordar, por exemplo, uma noite de farra com amigos, ou alguma das
interminveis discusses na Federao dos Estudantes Universitrios
Uruguaios ou os vaivns (at onde isso pode efetivamente ser recordado)
de alguma de minhas poucas bebedeiras, ou um dilogo profundo com o
Velho, ou a manh em que Beatriz nasceu. claro que vou alternando
tudo isso com as recordaes que se referem a voc, mas resolvi botar ordem nelas tambm. Porque se no boto ordem, todas as suas imagens se
concentram em seu corpo, em mim e voc fazendo amor. E isso nem
sempre me faz bem. Passa a ser uma constncia dolorosa de sua ausncia.
Ou de minha ausncia. Primeiro gozo angustiosa e mentalmente. Desfruto no vazio. Em seguida fico deprimido. De maneira que, quando
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digo que tive que botar ordem nesse campo tambm, quero dizer que
decidi incorporar outras recordaes que lhe (e me) concernem e que so
to decisivas e valiosas como as noites de nossos corpos. Tivemos muitas
conversas que, pelo menos para mim, so inesquecveis. Lembra do
sbado em que a convenci (depois de cinco dialticas horas) dos novos
rumos? E quando estivemos em Mendoza? E em Assuno? No importa
a ordem das datas. Importa a ordem que imponho a minhas invocaes.
Por isso comecei dizendo que hoje venho do rio. E uma recordao em
que voc no est. O rio Negro, perto de Mercedes. Quando tinha doze
ou treze anos, ia passar as frias de vero na casa de uns tios. A propriedade no era muito grande (na realidade, um sitiozinho), mas
chegava at o rio. E como havia entre a casa e o rio muitas e frondosas
rvores, quando estava na margem ningum podia me ver da casa. E
aquela solido me agradava. Foi uma das poucas vezes em que ouvi, vi,
cheirei, apalpei e saboreei a natureza. Os pssaros se aproximavam e no
se assustavam com minha presena. Talvez me confundissem com uma
arvorezinha ou uma moita. Em geral o vento era suave e talvez por isso
as grandes rvores no discutiam, mas simplesmente trocavam
comentrios, cabeceavam com bom humor, faziam-me sinais de cumplicidade. s vezes, apoiava-me em algumas das mais velhas e a cortia
rugosa me transmitia uma compreenso quase paternal. Alisar a cortia
de uma rvore experimentada como acariciar a crina de um cavalo que
se monta diariamente. Estabelece-se uma comunicao muito sbria
(no melosa, como pode ser a relao com um co insuportavelmente
fiel), mas bastante intensa para se sentir falta dela quando se volta agitao da cidade. Em outras ocasies entrava no bote e remava at o meio
do rio. A equidistncia das duas margens era particularmente estimulante. Sobretudo porque eram distintas e polemizavam. Nem tanto os
pssaros, que as compartilhavam, mas antes as rvores, que se sentiam locais e um pouco sectrias, cada uma na sua, ou seja, na sua ribeira. Eu
no fazia nada. Simplesmente olhava. No lia nem brincava. A vida passava sobre mim, de margem a margem. E eu me sentia parte dessa vida e
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No singular se escreve rascacielos e no plural tambm se escreve rascacielos. O mesmo acontece com escarbadientes.5 Os arranha-cus so edifcios com muitssimos banheiros. Isso tem a enorme vantagem de que
milhares de pessoas podem fazer xixi ao mesmo tempo. Os arranha-cus
tm elevadores que balanam. Os elevadores com balano so muito
modernos. Os edifcios velhssimos no tm elevadores ou s tm elevadores sem balano e as pessoas que vivem ou trabalham neles morrem
de vergonha porque so muito atrasados.
Graciela, ou seja minha me, trabalha num arranha-cu. Uma
vez me levou a seu escritrio e foi a nica vez em que fiz xixi num
arranha-cu. brbaro. O arranha-cu de Graciela tem um elevador
com balano totalmente importado e por isso meu estmago fica muito
embrulhado. Outro dia contei isso na minha sala e todas as crianas
morreram de inveja e queriam que as levasse ao elevador com balano do
arranha-cu de Graciela. Mas eu disse que era muito perigoso porque o
elevador sobe rapidssimo e se a pessoa bota a cabea na janelinha pode
ficar sem ela. E todos acreditaram, so uns bobos, imagine se os elevadores dos arranha-cus vo ser to atrasados para ter janelinha.
Quando acontece um apago nos elevadores de arranha-cus o
pnico grassa. Na minha sala, quando chega a hora do recreio a alegria
grassa. O verbo grassar um lindo verbo.
Alm de elevadores com balano, os arranha-cus tm porteiro.
Os porteiros so gordos e nunca poderiam subir uma escada. Quando os
porteiros emagrecem no podem continuar trabalhando nos arranhacus, mas tm a oportunidade de ser taxistas ou jogadores de futebol.
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Os arranha-cus se dividem em arranha-cus altos e arranhacus baixos. Os arranha-cus baixos tm muito menos banheiros do que
os arranha-cus altos. Os arranha-cus baixos tambm so chamados de
casas, mas proibido que tenham jardim. Os arranha-cus altos fazem
muita sombra, mas uma sombra diferente da das rvores. Gosto mais
da sombra das rvores, porque tem manchinhas de sol e alm do mais se
move. Na sombra dos arranha-cus grassam as caras srias e as pessoas
que pedem esmolas. Na sombra das rvores grassam gramados e
joaninhas.
Acho que onde meu pai est, na ltima hora da tarde deve grassar a tristeza. Gostaria muito que meu pai pudesse, por exemplo, visitar o
arranha-cu onde trabalha Graciela, ou seja minha me.
5 Rascacielos (arranha-cu) , assim como escarbadientes (palito), um substantivo de dois
nmeros em espanhol. (N. da T.)
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durante dois anos para me dar o gosto de uma semana em Cuba. E o que
achou de l? No aspecto econmico, bem. Mas nada de mais. Por outro
lado, voc sabe (posso cham-lo de voc, no?), a imigrao para a Austrlia
no foi precisamente poltica, mas sim econmica, mesmo que diga que isso
significa que indiretamente poltica. Seria correto, mas em geral os
imigrantes econmicos no tm conscincia dessa relao. Nesse sentido, um
exlio bastante ingrato, muito diferente de outros lugares. s vezes h uma
trgua, como quando Los Olimareos se apresentaram por l e, apesar dos
pesares, as pessoas foram ouvi-los porque os temas da terrinha continuam a
comov-las. E no somente os temas. Tambm os nomes de rvores, flores,
montes, figuras histricas, ruas, cidadezinhas, referncias ao cu, aos crepsculos, aos rios, a qualquer riachinho dos cafunds. Mas os Olima vo embora e voltamos todos a nossa rotina, a nosso isolamento. Costumo dizer que
na Austrlia ns somos o Arquiplago Uruguaio, porque na realidade constitumos um conjunto de ilhas, ilhotas, de sujeitos ou casais ou famlias, todos isolados em solides mais ou menos confortveis, mas que no deixam de
ser solides. Alguns mandam dinheiro s pores de famlia que ficaram no
Uruguai e isso d um certo sentido a suas vidas e a seu trabalho. E no
tentam pelo menos se integrar no ambiente, fazer amigos australianos?
Olhe, no fcil. Antes de mais nada, h a barreira do idioma. claro
que, com o tempo, qualquer um acaba aprendendo ingls, mas quando chega
a esse ponto, a pessoa j se acostumou ao isolamento e difcil mudar a rotina. Alm do mais, a sociedade australiana, embora precise de mo de obra
estrangeira, no se abre assim to facilmente para os imigrantes. Entrei em
muitas casas australianas, mas como bombeiro. E se a famlia est reunida
quando passo com minha caixa de ferramentas, param automaticamente de
falar. E por que tanto interesse em vir a Cuba? No sei exatamente.
uma dessas fascinaes parecidas com as que temos na infncia ou na adolescncia. Pode dizer que um tonto como eu j no est mais na idade de
fascinaes. Mas como uma paixonite, sabe? Veja s, falei paixonite e percebi que deve fazer uns cinco anos que no pronunciava essa palavra. L no
s o vocabulrio vai se perdendo, mas tambm incorporamos sem sentir
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Voc est maluco, recorda nitidamente Rolando Asuero que Silvio tinha
murmurado naquela manh em que Manolo exps o que denominava
Viso Pessoal e Panormica da Realidade Nacional e Outros Ensaios.
Mas Manolo, que nesse meio-tempo s tinha falado uma meia horinha,
disse apertando os lbios, deixe-me falar, pois no? E Silvio o deixou terminar. E agora, o que acha, disse Manolo muito cheio de si, depois do
ponto final. Voc est maluco, insistiu Silvio, inabalvel, e quase acabam
aos bofetes. Mas Santiago e ele, Rolando, intervieram rapidamente, e
alm do mais Mara del Carmen e Tita j estavam fazendo bico, ataque
de nervos, claro; Graciela no, porque sempre foi mais dura ou mais
equilibrada ou mais pudica, e Silvio e Manolo voltaram a se sentar e
Silvio comeou a recuperar-se com o mate, dando umas chupadas na
bomba que se ouviam num raio de trs quilmetros. O certo que a tese
de Manolo era muito concreta, mas tambm muito catastrofista. Circular, sentenciava Silvio. verdade, era mesmo circular e sem sada, mas
Manolo lhe dava uma nfase que a tornava obrigatria. Os que tinham
dinheiro e poder nunca cederiam. No tenham iluses, rapazes, essa no
a burguesia escandinava que vai reduzindo seus dividendos para poder
sobreviver. Esses a vo apelar para a milicada, mesmo que a milicada
acabe por devor-los. Constitucionalistas? Legalistas? Vergonha ou pudor
de usar uniforme ou de tapar a careca com um quepe? Deixem de sacanagem, caros compatriotas. Tudo isso pretrito imperfeito. Vo nos atacar e liquidar como se fssemos guatemaltecos, nem mais nem menos.
De modo que temos que lutar com o partido deles em outro campo que
no seja o do mero debate poltico. Temos que combater o partido e
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enfiar um monte de gols neles. Nem que seja de fora da rea. Essa metfora agradou especialmente a Santiago, que comeou a se interessar a
partir desse momento. E Manolo insistindo e insistindo, colocando todo
mundo no mesmo saco (tango habemus: se uma mosca igual a um
cipreste),7 porque o que ele queria era a mudana, no s na conversa,
mas nos fatos, cita textual. E no lhe importavam muito os meios (se Jesus no ajuda que ajude Sat),8 o essencial eram os fins. Isso me soa familiar, comentou Silvio com ironia marginal. E acredita que vamos
desaloj-los, perguntava Santiago, chupando a bomba, mas em relativa
surdina. No, respondia sem vacilar Manolo, to eufrico que parecia estar vendendo futuro. No, no vamos conseguir, vo nos arrebentar, vo
nos botar em cana, vo nos esmagar, vo nos liquidar. E depois, inquiria
Silvio, queimando etapas entre a ironia e a perplexidade. Ele, Rolando,
tinha se limitado a levantar as sobrancelhas com saudvel ceticismo. E
depois nada, estalava o dinamismo do orador. Nada de imediato, mas a
vitria, a deles, ser uma vitria de Pirro. Ganharo e no sabero o que
fazer com o trofu. Vo ganhar nos papis e perder o povo. (Palminhas
de aplauso na ala feminina.) Vo perd-lo definitivamente. E olhando
com certa provocao para Silvio, continua achando que estou maluco,
hein? No mnimo, disse o outro para relaxar um pouco, todos estamos, e
ento Manolo levantou-se e deu-lhe um abrao de molusco cefalpode
com oito tentculos, ou seja, de polvo, segundo Larousse. Enquanto isso,
Mara del Carmen e Tita, j recuperadas, riam entre lgrimas, como dois
arco-ris. Mas Santiago estava insolitamente srio e explicou em seguida
que, colocada nesses termos, a luta era apenas moral, e a mim que me
importa ser um vencedor tico se vo continuar existindo favelas e latifndio e camarilha bancria e ostentao, se eu me metesse nessa briga
seria para ser um vencedor real. timo, disse Manolo, mas todos queremos ser vencedores reais, no pense que est descobrindo a plvora, s
que a questo no querer, mas poder. E mais uma vez Silvio se exalta,
percebeu agora que o objetivo de Manolo era mais amplo, a coisa no era
querer nem poder, mas foder. Risinho na bancada feminina, e os
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Fechar os olhos. Como queria fechar os olhos e comear de novo e abrilos depois com a tardia lucidez que trazem os anos, mas com a vitalidade
que no tenho. Deus d nozes a quem no tem dentes, mas antes, muito
antes, deu fome a quem os tinha. Bela trapaa de Deus. Afinal, os refres
populares so algo assim como um currculo divino. Deixa estar que a
mo de Deus vai te pegar de jeito: virulncia e fria. Deus os cria e eles
se juntam: conspirao e perseguio. A Deus o que de Deus e a Csar
o que de Csar: partilha e pro rata. Como Deus manda: prepotncia e
imprio. Deus passou longe: indiferena e menosprezo. F em Deus e
cacete no resto: parapoliciais, paramilitares, esquadres da morte etc. Se
Deus quiser: poder ilimitado. Deus nos livre e guarde: neocolonialismo.
Deus castiga sem pau nem pedra: tortura subliminar. V com Deus: ms
companhias.
Fechar os olhos, mas no para meus pesadelos correntes, porm
para tocar o fundo das coisas. L esto as imagens, as eloquentes, as s
para mim. Cada uma delas como a revelao que no entendi nem
atendi. E no se pode voltar atrs. Pode-se guardar o aprendido, mas de
pouco serve.
Fechar os olhos e ao abri-los encontr-la. Qual delas? Uma um
rosto. Outra um ventre. Outra ainda um olhar. Quantas mais? No
amor no h posturas ridculas nem pedantes nem obscenas. No amor
tudo ridculo e pedante e obsceno. Tambm a norma, tambm a
tradio.
De repente o passado se torna luxuoso, no sei por qu. Meu
corpo que tive, o ar que respirei, o sol que me iluminou, os alunos que
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Intramuros (O complementar)
Ter notcias suas como abrir uma janela. O que me conta de voc, de
Beatriz, do Velho, do trabalho, da cidade. Tenho em mente os horrios
de todos, assim posso organizar minha visualizao a qualquer momento:
Graciela agora est escrevendo mquina, ou o Velho vai terminar sua
aula nesse instante, ou Beatriz est tomando um caf da manh apressado porque se atrasou para a escola. Quando se tem que ficar irremediavelmente parado, impressionante a mobilidade mental que se
pode adquirir. Pode-se ampliar o presente tanto quanto se quiser, ou
lanar-se vertiginosamente para o futuro, ou dar marcha a r, que mais
perigoso porque l esto as lembranas, todas as lembranas, as boas, as
regulares e as execrveis. L est o amor, ou seja, est voc, e as grandes
lealdades e tambm as grandes traies. L est o que a pessoa podia
fazer e no fez, e tambm o que podia no fazer e fez. A encruzilhada na
qual o caminho escolhido foi o errado. E a comea o filme, quer dizer,
como teria sido a histria se tivesse tomado outro rumo, aquele que foi
descartado na poca. Geralmente, depois de vrios rolos, a pessoa suspende a projeo e pensa que o caminho escolhido no foi to equivocado e que, por acaso, e numa encruzilhada semelhante, a escolha de hoje
seria a mesma. Com variantes, claro. Com menos ingenuidade, evidente. Com mais alertas, por via das dvidas. Mas mantendo, isso sim, o
rumo primordial. Esses grandes espaos em branco so normalmente zonas de desalento, mas em outra acepo so proveitosos tambm. Nos ltimos e penltimos tempos antes da internao forada, tudo aconteceu
de maneira to atropelada e em meio a tantas tenses, rodeado por tantas
urgncias implacveis, por tantas decises a tomar, que no havia tempo
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nem nimo para reflexo, para pensar e repensar sobre nossos passos,
para olhar com clareza para ns mesmos. Agora sim, h tempo, tempo
demais, insnias demais, noites demais com os mesmos pesadelos e as
mesmas sombras. E a tendncia natural, e tambm mais fcil,
perguntar-se de que me serve o tempo agora, para que esta meditao
tardia, atrasada, anacrnica, intil. E no entanto serve. A nica vantagem
desse tempo baldio a possibilidade de amadurecer, de ir conhecendo os
prprios limites, as prprias debilidades e fortalezas, de ir se aproximando da verdade sobre si mesmo, e no se iludir acerca de objetivos que
nunca se poderia alcanar e, em compensao, aprontar o esprito, preparar a atitude, treinar a pacincia para obter o que algum dia poder estar ao alcance. Nessa altura se consegue, nestas peculiarssimas condies,
afundar na anlise e me atrevo a confessar-lhe algo: embora no possa
fazer um plano quinquenal de meus pesadelos, posso sonhar acordado e
em captulos. E assim vou debulhando, esmiuando o que quis e o que
quero, o que fiz e o que farei. Pois algum dia poderei voltar a fazer
coisas, no acha? Algum dia deixarei esse estranho exlio e me reintegrarei ao mundo, no? E serei algum diferente, creio mesmo que algum
melhor, porm nunca inimigo do que fui ou do que sou, mas antes complementar. Sim, ter notcias suas como abrir uma janela, mas ento me
d uma vontade quase irreprimvel de abrir mais janelas e, o que mais
grave (que loucura), de abrir uma porta. Sem dvida, estou condenado a
ver as costas desta porta, seu lombo hostil, duro, inexpugnvel, concretssimo, mas nunca to slido quanto um bom argumento, quanto
uma boa razo. Ter notcias suas como abrir uma janela, mas ainda no
como abrir uma porta. Talvez repita demasiado a palavra porta, mas
precisa entender que aqui essa palavra quase uma obsesso e, embora
possa lhe parecer incrvel, muito mais obsessiva que a palavra grade. As
grades esto a, so uma presena real, admitida, compreendida em toda
a sua chata magnitude. Mas as grades no podem ser outra coisa seno o
que efetivamente so. No h grades abertas e grades fechadas. Em compensao, uma porta muitas coisas. Quando est fechada, e sempre
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outra parte com a msica. Mas a ss ou com algum, posso recordar, por
exemplo, minhas vrias glrias de espectador. E assim, conto ou, no mais
anacoreta dos casos, conto-me que vi e ouvi Maurice Chevalier no Sols,
j veteranssimo o sujeito, mas ainda bem-humorado e to gentil que nos
fazia acreditar que improvisava cada uma de suas piadas pr-histricas; e
vi e ouvi Louis Armstrong na Plaza e ainda posso repetir a convincente
humanidade de sua rouquido; e vi e ouvi Charles Trenet em no sei que
Centro espanhol da rua Soriano, todos sentados numas cadeiras que
pareciam de restaurante e ns, os guris, no cho e ele, o francs, um pouco afetado, mas hbil, cantando o que anos mais tarde vim a saber que se
chamava La mer ou Bonsoir jolie madame, e vi e ouvi Marian Anderson,
no lembro mais se no Sodr ou no Sols, mas guardo bem ntido o
porte daquela negra enorme e dulcssima, instalada como um mantra na
trgica assuno de sua raa; e muito depois vi e ouvi Robbe-Grillet
dizendo todo tranquilo que o emprego do pretrito imperfeito em O estrangeiro de Camus mais importante que a histria contada; e vi e ouvi
Mercedes Sosa, cantando sozinha e quase clandestina no Zitlovsky da
rua Durazno; e vi e ouvi Roa Bastos, modestssimo sem dissimulao,
dizendo diante de um auditrio vergonhosamente escasso que o Paraguai
viveu sempre em seu ano zero; e vi e ouvi dom Ezequiel Martnez
Estrada, alguns meses antes de sua morte, pronunciando uma conferncia sobre um tema que no lembro porque minha ateno foi tomada
por seu rosto enxuto, citrino, ressecado, recuperado para a vida apenas
por uns olhinhos de mirada agudssima; e vi e ouvi Neftal Ricardo
Reyes,9 gozador, irnico, sutilmente vaidoso e poetssimo, debulhando
como um salmo as suas recordaes de Isla Negra; e vi e ouvi o da outra
ilha, na Esplanada, no meio de um pblico vibrante diante da durao,
do mpeto e do estilo do inesperado concerto, que para tantos outros era
desconcerto. Lembranas de menino, de adolescente, de homem, mas
lembranas indiscutivelmente minhas. Ou seja, quando levanto a cortina
eu sou, como voc deve ter percebido, interessantssimo, e eu mesmo me
aplaudo e me exijo outra, outra, outra, outra.
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Este pas no o meu, mas gosto muito dele. No sei se gosto dele mais
ou menos do que do meu pas. Vim muito pequena e no me lembro
como era. Uma das diferenas que no meu pas tem cabayos e aqui tem
cabaios. Mas so todos cavalos e relincham. E as vacas mugem e as rs
coaxam.
Este pas maior que o meu, sobretudo porque o meu bem
pequenininho. Neste pas vivem meu av Rafael e minha me Graciela.
E tambm outros milhes. muito agradvel saber que se vive em um
pas com muitos milhes. Quando Graciela me leva ao centro, passa um
monte de gente pela rua. tanta tanta tanta gente passando que parece
que j conheo todos os milhes deste pas.
Nos domingos as ruas ficam quase vazias e pergunto onde tero
se metido todos os milhes que vi na sexta-feira. Meu av Rafael diz que
aos domingos as pessoas ficam em casa descansando. Descansar quer
dizer dormir.
Neste pas se dorme muito. Sobretudo nos domingos, porque
so muitos milhes dormindo. Se cada um que dorme ronca nove vezes
por hora (minha me ronca quatorze), quer dizer que cada milho de
habitantes ronca nove milhes de vezes por hora. Ou seja, os roncos
grassam por aqui.
s vezes, quando durmo, comeo a sonhar. Quase sempre sonho
com este pas, mas algumas noites sonho com o meu pas. Graciela diz
que no pode ser porque no posso me lembrar do meu pas. Mas
quando sonho, eu lembro sim, embora Graciela diga que estou trapaceando. No estou trapaceando.
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Ento sonho que meu pai me leva pela mo a Villa Dolores, que
o nome do jardim zoolgico. E compra amendoins para eu dar aos
macacos e esses macacos no so os do zoolgico daqui, porque esses eu
conheo muito bem e tambm suas esposas e filhos. Os macacos dos
meus sonhos so os de Villa Dolores e meu pai diz est vendo, Beatriz,
essas grades, assim que eu vivo tambm. Ento acordo chorando neste
pas e Graciela tem que vir me dizer filhinha s um sonho.
Eu digo que uma pena que entre os milhes de pessoas que h
neste pas no esteja, por exemplo, o meu pai.
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verdade.
E como a conheo, sei que no est bem.
No estou.
E continuar no estando at admitir isso.
Pode ser. Mas difcil. duro.
Sei disso.
Trata-se de Santiago.
Ah...
E sobretudo de mim. Ufa, no to complicado. Mas
duro. No sei o que h comigo, Rolando. terrvel de admitir. Mas no
sinto necessidade de Santiago.
E tem se sentido assim desde quando?
No me pea datas. Sei l. absurdo.
Melhor no qualificar ainda.
absurdo, Rolando. Santiago no me fez nada. S foi preso.
O que acha? Afinal de contas, pode-se fazer com algum algo pior que
isso, mais execrvel? Ele me fez isso. Foi preso. E me abandonou.
No abandonou, Graciela. Foi levado.
Eu sei. Por isso disse que absurdo. Sei que foi levado e
mesmo assim sinto como se tivesse me abandonado.
E o recrimina por isso?
No, como vou recrimin-lo? Ele se comportou bem, bem
demais, suportou a tortura, foi corajoso, no delatou ningum. um
exemplo.
E mesmo assim.
E mesmo assim fui me afastando. E a distncia me deu espao para reavaliar toda a nossa relao.
Que era boa.
Muito boa.
E ento?
No mais. Ele continua me escrevendo cartas carinhosas,
clidas, ternas, mas eu as leio como se fossem para outra pessoa. Pode me
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Santiago me escreveu e est bem. Aprendi a ler suas entrelinhas e sei por
elas que continua mentalmente so. Meu temor era esse. No que delatasse ou esmorecesse. Isso no. Acho que conheo meu filho. Meu temor
era de que deslizasse da sanidade para sabe-se l o qu. Como um diretor
da Priso disse a ele, no sei se o ltimo ou o penltimo: No nos atrevemos a liquidar todos vocs quando tivemos a oportunidade e, no futuro, teremos que solt-los. Temos que aproveitar o tempo que nos resta
para deix-los loucos. Pelo menos foi franco, no mesmo? Franco e
abjeto. Mas de alguma maneira essa confisso impudica nos deu a chave:
neles, nos tiras, que existe algo de demente. So eles que aproveitaram
o tempo para enlouquecer. Mas no so loucos lindos; so loucos disformes, grotescos. Loucos por vocao e livre escolha, que a forma mais
ignbil de loucura. Ganharam bolsas em Fort Gulick para se diplomarem dementes. Atualmente, embora aquele diretor da Priso tenha dito
essas palavras h mais de cinco anos, continuo me agarrando s nicas
seis palavras aproveitveis de seu programa arrepiante: No futuro
teremos que solt-los. Digamos que no se atreveram a liquid-lo
quando tiveram a oportunidade, mas Santiago estar entre os que eles sero obrigados a soltar antes de t-los enlouquecido? Espero que sim. Santiago conseguiu gerar, ou talvez descobrir em si mesmo, uma estranha vitalidade. Sua descida aos infernos no o incinerou. Chamuscou talvez.
Penso que, mais do que se entregar a uma esperana, o que conta ali
agarrar-se sanidade. E ele continua sensato. Bato na madeira. E por via
das dvidas que seja sem ps: por exemplo, essa colher de oliveira que,
alm do mais, um presente de Lydia. Continua sensato porque se
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Em Sfia, Bulgria, foi parar H., jornalista, especialista em assuntos internacionais, correspondente de um dirio blgaro em Montevidu. Logo depois
de uma das tantas investidas do regime, teve que se exilar na Argentina,
onde viveu sete meses, mas aps o assassinato de Zelmar Michelini e Gutirrez Ruiz a Argentina tambm se tornou inabitvel para os exilados uruguaios. Sob a proteo das Naes Unidas, subiu para Cuba e de l para a
Bulgria.
Vivia s, longe da mulher e dos filhos, mas fez sem dvida muitos
amigos entre os blgaros, uma gente calorosa e acolhedora, amiga das celebraes nobres e sentimentais, e deve ter desfrutado daquelas avenidas incrveis, com canteiros de rosas que se encontram por todo lado naquela terra
linda de Dimitrov, claro, mas tambm de meu amigo Vasil Popov, que h
mais de dez anos escreveu e publicou um conto muito carinhoso sobre dois
tupamaros que encontrou certa vez no elevador de um hotel havans.
Sim, com certeza acostumou-se ao iogurte (fermentos casualmente
blgaros) e aos sacerdotes ortodoxos e ao caf turca, que para mim insuportvel. Mas mesmo assim deve ter experimentado a indesejada humilhao de estar s e de olhar-se cotidianamente com novo espanto e velha
resignao.
Quando em meados de 1977 cheguei a Sfia para assistir ao Encontro de Escritores pela Paz, fazia poucos dias que H., que era to jornalista,
tinha se tornado notcia. Como todas as tardes, chegou a seu apartamento,
provavelmente se deitou e s se ficou sabendo dele vrios dias depois, quando
os colegas de trabalho, estranhando sua ausncia, foram bater em sua porta
e, ao no obterem resposta, trouxeram a polcia para abri-la.
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Intramuros (O balnerio)
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Na ltima hora da tarde foi ver o sogro. Fazia uns quinze dias que no o
visitava. O nico problema era que seus horrios no coincidiam.
Caramba, caramba! disse dom Rafael depois de beij-la.
Deve ter acontecido algo de muito grave para voc vir me ver.
Por que est dizendo isso? Sabe bem que gosto muito de conversar com voc.
Eu tambm gosto de conversar com voc. Mas voc s vem
quando est com problemas.
Pode ser. Peo que me perdoe.
No se chateie. Venha quando quiser, com ou sem problemas. E minha neta?
Um pouco resfriada, mas em geral bem. Nos ltimos meses
tem conseguido boas notas na escola.
inteligente, mas alm disso esperta. Digamos que puxou
o av. No a trouxe por causa do resfriado?
Um pouco por isso, mas tambm porque queria lhe falar a
ss.
Bem que adivinhei, viu s? Pois bem, qual o problema?
Graciela sentou no sof verde, quase se jogou nele. Olhou lenta
e detidamente para o aposento levemente desordenado, aquele apartamento de velho solitrio, e sorriu com tristeza.
difcil para mim comear. Sobretudo porque o senhor. E
no entanto o nico com quem quero falar sobre isso.
Santiago?
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Como poderia resumir? Talvez falando abertamente. E espero que possa me perdoar. No gostaria de ter que dormir com ele de
novo. Parece horrvel, no mesmo?
No, no parece horrvel. Parece triste, talvez, mas a verdade
que ultimamente o mundo no uma festa.
Se Santiago no estivesse preso, no seria to grave. Seria
simplesmente o que acontece com tanta gente. Poderamos falar do assunto, discutir. Tenho certeza de que Santiago acabaria entendendo,
mesmo que minha deciso o amargurasse ou decepcionasse. Mas ele est
na priso.
Sim, est na priso.
E isso faz com que eu me sinta cercada. Ele est preso l, mas
eu tambm estou aprisionada em uma situao.
O telefone tocou. Graciela fez um gesto de irritao: a campainha destrua o clima de comunicao, estragava a confidncia. O
sogro saiu da cadeira de balano e tirou o fone do gancho.
No, no momento no estou sozinho. Mas venha amanh.
Quero muito v-la. Sim, de verdade. No estou sozinho, mas no uma
presena que possa preocup-la. Bem, estarei esperando tardinha. s
sete, est bem para voc? Tchau.
O sogro desligou e voltou a se instalar na cadeira. Olhou para
Graciela, avaliou sua expresso de surpresa e no teve outro remdio
seno sorrir.
Bem, estou velho mas nem tanto. E alm do mais, a solido
completa muito dura.
Fiquei um pouco surpresa, mas alegre, Rafael. Tambm me
deu um pouco de vergonha. Estamos sempre atentos demais a nossos
prprios umbigos, parece que os nossos so os nicos problemas importantes. Nem sempre nos damos conta de que os outros tambm tm os
seus.
Devo dizer que no chamaria isso propriamente de problema. No uma moa, sabe? Embora seja bem mais jovem que eu. Isso
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sempre estimula. E tambm boa gente. Ainda no sei quanto vai durar,
mas por agora me parece muito bom. Confidncia por confidncia, direi
que estou me sentindo menos inseguro, mais otimista, com mais vontade
de seguir vivendo.
Fico contente, de verdade.
Sim, sei que est sendo sincera.
O sogro esticou o brao para uma portinha da estante de livros,
abriu e tirou uma garrafa e dois copos.
Quer um trago?
Sim, cairia bem.
Antes de beber, olharam-se e Graciela sorriu.
Com sua inesperada histria quase me fez esquecer a minha.
No acredito.
Estou brincando. Como posso esquecer?
s isso mesmo, Graciela? No ir mais para a cama com
Santiago quando ele sair algum dia da Priso? simplesmente isso ou
tem mais?
No incio no tinha. Era apenas o afastamento, na realidade,
meu afastamento. Descartar uma futura relao conjugal com Santiago.
E agora?
Agora diferente. Acho que estou comeando a me
apaixonar.
Ah...
Disse que acho que estou comeando.
Olhe, se admite que est comeando porque j se
apaixonou.
Pode ser, mas no tenho certeza. Voc o conhece.
Rolando.
E ele?
difcil para ele tambm. Sempre foram bons amigos, ele e
Santiago. No pense que no percebo que isso uma complicao a
mais.
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nunca uma coisa boa, mas s vezes uma continuidade forada pode ser
muito pior.
O que me aconselha, Rafael?
O sogro vira o copo e acaba com o usque que tinha se servido.
Agora ele quem suspira.
Meter-se na vida dos outros sempre uma imprudncia.
Mas Santiago seu filho.
E voc tambm um pouco minha filha.
como eu me sinto.
Eu sei. Mas fica ainda mais complicado.
O telefone toca outra vez, mas o sogro no levanta o fone.
No se preocupe, no Lydia. J tinha dito o seu nome?
Quem liga sempre a essa hora um chato. Um aluno que faz consultas
interminveis sobre bibliografia.
Ao que tudo indica, o aluno perseverante ou turro ou as duas
coisas, pois o telefone continua a tocar. Finalmente, volta o silncio.
J que est perguntando, eu seria favorvel a que no lhe dissesse nada, ou seja, a que continue fingindo. Sei que isso faz com que se
sinta mal. Mas tem que pensar que voc est livre. Tem outros motivos
de interesse e afeio. Ele, em compensao, s tem quatro paredes e algumas grades. Dizer a verdade seria destru-lo. No quero que meu filho
se destrua justamente agora, quando conseguiu sobreviver a tantas calamidades. Algum dia, quando sair (se que vai sair) poder lhe contar
com todas as letras e enfrentar tambm a sua amargura. E quando essa
ocasio chegar, posso autoriz-la a dizer que fui eu quem a aconselhou o
silncio. No comeo ficar furioso, explodir como em seus melhores
tempos, talvez chore, talvez pense que o mundo est vindo abaixo. Mas
ento j no estar entre quatro paredes, estar longe das grades e ter
tambm, como voc agora, outros motivos de interesse e afeio. Bem,
essa a minha opinio. Foi voc quem pediu.
Sim, pedi mesmo.
E o que acha?
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(ainda ignoro qual foi o inslito canal) pde enviar, at agora, com
garantia total de que no passaria pela censura carcerria. E estranhamente essa carta singular foi endereada a mim e no a Graciela. Imagine, Velho, que confio tanto nesse correio que resolvi lhe dizer as imprudncias que ler. Tenho que mandar sinais daqui dessas paragens
para algum e a quem mais seno voc? Tenho que mandar sinais para
no me desarmar, para no me reduzir a pedaos. No se aflija: uma
metfora. Mas de alguma maneira traduz uma sensao, no? Vamos
logo esclarecer as coisas: no tenha medo de que eu tenha falado ou delatado algum. Isso no. H algumas coisas que voc me ensinou e essa
uma das que aprendi. Ah, mas tampouco sou um heri. Ficaria espantado se lhe dissesse que ainda no sei se me calei por convico ou
por clculo? Sim, por clculo. Sempre observei que enquanto se nega
tudo, se voc se obstina em dizer que no e no com a cabea, com as
mos, com os lbios, com os olhos, com a garganta, os caras enchem voc de porrada da mesma maneira, claro, mas s vezes d para notar que,
no fundo, suspeitam que est mesmo dizendo a verdade, ou seja, que
no sabe nada de nada; ah, mas em troca se voc fraqueja e diz uma
coisinha de nada, uma babaquice que no lhes sirva para nada e com a
qual voc no fode ningum, ento a atitude muda, pois a partir desse
momento acreditam que sabe muito, muito mais, e a sim arrebentam
voc, ficam encarniados. Se voc nega permanentemente, vo
arrebent-lo, lgico, mas tambm possvel que a partir de certo dia o
deixem tranquilo, pois talvez se convenam de que, efetivamente, no
sabe nada. Mas se disser alguma coisa, um dado mnimo que seja, ento
nunca vo deix-lo tranquilo. No mximo abandonam voc por um
tempo, para depois voltar carga. Ficam obcecados em extrair-lhe o
resto. Por isso repito que no sei se calei por convico ou por clculo.
Talvez seja pelo ltimo. Mas no fundo so defesas que a pessoa vai criando. De todo modo, estou bem, pois ningum caiu por um vacilo meu.
Mas no disso que queria falar. Sabe qual tem sido a argumentao do
advogado, de que no matei ningum, certo? Pois matei. E no v ter
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frustrada, nem o nome de Emilio apareceu como uma das nobres vtimas
da subverso assassina. S o aviso fnebre. E ns (voc, eu, Graciela etc.)
entre os vivos que participavam com profunda dor o seu falecimento.
Talvez voc tenha ido ao velrio. Eu no, claro, embora por um momento tenha ficado tentado. Mas a essa altura dos acontecimentos j estava muito queimado. Um ano depois, quando nos pegaram na batida
de Villa Muoz, submeteram-me a centenas de interrogatrios,
espancaram-me bastante, mas nunca perguntaram nada sobre isso. Por
que no se deram conta do fato? Nunca saberei. A verdade que ningum na famlia sabia que Emilio era cana. Mas se sua profisso era to
misteriosa, por que usava uniforme? Deve estar se perguntando por que
despejo tudo isso em cima de voc. Conto porque nunca me livrei dessa
ao, embora tenha sido inevitvel para mim. Preconceito pequeno-burgus? Talvez. minha nica morte, que ironia. Estive em mais de um
confronto e em vrias ocasies estiveram a ponto de acabar comigo, e eu
tambm estive a ponto de liquidar algum, mas parece que minha pontaria deixa um pouco a desejar. No tenho nenhuma outra morte a creditar (ou ser debitar?). Qual o problema? Que a primeira no se apaga.
Nem se apagam as minhas mos crispadas apertando seu pescoo. Sonho
com ele duas ou trs vezes por ms, mas nunca no ato de mat-lo. No
so pesadelos. Sonho com um passo longnquo, quando ambos ramos
pequenos (ele tinha um ano a mais, no?) e jogvamos futebol no campinho atrs da igreja ou durante os meses de frias quando amos ao
Prado, na hora da sesta, enquanto vocs adultos sucumbiam sonolncia, ns nos sentamos particularmente livres e nos estendamos na grama
ou no colcho de folhas secas e divagvamos, divagvamos e fazamos
projetos nos quais estaramos sempre juntos e viajando, mas de barco
porque os avies nos davam medo e alm do mais, na coberta do barco,
dizia Emilio, poderamos pular carnia ou jogar cinco-marias, enquanto
nos avies isso era proibido pelas aeromoas, e continuvamos divagando
e ele ia ser engenheiro, porque gosto de regra de trs composta, dizia, e
eu ia ser msico porque gostava de tocar La Cumparsita soprando num
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frente em uma batalha sem quartel e sem primos. Mas eu nunca tinha
matado ningum, Velho, e creio que essa primeira e nica prova de fogo
me marcou para sempre. Vai ver que isso quer dizer que sou um frouxo,
embora tenha sido bastante forte em outras coisas. E digo mais: penso
que no me sentiria assim se o tivesse matado a tiros num confronto.
Sinto-me assim porque o matei desse outro modo, como direi, ignbil,
um pouco nefasto talvez, usando e abusando de seu assombro que era (se
devo ser sincero, no consigo evitar de pensar nisso) um assombro afetivo. E embora eu saiba agora que se converteu num sujeito sinistro,
numa pessoa sanguinria e sem escrpulos, e todos digam, e eu tambm,
que est melhor morto, o certo que quando apertei seu pescoo com
minhas mos crispadas, ignorava tudo isso e matei-o simplesmente para
sobreviver, a ele, que tinha devaneado comigo sobre um colcho de folhas e comigo tinha feito projetos comuns de fugas de sua casa e da
minha e de viagens de barco para jogar cinco-marias e pular carnia. So,
como posso dizer?, dois valores distintos, duas identidades distintas, dois
Emilios justapostos. Voc me entende, Velho? No conto nada a Graciela nem contarei porque ela no entenderia, pois tende a simplificar as
coisas. Diria, fez muito bem, um carrasco a menos. Ou diria: como pde
fazer uma coisa dessas com seu primo? E no uma coisa nem outra.
mais complicado, Velho, mais complicado. Mais uma coisa. Note bem
que esta carta uma oportunidade nica (algum dia espero poder lhe
contar como aconteceu esse inacreditvel acaso) que certamente no se
repetir nunca mais. impossvel enviar uma resposta por essa mesma
via ou por outra que seja to digna de confiana. No entanto, voc precisa me responder. No , Velho, no verdade que vai responder? Ter
que faz-lo pela via normal, que passa infalivelmente pela censura carcerria. Teremos que nos limitar a apenas duas respostas possveis, embora
saibamos quantas nuanas podem existir entre uma coisa e outra. Anote,
portanto. Se aceita a situao, no digo se aprova ou justifica, mas se
pelo menos compreende, d um jeito de fazer figurar, algumas linhas
antes da despedida no final, a palavra entendo. Se ao contrrio acha que
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Para ele era uma sensao nova. E no desagradvel, mas vai ser.
certo, porm, que se meteu num atoleiro. Nunca tinha lhe acontecido
isso com mulher alguma. Sempre tinha sido ele, Rolando Asuero, o
dono da iniciativa, aquele que segurava as rdeas de cada relao, terminasse ou no na cama. E isso, sim, uma questo de princpios: que
fosse provisrio, com todos os dados e propsitos bem clarinhos, transparente como H2O, para que ningum pudesse encurral-lo com o certificado oral de uma promessa no cumprida. Como o Eclesiastes esqueceu de dizer: para no descumprir promessas, melhor no faz-las. Felizmente, tinha que reconhecer, sempre encontrou mulheres fortes e bem
dispostas, que aceitavam as regras do jogo logo de sada e que depois,
quando ele acabava, desapareciam com um tchau cordial e at mais ver.
Por outro lado, as donas ou escravas, esposas enfim, de seus amigos mais
ntimos, sempre as tratou como irms e, embora lhes dedicasse de vez em
quando uma olhadela incestuosa, nunca ia alm do flerte bem-humorado
de camaradagem, ainda que despertasse frequentemente a coqueteria
inata das supracitadas. Olhadinhas incestuosas que no foram escassas,
em tempos idos, para Graciela, que, l em Sols, balnerio afinal, quando
botava o mai de duas exguas peas (no era um biquni, sem dvida,
pois at a no chegava o cauto liberalismo de Santiago Apstolo) exibia
uma figura ou palminho de cara ou corpo docente realmente dignos de
considerao e xtase, ah, mas nunca tinha ultrapassado a decorosa barreira do suspiro ou da admirao descaradamente visual por trs dos culos escuros, verdade que ocasionalmente estimuladas por algum
comentrio do mesmssimo Santiago, que ao v-la correr at a gua
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como num comercial de TV, numa tarde de ondas por exemplo, murmurava como para si mesmo mas na verdade para os trs, est linda a
gata, hein?, provocando as brincadeiras ambguas e risadinhas viris,
bom diz-lo, dos outros casados e do nico solteiro incorrigvel, ou seja,
ele, Rolando Asuero, a seu servio e de sua senhora, frase clebre e nada
ingnua que ele havia espetado, dez anos atrs, a um gerente-geral da
empresa que imediatamente decidiu transform-lo em ex-caixeiro.
Mas a Graciela de agora outra coisa. E ele tambm est
mudado. Como no? Primeiro foi a etapa poltica, com aqueles dois anos
anteriores ao golpe que foram simplesmente do caralho. Quem voc ,
no ertico? Linda e substanciosa pergunta para se fazer Esfinge,
lacnica bisav de Anwar El-Sadat. Ah, mas o difcil ser simplesmente
ertico em pocas de memorveis patriotadas. Naquele renhido binio,
s vezes no se conseguia um catre nem mesmo para dormir decentemente, quanto mais para outras atividades. E depois a maldita cana, com
seus capitulozinhos de plantes, choques, submarino e outras delikatessen. A sim que a banda toca incansavelmente. Voc fabricar
resignaes, como no, e depois nem se lembrar, pois de noite, quando
nem sequer a barata nossa de cada dia comparece como testemunha, vai
enfiar a cabea na pardia de travesseiro e soltar a franga at se desidratar
de tanta lgrima (TH, ou seja, tango habemus: transtornado em minha
tristeza, ah, mas nunca: se fui frouxo, se fui cego).12 Sim, a Graciela de
agora outra coisa. Em primeiro lugar, mais mulher, e em segundo,
mais confusa, talvez como consequncia dessa maturidade. Como corpo
(e como alma tambm, no sejamos dogmticos) amadureceu notria e
maravilhosamente, e v-la, por exemplo, aproximar-se devagarinho pela
calada florida que leva a seu edifcio (ele, como tantas outras vezes, esperando na porta) gera lindas expectativas nem sempre confirmadas. Est
um pouco confusa, por certo, embora talvez o mais correto fosse dizer
desorientada. E no centro vital da turbulncia: Santiago. Santiago na
Priso, sem poder se defender nem atacar, sozinho com sua melancolia e
seu acervo cultural, que terminologia, hein, e alm disso que situao.
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Rolando chegou ao diagnstico preliminar de que Graciela uma mulher que no se d bem com a distncia e foi a que, sem ter culpa no
cartrio, o pobre Santiago perdeu pontos. Mas da a imaginar que ele,
Rolando Asuero, teria um papel a desempenhar nessa histria, h uma
boa diferena. No sabe. Ainda no sabe. Embora pouco a pouco v se
dando conta. Gosta de Graciela, preciso descont-lo e/ou impugn-lo.
Mas reconhece que em vrias ocasies, quando ela falava de suas teias de
aranhas ou dos estados alternados de nimo e desnimo, tinha realizado
sbrios avanos, lanado indiretas abusivas, oferecido ajuda, digamos,
fraterna e pouco a pouco, talvez sem querer, tinha semeado veladas mas
concretas aluses a seu interesse afetivo por ela ou, melhor ainda, atrao que sentia por ela. E claro, nessa fase ambgua, com seus sentimentos e emoes em franca revoluo e reviso, Graciela era receptiva como
uma esponja. E com certeza tinha captado aqueles movimentos cautelosos, prudentes. E um dia, de repente, no meio de uma dessas conversas
equvocas, de equilibrista, ela se saiu com aquela de no sinto necessidade de Santiago, ele me abandonou; e ele compreensivo, no Graciela
no abandonou, mas foi levado embora; e ela, absurdo ou ser que o
exlio me transformou em outra; e ele, acaso no continua a partilhar a
posio poltica de Santiago; e ela, claro, pois a minha tambm; e ele,
por fim, com a pergunta dos dez milhes, ser que sonha com outros homens; e ela, refere-se a sonhar dormindo ou sonhar acordada; e ele, ambos; e ela, quando durmo no sonho com homem nenhum; e ele, e
acordada; e ela, bem, acordada eu sonho, voc vai rir, e a deu uma
parada, uma pausa no teatral mas apenas um breve silncio para tomar
flego e avaliar todo o peso do que ia acrescentar: sonho com voc. Ele
ficou embasbacado, sentiu um repentino mormao nas orelhas e o
prprio, ningum menos que o tremendo pilantra e don jun de
primeira, mordeu o lbio at sangrar, mas s foi notar horas depois. E ela
tensa na frente dele, espera de algo, no sabia exatamente o qu, mas
tremendamente insegura pois, entre outras coisas, conjecturava que ele
estaria se atormentando naquele momento com a palavra lealdade,
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Beatriz (A poluio)
Tio Rolando disse que essa cidade est ficando imbancvel de tanta
poluio que tem. Eu no disse nada, para no passar por burra, mas da
frase inteira s entendi a palavra cidade. Depois fui ao dicionrio e procurei a palavra IMBANCVEL e no achei. No domingo, quando fui
visitar meu av, perguntei o que queria dizer imbancvel e ele riu e explicou de muitos bons modos que queria dizer insuportvel. A sim entendi o significado, pois Graciela, ou seja, minha me, me diz s vezes,
ou melhor, todo dia, por favor, Beatriz, por favor, s vezes voc fica realmente insuportvel. Precisamente nesse mesmo domingo ela me disse
isso, mas dessa vez repetiu trs vezes, por favor, por favor, por favor, Beatriz, s vezes voc fica realmente insuportvel, e eu, bem tranquila: voc
est querendo dizer que estou imbancvel, e ela achou graa, mas no
muita, mas me tirou do castigo, o que foi muito importante. A outra palavra, poluio, bem mais difcil. Essa sim est no dicionrio. Ele diz,
POLUO: efuso de smen. O que ser efuso e o que ser smen.
Procurei EFUSO e achei: derramamento de um lquido. Tambm
achei SMEN e diz: germe, semente, lquido que serve para a reproduo. Ou seja, o que tio Rolando falou quer dizer o seguinte: essa
cidade est ficando insuportvel de tanto derramamento de smen. Tambm no entendi e assim que me encontrei com Rosita, minha amiga,
falei do meu grave problema e de tudo o que dizia o dicionrio. E ela:
tenho impresso de que smen uma palavra sexual, mas no sei o que
quer dizer. Ento prometeu que ia consultar sua prima Sandra, porque
mais velha e na escola dela tem aula de educao sexual. Quinta-feira ela
veio me ver toda misteriosa: eu a conheo bem e quando tem algum
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mistrio ela franze o nariz, mas como Graciela estava em casa, esperou
com toda a pacincia que fosse para a cozinha preparar empanadas milanesas para dizer, j descobri, smen uma coisa que os homens grandes
tm, no os meninos; e eu, ento ns ainda no temos smen; e ela, no
seja burra, nem agora nem nunca, s os homens tm smen quando so
velhos, como o meu pai e o seu, o que est preso, ns, meninas, no
teremos smen nem quando formos avs; e eu, que esquisito, hein; e ela,
Sandra disse que todos ns, meninos e meninas, viemos do smen, pois
um lquido que contm bichinhos que se chamam espermatozoides, e
Sandra estava muito feliz porque tinha aprendido na aula de ontem que
espermatozoide se escreve com z. Quando Rosita foi embora, fiquei
pensando e achei que tio Rolando talvez tenha querido dizer que a cidade estava insuportvel de tantos espermatozoides (com z) que tinha.
De modo que fui falar outra vez com meu av, porque ele sempre me
entende e me ajuda, mas no demais, e quando contei o que tio Rolando
tinha dito e perguntei se era certo que a cidade estava ficando imbancvel porque tinha muitos espermatozoides, meu av teve um ataque
de riso to grande que quase sufocou e tive que lhe dar um copo dgua e
ele ficou todo vermelho e eu fiquei com medo de que tivesse um treco e
eu sozinha naquela situao to assustadora. Por sorte, ele foi se acalmando aos poucos e quando conseguiu falar disse, entre uma tosse e
outra, que o que tio Rolando falou se referia poluio, contaminao
atmosfrica. Eu me senti ainda mais burra, mas em seguida ele explicou
que a atmosfera era o ar, e como nesta cidade h muitas fbricas e
automveis toda essa fumaceira suja o ar, ou seja, a atmosfera, e isso a
maldita poluio e no poluo, a do smen que vi no dicionrio, e no
devamos respir-la, mas como se no respiramos morremos do mesmo
jeito, no temos outro remdio a no ser respirar toda essa porcaria.
Disse a meu av que tinha notado agora que meu pai tinha essa vantagenzinha l onde estava preso, porque l no havia muitas fbricas nem
muitos automveis porque os familiares dos presos polticos so pobres e
no tm carro. Meu av disse que sim, que eu tinha toda razo, e que
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devamos sempre encontrar o lado bom das coisas. Ento eu lhe dei um
beijo muito grande e a barba me pinicou mais que das outras vezes e fui
correndo procurar a Rosita, mas como na casa dela estava a me dela,
que se chama Asuncin, igualzinho capital do Paraguai, ns duas esperamos com toda pacincia at que ela fosse regar as plantas e eu tambm muito misteriosa: diga a sua prima Sandra que ela muito mais
burra do que voc e eu, pois agora descobri tudo e ns no viemos do smen, mas da atmosfera.
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sem ver um filho, sobretudo se uma criana, significam uma eternidade. Cinco anos sem ver um adulto, por mais querido que seja, so
simplesmente cinco anos e tambm horrvel. A mim, por exemplo,
descobririam sem barriga alguma e com menos cabelo (no me refiro s
razes do bvio penteado local, mas a evidentes entradas que nada tm a
ver com semelhante ortodoxia). Tambm tenho uma ou outra ausncia
incisiva e molar (e ateno que eu no disse moral, hein!). E o que mais?
Bem, algumas sardas, novas pintas, alguma cicatriz. Como pode ver, me
conheo de memria. O que acontece que, numa circunstncia como a
que vivo, quase de monge cartuxo, o prprio corpo se transforma numa
chave. E no por narcisismo, mas porque durante horas e horas no se
conta com nenhum outro sinal de vida mo. De minha parte, sei que o
Velho ter algum cabelo grisalho a mais. Mais rugas no, porque aquele
velho ladino nasceu enrugado. Lembro que, quando menino, sempre me
impressionaram os franzidos e as estrias que ele tinha junto aos olhos, na
testa etc. Ao que parece, isso no o impedia de ter sucesso com as meninas. Acho que com a Velha ainda viva ele tinha l seus casos. E como encontrarei voc? Mais madura claro e, por isso, ainda mais linda. s vezes,
as angstias vividas deixam uma expresso de amargura; pelo menos era
o que escreviam os romancistas do incio do sculo. Os de agora no
empregam floreios to afetados, ah, porm esses rictos nunca saram de
moda; ser que as amarguras continuam to florescentes? Mas sei que voc no tem desses rictos e, se tiver, eu a curarei deles. provvel, isso
sim, que esteja mais sria, que no ria to estrondosamente, to primria
e primaveril como antes. Mas tambm certo que conservou e enriqueceu sua capacidade de alegria, sua vocao de eficcia. Se o que o advogado me deixou entrever efetivamente se realizar, no tenho a menor
ideia de como (e se) poderei me unir a vocs. Quero dizer: ignoro se poderia nesse caso sair do pas. Sei demasiadamente bem que, nesse aspecto, tudo ser complicado, mas ser sempre melhor do que essa separao, que nesse exato momento j nem sei se injusta, absurda ou
merecida. Preferiria viajar, claro, pois que famlia me resta aqui? Depois
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minha euforia (sempre com a ntima e inevitvel desconfiana de que esteja padecendo de otimite aguda) temo provocar nele, mesmo que indiretamente, uma certa desesperana e dor. Todos somos muito generosos, aqui pelo menos aprendemos a s-lo, sobretudo quando deixamos
para trs a primeira etapa, que costuma ser egosta, ensimesmada, arisca,
at hipocondraca; mas a generosidade tambm tem fronteiras, confins e
extremos. Lembro perfeitamente que, h pouco mais de um ano, quando
J. saiu, eu mesmo experimentei sentimentos desencontrados. Como no
sentir alegria diante da realidade de que justamente ele, que um sujeito
excepcional, pudesse se reunir com a mulher e a me e trabalhar de novo
e sentir-se outra vez plenamente humano. E no entanto sua ausncia
tambm me desalentou, em primeiro lugar porque J. um sujeito incrvel com quem compartilhar as vinte e quatro horas e depois porque
sua ida revelava o rigor e a tristeza que me restavam. curioso, mas o
bom companheirismo no consiste sempre em falar ou ouvir, em contar
vidas e mortes, amores e desamores, em narrar romances que lemos h
muito tempo e que agora j no temos mo, em discutir filosofia e seus
meandros, em tirar concluses de experincias passadas, em analisar e
nos analisar ideologicamente, em intercambiar as respectivas infncias
ou, quando se pode, em jogar xadrez. O bom companheirismo consiste
muitas vezes em calar, em respeitar o mutismo do outro, em compreender que disso que o outro necessita naquela precisa e obscura jornada, e ento envolv-lo com nosso silncio ou deixar que ele nos envolva com o seu, porm, e esse porm fundamental, sem que nenhum
dos dois o pea ou exija, mas que o outro compreenda por si mesmo,
numa espontnea solidariedade. s vezes uma boa relao de clausura ou
recluso, uma relao que pode se converter em amizade para sempre,
constri-se melhor com silncios oportunos do que com confidncias
intempestivas. Existem at mesmo pessoas que se sentem to obrigadas a
trocar peripcias autobiogrficas que chegam a invent-las. E no se trata
sempre de mitmanos ou mentirosos, que tambm existem; s vezes
inventa-se um episdio como uma deferncia, como uma cortesia para
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primeira hora da tarde, o silncio est fora e est dentro. Graciela sabe
o que vai encontrar se resolver olhar atravs das persianas. No
somente o passeio dos floristas que est deserto, mas tambm os arredores: os canteiros, as ruas internas do condomnio, as janelas, as
pequenas varandas do edifcio B.
Os nicos habitantes mveis naquela hora so uns estranhos besouros que se apoiam zumbindo nas persianas, mas no conseguem entrar. A distncia, bem a distncia, soam de vez em quando, em ondas
quase imperceptveis, os gritos e as risadas de um colgio misto que fica a
umas doze ou quinze quadras.
Ento, por que se levanta para olhar atravs das persianas se sabe
de antemo o que vai encontrar? Esse exterior rotina e, ao contrrio, no
interior, na cama, por exemplo, h uma novidade.
Graciela apaga o cigarro apertando-o contra um cinzeiro na
mesinha de cabeceira. Ergue-se um pouco, apoiando-se num cotovelo.
Examina sua prpria nudez e sente um calafrio, mas no faz nenhuma
meno de recolher o lenol amontoado aos ps da cama.
Continua olhando para as persianas, mas sem que nada atraia
seu interesse. Provavelmente apenas uma maneira de dar as costas para
o resto da cama, no como uma rejeio, mas antes como o adiamento
de um prazer. E ento, antes de se virar, antes de olhar, vai movendo
lentamente a mo at pous-la sobre a pele do adormecido.
A pele do adormecido estremece, um pouco maneira dos
cavalos quando tentam espantar as moscas. A mo no d mostras de se
importar e permanece ali, tenaz, at que aquela carne volta a serenar.
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Rolando.
O adormecido se move um pouco, estira lentamente uma perna
e, sem abrir os olhos, pousa a mo sobre o ventre liso da mulher
desperta.
Rolando. Levante. Beatriz vai chegar daqui a uma hora.
O pior de tudo era deixar o tempo passar sem ter chegado a um acordo
sobre o futuro. Porque no importava quantas horas tinham conversado
sobre o assunto nem quantas vezes se animaram a discuti-lo. Todos os
argumentos e contra-argumentos acabavam caindo quando ele, Rolando
Asuero, voltava a repetir o gesto j clssico, o do primeiro dia da criao,
ou seja, segurar seu rosto com ambas as mos e beij-la com uma convico que a cada novo ensaio ia se ajustando e amadurecendo e deixando um sedimento mais entranhado. E quando a despia com a mesma responsabilidade e o mesmo prazer da primeira vez, e ela se deixava acariciar e acariciava com uma alegria corporal que, ao ilumin-la, a transformava rapidamente de seduzida em sedutora, ento se acabavam todas
as humilhaes e todas as dores de conscincia e o colocar-se arbitrariamente no lugar do ausente. Nunca o faziam de noite, porque Graciela
no queria que Beatriz soubesse antes de Santiago. Graciela no queria
que sua filha convertesse, com seu olhar de espanto ou com seu ouvido
involuntariamente atento, aquele ato translcido em ar confinado,
aquela necessidade mtua em enigma a ser decifrado. Por isso eles faziam
de tarde, ele estava de acordo, enquanto a cidade fazia a sesta e s se
ouvia o zumbido dos besouros que perambulavam no passeio dos floristas ou junto s persianas.
Graciela disse que essa hora imperiosa acabou com um preconceito antigo, mais arraigado em seus hbitos do que jamais pensou ou
admitiu. Com Santiago, nunca tinha feito amor de tarde, porque exigia
escurido absoluta para a cerimnia, no queria que nada a distrasse do
tato, j que o tato era para ela o sentido cardeal da unio amorosa, e
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Santiago, que no estava de acordo com essa preponderncia e exclusividade do tato, tinha, apesar disso, se resignado, embora de m vontade,
a essa exigncia que atribua a um puritanismo mal digerido e ponto final, e sobretudo a sua educao em colgios de freiras. Contra o cu no
h quem possa, dizia Santiago, para justificar o carter irremedivel de
sua concesso. Mas Graciela sempre teve muito claro que as Irms no
tinham culpa e que, de todo modo, a razo ltima residia nela mesma,
num pudor obscuro do qual no se orgulhava. Por seu lado, Rolando se
mostrava muito aberto e condescendente, mas na realidade no gostava
nem um pouco desse reconhecimento to pormenorizado daquelas
noites alheias nuas, e s para se vingar moderadamente desse mal-estar,
perguntava como era antes de Santiago, e ela no se indignava, mas antes
se envergonhava de confessar que antes de Santiago nada, e embarcava
outra vez no liame de sombras e meias-luzes, e a prova voc tem agora,
porque fazendo amor como fizemos em plena hora da sesta e mesmo
com as persianas fechadas a penumbra to luminosa que tudo fica bem
vista. Mas era to poderoso o seu desejo de outro corpo, to prioritrio
e to terno o prazer de juntar-se a ele, que em nenhum momento ela
tinha fincado p em seu anacrnico culto do escuro, e no apenas tinha
se distrado do tato, como tinha descoberto, quase sem perceber, o
quanto a deciso de olhar o outro corpo em todas as suas manobras e
rotinas e novas propostas enriquecia o tato, e o quanto ser olhada em todos os seus vales e musgos e colinas enriquecia o tato. S depois do gozo
e do relaxamento, quando ele, Rolando Asuero, acendia um cigarro e depois outro e o estendia para ela, s ento, ou melhor, um pouco depois,
quando voltava do banho e se enrodilhava contra ele, s ento a questo
do ausente voltava a se instalar entre eles, entre os dois corpos satisfeitos
e cansados.
Ela falava e falava, dava voltas e mais voltas situao, e chegava
a dizer que nunca tinha sentido seu prprio corpo tanto quanto sentia
agora, nunca tinha tirado tanto partido, no somente fsico, mas
tambm espiritual, de um fato que afinal no tinha tantas variantes assim
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vamos seguir juntos. Voc sabe disso e eu tambm. Ento vamos deixar a
questo de Santiago para quando ele estiver em condies de saber, de se
adaptar nova realidade. Voc e dom Rafael resolveram no contar nada
a ele enquanto estiver em cana. Eu no estou to certo de que o melhor, no se esquea de que tambm estive preso e acho que sei como essas coisas so avaliadas l de dentro, mas aceito essa deciso e aceito tambm minha responsabilidade na omisso. Sim, em que pese tudo isso,
voc continua a respeitar Santiago e eu tambm o respeito, mas no podemos continuar falando obsessivamente dele toda vez que fazemos
amor. Continuar pensando, eu sei, e eu continuarei pensando tambm,
cada um por sua conta e risco. Fez uma pausa, voltou a beij-la e quando
ele, Rolando Asuero, j estava no ponto, acrescentou como pde: o
simples fato de no triturar o assunto com palavras que se repetem e se
gastam e nos desgastam, esse simples silncio ir nos ajudar, ir nos
ajudar a nos amarmos como somos realmente e no como teramos a frgil obrigao de ser.
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voltadas para fora de si mesmas, das pessoas capazes de querer bem aos outros. Aqui tambm h muita grandeza, nesta noite. H a necessidade imperiosa de continuar fazendo, de continuar podendo. Porque vocs puderam.
Puderam mais que a brutalidade de uma ditadura, mais que a obstinao e
o dio dos carcereiros, mais que a preguia e a comodidade de uma vida para
si mesmos. Vocs puderam e estou aqui como prova do poder de vocs. Prova,
mas no medida. Pois no h medida que possa abarcar tudo o que se torna
possvel para pessoas que comearam a poder. Atrevo-me hoje a tomar as
vozes de meus tantos irmos presos, a represent-los por inteiro, para dizer:
muito obrigado por no nos deixarem sozinhos, muito obrigado por nos
quererem tanto bem. Para pedir-lhes que mantenham sua solidariedade para
com a Amrica Latina, continente que est comprando com sangue o seu
direito de ser livre. Esta noite, podemos falar de priso e morte sem perder a
alegria. Pois nossa alegria a alegria do triunfo militante, pois nossa festa a
festa do esforo combatente. Estamos felizes porque soubemos assumir a dor
das outras pessoas. No existe forma adequada para agradecer pelo que me
deram. A vocs devo o ar livre, a luz, as ruas e as vozes, o sonho e os livros.
Vocs me devolveram meus filhos e minha esposa: meu lugar de carinho,
minha permanente ternura. Tenho vergonha de estar aqui falando, dizendo
coisas. A nica coisa que posso lhes transmitir minha f no homem,
minha obscura sabedoria de preso. Precisamente a vocs, obstinada gente boa
que acaba de realizar o impossvel. Vocs que sabem e podem. para vocs a
festa, para vocs o carinho. Sou eu quem os abraa e aplaude.
Os alemes choraram e dos latino-americanos melhor nem falar.
No era para menos. Segundo nos conta Olga (pois David muito discreto)
uma moa abraou-o e acariciou suas costas durante um longo instante,
agradecendo o muito que tinha lhe dado. Depois de tudo, a moa tinha
razo. Sem saber nem pretender, David tinha brindado aquela comunidade
com a excepcional ocasio de expressar o melhor de si mesma.
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prpura e quando sinto uma dor intensa no pronuncio nenhuma interjeio, nem as importadas, nem as domsticas, simplesmente porque
emito um som estranho que seria melhor definido como onomatopaico,
embora o dicionrio registre alguns exemplos de onomatopeias (miau,
gluglu, catapluft) que, sem dvida e por sorte, nada tm a ver com os
grunhidos, os bufos ou estridncias guturais que costumo produzir em
tais lancinantes ocasies.
Por exemplo, o que pensaria eu de mim mesmo se, no ms passado, exatamente na quarta-feira, 9, eu tivesse gritado gluglu ou catapluft
quando o professor Ordez apertou meu dedo com a costumeira e consistente porta de seu Volkswagen? Em troca, minha modesta estridncia
gutural, acompanhada de um olhar incisivo (no na acepo de
categrico, mas de que talha ou corta), certamente no deixou ao
pobre Ordez a menor dvida acerca de meu dio instantneo, dio
por outro lado injusto, alm de instantneo, j que ele s tinha esmagado
meu indicador por uma imperdovel distrao e no por xenofobia militante. Reconheo no entanto que no representou nenhum consolo ou
atenuante para mim a indubitvel certeza de que aquele tarado seria
capaz de massacrar, com toda a imparcialidade e igual falta de jeito, o
dedo de qualquer um de seus queridos compatriotas. Embora parea
mentira, aquela desgraa me fez rir, pois durante alguns minutos
parecamos dois caras plidas (felizmente no apareceu nenhum sioux
no horizonte): eu, porque estive a ponto de desmaiar em meio a meus
grunhidos guturais, e Ordez porque ele tambm. Com a nica diferena de que o dedo era meu. No entanto, eu teria sentido, no mesmo
grau, esse dio instantneo e injusto, devo reconhecer, que senti por meu
colega quando estive a ponto de desmaiar, se o dono do Volkswagen
fosse um uruguaio de Paso Molino, de Tambores ou de Palmitas? Tenho
minhas dvidas a esse respeito, mas como a nica forma de resolv-las
seria que um compatriota de Paso Molino, de Tambores ou de Palmitas
me esmagasse o dedo com a porta de seu Volkswagen (bem, a marca poderia ser outra), no vejo nenhum inconveniente em manter-me no
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Beatriz (A anistia)
Anistia uma palavra difcil ou, como diz meu av Rafael, muito cabeluda, porque em espanhol tem um M e um N que vm sempre juntos.13 Anistia quando perdoam e retiram o castigo de algum. Por exemplo: se eu venho da escola com a roupa suja e Graciela, ou seja, minha
me, me diz vai ficar sem sobremesa por uma semana e depois eu me
comporto muito bem e trs dias depois trago boas notas em aritmtica,
ento ela me d uma anistia e posso voltar a tomar sorvete, daquele que
vem numa taa canoa e que so trs bolas, uma de baunilha, uma de
chocolate e outra de morango, o que vem a ser a mesma coisa que meu
av Rafael chama de frutillas.14
Tambm quando Teresita e eu estivemos brigadssimas porque
ela me deu um sopapo cheio de barro e passamos quase duas semanas
sem dar nem oi e sem emprestar nem a escova de dentes, vi de repente
que a pobre estava muito arrependida e no podia viver sem meu
carinho e me dei conta de que suspirava fundo quando eu passava e
comecei a ficar com medo de que se suicidasse como na televiso, de
modo que a chamei e disse olhe, Teresita, vou anistiar voc, mas ela pensou que eu tinha chamado s para xingar e comeou a chorar lgrimas
cada vez mais fortes at que no tive outro remdio seno dizer deixe de
ser burra, Teresita, anistiar quer dizer perdoar e ento ela comeou a
chorar de novo, mas com outro choro, porque esse era de emoo.
Tambm outro dia vi na televiso uma tourada que como um
estdio onde um senhor brinca com um manto vermelho e um touro
que se faz de furioso mas bonssimo, e depois de muitas e muitas horas
brincando o homem se aborreceu e disse no quero brincar mais com
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esse bicho que se finge de furioso, mas o touro queria continuar e ento
foi o homem quem ficou furioso e como era muito estpido enfiou-lhe
bem aqui na nuca uma espada muito comprida e o touro que j estava
quase pedindo anistia olhou o senhor com uns olhos muito, mas muito
tristes e desmaiou bem no meio do campo sem que ningum lhe desse
anistia e eu fiquei com tanta pena que me saiu um suspiro fininho fininho e naquela noite sonhei que acariciava o touro e dizia fofo, fofo,
como digo para Sarcasmo, o cachorro de Anglica, e ele sacode o rabinho
contentssimo, mas no sonho o touro no sacudia o rabo porque continuava desmaiado no meio do campo e eu lhe dava anistia, mas em
sonho no vale.
Meu dicionrio diz que anistia o esquecimento dos delitos
polticos e eu estava pensando que talvez deem anistia para meu pai, mas
tambm fico com medo de que o general que botou meu pai preso
poltico tenha boa memria e no esquea os delitos. Claro que, como
meu pai muito, mas muito bom e sabe at varrer os calabouos, no
mnimo o general que o botou preso poltico vai fazer vista grossa, igual
meu av faz comigo, como se esquecesse os delitos, embora na verdade
no esquea, e talvez uma noite o general que botou meu pai preso
poltico lhe d anistia assim de repente e, sem dizer nada, deixe a porta
sem passar a chave para que meu pai saia na ponta dos ps e chegue bem
quietinho at a rua e pegue um txi e conte muito feliz ao chofer que
acabam de lhe dar anistia, de modo que melhor que o leve imediatamente para o aeroporto porque quer vir logo nos ver, a Graciela e a
mim, e saiba que eu tenho, dir ao chofer, uma filhinha que no vejo h
muitos anos, mas que sei que lindssima e muito boa e o chofer dir ah,
que interessante, senhor, eu tambm tenho uma menina e continuaro
falando, falando, falando porque at o aeroporto uma quantidade
brbara de quilmetros e quando chegarem j ser noite e meu pai dir o
problema que, como estive preso poltico, agora no tenho dinheiro
para lhe pagar e o chofer dir no se aflija senhor, so apenas trinta e oito
milhes, pague quando puder e conseguir trabalho; e meu pai, como o
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senhor bom, muito obrigado; e o chofer, no h de qu e d lembranas sua senhora e sua menina que to boa e to linda e faa
uma boa viagem e meus parabns pela anistia.
Anglica, em compensao, muito rancorosa e quando Sarcasmo a morde um pouco, no muito porque tem os dentes bem
pequenininhos e no faz por mal, ela bate forte nele e no fala com ele
por trs dias e eu sei que Sarcasmo quase morre de tristeza e ela, mesmo
assim, no lhe d anistia. Eu fico com muita pena do Sarcasmito e at
levaria ele para casa, mas Graciela sempre diz que no exlio no se deve
ter animaizinhos, pois a pessoa se afeioa e de repente um dia tem que
voltar a Montevidu e no pode levar o cachorro ou o gato porque eles
fazem xixi nos avies.
Quando vier a anistia vamos danar tango. Os tangos so umas
msicas tristes que se danam quando se est alegre e assim se fica triste
de novo. Quando vier a anistia, Graciela vai me comprar uma boneca
nova porque a Mnica j est boa para ser aposentada. Quando vier a
anistia, no haver mais touradas nem vo me sair mais espinhas. E meu
av Rafael vai me comprar um relgio de pulso. Quando vier a anistia
no haver mais amnsia. A anistia como um feriado que vai se esparramar por todo o pas. Os avies e os navios chegaro lotados de turistas
cheios de grana que viro para ver a anistia. Os avies ficaro to cheios
que haver gente de p nos corredores e as senhoras diro aos senhores
que estiverem sentados ah, o senhor tambm vai ver a anistia e ento o
senhor no ter outro remdio seno lhe ceder o lugar. Quando vier a
anistia haver colherinhas e camisetas e cinzeiros com a palavra anistia e
tambm bonecas que diro a-nis-ti-a e tocaro uma musiquinha quando
algum apertar suas barrigas. Quando vier a anistia acabaro as tabuadas
de multiplicar, sobretudo a de oito e a de nove que so uma chatura.
Imagino que quando meu pai vier um dia ficar pelo menos um ano
falando sempre da anistia. Teresita diz que Sandra disse que os pases
muito frios tm menos anistia, mas acho que no deve ser to grave,
porque como l fora est nevando e sopra um vento gelado os presos
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Ento est me achando estranho? Pode ser, Rolando, pode ser. Alm
disso, fazia muito tempo que no nos vamos. No entanto, deveria estar
feliz. Quem sabe no estou feliz e justamente isso que me deixa estranho? Acha que impossvel? Estamos to acostumados com as mortes
que quando por exemplo um nascimento acontece nos pega desprevenidos, ou como diria um aficionado local de beisebol (est vendo como
estou me adaptando?) nos pega fora da base. Voc sem dvida estar se
perguntando o que houve. E no vai querer acreditar que o ocorrido seja
algo estimulante. Desconfia, no ? Eu tambm me tornei desconfiado.
Entretanto, o elemento novo uma boa notcia: soltaram Claudia, que j
est na Sucia. No imaginava, hein? Pois foi solta e j est na Sucia e
j me escreveu e eu j respondi. O que acha? Seis anos so longussimos,
sobretudo quando se leva em conta que eu pude me safar e ela no, ela
teve que engolir esses seis anos de merda, de humilhaes, de podrido,
de delrio. E agora diga, como ia poder aproveitar minha liberdade,
como ia ter prazer com meu trabalho (por fim, estou fazendo alguma
coisa de que gosto, que corresponde minha vocao), com o mero e
simples fato de dizer em voz alta o que me der na telha, como ia usufruir
minha vida se sabia que Claudia estava l, arrebentada, corajosa, mas
ferida, leal, mas terrivelmente ansiosa? Tenho trinta e dois anos e sou um
sujeito robusto e sexualmente so, em pleno vigor. Sabe bem que nessa
idade, quando se normal, impossvel passar seis anos sem ter, de vez
em quando, uma mulher. Eu tambm sei e Claudia sabe e em suas cartas
me sugeria indiretamente e por outras vias me mandava dizer sem evasivas: No se preocupe, ngel. Eu o amo como nunca, mas no posso
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anos, a outra, ou seja, a nica, a martirizada, a leal, estava livre e na Sucia e com amigos. Essa a histria. Por enquanto. Ns nos escrevemos,
nos falamos ao telefone. Posso garantir que o telefone no foi o meio de
comunicao ideal, pois ambos chorvamos e no final ainda custou um
monte de dinheiro s para ouvir, durante quinze minutos, trs
monosslabos e quatro soluos. Desde o primeiro momento, escrevi
dizendo que viesse em seguida e comprei uma passagem de avio, open,
para que viajasse quando quisesse e pudesse. Mas em resposta notei certa
reticncia e comecei a imaginar coisas absurdas. Imagine a liberdade que
se tem quando se comea a imaginar coisas absurdas. As razoveis tm a
ver com vistos, residncias, passaportes etc., mas eu escolhi as outras,
pelos menos algumas, e enumerei-as em minha outra carta. E hoje acabo
de receber sua resposta. Diz assim, vou ler: Voc continua pensando na
Claudia que deixou de ver h seis anos, mas nesses seis anos aconteceram
muitas coisas e at os rostos mudam e essa transformao tem um ritmo
distinto da simples passagem do tempo. Sei que voc, por exemplo, tem
o mesmo aspecto, s com seis anos a mais. o normal, no? Mas eu,
querido, no tenho o mesmo rosto. Essa a reticncia que percebeu em
minha carta. Mas como imaginou tantas barbaridades, tomei a seguinte
deciso: fiz vrias fotos e confesso que, embora no acredite, selecionei a
melhor e, bem, essa que estou mandando, ngel, quero que antes de
decidir se devo ir ou ficar por aqui veja como esses seis anos passaram
por meus olhos, por minha boca, por meu nariz, por minhas orelhas, por
minha testa, por meu cabelo. E, se me quer de verdade e me respeita,
quero (sabe bem que sou catlica, assim eu lhe peo pelo amor de Deus)
que seja rigorosamente sincero comigo. Voc se d conta, Rolando, de
tudo que essa carta diz? Pode ler, como eu, todas as entrelinhas? Por isso
eu disse h pouco que talvez esteja feliz e isso que me deixa um pouco
estranho. Estar feliz e, no entanto, no ser feliz. Ah, nunca imaginei que
estar feliz pudesse incluir tanta tristeza, sabe?
E o que voc sentiu quando ele leu a carta, quando lhe contou a
histria da foto?
Desconcerto. Realmente, acho que me senti desconcertado.
Desconcertado e culpado?
No. Culpado, no.
E ento por que chegou aqui com essa cara de velrio?
No seria porque esse enredo no exatamente uma festa?
Quando diz enredo, est se referindo ao nosso?
Sim, o que mais poderia ser?
No acho que seja um enredo.
Ah, no? Mas .
Est arrependido?
No. Mas no uma festa.
Voc j disse isso. Mas a situao deles tambm no uma
festa.
A de Claudia e ngel? Tambm no. Mas pelo menos
transparente. Uma dor transparente. Um amor transparente.
Ao contrrio do nosso, que opaco.
No foi o que eu disse.
Mas deu a entender. Tudo o que no diz, voc est dizendo
do mesmo modo. Pensa por acaso que eu no me digo isso?
Sabe muito bem que para mim a nica coisa opaca que
ainda no contamos a Santiago. O resto, no. Eu a amo de verdade, Graciela, e isso no opaco.
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Morei mais de dois anos em Alamar, uma regio situada a uns quinze
quilmetros de Havana e integrada basicamente por blocos de moradias construdos incessantemente por brigadas de trabalhadores da capital. uma
das maneiras que os cubanos inventaram para tentar resolver seu rduo
problema habitacional sem que a produo se ressentisse com isso. Em cada
fbrica ou oficina ou armazm forma-se pelo menos uma brigada de 33 trabalhadores cada. Como no so, em geral, operrios da construo civil,
comeam com um curso bsico e em seguida dedicam-se construo de edifcios de cinco a doze andares, que sero ocupados posteriormente pelos colegas (ou por eles prprios) que necessitem mais urgentemente de uma nova
casa. O vazio laboral que cada brigada deixa em seu centro de trabalho
compensado pelas horas extras dos outros. Curiosamente, a ideia veio dos operrios: o governo limitou-se a viabiliz-la.
Mas h um detalhe adicional que nos concerne diretamente. Em
cada um desses edifcios, as brigadas cedem um apartamento (se for de cinco
andares) ou quatro (se for de doze) a famlias de exilados latino-americanos,
que os recebem j mobiliados, com geladeira, rdio, televiso, fogo a gs e
at lenis e louas. Tudo gratuito.
Vem da que um bom nmero de latino-americanos concentra-se
precisamente em Alamar. As crianas e os adolescentes uruguaios costumam
ser, se no bilngues, pelo menos bitonais. Quando brincam e correm pelas
ruas com seus cupinchas locais, falam com um puro sotaque cubano. Mas
quando entram em casa, onde os pais continuam usando robusta e conscientemente o ch, ento os moleques, que os cubanos chamavam de fies,
voltam a ser botijas novamente.
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estranho. Meu filho vai sair da priso, vai chegar aqui qualquer dia
desses e eu recebo a notcia com toda a naturalidade, quase como se fosse
o corolrio de um pressgio. Seria mesmo to previsvel? Quantos, at
com menos anos de priso que Santiago, um dia no aguentaram mais a
angstia ou o cncer ou sua prpria histria e morreram? Quantos outros enlouqueceram de desalento e impotncia? No entanto, desde o
comeo eu sabia que ele ia sair. Por instinto, talvez, por intuio de um
velho corao. O mais curioso que quando Graciela me contou, nesse
primeiro instante revelador, no pensei nele, nem em mim, nem em
minha neta, nem no problema cabeludo que o espera aqui. S pensei em
sua me, em Mercedes. Pensei nela como se estivesse viva, como se meu
legtimo, razovel impulso fosse ir correndo avis-la, dizer que logo
poderia abra-lo, apert-lo, tocar seu rosto, chorar em seu ombro, sei l
mais o qu. E assim percebi que, apesar dos anos transcorridos, apesar de
Lydia hoje e outras mais ontem e anteontem, ainda existe um vnculo especial que me une a Mercedes, ao nome e lembrana de Mercedes,
com seu vestido invariavelmente marrom; seu olhar quieto, que sempre
tinha l no fundo uma pontinha de emoo; suas mos fracas e no entanto seguras; seu sorriso inconfundvel e muitas vezes hermtico; sua
terna solicitude para com Santiago. s vezes me passa pela cabea (uma
loucura como outra qualquer) que ela bem que gostaria de um biombo
atrs do qual pudesse falar com Santiago, acariciar Santiago, olhar Santiago sem que o resto do mundo (eu includo no mundo) a importunasse
com sua curiosidade, sua deferncia ou sua desconfiana. Mas como,
claro, no havia biombo, sofria um pouco, no escandalosamente, mas
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com moderao, como era de seu estilo. No era feia, Mercedes. Nem
linda. Tinha um rosto personalssimo e atraente, impossvel de confundir ou esquecer. E uma bondade bastante complicada, mas legtima.
Agora, a tanta distncia, se quisesse ser descaradamente franco comigo
mesmo, talvez no soubesse reconhecer por que me apaixonei ou se realmente me apaixonei algum vez por essa mulher to descomedidamente
comedida. Digo-me isso e sinto imediatamente que estou sendo injusto.
claro que devo ter me apaixonado. S que no me lembro. Conversvamos entre ns bem menos do que um casal comum conversa, mas,
claro, no ramos um casal comum. Entretanto, essas poucas conversas
certamente no eram banais. Ela me desconcertava bastante, mas nunca
pude ofend-la, ou gritar ou recriminar-lhe alguma coisa. Sempre parecia
algum recm-salvo de um naufrgio, que ainda no se habituara prpria sobrevivncia. Foi difcil para mim comunicar-me com ela, mas nas
poucas vezes em que consegui foi uma comunicao milagrosa, quase
mgica. Fazer amor com Mercedes era, talvez, como fazer amor com um
conceito e no com um corpo, mas em seguida ela ficava to doce e to
trmula que esse eplogo representava uma unio mais estreita do que o
ato em si. S conseguia recuperar essa mesma expresso de modelo de
Filippo Lippi quando ouvia boa msica. Quando tnhamos apenas dois
anos de casados, em um de seus infrequentes impulsos de confidncia,
que eram como uma concesso que nos fazia s vezes (a ela e a mim),
disse que bom seria morrer ouvindo alguma das Quatro Estaes de
Vivaldi. E muitos anos depois, exatamente em dezessete de junho de mil
novecentos e cinquenta e oito, quando estava lendo e de repente ficou
imvel para sempre, no rdio (no era sequer um toca-discos) estava
tocando a Primavera. Santiago ficou sabendo e talvez por isso essa palavra, primavera, tenha se ligado para sempre sua vida. como o seu termmetro, seu padro, sua norma. Embora a pronuncie muito raramente, sei que para ele os acontecimentos do mundo em geral e de seu
mundo em particular se dividem em primaveris, pouco primaveris e
nada primaveris. Suponho que estes ltimos cinco anos no tenham lhe
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parecido primaveris. Pois bem, agora vai sair. Terei feito mal em aconselhar Graciela a no escrever sobre a nova realidade? Faltam apenas doze
dias para que fique sabendo. Mas talvez seis meses ou seis anos tenham
que se passar para que possa comprovar efetivamente se meu conselho
foi um acerto ou uma burrada. A vida continua, dizem e repetem as canes banais ou, se no o dizem, pelo menos insinuam. E como so as
canes banais que dizem isso, ns, os sensatos, descartamos radicalmente essa xaropada. E, no entanto, em tudo o que cafona h sempre
uma semente de realidade. A vida continua, evidente, mas no h uma
forma nica de continuar. Cada um tem seu caminho e seu rumo. Conheo o caso difano desse casal, ngel e Claudia (tenho a impresso de
que ele foi meu aluno), porque a prpria Graciela me contou, espantadssima. Para eles a vida continuou desse modo terno, comovedor.
Ah, mas isso no lei. comovedor e terno justamente porque aconteceu sem violncia interior, com uma inevitabilidade absolutamente natural. Confio em Santiago. Creio que, apesar do muito que amou e admirou sua me, puxou mais a mim do que a ela. Imagino o que eu faria,
qual seria a minha atitude num caso assim. E por isso confio em Santiago. claro que tenho sessenta e sete e ele apenas trinta e oito. Mas tem
Beatricita, que uma maravilha e que preencher plenamente essa nova
existncia de Santiago. At agora tinha guardado essa histria para mim
mesmo, mas ontem noite contei a Lydia. Ouviu meu longo monlogo
sem me interromper nem uma nica vez. Tinha (foi o que confessou em
seguida) duas sensaes desencontradas. Por um lado, curtia aquela
prova de confiana. Penso que a partir dessa noite, murmurou, nos
aproximamos mais, penso que j somos um casal. Talvez. Mas tambm
ficou preocupada com minha preocupao. Ficou um momento em
silncio. Enrolou e desenrolou muitas vezes uma de suas lindas madeixas
negras e depois disse, deixe-os sem deix-los, no intervenha a no ser
que peam, deixe-os e ver que a vida no somente continua, como diz
voc, mas tambm se acomoda, se reajusta. Talvez tenha razo. Todo
esse terremoto nos deixou mancos, incompletos, parcialmente vazios,
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voc tem alento para dar e vender / ter que ajudar os desalentados / ah
mas quem vai ajudar voc
que dio e no entanto no quis despedaar-me nele perder-me nele /
durante os primeiros anos eu o reguei cotidianamente como se fosse uma
planta extica / depois compreendi que no podia lhes render essa homenagem e alm disso havia muita coisa a pensar e programar e analisar e
fazer / vo apodrecer sozinhos isso a
conseguiram arrastar o andrs at a loucura / talvez isso tenha lhe acontecido por excesso de inocncia excesso de f no homem / tudo o surpreendia sempre pensava at aqui chegaram e acabou no podem ser to cruis
mas sim eles eram / vou convenc-los e comeava a falar e arrebentavam
sua boca / excesso de inocncia por isso enlouqueceu
pelo relgio de meu vizinho sei que dormi mais de uma hora / j posso
pensar melhor / me sinto gil e resolvo ir ao banheiro / inimaginvel essa
liberdade de ir ao banheiro todas as vezes que quiser / minha primeira
mijada de homem livre / salve
o da minha direita est lendo time e esquerda fica o corredor / como
encontrarei o esprito do mundo a formao e deformao do mundo /
seria muita falta de sorte se justo agora que sa o planeta explodisse
beatricita que festa nos espera / a verdade que no sei exatamente o que
me aguarda / evidentemente h um problema sei que h um problema /
nas ltimas cartas graciela no a mesma e no coisa para se ler nas entrelinhas / s vezes parece que est doente e no quer me dizer / ou talvez
a menina e isso nem pensar beatricita que festa nos espera / at o velho
ficou enigmtico e no comeo atribu isso censura mas no
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cinco anos muito / graciela um encanto mas o exlio uma fenda que
se aprofunda diariamente / graciela um encanto e temos muito passado
em comum e isso pesa / decididamente eu a amo como no vou am-la
mas essa dvida um pouco louca no favorece o amor e o mais provvel
que esteja sendo injusto
o velho respondeu em cdigo quando perguntei do emilio / foi prudente
mas logicamente um pouco obscuro embora tenha a impresso de que
efetivamente entendeu e j estou melhor j no sonho com emilio da
carnia e das cinco-marias / anbal falou longamente dele sem saber nada
sobre os pormenores claro / ele sofreu em sua prpria carne / parece
que era um monstro com todas as letras
como soa bem o besouro / senhores estou voando
a aeromoa sorri e eu sorrio para ela / talvez tenha se impressionado com
minha boina mas no vou tir-la s faltava essa
o que pensaria a velha de tudo isso / talvez seja melhor que no tenha
visto nem sentido / falava pouco mas comigo falava / entre ela e o velho
havia uma terra de ningum mas em certas ocasies a atravessavam algumas vezes ele algumas vezes ela / o velho sempre se mostrou um pouco
desconcertado e no era para menos mas a velha se comprazia em me
dizer muito em segredo o quanto o amava / sempre sob o juramento de
que jamais abriria a boca / linda velhinha a velha ainda sinto falta dela
depois desses cinco anos de inverno ningum vai me roubar a primavera
a primavera como um espelho mas o meu est com a ponta quebrada /
era inevitvel no ia sair inteirinho desse bem nutrido quinqunio / mas
apesar da ponta quebrada o espelho serve a primavera serve
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ser preciso voltar mas para que pas que uruguai / ele tambm ter uma
ponta quebrada e mesmo assim refletir mais realidades do que quando o
espelho era virgem / ser preciso voltar mas para que primavera / no importa em que estado calamitoso esteja mas quero recuperar minha
primavera / eles a cobriram de folhas secas de neve televisionada de
papais nois suando de alunos de dan mitrione de mundialito ganho e
mundialote perdido de assessores subdesenvolventes mas o que ignoram
que sob essas camadas de merda permanecem a velha e a nova
primavera talvez com uma ponta partida mas com trigais e umbuzeiros e
tangos proibidos e autorizados e o compadre gervasio e cielitos lindos e
central operria e pastoreios e rebeldias e regulamento provisrio e
comits de base e povo ingovernvel e via lctea e autonomia universitria e mate amargo e o plebiscito e o time do colombes / ser preciso voltar / naturalmente / e o uruguai com uma ponta quebrada
mostrar sem vaidade essa ferida em linha reta e o universo acatar compreender respeitar
levaram a bandeja e agora meus joelhos doem um pouco / que coisa ser
essa que at estou achando bom que os joelhos me doam
as pernas de graciela as coxas de graciela o bosquezinho de graciela
o que os meus de l estaro fazendo agora
enquanto o suave letrgico besouro continua zumbindo o senhor do time
adormeceu em meu ombro / pensei que merecia melhor destino / por
sorte uma jovem que est sua direita espirra providencialmente e com
vontade / o vizinho acorda sobressaltado e se endireita murmurando
sorry / o time cai para o meu lado e eu o devolvo / na cana podamos ler
claudia que amplido no sei de que se queixa a cruz vermelha / preciso
dormir mas confio que no me apoiarei no ombro pontiagudo de meu
vizinho
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elegante / cavaleiro arruinado / manolo dizia que era um duque em desgraa e no final todos o chamvamos de duque e quando ficava fino reclamava salada de endvia ou nada ento silvio completou seu tratamento
nobilirquico e ele tornou-se para sempre o duque de endives / e adorava
/ uma vez em el chaj foi apresentado recm-importada esposa de um
diplomata noruegus e beijou sua mo e murmurou muito elegante
sobrepondo-se ao short pudo e s alpargatas duque de endives senhora
para servi-la e claro para a pobre escandinava foi a mesma coisa que
dissesse patati-patat
o joelho continua me fodendo / deve ser outra vez a ameaa de reumatismo artroptico / mas agora vou fazer ginstica e alm de seis metros
quadrados qualquer pocilga vai parecer para mim o salo dos passos
perdidos
estou contente / no sei se d para notar mas estou contente / espero que
no se note / o da minha direita vai pensar que sou um pirata do ar / e
sou de terra mster sou de terra / que curioso os nicos piratas que se tornaram completamentre anacrnicos foram os do mar / sandokan incorporated e ramos anexos
os amigos caramba / silvio nunca mais porm rolando e manolo eu vou
poder encontrar / bem parece que o duque est no mxico / brbaro /
manolo em gotemburgo / separou-se da tita / provavelmente os dois tm
razo / a culpa no est neles / essa sacudidela que nos abalou a todos /
alm do mais o exlio achata tritura / o exlio tambm uma mquina /
tem que botar em algum a culpa de toda a frustrao de toda a angstia
e claro sacaneia-se o vizinho o prximo mais prximo / oxal graciela e
eu
tambm tenho vontade de ver o mar
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certo desdm por algum outro que no cepo de seu medo tinha que engolir os gemidos etc. etc.
o medo o pior abismo e s existe um capaz de se arrancar do poo agarrando os prprios cabelos e puxando para cima / pouco a pouco vai se
aprendendo a no ter medo do medo / muito pouco a pouco / e quando
voc o enfrenta o medo foge
a aeromoa das unhas rosa plido passa oferecendo fones de ouvido para
os que quiserem ver o filme / mas no uma gentileza da casa / custa
dois dlares e meio e estou pobre de solenidade e solene de pobreza d
no mesmo / e digo que pelo sim pelo no s queria dormir / por acaso
queria
a tristeza tambm temvel / no somente a prpria mas tambm a alheia / o que fazer por exemplo diante do companheiro de cela um
homo daqueles que de repente se sacode e solua em meio eterna penumbra da noite na priso / v saber o que recorda ou anseia ou lamenta
ou suporta / o soluo fraterno empapa como uma chuvinha pertinaz da
qual impossvel proteger-se / e assim que voc fica calado at os ossos
comeam a despertar uma a uma as tristezas pessoais / as tristezas so
como os galos / canta uma e em seguida as outras se inspiram / e s assim a pessoa se d conta de que a coleo enorme e que inclusive h
tristezas repetidas
o filme de pianistas / deve ser algo assim como um concurso internacional para jovens talentos / sem som no parece msica mas ginstica
/ cmulo da coincidncia os dois so pianistas / a moa prolixa e o rapaz
desalinhado / na primeira parte ela domina e trocam beijos prolixos na
segunda domina ele e trocam beijos desalinhados / e eu que h cinco
anos no beijo nem prolixo nem desalinhado / o filme claro norteamericano mas uma das jovens competidoras deve ser sovitica pois est
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aeroporto est de folga, muito mais fcil pegar um txi para o aeroporto. Tem alguns aeroportos que alm de txis tm avies. Quando os
txis fazem greve os avies no podem aterrissar. Os txis so a parte
mais importante do aeroporto.
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dizer ideal, mas pelo menos razovel? Que benefcio profundo Santiago
pode tirar de uma unio to forada, onde a menina se transforme meramente em motivo de chantagem? Com certeza no gosta dessa palavra,
reconhece que uma falta de respeito com Santiago e decide
mentalmente apag-la de suas colocaes. Mas o ser humano to imprevisvel. Pode acontecer tambm que Santiago prefira ter Graciela em
uma relao deteriorada a ter Graciela na cama de outro, embora esse
outro seja um amigo da alma ou justamente por causa desse detalhe no
to descartvel. Bem, aqui est enfim o aeroporto, e Rolando desce do
nibus ruminando tanto que por pouco no perde um degrau.
estranho me sinto estranho pisando esse solo / menos mal que chove /
com a chuva tudo se equivale e o guarda-chuva se transforma no denominador comum da humanidade / pelo menos da humanidade protegida
sinto-me estranho mas j vai passar / no se morre de estranheza, mas
pode-se morrer de saudade15 / o que acontece que coisas demais se juntaram / a notcia / a despedida dos meus l / os trmites fodidos / a
careta jactanciosa do penltimo oficial / carrasco / a partida sem ningum para mim / a viagem a longa viagem com sonhos e ardis e projetos
/ bem e as comidas / como no me sentir desconcertado depois de cinco
anos daquele guisado infame
o funcionrio que examina longamente o documento / a verdade que
quatro minutos podem ser uma eternidade / por favor poderia tirar a
boina e cuidadosa comparao com a foto / sempre srio mas muito
vontade de modo que mais uma comparada / sim mais uma / e eu tambm muito vontade / s ento um sorriso e o rosto fechado se transforma em cara de indiozinho bacana / boa sorte amigo / ele me disse boa
sorte amigo e agora esperar as malas / a minha a pobre minha vir ou
no vir / isso vai demorar / e os que esperam / o monto de cabeas atrs das vidraas / se pudesse v-los encontr-los
mas l esto / so eles claro que so eles / uruguaios ptria ou morte /
trabalhadores do mundo inteiro uni-vos / eureca / salve a celeste / fiat
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