BENEDETTI. Primavera Num Espelho Partido Mario Benedetti

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Crditos
Mario Benedetti
c/o Guillermo Schavelzon & Asoc. Agencia Literaria
[email protected]
Todos os direitos desta edio reservados
Editora Objetiva Ltda.
Rua Cosme Velho, 103
Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090
Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825
www.objetiva.com.br

Ttulo original
Primavera con una esquina rota

Capa
Andrea Vilela de Almeida

Imagem de capa
Arthur Tress / Photonica / Getty Images

Preparao de texto
Elisabeth Xavier de Arajo

Reviso
Tamara Sender
Lucas Bandeira de Melo
Ana Kronemberger

Converso para e-book


Abreus System Ltda.

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CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B398p
Benedetti, Mario
Primavera num espelho partido [recurso eletrnico] / Mario Benedetti ; traduo Eliana
Aguiar. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2011.
recurso digital
Traduo de: Primavera com una esquina rota
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
176p. ISBN 978-85-7962-104-8 (recurso eletrnico)
1. Romance uruguaio. 2. Livros eletrnicos. I. Aguiar, Eliana. II. Ttulo.
11-5370. CDD: 868.993953
CDU: 821.134.2(899)-3

Sumrio

Capa
Folha de Rosto
Crditos
Dedicatria
Intramuros (Esta noite estou s)
Feridos e contundidos (Fatos polticos)
Dom Rafael (Derrota e rota)
Exlios (Cavalo verde)
Beatriz (As estaes)
Intramuros (Como andam seus fantasmas?)
O outro (nica testemunha)
Exlios (Convite cordial)
Feridos e contundidos (Uma ou duas paisagens)
Dom Rafael (Uma culpa estranha)
Intramuros (O rio)
Beatriz (Os arranha-cus)
Exlios (Vinha da Austrlia)
O outro (Querer, poder etc.)
Dom Rafael (Com a ajuda de Deus)
Feridos e contundidos (Um medo terrvel)
Intramuros (O complementar)
Exlios (Um homem num saguo)
Beatriz (Este pas)
Feridos e contundidos (Sonhar acordada)
Dom Rafael (Loucos lindos e feios)

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Exlios (A solido imvel)


O outro (Titular e suplente)
Intramuros (O balnerio)
Beatriz (Uma palavra enorme)
Exlios (Penltima morada)
Feridos e contundidos (Verdade e prorrogao)
Dom Rafael (Notcias de Emilio)
O outro (Embasbacado e tudo)
Beatriz (A poluio)
Exlios (A acstica de Epidauro)
Intramuros (Uma mera possibilidade)
Feridos e contundidos (O adormecido)
O outro (Sombras e meias-luzes)
Exlios (Adeus e boas-vindas)
Dom Rafael (Um pas chamado Lydia)
Beatriz (A anistia)
O outro (Use o corpo)
Feridos e contundidos (Merda de vida)
Exlios (Os orgulhosos de Alamar)
Dom Rafael (Remover os escombros)
Extramuros (Fasten seat belt)
Beatriz (Os aeroportos)
O outro (Por enquanto improvisar)
Extramuros (Arrivals Arrives Chegadas)

Dedicatria
memria de meu pai (1897-1971)
que foi qumico e boa gente.

Intramuros (Esta noite estou s)

Esta noite estou s. Meu companheiro (algum dia voc saber seu nome)
est na enfermaria. boa gente, mas de vez em quando no to mau
ficar sozinho. Posso refletir melhor. No preciso armar um biombo para
pensar em voc. Voc vai dizer que quatro anos, cinco meses e catorze
dias tempo demais para se pensar. E tem razo. Mas no tempo demais
para pensar em voc. Aproveito para escrever porque h lua. E a lua
sempre me tranquiliza, como um blsamo. Alm do mais, ilumina,
mesmo que precariamente, o papel, e isso tem l a sua importncia
porque no temos luz eltrica a essa hora. Nos dois primeiros anos no
havia nem mesmo a lua, de modo que no me queixo. Sempre tem algum que est pior, como conclua Esopo. E at pior do que o pior, concluo eu.
curioso. Quando algum est fora e imagina que, por uma
razo ou outra, poderia passar vrios anos entre quatro paredes, pensa
que no conseguiria aguentar, que seria simplesmente insuportvel. No
entanto, suportvel, como pode ver. Eu, pelo menos, suportei. No nego que passei por momentos de desespero, alm daqueles em que o
desespero inclui sofrimento fsico. Mas agora estou me referindo ao
desespero puro, quando se comea a calcular, e o resultado esta jornada
de clausura multiplicada por mil dias. Apesar de tudo, o corpo mais adaptvel do que o esprito. O corpo o primeiro a se acostumar aos novos
horrios, a suas novas posturas, ao novo ritmo de suas necessidades, a
seus novos cansaos, a seus novos descansos, a seu novo fazer e a seu
novo no fazer. Se tem um companheiro, voc pode, inicialmente,
consider-lo um intruso. Mas pouco a pouco vai se transformando em

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interlocutor. O de agora o oitavo. Creio que me dei bastante bem com


todos. O duro quando os desesperos no coincidem e o outro o contagia com os dele ou voc, com os seus. Tambm pode acontecer que um
dos dois se oponha frontalmente ao contgio e que essa resistncia origine um choque verbal, um enfrentamento, e nesses casos, justamente, a
condio de clausura de pouca ajuda e, ao contrrio, exacerba os nimos, leva um (e outro) a pronunciar afrontas e at a dizer, algumas vezes,
coisas irreparveis que, em seguida, tm seu significado agravado pelo
simples fato de que a presena do outro obrigatria e, portanto, inevitvel. E quando a situao se torna to difcil que os ocupantes do lugarzinho nem sequer se dirigem a palavra, ento essa companhia, embaraosa e tensa, deteriora a pessoa muito mais, e mais rapidamente, do
que a solido total. Por sorte, nesse j longo histrico, tive um nico
captulo desse estilo, e durou pouco. Estvamos to cheios desse silncio
em duas vozes, que uma tarde nos olhamos e quase simultaneamente
comeamos a falar. Depois foi fcil.
H aproximadamente dois meses no tenho notcias suas. No
pergunto o que houve porque sei o que houve. E o que no. Dizem que
dentro de uma semana tudo se regularizar outra vez. Tomara. No sabe
como uma carta importante para qualquer um de ns. Quando tem recreio e samos, sabe-se imediatamente quem recebeu carta e quem no.
H uma estranha luz nos rostos dos primeiros, embora muitos tratem de
esconder sua alegria para no entristecer ainda mais os que no tiveram
essa sorte. Nas ltimas semanas, por razes bvias, todos estvamos com
caras jururus, e isso tambm no bom. De modo que no tenho resposta para nenhuma de suas perguntas, simplesmente porque careo de
suas perguntas. Mas eu, sim, tenho perguntas. No as que conhece sem
necessidade de que eu as faa e que, diga-se de passagem, no gosto de
fazer para no lhe dar a tentao de um dia (brincando ou, o que seria
muito mais grave, a srio) responder: No. Queria simplesmente perguntar pelo Velho. H muito que no me escreve. E neste caso tenho a
impresso de que no existe qualquer outro motivo para que eu no

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receba cartas. Somente faz muito tempo que no me escreve. E no sei


por qu. Repasso s vezes (s mentalmente, claro) o que consigo lembrar de ter escrito em algumas de minhas breves mensagens, mas no
acho que houvesse nelas nada que o ferisse. Voc o v com frequncia?
Outra pergunta: como est indo Beatriz na escola? Em sua ltima
cartinha, tive a impresso de notar certa ambiguidade em suas informaes. Voc j percebeu o quanto sinto sua falta? Em que pese minha capacidade de adaptao, que no pouca, essa uma das faltas s quais
nem o esprito nem o corpo se acostumaram. Pelo menos at hoje.
Chegarei a habituar-me? No creio. Voc se habituou?

Feridos e contundidos (Fatos polticos)

Graciela disse a menina, com um copo na mo. Quer


limonada?
Vestia uma blusa branca, calas jeans, sandlias. Os cabelos
negros, compridos mas no demais, presos na nuca com uma fita amarela. A pele muito branca. Nove anos; dez, talvez.
J disse para no me chamar de Graciela.
Por qu? No o seu nome?
Claro que meu nome. Mas prefiro que me chame de
mame.
Est bem, mas no entendo. Voc no me chama de filha,
mas de Beatriz.
outra coisa.
Bem, quer limonada?
Sim, obrigada.
Graciela aparenta trinta e dois ou trinta e cinco anos, e talvez os
tenha. Veste uma saia cinza e uma camisa vermelha. Cabelo castanho, olhos grandes e expressivos. Lbios clidos, quase sem pintura. Tirou os
culos enquanto falava com a filha, mas agora os coloca de novo para
continuar a ler.
Beatriz deixa o copo com limonada em uma mesinha que tem
dois cinzeiros e sai da sala. Porm, ao cabo de cinco minutos, volta a
entrar.
Briguei com Lucila ontem na escola.
Ah.
No se importa?

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Voc sempre briga com Lucila. Deve ser uma forma que vocs tm de se gostar. Porque so amigas, no ?
Somos.
E ento?
Das outras vezes brigamos quase como um jogo, mas ontem
foi srio.
Ah sim.
Falou de papai.
Graciela tira os culos outra vez. Agora demonstra interesse.
Bebe a limonada de um s gole.
Disse que se o papai est preso porque deve ser um
delinquente.
E voc, o que respondeu?
Disse que no. Que um preso poltico. Mas depois pensei
que no sabia bem o que era isso. Ouo sempre, mas no sei bem o que
.
E foi por isso que brigou?
Por isso e tambm porque me disse que em casa o pai dela
diz que os exilados polticos vm para c e tiram o trabalho das pessoas
do pas.
E o que respondeu?
Bem, no sabia o que dizer e ento dei um tapa nela.
Assim o pai dela vai poder dizer tambm que os filhos dos
exilados agridem sua filha.
Na verdade no foi um tapa, s um tapinha. Mas ela reagiu
como se tivesse machucado.
Graciela se abaixa para ajeitar a meia e tambm para ganhar uma
trgua ou refletir.
Bater nela no certo.
Imagino que no. Mas o que ia fazer?
Tambm verdade que o pai dela no deveria dizer essas
coisas. Ele, sobretudo, deveria nos compreender melhor.

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Por que ele sobretudo?


Porque um homem de cultura poltica.
Voc uma mulher de cultura poltica?
Graciela ri, relaxa um pouco e acaricia seu cabelo.
Um pouco, sim. Mas ainda me falta muito.
Falta muito para qu?
Para ser como seu pai, por exemplo.
Ele est preso por culpa de sua cultura poltica?
No exatamente por isso. Seria mais por causa dos fatos
polticos.
Quer dizer que matou algum?
No, Beatriz, no matou ningum. Existem outros fatos
polticos.
Beatriz se contm. Parece prestes a chorar e, no entanto, est
sorrindo.
Ande, traga mais limonada.
Sim, Graciela.

Dom Rafael (Derrota e rota)

O essencial adaptar-se. J sei que com essa idade difcil. Quase impossvel. E contudo. Afinal de contas, meu exlio meu. Nem todos tm
um exlio prprio. A mim quiseram empurrar um alheio. Tentativa
intil. Transformei-o em meu. Como foi? Isso no importa. No um
segredo nem uma revelao. Eu diria que preciso comear apoderandose das ruas. Das esquinas. Do cu. Dos cafs. Do sol, e o que mais importante, da sombra. somente quando algum chega a perceber que
uma rua no lhe estrangeira que a rua para de v-lo como um estranho.
E assim com todo o resto. No princpio, andava com uma bengala,
como convm, talvez, a meus sessenta e sete anos. Mas no era coisa da
idade. Era uma consequncia do desalento. L, sempre fazia o mesmo
caminho ao voltar para casa. E aqui isso me fazia falta. As pessoas no
entendem esse tipo de nostalgia. Acreditam que a nostalgia s tem a ver
com cus e rvores e mulheres. No mximo, com militncia poltica. A
ptria, enfim. Mas eu sempre tive nostalgias mais cinzentas, mais opacas.
Essa, por exemplo. O caminho de volta para casa. Uma tranquilidade,
um sossego, saber o que vem depois de cada esquina, de cada sinal, de
cada banca de jornal. Aqui, em compensao, comecei a caminhar e me
surpreender. E a surpresa me fatigava. E ainda por cima, voc no chega
em casa, mas chega residncia. Cansado de surpreender-me, isso sim.
Talvez tenha sido por isso que recorri bengala. Para amenizar tantas
surpresas. Ou talvez para que os compatriotas que ia encontrando me
dissessem: Mas, dom Rafael, l o senhor no usava bengala, e eu
pudesse responder: Bem, vocs tambm no usavam palet. Surpresa
por surpresa. Um desses assombros foi uma loja com mscaras de cores

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um pouco abusivas, hipnotizantes. No conseguia me habituar s mscaras, embora sempre tenham sido as mesmas. Mas junto com a recorrncia das mscaras, repetia-se tambm o meu desejo, ou talvez minha
expectativa, de que as mscaras mudassem, e diariamente me assombrava
ao encontrar as mesmas. E ento a bengala me ajudava. Por qu? Para
qu? Bem, para apoiar-me quando essa modesta decepo me assaltava,
quer dizer, quando comprovava que as mscaras no haviam mudado. E
devo reconhecer que minha expectativa no era to absurda. Porque a
mscara no um rosto. um artifcio, no? Um rosto s muda por
acidente. Em sua estrutura, digo; no em sua expresso, que, essa sim,
varivel. Em compensao, uma mscara pode mudar por mil motivos.
Digamos: por ensaio, por experimentao, por ajuste, por melhoria, por
deteriorao, por substituio. S depois de trs meses compreendi que
no podia esperar nada das mscaras. No iam mudar, aquelas insistentes, aquelas turronas. E comecei a fixar-me nos rostos. E afinal, foi
uma boa troca. Os rostos no se repetiam. Vinham para mim, e deixei a
bengala. J no precisava mais me apoiar para suportar o espanto. Talvez
um rosto no mude com os dias, mas com os anos; no entanto, os que
vinham a mim (com exceo de uma mendiga ossuda e tmida) eram
sempre novos. E com eles vinham todas as classes sociais, em carros impressionantes, em carrinhos modestos, em nibus, em cadeiras de rodas
ou simplesmente caminhando. Parei de sentir falta do caminho, montevideano e conhecido, da volta a casa. Na nova cidade havia novas rotas.
De rota vem derrota, j sei. Nossa derrota pode no ser total, mas
derrota. J tinha entendido, mas pude confirm-lo totalmente quando
dei minha primeira aula. O aluno ps-se de p e pediu permisso para
perguntar. E perguntou: Mestre, por que razo seu pas, uma democracia liberal estabelecida, passou to rpido a ser uma ditadura militar?
Pedi que no me chamasse de mestre. No nosso costume. Mas pedi
isso apenas para poder organizar a resposta. Repeti o consabido: que o
processo comeou muito antes, no na calma, mas no subsolo da calma.
E fui anotando na lousa as vrias rubricas, os perodos, as caracterizaes,

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os corolrios. O rapaz concordou. E li em seus olhos compreensivos toda


a dimenso da minha derrota, da minha rota. E desde ento volto cada
tarde por um rota distinta. Por outro lado, agora j no regresso a uma
residncia. Tampouco uma casa. simplesmente um apartamento, ou
seja, um simulacro de casa: uma residncia com agregados. Mas a nova
cidade me agrada, por que no? Sua gente menos mal tem defeitos. E muito divertido especializar-me neles. As virtudes claro que
tambm as possuem so geralmente tediosas. Os defeitos, no. O
pedantismo, por exemplo, uma zona prodigiosa, na qual nunca acabo
de especializar-me. Minha bengala, sem ir mais longe, era um indcio de
pedantismo, e obviamente tive que abandon-la. Quando me sinto pedante, me deprecio um pouquinho, e isso pssimo. Porque nunca bom
depreciar-se, a menos que existam razes bem fundadas, o que no
meu caso.

Exlios (Cavalo verde)

Seis meses antes havia escorregado em um piso encerado de hotel, em outra


cidade, batendo violentamente com a cabea no cho. Como consequncia
dessa queda, teve descolamento da retina e agora tinha sido operado. Por indicao mdica, devia permanecer quinze dias deitado, com os olhos vendados, ou seja, durante esse lapso de tempo dependeria totalmente da mulher. A
cada setenta e duas horas aparecia o cirurgio, destapava o olho operado,
comprovava que tudo ia bem e voltava a tap-lo. Era aconselhvel que, pelo
menos durante a primeira semana, no recebesse visitas, a fim de garantir a
quietude completa. Mas podia ouvir rdio e gravador cassete. E, claro,
atender o telefone.
As notcias do rdio no somente no eram tediosas, como nos bons
tempos, mas s vezes chegavam a ser arrepiantes, j que em janeiro de 1975
costumavam aparecer dez ou doze cadveres dirios nas lixeiras portenhas.
Entre noticirios e noticirios, entretinha-se ouvindo fitas de Chico
Buarque, de Viglietti, de Nacha Guevara, de Silvio Rodrguez, e tambm A
Truta de Schubert e algum quarteto de Beethoven.
Outra diverso era propor imagens a si mesmo, o que passou a ser a
mais fascinante de suas atividades passivas, j que sem dvida inclua um
elemento criador, mais original, a bem da verdade, do que o simples e textual registro por meio da viso das imagens que a realidade ia proporcionando.
Agora no. Agora era ele quem inventava e recrutava essa realidade, e ela
aparecia com todos os seus traos e cores na parede interior de seus olhos
fechados.
O jogo era estimulante. Pensar, por exemplo: agora vou criar um
cavalo verde sob a chuva e faz-lo aparecer no reverso das plpebras imveis.

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No se atrevia a ordenar que o cavalo trotasse ou galopasse, porque a instruo do mdico era de que as pupilas no se movimentassem, e no tinha
muita certeza, em sua recente descoberta, se a pupila enclausurada sentiria
ou no a tentao de seguir o galope do cavalo verde. Mas em troca tomava
todas as liberdades ao conceber quadros imveis. Digamos: trs meninos (dois
louros e um pretinho, como na publicidade dos grandes monoplios norteamericanos), o primeiro com skate, o segundo com um gato e o terceiro
jogando com um bilboqu. Ou ainda, por que no?, uma moa nua, cujas
medidas pode escolher cuidadosamente antes de concretizar a imagem.
Ou uma ampla panormica de uma praia montevideana, com uma rea de
barracas de cores muito vivas e outra, em compensao, quase deserta, com
um velho, barbudo, de short, acompanhado de um co que contempla o dono
em estado de rgida lealdade.
Ento o telefone tocou e foi muito fcil esticar a mo. Era uma boa
amiga que, claro, sabia da operao, mas que no perguntou como estava
nem se tudo tinha corrido bem. Tambm sabia que o apartamento de Las
Heras e Pueyrredn no dava para a rua, exceto por uma janelinha do banheiro de onde se viam trs ou quatro metros da praa. No entanto, disse:
Estou ligando s para voc se debruar na varanda e ver que lindo desfile
militar, bem em frente sua casa. E desligou. Ento ele disse mulher que
olhasse pela janelinha do banheiro. O previsvel: uma blitz.
Temos que queimar algumas coisas, disse ele, e imaginou o olhar
preocupado de sua mulher. Apesar da urgncia, tratou de tranquiliz-la um
pouco: No tem nada de clandestino, mas se entram aqui e encontram
coisas que podem ser compradas em qualquer quiosque, como os relatos de
Che ou a Segunda Declarao de Havana (no digo Fanon ou Gramsci ou
Lukcs, pois no sabem quem so), ou alguns nmeros da revista Militncia
ou do jornal Notcias, isso basta para nos trazer problemas.
Ela foi queimando livros e jornais, dando olhadas espordicas ao
pedacinho de praa. Teve que abrir outras janelas (as que davam para o
jardim dos fundos, que separava os dois blocos) para que sassem a fumaa e
o cheiro de queimado. E assim foi durante vinte minutos. Ele tratava

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de orient-la: Olhe, na segunda estante, o quarto e o quinto livros esquerda, Esttica e marxismo, em dois tomos. Viu? timo, na estante de
baixo esto Relatos da guerra revolucionria e O Estado e a Revoluo.
Ela perguntou se devia queimar tambm O cinema socialista e
Marx e Picasso. Ele disse que queimasse primeiro os outros. Esses eram mais
fceis de explicar. No jogue as cinzas na lixeira. Use a descarga. A fumaa o fez tossir um pouco. Ser que no vai fazer mal a seus olhos? Pode
ser, mas temos que escolher o mal menor. Alm do mais, creio que no. Esto
bem tapados.
O telefone voltou a tocar. A amiga de novo: E ento? Gostou do
desfile? Pena que terminou to rpido, no ? Sim, disse ele respirando
fundo, foi magnfico. Que disciplina, que cor, que elegncia. Os desfiles de
soldadinhos me fascinavam desde quando era um moleque. Obrigado por
avisar.
Bom, no precisa queimar mais. Ao menos por hoje. J se foram.
Ela tambm respirou, recolheu com a p as ltimas cinzas, jogou na
privada, deu a descarga, verificou se tinham sido levadas pela gua, lavou as
mos e veio sentar-se, j relaxada, ao lado da cama. Ele conseguiu pegar sua
mo. Amanh queimamos o resto, disse ela, mas com calma. Tenho
pena. So textos dos quais preciso, s vezes.
Tratou ento de pensar no cavalo verde sob a chuva. Mas sem saber
bem por que, o cavalo agora era preto retinto e montado por um robusto cavaleiro que usava quepe mas no tinha rosto. Pelo menos ele no conseguia
distingui-lo na parede interior de suas plpebras.

Beatriz (As estaes)

As estaes so pelo menos inverno, primavera e vero. O inverno


famoso pelas echarpes e pela neve. Quando os velhinhos e as velhinhas
tremem no inverno, diz-se que tiritam. Eu no tirito porque sou menina
e no velhinha e tambm porque me sento perto da estufa. Nos invernos
dos livros e dos filmes aparecem trens, mas aqui no. Aqui tambm no
tem neve. Que chato o inverno aqui. No entanto, tem um vento grandioso que se sente sobretudo nas orelhas. Meu av Rafael diz s vezes
que vai se recolher para seus quartis de inverno. No sei por que no se
recolhe para quartis de vero. Tenho a impresso de que nos outros ele
vai tiritar, pois bem idoso. Nunca se deve dizer velho, mas sim idoso.
Um menino da minha sala disse que sua av uma velha de merda. Eu
ensinei que em todo caso deveria dizer idosa de merda.
Outra estao importante a primavera. Minha me no gosta
da primavera porque foi nessa estao que prenderam meu pai.
Prenderam com um A na frente o que se faz na escola. Mas sem A
como ir polcia. Prenderam meu pai sem A na frente e como era
primavera ele estava com um pulver verde. Na primavera tambm
acontecem coisas lindas, como quando meu amigo Arnoldo me empresta
o skate. Ele bem que me emprestaria no inverno, mas Graciela no deixa
porque diz que tenho tendncia a me resfriar. Na minha sala no tem
mais ningum com tendncia. Graciela minha me. Outra coisa muito
boa que tem na primavera so as flores.
O vero a campe das estaes, porque tem sol e, sem dvida,
porque no tem aulas. No vero s quem tirita so as estrelas. No vero
todos os seres humanos suam. O suor uma coisa bem mida. Quando

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algum sua no inverno porque est por exemplo com bronquite. No


vero minha testa sua. No vero os vagabundos vo praia porque de
mai ningum os reconhece. Na praia no tenho medo dos vagabundos,
mas dos cachorros e das ondas. Minha amiga Teresita no tinha medo
das ondas, era muito valente e uma vez quase se afogou. Um senhor no
teve outro remdio a no ser salv-la e agora ela tambm tem medo das
ondas, mas ainda no tem medo dos cachorros.
Graciela, quer dizer, minha me, repete e torna a repetir que
tem uma outra estao chamada outono. Acho que pode ser, mas nunca
vi. Graciela diz que no outono tem uma grande quantidade de folhas
secas. sempre bom que exista uma grande quantidade de alguma coisa,
mesmo que seja no outono. O outono a mais misteriosa das estaes
porque no faz nem frio nem calor e ento as pessoas no sabem que
roupa vestir. Deve ser por isso que nunca sei quando estou no outono.
Se no faz frio penso que vero e se no faz calor penso que inverno.
E acaba que era o outono. Tenho roupa de inverno, vero e primavera,
mas acho que no vo me servir para o outono. L onde meu pai est, o
outono chegou bem agora e ele escreveu que est muito contente porque
as folhas secas passam entre as grades e ele imagina que so cartinhas
minhas.

Intramuros (Como andam seus fantasmas?)

Hoje estive observando detidamente as manchas da parede. um hbito


que me veio da infncia. Primeiro imaginava rostos, animais, objetos, a
partir dessas manchas; depois, fabricava medos e at pnicos relacionados
a elas. De modo que agora bom convert-las em coisas ou caras e no
sentir medo. Mas aquela poca distante em que o mximo do medo era
provocado por manchas fantasmagricas que ns mesmos fantasivamos
tambm me provoca um pouco de saudade. Os motivos adultos, ou
talvez as desculpas adultas para os medos que chegam depois, no so
fantasmais, mas insuportavelmente reais. Sem dvida, s vezes acrescentamos fantasmas de nossa produo, no ? A propsito, como andam seus fantasmas? Alimente-os com protenas, para no ficarem debilitados. No boa uma vida sem fantasmas, uma vida cujas presenas sejam todas de carne e osso. Mas volto s manchas. Meu companheiro lia,
muito enfronhado em seu Pedro Pramo, mas eu o interrompi assim
mesmo para perguntar se j tinha visto uma mancha, provavelmente de
umidade, que ficava perto da porta. No especialmente, mas agora que
est falando, vejo que verdade, tem uma mancha. Por qu? Fez cara de
assombro, mas tambm de curiosidade. preciso entender que quando
se est aqui tudo pode chegar a ser interessante. Nem vou falar do que
significa poder, de repente, distinguir um pssaro entre as grades ou
(como me aconteceu na cela anterior) quando um ratinho se converte
num interlocutor vlido para a hora do ngelus, ou a hora do
demonius, como ironizava Sonia, lembra? Bem, disse a meu companheiro que estava perguntando porque queria saber se ele reconhecia alguma figura (humana, animal ou simplesmente inanimada) naquela

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mancha. Ele olhou-a fixamente por um instante e disse em seguida: O


perfil de De Gaulle. Que brbaro. Para mim, em compensao, lembrava um guarda-chuva. Contei para ele, que ficou rindo por uns dez
minutos. Essa outra coisa boa quando se est aqui: rir. No sei, quando
se ri de verdade, com vontade, parece que de repente suas vsceras se
reacomodam, como se de repente houvesse razes para otimismos, como
se tudo isso tivesse algum sentido. Era preciso automedicar-se o riso
como tratamento preventivo psicolgico, mas o problema que, como se
pode imaginar, os motivos para rir no sobram por aqui. Por exemplo:
quando me dou conta do tempo que faz que no os vejo: voc, Beatriz, o
Velho. E sobretudo quando penso no tempo que ainda pode transcorrer
antes que volte a v-los. Quando meo esse valor do tempo, no vejo
nada para rir. Acredito que tampouco para chorar. Eu, pelo menos, no
choro. Mas no me orgulho dessa minha parcimnia emocional. Sei de
muita gente aqui que solta a franga, cai num choro convulsivo durante
meia hora e, em seguida, emerge desse poo em melhores condies e
com mais nimo. Como se tal desabafo lhes servisse de adaptao. De
modo que, s vezes, lamento no ter adquirido esse hbito. Talvez tenha
medo de me soltar e o resultado final no ser o ajuste mas o desajuste. E
j tenho, desde sempre, parafusos frouxos demais para me arriscar a um
descalabro maior. Alm disso, para ser estritamente franco, no que
no chore por medo de me soltar, mas simplesmente porque no tenho
vontade de chorar, ou seja, o pranto no chega. Isso no quer dizer que
no padea angstias, ansiedades e outros passatempos. Seria anormal se,
nessas condies, no sofresse com eles. Mas cada um tem seu estilo. O
meu tratar de dominar essas minicrises pela via do raciocnio. Na
maioria das vezes, tenho sucesso, mas noutras, em compensao, no h
raciocnio que d jeito. Destroando um pouco o clssico (quem era
mesmo?) diria que s vezes a razo tem arrebatamentos que at o corao
desconhece. Conte-me de voc, do que anda fazendo, do que anda
pensando, do que sente. Como gostaria de ter caminhado algumas vezes
pelas ruas que voc agora percorre para que tivssemos algo em comum

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a tambm. o inconveniente de ter viajado pouco. possvel que voc


mesma, se essa inesperada soma de circunstncias no tivesse ocorrido,
nunca tivesse viajado para essa cidade, para esse pas. Talvez, se tudo
tivesse seguido o curso normal (normal?) de nossas vidas, de nosso
casamento, de nossos projetos de apenas sete anos atrs, teramos algum
dia juntado o suficiente para fazer uma viagem maior (no falo de viagenzinhas menores a Buenos Aires, Assuno ou Santiago, remember?),
pois certamente o destino teria sido Europa. Paris, Madri, Roma, talvez
Londres. Como tudo isso parece distante. Esse terremoto nos trouxe
terra, a esta terra. E agora, claro, quem tem que sair vai para outro pas
da Amrica. E lgico. E mesmo aqueles que hoje esto, por razes distintas, em Estocolmo ou Paris ou Brescia ou Amsterd ou Barcelona,
prefeririam seguramente estar em alguma das nossas cidades. Afinal de
contas, eu tambm estou fora do pas. Eu tambm suspiro pelo que voc
suspira. O exlio (interior, exterior) ser uma palavra-chave desta dcada.
Sabe, provvel que risquem essa frase. Mas quem o fizer deveria pensar
que talvez ele tambm seja, de alguma maneira estranha, um exilado do
pas real. Se a frase sobreviveu, voc deve ter percebido como ando compreensivo. At eu me espanto. a vida, minha cara, a vida. Se no
sobreviveu, no se preocupe. No era importante. D-se beijos e mais
beijos, de minha parte.

O outro (nica testemunha)

Puta, que olheiras, disse e se disse Rolando Asuero diante do espelho e


de sua ferrugem. Mas eu mereo depois de tanta birita, acrescentou,
tentando fazer com que os olhos ficassem enormes, mas conseguindo
apenas uma expresso que definitivamente o deixava com cara de doido,
de orate. Oratangongo, pronunciou lentamente e teve que rir, apesar da
ressaca. Era assim que Silvio chamava os milicos in illo tempore, quando
se reuniam no stio do Balnerio Sols, um pouco antes de o futuro se
tornar definitivamente insalubre. No so sequer gorilas, diagnosticava.
Apenas orangotangos e alm do mais, orates. Resumindo: oratangongos.
Tinham se juntado os quatro: Silvio, Manolo, Santiago e ele,
nas ltimas frias que tiveram. Estavam tambm as mulheres, as esposas
(bah!). Na realidade, trs: Mara del Carmen, Tita e Graciela, porque ele,
Rolando Asuero, sempre foi um solteiro profissional e nunca quis misturar seus programinhas ocasionais com os amores demasiado estveis de
seus amigos. Mas as mulheres sempre tinham fofocas e modas e horscopos e receitas de cozinha para trocar, pelo menos naquela poca, e talvez
por isso eles quase sempre se reuniam parte para consertar o mundo. E
quase consertavam. Silvio, por exemplo, era muito bom, mas meio ingnuo. Nunca seria capaz de empunhar uma arma, garantia, mas acabou
empunhando e tambm empunharam contra ele de modo que agora est
no cemitrio do Buceo, para mais informaes no mausolu de propriedade de seus sogros, que ainda tm dinheiro, embora estejam tristes.
E a gordinha Mara del Carmen, em Barcelona, com dois moleques,
vendendo bugigangas nas Ramblas ou onde quer que os tenham alojado.
Manolo era custico, incisivo e mordaz, trs palavras contguas que, nele,

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no eram precisamente sinnimas, mas antes trincheiras de sua timidez.


A prova era que nunca se excedia com eles, acabava sempre sendo suave e
compreensivo. Chapu, leno e alpargatas / e uma mirada sem fim.1 Com
exceo do chapu, esse tango podia ser o seu retrato. Santiago era a enciclopdia, claro, mas era acima de tudo boa gente. Conhecia botnica,
marxismo, filatelia, poesia de vanguarda e alm disso era um arquivo
vivo da histria do futebol. E no somente o gol de Piendibeni no divino
Zamora, ou o sua, Hctor! da epopeia olmpica. Isso j era parte do
folclore. Santiago tinha, alm disso, na memria j repleta todo registro,
partida por partida, da dupla Nazassi/Domingos (era tricolor at o
tutano) ou o ltimo chutao de Perucho Petrone, j na poca em que
oito em dez chutes a gol iam direto para o azul do firmamento, enquanto os outros dois serviam milagrosamente para aumentar o score; e
tambm, a fim de mostrar que no era sectrio, contava como o magro
Schiaffino era um gnio mesmo sem a bola, coisa das mais difceis no
campo da conciliao, e o respeito que sempre lhe inspirou um certo gigante chamado Obdulio, que se fazia obedecer, e isso no fichinha, at
pelo garoto Gambetta.
E agora, puta, que olheiras, diz e se diz Rolando Asuero diante
do espelho de trs ferrugens, entreguei-me s penas, bebi meus anos.2 A
verdade que se entregou tristeza, mas bebeu outra coisa. A est o arcano, pensa difcil. Por que, de vez em quando, digamos uma vez por
ms, toma um porre de primeira e, em contrapartida, mantm-se sbrio,
quase abstmio, entre uma carraspana e outra? Quase abstmio, porque
de vez em quando um clarete (ou ros, como dizem os que padecem de
uma penetrao cultural cartesiana), bem, um clarete quase um
coquetel de aleluias com testosterona. Ser que a saudade depende das
luas, algo assim como as regras das minas. Bem, no s das minas, tambm das onze mil virgens e me s existe uma, que desproporo, no?
Afinal, mais vale ser bbado conhecido do que alcolatra annimo.
Quem ter parido essa sabedoria? A verdade que os alcolatras annimos sempre lhe deram no saco. A pessoa se embebeda ou no se

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embebeda, de acordo com sua prpria exigncia ou humores ou necessidades ou bodes ou descaramento e no de acordo com a rigidez dos
imaculados ou a presso do puritanismo. Que maravilha o puritanismo,
pensa Rolando Asuero fazendo uma careta. E se detm com deleite no
exemplo ao norte do rio Bravo. Que maravilha. Campanha moralista
contra o martni ou o bourbon de cada crepsculo, mas em prol do napalm de cada aurora.
Ah, se pudesse jogar no imperialismo a culpa por essas olheiras.
Mas no. nica testemunha a luz do lampio.3 No precisa de terapia
coletiva ou individual. foda o exlio, no? At o pobre analista passou
maus bocados. L, negou-se a entregar as fichas de seus pacientes subversivos e menos ainda as dos subversivos impacientes. E claro, passou
maus bocados. A cana tem sua prpria terapia, no admite competidores. nica testemunha. Silvio morto, Manolo em Gotemburgo,
Santiago na Penal. E Mara del Carmen, viva da represso, vendendo
bugigangas. E Tita, separada de Manolo, juntada agora com um garoto
muito srio (vou me amigar com o Sardina Estvez, escreveu um ano
antes), nada menos que em Lisboa. E Graciela aqui, desajustada e linda,
com a Beatricita de Santiago e trabalhando como secretria. E ele? Puta,
que olheiras.
A gente deste bendito e maldito pas realmente simptica. Ele,
para que neg-lo, gosta desses sorridentes, sobretudo delas. Mas h dias e
noites em que sente falta do subentendido. Dias e noites em que tem
que explicar tudo e escutar tudo. Uma das pequenas vantagens de fazer
amor com uma compatriota que, num instante dado (essa hora zero
que sempre soa depois das urgncias, do entusiasmo e do vaivm),
quando no se est para muita conversa, pode se dizer ou ouvir um
lacnico monosslabo e essa palavrinha se enche de subentendidos, de
significados implcitos, de imagens em comum, de passados compartilhados e sabe-se l mais o qu. No h nada que explicar nem que lhe expliquem. No necessrio se lamuriar. As mos podem ir sozinhas, sem
palavras, as mos podem ser eloquentssimas. Os monosslabos tambm,

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mas s quando rebocam seu comboio de subentendidos. Tem que ver


quantos idiomas cabem num s idioma, diz e se diz Rolando Asuero, enfrentando sua prpria imagem, e acrescenta, repetitivo e sombrio: puta,
que olheiras.
1 Funyi, lengue y alpargatas/ y una mirada sin fin. Do tango Se llamaba Serafin, de A.H.
Acua e C. de La Pa. (N. da T.)
2 Me hice a las penas, beb mis aos. Do tango Cafetin de Buenos Aires, de Mariano Mores
e Enrico S. Discepolo. (N. da T.)
3 Testigo solito la luz del candil. Do tango A la luz del candil, de Carlos Vicente G. Flores
e Julio Navarrine. (N. da T.)

Exlios (Convite cordial)

Mais ou menos s 6 p.m. da sexta-feira 22 de agosto de 1975, estava lendo


no apartamento que alugava na rua Shell, de Miraflores, Lima, sem nenhuma preocupao vista, quando algum l embaixo tocou a campainha e
perguntou pelo senhor Mario Orlando Benedetti. J me cheirou mal, pois
esse segundo nome s figura em minha documentao e nenhum dos meus
amigos me chama assim.
Desci, e um sujeito em trajes civis mostrou sua carteira da PIP4 e
disse que queria me fazer umas perguntas sobre meus documentos. Subimos e
ele me disse que tinham recebido a denncia de que meu visto estava vencido. Peguei o passaporte e mostrei que tinha sido renovado a tempo. De todo modo, ter que me acompanhar, pois o Chefe quer falar com o senhor.
Estar de volta em meia hora, acrescentou. E diante dessa declarao imprudente tive quase certeza de que seria deportado. Todas as represses do
mundo usam linguagem cifrada.
Durante a curta viagem at a Central de Polcia, ficou criticando o
governo, armando, com torpeza digna de causas piores, ingnuas ciladas
para ver se eu mordia o anzol e tambm criticava a revoluo peruana.
Meus elogios foram cautelosos, mas concretos.
Uma vez na Central, me deixaram esperando meia hora e em
seguida fui recebido por um inspetor. Falou de novo no documento com o
visto vencido e mais uma vez mostrei o passaporte. Disse ento que eu estava
recebendo salrios, o que proibido quando se tem um visto turstico. Disse
que meu caso apresentava certas peculiaridades, j que, com plena autorizao dos Ministrios das Relaes Exteriores e do Trabalho, o dirio Expresso
tinha firmado comigo um contrato de trabalho como jornalista, que o

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referido contrato estava atualmente no Ministrio do Trabalho e que o Ministrio das Relaes Exteriores, em seus mais altos escales, tinha conhecimento desses trmites. O inspetor ficou um pouco desconcertado com o alto
escalo, mas ento outro funcionrio, certamente superior hierarquicamente,
disse de outra mesa e em voz alta: No lhe coloque mais objees! Ele vai
continuar a destru-las com raciocnios vlidos. Tem que ir direto ao ponto.
E dirigindo-se a mim: O governo peruano quer que saia do pas! Minha
pergunta lgica: Pode-se saber por qu? No, nem ns sabemos a razo. O
ministro envia a ordem e ns a cumprimos. Quanto tempo tenho? Se for
possvel, dez minutos. Como no vai ser possvel, pois no tem como ir embora to rpido, direi que ir na primeira oportunidade em que isso for possvel: uma, duas horas. Posso escolher para onde vou? Para onde gostaria
de ir? Considere que no vamos pagar sua passagem. Como fui ameaado
de morte na Argentina pela AAA, a Aliana Anticomunista Argentina, e
como j trabalhei em Cuba por dois anos e meio, em outras pocas, e ainda
tenho possibilidades de trabalho, quero saber se tenho permisso para ir para
Cuba. No. No temos voos para Cuba e o senhor tem que partir o mais
rpido possvel. Bem, ento me diga quais so as minhas opes reais.
So as seguintes: ou o deixamos na fronteira com o Equador por via terrestre ou usa a sua passagem area de volta para Buenos Aires.
Pensei rapidamente e no me seduziu a ideia de um caminho militar me deixando, no meio da madrugada, na fronteira de um pas que eu
no conhecia na poca, de modo que disse: Buenos Aires. Nunca estive no
Equador. Tive que assinar um documento no qual me perguntavam como
recebia meus rendimentos no Expresso. Disse que recebia na Caixa e reiterei
a existncia do contrato, do trmite no Ministrio do Trabalho etc.
Voltamos ao apartamento. No incio, deram-me 15 minutos, depois
uma hora, e, medida que faziam ligaes telefnicas e no conseguiam
lugar em nenhum voo para Buenos Aires, fui ganhando mais tempo. No entanto, s me permitiram levar uma mala, de modo que tive que deixar muita
coisa para trs.

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O inspetor me disse ento (a essa altura dos acontecimentos, j estavam me tratando melhor) que meu caso no era de expulso nem de deportao e que, portanto, no colocariam em meu passaporte o carimbo deportado. Para a deportao explicou necessrio um decreto supremo,
o que no tinha ocorrido em meu caso. Por isso, era apenas um convite cordial para que fosse embora imediatamente. Perguntei o que aconteceria se
no aceitasse o convite. Ah, teria que ir do mesmo jeito. Disse-lhe que,
nesses casos, costumamos dizer em meu pas: Estou cagando para a
diferena.
Pedi que me deixassem ligar para algum em Lima. No permitiram. Estava incomunicvel. Em troca, consentiram que fizesse ligaes
internacionais. Portanto, telefonei para meu irmo em Montevidu para que
dissesse a minha mulher que fosse se encontrar comigo em Buenos Aires. Tentei ligar tambm para duas ou trs pessoas em Buenos Aires, mas no consegui completar a ligao. Minha preocupao era conseguir que algum me
esperasse em Ezeiza. Pedi que pelo menos me deixassem falar com a dona do
apartamento. Disseram que podia ligar, desde que informasse que tinha
resolvido ir embora do Peru imediatamente e que, portanto, deixaria o
apartamento. Disse que uma ligao desse tipo no se faz e que ela sempre
teve comigo um comportamento muito correto. Sugeri que eles ligassem. Disseram que no.
Ao cabo de alguns minutos o inspetor perguntou que condies eu
colocava para falar com a proprietria. Disse que falaria com ela se pudesse
dizer que estavam me expulsando. Finalmente, aceitou. Liguei, ento, para
a mulher, s trs da manh. A pobre quase desmaiou. Ai, senhor, fazer isso
com um cavalheiro como o senhor! Expliquei que deixaria uma lista das
coisas que ficavam no apartamento e que eram minhas, e que mais tarde
mandaria alguma indicao sobre o destino das mesmas.
A essa altura, os sujeitos j estavam to suaves que me pediram um
pster com uma de minhas canes, que estava na parede, e um outro pediu
que lhe desse um de meus livros. No acha que vai compromet-lo?, perguntei. Esperemos que no, disse sem muita convico.

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Como a essa altura da noite fazia muito frio, dois dos homens
(eram quatro no total) pediram permisso ao chefe para buscar agasalhos.
Ele concordou. Continuei arrumando minha mala sob o olhar vigilante de
meus guardas. De repente, notei que ambos tinham adormecido. Roncavam
to pacificamente que tirei os sapatos para que meus passos no carpete no
perturbassem seu sono. Tive uma hora e meia para arrumar melhor a mala,
e o cano do incinerador de lixo tambm teve bastante trabalho.
Ao cabo dessa hora e meia, calcei novamente os sapatos e sacudi discretamente o inspetor: Desculpe acord-lo, mas se sou to subversivo que resolveram me expulsar do pas, por favor no durmam e tratem de me vigiar. O inspetor explicou que estavam trabalhando desde cedo e estavam
muito cansados. Disse que compreendia, mas que a culpa no era minha.
s quatro e meia samos os cinco (os outros dois tinham voltado com
seus agasalhos) num carro grande e preto. Passamos pelo apartamento da
proprietria. Entregaram-lhe as chaves e o inventrio. Essa viagem foi meu
nico motivo real de preocupao, j que me levaram por um caminho que
no era o habitual. Totalmente escuro, entre terrenos baldios, iluminado
apenas pelos faris do carro. Demoramos muito mais do que normalmente.
Quando reconheci de longe a torre do aeroporto, confesso que respirei um
pouco melhor. J no aeroporto, s pude embarcar no voo das 9 a.m. de
sbado. Felizmente era a Aeroper. No conseguiram um lugar para mim
no voo das 8, que era da LAN.
No recebi, em momento algum, qualquer coisa para comer ou beber. Fiquei vinte e quatro horas sem tocar em comida. Acredito que isso se
devia simplesmente ao fato de eles no terem dinheiro, pois tambm no
comeram nada. Quando o inspetor me entregou os documentos junto da escada do avio, disse: O senhor certamente vai partir ressentido com o governo, mas no guarde ressentimentos dos peruanos. E apertou minha mo.
4 Polica de Investigaciones del Per. (N. do E.)

Feridos e contundidos (Uma ou duas paisagens)

Graciela entrou no quarto, tirou o casaquinho, olhou-se no espelho do


toucador e franziu o cenho. Em seguida tirou a blusa, a saia e estendeuse na cama. Dobrou uma perna e logo voltou a estic-la. Ento percebeu
um fio corrido na meia. Sentou-se, tirou as meias e comeou a examinlas em busca de outro fio corrido. Depois fez um montinho com o par e
colocou numa cadeira. Olhou-se no espelho de novo e apertou as tmporas com os dedos.
Pela janela ainda entrava a penltima luz de uma tarde que tinha
sido fresca e ventosa. Abriu uma das vidraas e olhou para fora. Na
frente do edifcio B seis ou sete crianas brincavam. Reconheceu Beatriz,
despenteada e agitada, mas em plena curtio. Graciela sorriu sem muita
convico e passou a mo pelo cabelo.
O telefone tocou junto cama. Era Rolando. Deitou-se de novo
para falar mais vontade.
Que tarde desagradvel, no? disse ele.
Bem, nem tanto. Gosto do vento. No sei por que, mas
quando ando contra o vento, parece que as coisas se apagam. Quer dizer:
coisas que quero apagar.
Como o qu?
No l jornais, voc? No sabe que isso se chama interveno
nos assuntos internos de outra nao?
Est certo, repblica.
Pelo menos repblica amiga, no?
Passou o fone para a mo e o ouvido esquerdos, a fim de poder
coar atrs da outra orelha.

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Novidades? perguntou ele.


Carta de Santiago.
Ah, que bom.
Um pouco enigmtica.
Em que sentido?
Fala de manchas na parede e das figuras que imaginava a
partir delas quando criana.
Acontecia comigo tambm.
Com todo mundo, ou no?
Realmente, o tema pode no ser muito original, mas tambm
no me parece enigmtico. Ou queria que lhe mandasse uma declarao
contra os milicos?
No seja bobo. Acho simplesmente que ele se atrevia mais
antes.
Sim, claro, e por acaso voc ficou mais de um ms sem receber notcias por causa dessa ousadia.
J verifiquei. Foi uma medida geral, um dos tantos castigos
coletivos.
Para os quais geralmente se baseiam num pretexto to pueril
quanto esse: algum que ultrapassou, conscientemente ou no, os limites
no estabelecidos, mas reais.
Ela no respondeu. Ao cabo de alguns segundos, ele falou outra
vez.
Como est Beatriz?
Brincando l fora com a turminha.
Gosto dela. cheia de vida e saudvel.
Sim, bem mais do que eu.
No tanto assim. verdade que essa vitalidade maior ela
herdou de Santiago, mas de voc tambm.
De Santiago, isso sim.
E de voc tambm. O que acontece que anda deprimida
ultimamente.

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Pode ser. A verdade que no vejo sada. E alm de tudo


meu trabalho de uma chatice monumental.
Logo vai conseguir outro mais estimulante. Por enquanto,
tem que se conformar.
Deveria me dizer agora que tive muita sorte.
Teve sorte.
Tambm caberia dizer que nem todos os exilados do Cone
Sul conseguiram um emprego to bem remunerado, com apenas seis
horas de trabalho e ainda mais com os sbados livres.
Nem todos os exilados do Cone Sul conseguiram um
emprego to bem remunerado etc. Posso acrescentar que voc merece,
porque uma secretria eficientssima?
Pode. Mas a eficincia justamente uma das razes do meu
tdio. Seria mais divertido se de vez em quando eu me equivocasse.
No acho. possvel que se entedie com a eficincia, mas em
geral os patres e gerentes se entediam muito mais e mais rpido com a
ineficincia.
Mais uma vez no respondeu. E outra vez foi ele quem reiniciou
o dilogo.
Posso lhe fazer uma proposta?
Se no for desonesta.
Digamos que semi-honesta.
Ento eu s autorizo pela metade. Fale.
Quer ir ao cinema?
No, Rolando.
O filme bom.
No duvido. Tenho confiana em seu gosto. Pelo menos em
seu gosto cinematogrfico.
E dava para tirar tambm um pouco das suas teias de aranha.
Estou bem com minhas teias de aranha.
Pior ainda. Reitero o convite. Quer ir ao cinema?

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No, Rolando. Agradeo, de verdade. Mas estou arrebentada.


Se no tivesse que cozinhar alguma coisa para Beatriz, juro que ia dormir
sem jantar.
O que tambm no nada bom. Qualquer coisa menos se
deixar vencer pela rotina.
Graciela acomodou o fone entre a mandbula e o ombro.
Evidentemente, tinha muita experincia nesse gesto de secretria profissional. Alm do mais, deixava as duas mos livres para, nessa ocasio, olhar as unhas e corrigi-las aos bocadinhos com uma lixa.
Rolando.
Sim, estou ouvindo.
Alguma vez viajou de trem com outra pessoa, sentados frente
a frente, cada um em sua janela?
Acho que sim. Agora no me lembro da ocasio precisa. Mas
por que isso agora?
No percebeu que se as duas pessoas comeassem a comentar
a paisagem que esto vendo, o comentrio da que olha para a frente no
seria exatamente igual ao da que olha para trs?
Confesso que nunca atentei para esse detalhe. Mas possvel.
Mas eu sempre observei. Porque desde menina, quando
viajava de trem, adorava olhar a paisagem. Era um de meus prazeres favoritos. Nunca lia nos trens. At hoje, no gosto de ler quando viajo de
trem. Fico fascinada com a paisagem vertiginosa que corre a meu lado,
mas em direo contrria. Mas quando vou sentada para a frente, parece
que a paisagem vem para mim, sinto-me otimista, sei l.
E se estiver olhando para trs?
Parece que a paisagem se esvai, se dilui, morre. Francamente,
me deprime.
E agora, como est sentada?
No brinque. Foi o que percebi no outro dia quando comecei a reler as cartas de Santiago. Ele, que est na priso, escreve como se a
vida viesse a seu encontro. Eu, em compensao, que por assim dizer

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vivo em liberdade, tenho s vezes a impresso de que a paisagem vai se


afastando, diluindo, acabando.
Nada mal. Como inteno potica, claro.
Inteno potica coisa nenhuma. Nem mesmo prosa.
simplesmente como me sinto.
Bem, agora estou falando srio. Sabe que esse seu estado de
esprito me preocupa? E, embora esteja convencido de que cada um o
nico que pode resolver seus prprios problemas, acho tambm que algum de muita confiana pode ajudar s vezes, s ajudar. E me ofereo
para essa ajuda relativa. Mas essencial que voc mergulhe em si mesma.
Mergulhar em mim mesma? Pode ser. Pode ser. Mas no
tenho certeza de que vou gostar.

Dom Rafael (Uma culpa estranha)

Santiago queixou-se a Graciela de que faz tempo que no lhe escrevo.


Est certo. Mas o que lhe dizer? Que o que est acontecendo com ele
consequncia de sua atitude? Isso ele j sabe. Que me sinto um pouco
culpado por no ter falado o bastante com ele (quando ainda era tempo
de falar e no de engolir as palavras) para convenc-lo a no seguir esse
caminho? Isso ele talvez no saiba conscientemente, mas talvez imagine.
Tambm deve imaginar que, mesmo que ele e eu tivssemos tido todas
essas discusses em profundidade, ele teria seguido o caminho que definitivamente escolheu de qualquer maneira. Que cada vez que acordo no
meio da noite no consigo evitar a apreenso, a sensao ou o mau pressentimento, que sei eu, de que por acaso o estejam torturando naquela
mesma hora ou que esteja se recuperando de uma sesso de tortura ou se
preparando para as prximas ou maldizendo algum? Talvez no tenha
vontade de imaginar uma coisa assim. J tem o suficiente com seu
prprio suplcio, seu prprio isolamento, sua prpria angstia. Quando
algum suporta sofrimentos prprios no tem necessidade de atribuir-se
dores alheias. Mas s vezes imagino que esto aplicando choques eltricos
nos testculos de Santiago e nesse mesmo instante sinto uma dor real
(no imaginria) em meus testculos. Ou se penso que o esto submetendo ao submarino, afogo-me literalmente eu tambm. Por qu?
uma velha histria ou, melhor dizendo, um velho sinal: o sobrevivente
de um genocdio experimenta uma estranha culpa por ter sobrevivido. E
quem consegue, por alguma razo vlida (no considero aqui as razes
indignas), escapar da tortura experimenta uma certa culpa por no ser
torturado. Ou seja, no tenho muitos assuntos. Certos assuntos

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logicamente no podem ser mencionados numa carta a um preso, ainda


mais quando est na priso por subverso. Quanto a outros assuntos, sou
eu quem no quer mencion-los. Os temas que restam, depois dessas ressalvas, so bem estpidos. Santiago aceitaria que lhe escrevesse futilidades? Haveria um assunto sobre o qual poderia, em outras circunstncias, lhe escrever, ou melhor, falar. Mas nunca nessas. Refiro-me ao estado de esprito de Graciela. Graciela no est bem. Est cada vez mais
desanimada, mais cinza. Ela que sempre foi to linda, to simptica, to
perspicaz. E o pior que tenho a impresso de que seu desalento vem do
fato de estar se afastando de Santiago. Motivos? Como saber? Ela o admira, tenho certeza disso. No lhe faz crticas polticas, j que virtualmente tem (ou teve) a mesma posio que ele. Ser que a mulher, para
manter inclume o seu amor, necessita, mais do que da existncia, da
presena fsica do homem? Ser que Ulisses est se tornando caseiro, mas
Penlope, em troca, j no se conforma em ficar tecendo e destecendo?
Quem sabe? O certo que, se no me atrevo a tratar do assunto com ela,
a quem vejo quase diariamente, atrevo-me menos ainda com Santiago, a
quem s envio uma carta de vez em quando. Tambm poderia lhe contar de minhas aulas, das perguntas dos rapazes. Ou talvez de certo projeto de voltar a escrever. Outro romance? No. Um fracasso j suficiente. Talvez um livro de contos. No para publicar. Na minha idade
isso j no importa muito. Tenho a impresso de que significaria um estmulo para mim. Faz quinze anos que no escrevo nada. Pelo menos,
nada literrio. E durante quinze anos no tive vontade de faz-lo. Agora
sim. Ser um sinal? Algo que devo interpretar? Ser um sintoma? Mas de
qu?

Intramuros (O rio)

Venho do rio. Acha que estou um pouco louco? Nem muito nem pouco.
Se no enlouqueci em outras circunstncias, creio que a essa altura j estou vacinado contra a loucura. E no entanto, venho do rio. H algumas
semanas descobri o sistema. Antes, as recordaes assaltavam-me sem ordem. De repente, estava pensando em voc ou em Beatriz ou no Velho,
e dois segundos depois num livro que li na poca do ginsio, e quase
imediatamente em algumas das sobremesas que a Velha me fazia,
quando vivamos na rua Hocquart. Ou seja, as recordaes me dominavam. E uma tarde pensei: vou pelo menos libertar-me desse domnio. E
a partir de ento sou eu quem dirige minhas lembranas. Parcialmente,
claro. Sempre h certos momentos do dia (geralmente quando o desnimo me invade ou me sinto fodido) em que as recordaes ainda me
pegam desprevenido. Mas no o habitual. O normal agora que eu
planeje a memria, isto , que decida o que vou recordar. E assim decido
recordar, por exemplo, uma noite de farra com amigos, ou alguma das
interminveis discusses na Federao dos Estudantes Universitrios
Uruguaios ou os vaivns (at onde isso pode efetivamente ser recordado)
de alguma de minhas poucas bebedeiras, ou um dilogo profundo com o
Velho, ou a manh em que Beatriz nasceu. claro que vou alternando
tudo isso com as recordaes que se referem a voc, mas resolvi botar ordem nelas tambm. Porque se no boto ordem, todas as suas imagens se
concentram em seu corpo, em mim e voc fazendo amor. E isso nem
sempre me faz bem. Passa a ser uma constncia dolorosa de sua ausncia.
Ou de minha ausncia. Primeiro gozo angustiosa e mentalmente. Desfruto no vazio. Em seguida fico deprimido. De maneira que, quando

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digo que tive que botar ordem nesse campo tambm, quero dizer que
decidi incorporar outras recordaes que lhe (e me) concernem e que so
to decisivas e valiosas como as noites de nossos corpos. Tivemos muitas
conversas que, pelo menos para mim, so inesquecveis. Lembra do
sbado em que a convenci (depois de cinco dialticas horas) dos novos
rumos? E quando estivemos em Mendoza? E em Assuno? No importa
a ordem das datas. Importa a ordem que imponho a minhas invocaes.
Por isso comecei dizendo que hoje venho do rio. E uma recordao em
que voc no est. O rio Negro, perto de Mercedes. Quando tinha doze
ou treze anos, ia passar as frias de vero na casa de uns tios. A propriedade no era muito grande (na realidade, um sitiozinho), mas
chegava at o rio. E como havia entre a casa e o rio muitas e frondosas
rvores, quando estava na margem ningum podia me ver da casa. E
aquela solido me agradava. Foi uma das poucas vezes em que ouvi, vi,
cheirei, apalpei e saboreei a natureza. Os pssaros se aproximavam e no
se assustavam com minha presena. Talvez me confundissem com uma
arvorezinha ou uma moita. Em geral o vento era suave e talvez por isso
as grandes rvores no discutiam, mas simplesmente trocavam
comentrios, cabeceavam com bom humor, faziam-me sinais de cumplicidade. s vezes, apoiava-me em algumas das mais velhas e a cortia
rugosa me transmitia uma compreenso quase paternal. Alisar a cortia
de uma rvore experimentada como acariciar a crina de um cavalo que
se monta diariamente. Estabelece-se uma comunicao muito sbria
(no melosa, como pode ser a relao com um co insuportavelmente
fiel), mas bastante intensa para se sentir falta dela quando se volta agitao da cidade. Em outras ocasies entrava no bote e remava at o meio
do rio. A equidistncia das duas margens era particularmente estimulante. Sobretudo porque eram distintas e polemizavam. Nem tanto os
pssaros, que as compartilhavam, mas antes as rvores, que se sentiam locais e um pouco sectrias, cada uma na sua, ou seja, na sua ribeira. Eu
no fazia nada. Simplesmente olhava. No lia nem brincava. A vida passava sobre mim, de margem a margem. E eu me sentia parte dessa vida e

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chegava estranha concluso de que no seria chato ser pinho ou


salgueiro ou eucalipto. Mas, como aprendi vrios anos mais tarde, as
equidistncias nunca duram muito, e tinha que me decidir por uma ou
outra margem. E estava claro que pertencia apenas a uma delas. Pode ver
como estava certo o que eu disse no incio: venho do rio.

Beatriz (Os arranha-cus)

No singular se escreve rascacielos e no plural tambm se escreve rascacielos. O mesmo acontece com escarbadientes.5 Os arranha-cus so edifcios com muitssimos banheiros. Isso tem a enorme vantagem de que
milhares de pessoas podem fazer xixi ao mesmo tempo. Os arranha-cus
tm elevadores que balanam. Os elevadores com balano so muito
modernos. Os edifcios velhssimos no tm elevadores ou s tm elevadores sem balano e as pessoas que vivem ou trabalham neles morrem
de vergonha porque so muito atrasados.
Graciela, ou seja minha me, trabalha num arranha-cu. Uma
vez me levou a seu escritrio e foi a nica vez em que fiz xixi num
arranha-cu. brbaro. O arranha-cu de Graciela tem um elevador
com balano totalmente importado e por isso meu estmago fica muito
embrulhado. Outro dia contei isso na minha sala e todas as crianas
morreram de inveja e queriam que as levasse ao elevador com balano do
arranha-cu de Graciela. Mas eu disse que era muito perigoso porque o
elevador sobe rapidssimo e se a pessoa bota a cabea na janelinha pode
ficar sem ela. E todos acreditaram, so uns bobos, imagine se os elevadores dos arranha-cus vo ser to atrasados para ter janelinha.
Quando acontece um apago nos elevadores de arranha-cus o
pnico grassa. Na minha sala, quando chega a hora do recreio a alegria
grassa. O verbo grassar um lindo verbo.
Alm de elevadores com balano, os arranha-cus tm porteiro.
Os porteiros so gordos e nunca poderiam subir uma escada. Quando os
porteiros emagrecem no podem continuar trabalhando nos arranhacus, mas tm a oportunidade de ser taxistas ou jogadores de futebol.

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Os arranha-cus se dividem em arranha-cus altos e arranhacus baixos. Os arranha-cus baixos tm muito menos banheiros do que
os arranha-cus altos. Os arranha-cus baixos tambm so chamados de
casas, mas proibido que tenham jardim. Os arranha-cus altos fazem
muita sombra, mas uma sombra diferente da das rvores. Gosto mais
da sombra das rvores, porque tem manchinhas de sol e alm do mais se
move. Na sombra dos arranha-cus grassam as caras srias e as pessoas
que pedem esmolas. Na sombra das rvores grassam gramados e
joaninhas.
Acho que onde meu pai est, na ltima hora da tarde deve grassar a tristeza. Gostaria muito que meu pai pudesse, por exemplo, visitar o
arranha-cu onde trabalha Graciela, ou seja minha me.
5 Rascacielos (arranha-cu) , assim como escarbadientes (palito), um substantivo de dois
nmeros em espanhol. (N. da T.)

Exlios (Vinha da Austrlia)

Eu o conheci no aeroporto da cidade do Mxico, em frente aos balces da


Cubana de Aviacin. Eu viajava para Havana com trs malas e tinha que
pagar excesso de peso. Ento um senhor que estava atrs de mim na fila sugeriu que, como ele viajava apenas com uma pequena maleta, registrssemos
juntos as nossas bagagens, que no total chegavam exatamente aos 40 quilos
permitidos. Aceitei, claro, agradecendo o favor, e o empregado da Cubana
comeou a despachar as quatro malas. Mas quando o meu espontneo benfeitor mostrou seu passaporte, eis que era, para minha surpresa, um documento uruguaio. No oficial, nem diplomtico, mas um passaporte comum.
Ele sorriu: Achou estranho, no? Admiti que sim. Vou lhe explicar enquanto tomamos um caf.
Tomamos o caf. Ele perguntou: O senhor Benedetti, no?
Claro, mas de onde me conhece? No me lembro de seu rosto. Lgico.
Estava no palanque e eu no meio do pblico. Pude ouvi-lo muitas vezes em
atos pblicos durante a campanha eleitoral de 71. Lembra da manifestao
final da Frente Ampla, diante do Legislativo e com a Diagonal Agraciada
totalmente cheia? Dessa vez, no falou, mas estava no palanque. Seregni foi
o nico orador. Esteve muito bem o general. Creio que me dava tantos dados para inspirar confiana, mas eu j no precisava deles. Seu rosto era
honesto, sem ambiguidades.
Disse seu nome. Seu sobrenome outro, mas aqui vou cham-lo de
Falco. De todo modo, o verdadeiro to uruguaio quanto esse. Para
comear, quero esclarecer que vivo h mais ou menos cinco anos na Austrlia. Sou operrio. Bombeiro ou encanador, segundo os pases. E por que
veio a Cuba? Como turista. Fao parte de uma excurso. Economizei

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durante dois anos para me dar o gosto de uma semana em Cuba. E o que
achou de l? No aspecto econmico, bem. Mas nada de mais. Por outro
lado, voc sabe (posso cham-lo de voc, no?), a imigrao para a Austrlia
no foi precisamente poltica, mas sim econmica, mesmo que diga que isso
significa que indiretamente poltica. Seria correto, mas em geral os
imigrantes econmicos no tm conscincia dessa relao. Nesse sentido, um
exlio bastante ingrato, muito diferente de outros lugares. s vezes h uma
trgua, como quando Los Olimareos se apresentaram por l e, apesar dos
pesares, as pessoas foram ouvi-los porque os temas da terrinha continuam a
comov-las. E no somente os temas. Tambm os nomes de rvores, flores,
montes, figuras histricas, ruas, cidadezinhas, referncias ao cu, aos crepsculos, aos rios, a qualquer riachinho dos cafunds. Mas os Olima vo embora e voltamos todos a nossa rotina, a nosso isolamento. Costumo dizer que
na Austrlia ns somos o Arquiplago Uruguaio, porque na realidade constitumos um conjunto de ilhas, ilhotas, de sujeitos ou casais ou famlias, todos isolados em solides mais ou menos confortveis, mas que no deixam de
ser solides. Alguns mandam dinheiro s pores de famlia que ficaram no
Uruguai e isso d um certo sentido a suas vidas e a seu trabalho. E no
tentam pelo menos se integrar no ambiente, fazer amigos australianos?
Olhe, no fcil. Antes de mais nada, h a barreira do idioma. claro
que, com o tempo, qualquer um acaba aprendendo ingls, mas quando chega
a esse ponto, a pessoa j se acostumou ao isolamento e difcil mudar a rotina. Alm do mais, a sociedade australiana, embora precise de mo de obra
estrangeira, no se abre assim to facilmente para os imigrantes. Entrei em
muitas casas australianas, mas como bombeiro. E se a famlia est reunida
quando passo com minha caixa de ferramentas, param automaticamente de
falar. E por que tanto interesse em vir a Cuba? No sei exatamente.
uma dessas fascinaes parecidas com as que temos na infncia ou na adolescncia. Pode dizer que um tonto como eu j no est mais na idade de
fascinaes. Mas como uma paixonite, sabe? Veja s, falei paixonite e percebi que deve fazer uns cinco anos que no pronunciava essa palavra. L no
s o vocabulrio vai se perdendo, mas tambm incorporamos sem sentir

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palavras inglesas fala diria. Bem, voltando a Cuba. A verdade que, no


Uruguai, nos iludimos demais, por volta de 69, 70, e um pouco menos em
71. Acreditamos que uma mudana radical tambm seria possvel em nosso
pas. E no foi possvel, pelo menos por um longo agora. Ento me deu uma
certa impacincia de conhecer um pas como Cuba, que conseguiu levar a
cabo sua mudana. Mas me diga, acha que haveria alguma possibilidade de
eu ficar em Cuba? Trabalhando, claro. Espere para ver como vai se sentir.
Imagine, por exemplo, que pode gostar das pessoas, pode concordar com o sistema poltico e, no entanto, o clima pode deix-lo arrasado. Nada de quatro
estaes, mas s vero, com uma temporada seca e outra chuvosa. A mim
pessoalmente no incomoda, mas sei de vrios rio-platenses que se sentem
sufocados com tanto calor e umidade. De todo modo, sete dias so muito
pouco tempo para as providncias necessrias. Lembre-se de que h um fim
de semana bem no meio. Sim, claro, mas os cubanos veem com bons olhos
a incorporao de estrangeiros? L voc no seria estrangeiro. latinoamericano, no? O problema mais complexo. Imagine s o que aconteceria
se Cuba (que acabou de abrir as portas para que todos os que no esto de
acordo vo embora) abrisse essas mesmas portas para todo mundo que
quisesse vir para c? As filas que se formariam em Montevidu, Buenos
Aires, Santiago, La Paz, Porto Prncipe! Alm disso, continua tendo srios
problemas de moradia. Mas voc acha que poderia tentar? Claro, tente.
No h nada a perder.
Aquela voz, suave e annima, que em todos os aeroportos do mundo
convoca para o embarque e que parece sempre a mesma, avisou-nos que deveramos ir para o porto oito. Durante o voo, continuamos a conversar e
quando a aeromoa (na Cubana de Aviacin, chamam-se comissrias de
bordo) nos deixou nossos respectivos refrigerantes, Falco comentou: incrvel. No so bonecas, como nas outras companhias areas. So mulheres,
voc viu?
Perdi-me dele no aeroporto Jos Mart, depois de recolhermos nossas
quatro malas (uma dele, trs minhas). Ele teve que se juntar ao resto da excurso e eu encontrei com vrios amigos que tinham ido me esperar.

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Dois dias depois houve a manifestao diante do Escritrio


Comercial norte-americano. A invaso dos dez mil na embaixada peruana
j tinha se concludo. Agora a questo era outra: o anncio de manobras
navais na base de Guantnamo e as ameaas dirias de Carter.
Eu tambm desfilei pelo Malecn com meus companheiros da Casa
das Amricas. Em meus vrios anos de residncia em Cuba, nunca tinha
visto uma manifestao de massa to impressionante. Estvamos esperando,
na altura da Rampa, que a passeata tivesse incio, quando de repente entrevi
Falco a uns dez metros de distncia.
A multido era compacta, de modo que era difcil avanar. Ento
gritei: Falco! Falco! Ouviu meu grito desde o comeo, mas sem dvida no
conseguia acreditar que quarenta e oito horas depois de ter chegado a
Havana algum o reconhecia e o chamava. Mas assim o acaso. Eu era a
nica pessoa em Cuba que poderia reconhec-lo, e ali estava, a poucos passos
dele.
Finalmente me viu e s ento fez uma cara de espanto e ergueu seus
longos braos alegremente. Passaram-se dez minutos antes que consegussemos
nos aproximar. Abraou-me. Que coisa fantstica, ch! Um milho de pessoas e voc me encontra! Estava eufrico. Isso estimulante. No o faz lembrar do ato final da Frente? Bem, aqui tem mais gente. Claro, mas me
refiro ao entusiasmo, alegria.
Comeamos, por fim, a desfilar, primeiro lentamente, depois um
pouco mais rpido. De repente, senti que me dava uma cotovelada de cumplicidade. Sabe que hoje dei o primeiro passo? Que primeiro passo? Para
ficar aqui. Ah. Fui ao escritrio que me indicaram: era justamente onde
havia uma grande quantidade de gente querendo ir embora. No exato momento em que cheguei porta de vidro, ela foi fechada. Comecei ento a
fazer sinais para o funcionrio que fechou a porta. E ele a me fazer sinais de
no. E eu a insistir que me ouvisse s um instantinho. Ento tive uma ideia.
Tinha um papel no bolso. Escrevi a palavra companheiro e apertei o papel
contra o vidro. Talvez tenha sido mordido pela curiosidade, pois abriu a
porta uns cinco centmetros, o suficiente para que pudssemos nos ouvir

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mutuamente. Hoje no atendemos mais solicitaes de sada, entendeu?


Sim, entendi, mas que no vim para isso. E veio para qu, ento? Estou
numa excurso. Turistas. Quero ficar. O rapaz (porque era um rapaz) no
podia acreditar. Ento abriu um pouco mais a porta para que eu entrasse,
provocando compreensveis protestos por parte dos candidatos a exilados em
Miami. Disse que quer ficar aqui? , foi o que disse. O rapazinho me olhou, como quem examina em profundidade. Depois pegou um caderninho,
arrancou uma folha, escreveu um nome e entregou-me. Olhe, rapaz, venha
amanh, mas bem cedinho, e pergunte por esse companheiro. Ela vai atendlo. E boa sorte. E ento vou at l amanh. O que acha? Ou como dizem
por aqui: o que opina? Estou vendo que se adapta melhor aos modismos
cubanos do que aos australianos.
A marcha acelerou seu ritmo. Pouco a pouco fomos nos separando e
por um instante eu o perdi de vista. Estvamos passando exatamente em
frente ao edifcio do Escritrio Comercial norte-americano (no se via ningum nas janelas) quando voltei a v-lo, agora um pouco mais atrs. Com
voz retumbante e spero sotaque montevideano, fazia vibrar uma das palavras de ordem que aquela jubilosa multido cantava em coro: Fora cambada, abaixo a gusanada!6
6 Pin, pon, fuera, abajo la gusanera! Gusano (verme, caruncho) a forma como os
cubanos chamam os compatriotas que se exilaram em Miami depois da revoluo
castrista. (N. da T.)

O outro (Querer, poder etc.)

Voc est maluco, recorda nitidamente Rolando Asuero que Silvio tinha
murmurado naquela manh em que Manolo exps o que denominava
Viso Pessoal e Panormica da Realidade Nacional e Outros Ensaios.
Mas Manolo, que nesse meio-tempo s tinha falado uma meia horinha,
disse apertando os lbios, deixe-me falar, pois no? E Silvio o deixou terminar. E agora, o que acha, disse Manolo muito cheio de si, depois do
ponto final. Voc est maluco, insistiu Silvio, inabalvel, e quase acabam
aos bofetes. Mas Santiago e ele, Rolando, intervieram rapidamente, e
alm do mais Mara del Carmen e Tita j estavam fazendo bico, ataque
de nervos, claro; Graciela no, porque sempre foi mais dura ou mais
equilibrada ou mais pudica, e Silvio e Manolo voltaram a se sentar e
Silvio comeou a recuperar-se com o mate, dando umas chupadas na
bomba que se ouviam num raio de trs quilmetros. O certo que a tese
de Manolo era muito concreta, mas tambm muito catastrofista. Circular, sentenciava Silvio. verdade, era mesmo circular e sem sada, mas
Manolo lhe dava uma nfase que a tornava obrigatria. Os que tinham
dinheiro e poder nunca cederiam. No tenham iluses, rapazes, essa no
a burguesia escandinava que vai reduzindo seus dividendos para poder
sobreviver. Esses a vo apelar para a milicada, mesmo que a milicada
acabe por devor-los. Constitucionalistas? Legalistas? Vergonha ou pudor
de usar uniforme ou de tapar a careca com um quepe? Deixem de sacanagem, caros compatriotas. Tudo isso pretrito imperfeito. Vo nos atacar e liquidar como se fssemos guatemaltecos, nem mais nem menos.
De modo que temos que lutar com o partido deles em outro campo que
no seja o do mero debate poltico. Temos que combater o partido e

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enfiar um monte de gols neles. Nem que seja de fora da rea. Essa metfora agradou especialmente a Santiago, que comeou a se interessar a
partir desse momento. E Manolo insistindo e insistindo, colocando todo
mundo no mesmo saco (tango habemus: se uma mosca igual a um
cipreste),7 porque o que ele queria era a mudana, no s na conversa,
mas nos fatos, cita textual. E no lhe importavam muito os meios (se Jesus no ajuda que ajude Sat),8 o essencial eram os fins. Isso me soa familiar, comentou Silvio com ironia marginal. E acredita que vamos
desaloj-los, perguntava Santiago, chupando a bomba, mas em relativa
surdina. No, respondia sem vacilar Manolo, to eufrico que parecia estar vendendo futuro. No, no vamos conseguir, vo nos arrebentar, vo
nos botar em cana, vo nos esmagar, vo nos liquidar. E depois, inquiria
Silvio, queimando etapas entre a ironia e a perplexidade. Ele, Rolando,
tinha se limitado a levantar as sobrancelhas com saudvel ceticismo. E
depois nada, estalava o dinamismo do orador. Nada de imediato, mas a
vitria, a deles, ser uma vitria de Pirro. Ganharo e no sabero o que
fazer com o trofu. Vo ganhar nos papis e perder o povo. (Palminhas
de aplauso na ala feminina.) Vo perd-lo definitivamente. E olhando
com certa provocao para Silvio, continua achando que estou maluco,
hein? No mnimo, disse o outro para relaxar um pouco, todos estamos, e
ento Manolo levantou-se e deu-lhe um abrao de molusco cefalpode
com oito tentculos, ou seja, de polvo, segundo Larousse. Enquanto isso,
Mara del Carmen e Tita, j recuperadas, riam entre lgrimas, como dois
arco-ris. Mas Santiago estava insolitamente srio e explicou em seguida
que, colocada nesses termos, a luta era apenas moral, e a mim que me
importa ser um vencedor tico se vo continuar existindo favelas e latifndio e camarilha bancria e ostentao, se eu me metesse nessa briga
seria para ser um vencedor real. timo, disse Manolo, mas todos queremos ser vencedores reais, no pense que est descobrindo a plvora, s
que a questo no querer, mas poder. E mais uma vez Silvio se exalta,
percebeu agora que o objetivo de Manolo era mais amplo, a coisa no era
querer nem poder, mas foder. Risinho na bancada feminina, e os

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nhoques esto prontos, ai que rpido, vamos que seno passam do


ponto, e eu que estou com a barriga cheia de mate, acontece que vocs se
empolgam discutindo e no se do conta de que beberam duas garrafas
trmicas inteiras, que zona, vamos aos nhoques, senhores, aos nhoques,
esse tinto parece de missa do galo, sensacional, e voc acha que depois da
revoluo continuar havendo nhoques, hein?
7 Si igual es una mosca que un ciprs. Do tango Ya a mi, qu?, de Anibal Triolo e Catullo
Castillo. (N. da T.)
8 Si Jess no ayuda que ayude Satn. Do tango Pan, de Eduardo Pereyra e Celedonio E.
Flores. (N. da T.)

Dom Rafael (Com a ajuda de Deus)

Fechar os olhos. Como queria fechar os olhos e comear de novo e abrilos depois com a tardia lucidez que trazem os anos, mas com a vitalidade
que no tenho. Deus d nozes a quem no tem dentes, mas antes, muito
antes, deu fome a quem os tinha. Bela trapaa de Deus. Afinal, os refres
populares so algo assim como um currculo divino. Deixa estar que a
mo de Deus vai te pegar de jeito: virulncia e fria. Deus os cria e eles
se juntam: conspirao e perseguio. A Deus o que de Deus e a Csar
o que de Csar: partilha e pro rata. Como Deus manda: prepotncia e
imprio. Deus passou longe: indiferena e menosprezo. F em Deus e
cacete no resto: parapoliciais, paramilitares, esquadres da morte etc. Se
Deus quiser: poder ilimitado. Deus nos livre e guarde: neocolonialismo.
Deus castiga sem pau nem pedra: tortura subliminar. V com Deus: ms
companhias.
Fechar os olhos, mas no para meus pesadelos correntes, porm
para tocar o fundo das coisas. L esto as imagens, as eloquentes, as s
para mim. Cada uma delas como a revelao que no entendi nem
atendi. E no se pode voltar atrs. Pode-se guardar o aprendido, mas de
pouco serve.
Fechar os olhos e ao abri-los encontr-la. Qual delas? Uma um
rosto. Outra um ventre. Outra ainda um olhar. Quantas mais? No
amor no h posturas ridculas nem pedantes nem obscenas. No amor
tudo ridculo e pedante e obsceno. Tambm a norma, tambm a
tradio.
De repente o passado se torna luxuoso, no sei por qu. Meu
corpo que tive, o ar que respirei, o sol que me iluminou, os alunos que

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ouvi, o pbis que convenci, um crepsculo, uma axila, um pinheiro


ondulante.
O passado se torna luxuoso e no entanto apenas uma desiluso
de tica. Porque o pobre, mesquinho presente s ganha uma e decisiva
batalha: existe. Estou onde estou. O que este exlio seno outro
comeo? Todo comeo jovem. E eu, velho reiniciante, rejuveneso. Escalada de vivo, veterano professor, arquivo de palavras. Estou condenado a rejuvenescer. ltima melhora, dizem os cretinos. Estou fraco,
porra. Na minha terra eu diria caralho, mas tambm estava fraco. Do
caralho porra, ptria grande esta Amrica. E um filho preso.
Tristemente preso, porque se sente dinmico e otimista e vital e no tem
muitas razes para esse singular estado de esprito. Meus sentimentos oscilam, ora, ora. Estou onde estou e ele est onde est. Pobre filho. Se
pudesse trocar com ele. Mas no me aceitam. No sou suficientemente
odioso. No quis derrub-los, desarm-los, venc-los. Ele sim o quis, e
fracassou. Se eu pudesse entrar l para que ele sasse, talvez eu no ficasse
to mal. Aos sessenta e sete no iam me torturar, acho. Bem, nunca se
sabe. E fecharia os olhos l tambm e assim me livraria das grades. E
quem sabe pudesse tocar o fundo das coisas. Mas no. Estou onde estou
e ele est onde est. Fechar os olhos e ver meu filho, mas abri-los e v-la.
Qual? Provavelmente a do barco. Ou a da rvore. Ou a do pssaro. Deus
as cria e elas se separam. Se eu fosse Deus ordenaria terminantemente
que comparecesse a da rvore. Mas no sou, e Lydia comparece.

Feridos e contundidos (Um medo terrvel)

Graciela ps um ponto final no relatrio do segundo semestre. Respirou


profundamente antes de tirar o original com sete cpias da mquina
eltrica. No havia mais ningum no escritrio. Tinha trabalhado trs
horas extras. No para cobr-las, mas porque o chefe estava em apuros,
era boa gente e o prazo para a entrega do relatrio do segundo semestre
vencia no dia seguinte.
Juntou a ltima folha com as trinta e trs restantes. Amanh
primeira hora distribuiria original e cpias em oito pastas. Agora estava
cansada demais. Deixou tudo na segunda gaveta, ps a capa de plstico
sobre a mquina de escrever e olhou as prprias mos, sujas de carbono
preto.
Entrou um instante no banheiro, lavou cuidadosamente as
mos, penteou-se, passou batom por cima do anterior, j desbotado e
seco, olhou-se no espelho sem sorrir para si mesma, mas levantou levemente as sobrancelhas como quem se interroga ou se questiona ou
simplesmente para verificar seu grau de cansao. Uniu por um momento
os lbios recm-repintados e emitiu um suspiro incuo. Em seguida
voltou mesa de trabalho; da primeira gaveta extraiu a bolsa, tirou o
casaco de um cabide e vestiu. Abriu a porta, saiu para o corredor, mas
antes de apagar a luz e fechar, deu uma olhada geral. Tudo estava em
ordem.
Quando a porta do elevador se abriu, espantou-se. No esperava
encontrar ningum e l estava Celia, tambm surpresa.
H sculos que no a via. O que est fazendo no escritrio a
uma hora dessas?

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Tive que bater o relatrio do segundo semestre. E era


enorme.
Voc faz muitas concesses a seu chefe. Qualquer dia desses
vai acabar dormindo com ele.
No, meu bem, pode ficar tranquila. No meu tipo, mas
boa gente. Alm do mais, nem pediu que eu fizesse esse trabalho. E
como se isso no fosse suficiente, no ficou comigo no escritrio.
No precisa se justificar, querida. Era brincadeira.
Chegaram rua. Havia muita neblina e a consequente irritao
dos motoristas.
Quer tomar um ch?
Um ch exatamente no. Mas talvez um drinque. Cairia bem
melhor depois de minhas trinta e quatro pginas com sete cpias.
Assim que se fala. Viva a evaso!
Sentaram-se juntas janela. De uma mesa vizinha, um homem
jovem e elegante deu uma olhada investigativa.
Bom disse Celia em voz baixa. Parece que ainda somos
dignas de uma olhada.
Para voc isso estimulante ou deprimente?
No sei. Depende muito do meu estado de esprito e tambm, por que no?, da aparncia de quem olha.
E esse, especificamente, estimulante?
No.
Menos mal.
O garom depositou suavemente os dois copos.
Sade.
Sade e liberdade.
Est bem. mais completo.
E alm disso acho que era a palavra de ordem de Artigas.
mesmo? Como sabe disso?
Se tivesse vivido os anos que vivi com Santiago, voc tambm
seria doutora em Artigas. Para ele sempre foi uma obsesso.

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Celia aproveitou para tomar um golinho.


Quais so as ltimas notcias?
As de sempre. Escreve regularmente, salvo quando castigado por uma coisa qualquer. Est com bom nimo.
E h alguma esperana de que o soltem?
Motivos haveria. Mas esperanas, no muitas.
A rua era, naquelas horas, uma realidade pouco menos que
hipnotizante. As duas mulheres ficaram um bom tempo caladas olhando
os automveis, os nibus repletos e tambm as senhoras com cachorros,
os mendigos com cartazes explicativos, as crianas maltrapilhas, os bons
moos, os policiais. Celia foi a primeira a se desprender daquela rotina
espetacular.
E voc? Como se sente? Como suporta uma separao to
longa? Fez uma pausa. Se no quiser, no responda.
Na realidade, gostaria de responder. O problema que no
tenho resposta.
No sabe como se sente?
Sinto-me desajustada, desorientada, insegura.
Parece lgico, no?
Pode ser. Mas j no me parece to lgico quando tento responder a sua segunda pergunta. Essa de como suporto a separao.
O que acontece?
Acontece que vou simplesmente suportando. Simplesmente
demais. E isso no normal.
No estou entendendo, Graciela.
Voc sabe que timo casal formvamos, Santiago e eu. Sabe
tambm como sempre nos identificamos na poltica. Tnhamos a mesma
posio. Embora ele esteja em cana e eu aqui. Quando o levaram, pensei
que no poderia suportar. Nossa unio no era apenas fsica. Tambm
era espiritual. No tem ideia de como precisei dele nos primeiros
tempos.
No mais?

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A coisa no assim to fcil. Continuo amando. Como no


continuaria depois de dez anos de excelente relao? E acho horrvel que
esteja preso. E tenho plena conscincia do que essa ausncia significa
para Beatriz.
Sim, tudo isso fica num dos pratos da balana. E no outro?
O problema que a separao forada tornou-o mais terno e
a mim, ao contrrio, ela me endureceu. Resumindo em poucas palavras
(e isso algo que no confesso a ningum e que me custa confessar at a
mim mesma): preciso cada vez menos dele.
Graciela.
Sei o que vai me dizer: que injusto. Eu sei perfeitamente.
No sou to estpida a ponto de no saber.
Graciela.
Mas no posso me enganar. Continuo a ter muito afeto por
ele, mas como poderia ter se fosse uma companheira de militncia, no
sua mulher. Ele vive desejando meu corpo (sempre d a entender em
suas cartas) e eu, em troca, no sinto necessidade do dele. E isso faz com
que me sinta, como dizer?, culpada. Porque na verdade no sei que diabos est acontecendo comigo.
Pode haver uma explicao.
Claro, est pensando que tenho outro. Mas no tenho.
Tem certeza?
Ainda no tenho.
Por que acrescentou ainda?
Porque a qualquer momento pode acontecer. O fato de que
no sinta necessidade concreta do corpo de Santiago no significa que o
meu esteja inerte. Celia: faz mais de quatro anos que no fao amor com
ningum. No lhe parece um exagero?
No sei. No sei.
Claro, voc tem Pedro a seu lado. E gosta disso. Por sorte.
Pode, porm, saber o que teria acontecido se passasse quatro anos sem
v-lo ou toc-lo, sem ser vista ou tocada por ele?

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No sei e no quero saber.


Acho justo que se negue a enfrentar gratuitamente um conflito que no seu. Mas sei o que acontece comigo. No tenho outro remdio seno saber. E posso garantir que no fcil, nem cmodo, nem
agradvel.
E j pensou em contar para ele, pouco a pouco, carta a carta?
Claro que pensei. E me d um medo terrvel.
Medo?
De destru-lo. De destruir-me. Sei l...

Intramuros (O complementar)

Ter notcias suas como abrir uma janela. O que me conta de voc, de
Beatriz, do Velho, do trabalho, da cidade. Tenho em mente os horrios
de todos, assim posso organizar minha visualizao a qualquer momento:
Graciela agora est escrevendo mquina, ou o Velho vai terminar sua
aula nesse instante, ou Beatriz est tomando um caf da manh apressado porque se atrasou para a escola. Quando se tem que ficar irremediavelmente parado, impressionante a mobilidade mental que se
pode adquirir. Pode-se ampliar o presente tanto quanto se quiser, ou
lanar-se vertiginosamente para o futuro, ou dar marcha a r, que mais
perigoso porque l esto as lembranas, todas as lembranas, as boas, as
regulares e as execrveis. L est o amor, ou seja, est voc, e as grandes
lealdades e tambm as grandes traies. L est o que a pessoa podia
fazer e no fez, e tambm o que podia no fazer e fez. A encruzilhada na
qual o caminho escolhido foi o errado. E a comea o filme, quer dizer,
como teria sido a histria se tivesse tomado outro rumo, aquele que foi
descartado na poca. Geralmente, depois de vrios rolos, a pessoa suspende a projeo e pensa que o caminho escolhido no foi to equivocado e que, por acaso, e numa encruzilhada semelhante, a escolha de hoje
seria a mesma. Com variantes, claro. Com menos ingenuidade, evidente. Com mais alertas, por via das dvidas. Mas mantendo, isso sim, o
rumo primordial. Esses grandes espaos em branco so normalmente zonas de desalento, mas em outra acepo so proveitosos tambm. Nos ltimos e penltimos tempos antes da internao forada, tudo aconteceu
de maneira to atropelada e em meio a tantas tenses, rodeado por tantas
urgncias implacveis, por tantas decises a tomar, que no havia tempo

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nem nimo para reflexo, para pensar e repensar sobre nossos passos,
para olhar com clareza para ns mesmos. Agora sim, h tempo, tempo
demais, insnias demais, noites demais com os mesmos pesadelos e as
mesmas sombras. E a tendncia natural, e tambm mais fcil,
perguntar-se de que me serve o tempo agora, para que esta meditao
tardia, atrasada, anacrnica, intil. E no entanto serve. A nica vantagem
desse tempo baldio a possibilidade de amadurecer, de ir conhecendo os
prprios limites, as prprias debilidades e fortalezas, de ir se aproximando da verdade sobre si mesmo, e no se iludir acerca de objetivos que
nunca se poderia alcanar e, em compensao, aprontar o esprito, preparar a atitude, treinar a pacincia para obter o que algum dia poder estar ao alcance. Nessa altura se consegue, nestas peculiarssimas condies,
afundar na anlise e me atrevo a confessar-lhe algo: embora no possa
fazer um plano quinquenal de meus pesadelos, posso sonhar acordado e
em captulos. E assim vou debulhando, esmiuando o que quis e o que
quero, o que fiz e o que farei. Pois algum dia poderei voltar a fazer
coisas, no acha? Algum dia deixarei esse estranho exlio e me reintegrarei ao mundo, no? E serei algum diferente, creio mesmo que algum
melhor, porm nunca inimigo do que fui ou do que sou, mas antes complementar. Sim, ter notcias suas como abrir uma janela, mas ento me
d uma vontade quase irreprimvel de abrir mais janelas e, o que mais
grave (que loucura), de abrir uma porta. Sem dvida, estou condenado a
ver as costas desta porta, seu lombo hostil, duro, inexpugnvel, concretssimo, mas nunca to slido quanto um bom argumento, quanto
uma boa razo. Ter notcias suas como abrir uma janela, mas ainda no
como abrir uma porta. Talvez repita demasiado a palavra porta, mas
precisa entender que aqui essa palavra quase uma obsesso e, embora
possa lhe parecer incrvel, muito mais obsessiva que a palavra grade. As
grades esto a, so uma presena real, admitida, compreendida em toda
a sua chata magnitude. Mas as grades no podem ser outra coisa seno o
que efetivamente so. No h grades abertas e grades fechadas. Em compensao, uma porta muitas coisas. Quando est fechada, e sempre

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est, a clausura, a proibio, o silncio, a raiva. Se abrisse (no para um


recreio ou para um trabalho ou para um castigo, que so vrias outras
maneiras de estar fechada, mas para o mundo) seria a recuperao da
realidade, da gente querida, das ruas, dos sabores, dos cheiros, dos sons,
das imagens e do tato de ser livre. Seria, por exemplo, a recuperao de
voc e de seus braos e de sua boca e de seu cabelo e ah, de que adianta
tentar dar voltas em um trinco que no cede, em uma fechadura empedernida. Mas certo que a palavra porta est entre aquelas que mais
vm baila por aqui, mais ainda que as outras palavras que esperam atrs
desta porta, pois todos sabemos que para chegar a elas, para chegar s palavras filho, mulher, amigo, rua, cama, caf, biblioteca, praa, estdio,
praia, porto, telefone, imprescindvel transpor a palavra porta. E ela,
que sempre nos mostra as costas, mas est aqui, nos olha frrea e sectria,
cruel e durssima, sem nos fazer nenhuma promessa, sem nos dar nenhuma esperana e fechando-se sempre em nossos narizes. No entanto,
no nos deixamos vencer assim sem mais nem menos, ns tambm organizamos nossa campanha anticlausura, e escrevemos cartas, considerando simultaneamente o destinatrio e o censor, ou projetos de carta
onde, por hbito, continuamos a nos autocensurar, mas somos um
pouquinho mais ousados ou mastigamos livres monlogos como este que
jamais chegar ao papel e a seus limites. Mas um dos matizes mais notveis e positivos dessa campanha justamente fazer promessas a ns
mesmos, dar-nos esperanas (no as incrveis e triunfalistas, mas as austeras e verossmeis), imaginar que abrimos a porta em nossos narizes. s
vezes, podemos jogar xadrez ou cartas, mas nem sempre. Ah, mas temos
o direito de jogar futuro e, claro, nesse jogo de azar sempre guardamos
uma carta na manga ou reservamos um xeque-mate originalssimo e
secreto que no vamos desperdiar no jogo cotidiano, mas na grande
ocasio, por exemplo, quando enfrentarmos Capablanca ou Alekhine,
no vamos dizer Karpov, pois esse afinal existe e alm do mais seu nome
poderia ser riscado. Tambm falamos de msica e msicos, sempre e
quando no nos levem, a meu companheiro de turno ou a mim, para

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outra parte com a msica. Mas a ss ou com algum, posso recordar, por
exemplo, minhas vrias glrias de espectador. E assim, conto ou, no mais
anacoreta dos casos, conto-me que vi e ouvi Maurice Chevalier no Sols,
j veteranssimo o sujeito, mas ainda bem-humorado e to gentil que nos
fazia acreditar que improvisava cada uma de suas piadas pr-histricas; e
vi e ouvi Louis Armstrong na Plaza e ainda posso repetir a convincente
humanidade de sua rouquido; e vi e ouvi Charles Trenet em no sei que
Centro espanhol da rua Soriano, todos sentados numas cadeiras que
pareciam de restaurante e ns, os guris, no cho e ele, o francs, um pouco afetado, mas hbil, cantando o que anos mais tarde vim a saber que se
chamava La mer ou Bonsoir jolie madame, e vi e ouvi Marian Anderson,
no lembro mais se no Sodr ou no Sols, mas guardo bem ntido o
porte daquela negra enorme e dulcssima, instalada como um mantra na
trgica assuno de sua raa; e muito depois vi e ouvi Robbe-Grillet
dizendo todo tranquilo que o emprego do pretrito imperfeito em O estrangeiro de Camus mais importante que a histria contada; e vi e ouvi
Mercedes Sosa, cantando sozinha e quase clandestina no Zitlovsky da
rua Durazno; e vi e ouvi Roa Bastos, modestssimo sem dissimulao,
dizendo diante de um auditrio vergonhosamente escasso que o Paraguai
viveu sempre em seu ano zero; e vi e ouvi dom Ezequiel Martnez
Estrada, alguns meses antes de sua morte, pronunciando uma conferncia sobre um tema que no lembro porque minha ateno foi tomada
por seu rosto enxuto, citrino, ressecado, recuperado para a vida apenas
por uns olhinhos de mirada agudssima; e vi e ouvi Neftal Ricardo
Reyes,9 gozador, irnico, sutilmente vaidoso e poetssimo, debulhando
como um salmo as suas recordaes de Isla Negra; e vi e ouvi o da outra
ilha, na Esplanada, no meio de um pblico vibrante diante da durao,
do mpeto e do estilo do inesperado concerto, que para tantos outros era
desconcerto. Lembranas de menino, de adolescente, de homem, mas
lembranas indiscutivelmente minhas. Ou seja, quando levanto a cortina
eu sou, como voc deve ter percebido, interessantssimo, e eu mesmo me
aplaudo e me exijo outra, outra, outra, outra.

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9 Neftal Ricardo Reyes o nome do poeta Pablo Neruda. (N. da E.)

Exlios (Um homem num saguo)

Tinha conhecido o dr. Siles Zuazo em Montevidu, j se vo uns vinte anos,


quando chegou exilado (naquele tempo dizamos exiliado) ao Uruguai, depois do triunfo de um dos tantos golpes militares que sempre ulceraram a
histria da Bolvia. Na poca, eu tinha poucos livros publicados e trabalhava
no departamento contbil de uma grande companhia imobiliria.
Uma tarde o telefone tocou em minha mesa e uma voz grave disse:
Quem est falando Siles Zuazo. No incio pensei que era gozao e, consequentemente, no respondi, contabilizando talvez uma leve possibilidade
de que fosse verdade. Continuava espantado, mas em seguida ele esclareceu
minhas dvidas. Na realidade, estava me convidando para ir v-lo no Hotel
Nogar. Pensei que iria falar da Bolvia e dos milicos que tinham tomado o
poder, mas de todo modo no conseguia atinar com os motivos que o fizeram
escolher precisamente a mim. Mas estava equivocado.
Alguns anos antes eu tinha publicado um ensaio sobre Marcel
Proust e o sentimento da culpa. Pois bem, Siles Zuazo queria conversar
comigo sobre Proust e outros temas literrios. Descobri que aquele poltico
sem sada para o mar, aquele personagem cujas anedotas de valor cvico eu
tinha ouvido de vrios amigos, era um homem excepcionalmente culto, empedernido leitor da literatura contempornea.
Falamos sobre Proust, claro, enquanto tomvamos um ch com torradas. S faltavam as madeleines. As poucas vezes em que tocamos na
questo poltica, foi graas s minhas perguntas. Ele, ao contrrio, queria
falar de literatura e certamente disse coisas mais interessantes e sagazes.
Depois desse encontro inicial, tomamos ch vrias vezes no Nogar,
e guardo uma lembrana muito plcida e agradvel daquelas conversas. Um

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pouco mais tarde, deixou Montevidu e reintegrou-se s lutas e vaivns


polticos de sua incambivel Bolvia.
Fiquei muitos anos sem v-lo, embora acompanhasse sempre sua incansvel atividade poltica: legal, quando era possvel, clandestina, quando
no. Numa noite de chuva grossa em Buenos Aires, por volta de 1974, vinha
eu pela rua Paraguai, creio, tratando de me abrigar, quando de repente, ao
passar quase correndo diante de um saguo, tive a impresso de reconhecer
um homem que tambm se protegia do aguaceiro.
Voltei atrs. Era o dr. Siles. Ele tambm tinha me reconhecido.
Ento o senhor tambm teve que se exilar. Sim, doutor. Quando nos
falamos em Montevidu isso parecia impossvel, no mesmo? Sim, parecia. Naquela penumbra no conseguia distinguir seu sorriso, mas podia
imagin-lo. E nesse seu exlio inesperado, em que etapa est agora?
Respondi com um pouco de vergonha. A nmero trs. Ento no se aflija.
Eu j vou l pela quatorze.
Naquela noite no falamos de Proust.

Beatriz (Este pas)

Este pas no o meu, mas gosto muito dele. No sei se gosto dele mais
ou menos do que do meu pas. Vim muito pequena e no me lembro
como era. Uma das diferenas que no meu pas tem cabayos e aqui tem
cabaios. Mas so todos cavalos e relincham. E as vacas mugem e as rs
coaxam.
Este pas maior que o meu, sobretudo porque o meu bem
pequenininho. Neste pas vivem meu av Rafael e minha me Graciela.
E tambm outros milhes. muito agradvel saber que se vive em um
pas com muitos milhes. Quando Graciela me leva ao centro, passa um
monte de gente pela rua. tanta tanta tanta gente passando que parece
que j conheo todos os milhes deste pas.
Nos domingos as ruas ficam quase vazias e pergunto onde tero
se metido todos os milhes que vi na sexta-feira. Meu av Rafael diz que
aos domingos as pessoas ficam em casa descansando. Descansar quer
dizer dormir.
Neste pas se dorme muito. Sobretudo nos domingos, porque
so muitos milhes dormindo. Se cada um que dorme ronca nove vezes
por hora (minha me ronca quatorze), quer dizer que cada milho de
habitantes ronca nove milhes de vezes por hora. Ou seja, os roncos
grassam por aqui.
s vezes, quando durmo, comeo a sonhar. Quase sempre sonho
com este pas, mas algumas noites sonho com o meu pas. Graciela diz
que no pode ser porque no posso me lembrar do meu pas. Mas
quando sonho, eu lembro sim, embora Graciela diga que estou trapaceando. No estou trapaceando.

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Ento sonho que meu pai me leva pela mo a Villa Dolores, que
o nome do jardim zoolgico. E compra amendoins para eu dar aos
macacos e esses macacos no so os do zoolgico daqui, porque esses eu
conheo muito bem e tambm suas esposas e filhos. Os macacos dos
meus sonhos so os de Villa Dolores e meu pai diz est vendo, Beatriz,
essas grades, assim que eu vivo tambm. Ento acordo chorando neste
pas e Graciela tem que vir me dizer filhinha s um sonho.
Eu digo que uma pena que entre os milhes de pessoas que h
neste pas no esteja, por exemplo, o meu pai.

Feridos e contundidos (Sonhar acordada)

Viu, por isso que no quero que venha sozinha.


O que foi que eu fiz?
No se faa de sonsa.
Mas o que fiz?
Ia atravessar com o sinal vermelho.
No vinha nenhum carro.
Vinha sim, Beatriz.
Mas estava muito longe.
Vamos logo.
Passam diante do supermercado. Em seguida, diante da
tinturaria.
Graciela.
O qu?
Prometo que s vou atravessar com sinal verde.
Foi o que me prometeu na semana passada.
Mas agora estou prometendo de verdade. Voc me desculpa?
No questo de desculpar ou no desculpar. No percebe
que se atravessar com sinal vermelho pode ser atropelada por um carro?
Tem razo.
O que vou fazer, Beatriz, se acontecer alguma coisa com voc? E seu pai, como vai se sentir se lhe acontecer alguma coisa? No
pensa nisso?
No vai acontecer nada, me. No chore. Por favor. Vou atravessar sempre com sinal verde. Graciela. Me. No chore.
Sim, no estou chorando, boba. Vamos, entre.

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Ainda cedo. As aulas s comeam em vinte minutos. E o


solzinho est uma delcia. E quero ficar mais um pouquinho com voc.
Puxa-saco.
Quando diz isso, Graciela relaxa um pouco e sorri.
J me perdoou?
Sim.
Vai para o escritrio agora?
No.
Est de frias?
Trabalhei muito na semana passada e me deram a segundafeira de folga.
E o que vai fazer? Vai ao cinema?
Acho que no. Acho que vou voltar para casa.
Vem me buscar na sada? Ou posso voltar sozinha?
Queria ter confiana em voc.
Pode ter, me. No vai acontecer nada. De verdade.
Beatriz no espera a resposta de Graciela. Ela a beija quase no ar
e entra correndo na escola. Graciela fica um momento imvel, olhando-a
se afastar. Depois aperta os lbios e parte.
Caminha lentamente, balanando a bolsa, parando de vez em
quando, como desorientada. Ao chegar Avenida, percorre com o olhar
a cadeia de grandes edifcios. De repente, os que vo atravessar a tocam,
a empurram, dizem algo e ento ela finalmente decide atravessar. Mas
antes que chegasse outra calada, os sinais ficaram vermelhos e um
caminho tem que desviar para evit-la.
Dobra agora numa rua quase deserta, onde h vrias latas de lixo
transbordantes e hediondas. Aproxima-se de uma delas e olha com certo
interesse o contedo. Faz um gesto como se fosse enfiar a mo, mas se
contm.
Caminha duas, trs, cinco, dez quadras. Na esquina anterior a
outra Avenida h uma mulher pedindo esmolas. Junto dela dormem

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duas crianas bem pequenas. Ela se aproxima e a mulher recomea sua


cantilena.
Por que pede esmolas? Hein?
A mulher olha para ela espantada. Est acostumada ddiva,
rejeio, indiferena. No ao dilogo.
Como?
Perguntei por que pede esmolas.
Para comer, senhora. Pelo amor de Deus.
E no pode trabalhar?
No, senhora. Pelo amor de Deus.
No pode ou no quer?
No, senhora.
No o qu?
No h trabalho. Pelo amor de Deus.
Deixe o amor de Deus em paz. No percebe que Deus no
quer am-la?
No diga isso, senhora. No diga isso.
Tome.
Obrigada, senhora. Pelo amor de Deus.
Agora caminha com passos mais firmes e mais rpidos. A
mendiga fica para trs, atnita. Uma das crianas comea a chorar. Graciela vira a cabea para olhar o grupo, mas no para.
Quando est a duas quadras de sua casa, v a imagem desfocada
de Rolando. Est apoiado na porta. Caminha outro quarteiro e acena
para ele, levantando o brao. Parece que no a viu. Ela repete o gesto e
ento ele responde agitando seu brao tambm e vem a seu encontro.
Como soube que estava vindo para casa?
Muito simples. Liguei para o escritrio e me disseram que
hoje voc no ia trabalhar.
Quase fui ao cinema.

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Sim, pensei nessa possibilidade. Mas o sol estava to lindo


que me pareceu pouco provvel que resolvesse se fechar num cinema. E
bem, vim para c e, como pode ver, acertei.
Ele a beija no rosto. Ela procura na bolsa, encontra a chave e
abre.
Venha. Sente-se. Quer beber alguma coisa?
Nada.
Graciela abre as persianas e tira o casaco. Rolando olha para ela
de modo indagador.
Andou chorando?
D para notar?
Est com aquela aparncia denominada tecnicamente: depois
da tempestade.
Ora, s um chuvisco.
O que houve?
Quase nada. Um injusto desnimo diante de uma mendiga e
antes uma justa briguinha com Beatriz.
Com Beatriz? To linda, ela.
uma figura. E sempre me ganha.
O que houve?
Estupidez minha. to imprudente ao atravessar as ruas.
Fico com medo.
S isso?
Rolando oferece um cigarro, mas ela recusa. Ele pega um e
acende. D a primeira baforada e olha para ela atravs da fumaa.
Graciela, quando vai se decidir?
Decidir o qu?
Confessar no sei o que a voc mesma. Evidentemente, h
algo que voc quer admitir.
No comece outra vez, Rolando. Detesto esse tonzinho
paternal.
Eu a conheo h muito tempo, Graciela. Antes de Santiago.

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verdade.
E como a conheo, sei que no est bem.
No estou.
E continuar no estando at admitir isso.
Pode ser. Mas difcil. duro.
Sei disso.
Trata-se de Santiago.
Ah...
E sobretudo de mim. Ufa, no to complicado. Mas
duro. No sei o que h comigo, Rolando. terrvel de admitir. Mas no
sinto necessidade de Santiago.
E tem se sentido assim desde quando?
No me pea datas. Sei l. absurdo.
Melhor no qualificar ainda.
absurdo, Rolando. Santiago no me fez nada. S foi preso.
O que acha? Afinal de contas, pode-se fazer com algum algo pior que
isso, mais execrvel? Ele me fez isso. Foi preso. E me abandonou.
No abandonou, Graciela. Foi levado.
Eu sei. Por isso disse que absurdo. Sei que foi levado e
mesmo assim sinto como se tivesse me abandonado.
E o recrimina por isso?
No, como vou recrimin-lo? Ele se comportou bem, bem
demais, suportou a tortura, foi corajoso, no delatou ningum. um
exemplo.
E mesmo assim.
E mesmo assim fui me afastando. E a distncia me deu espao para reavaliar toda a nossa relao.
Que era boa.
Muito boa.
E ento?
No mais. Ele continua me escrevendo cartas carinhosas,
clidas, ternas, mas eu as leio como se fossem para outra pessoa. Pode me

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esclarecer o que aconteceu? Ser que a priso transformou Santiago em


outro sujeito? Ser que o exlio me transformou em outra mulher?
Tudo possvel. Mas tudo pode se complementar tambm.
E enriquecer-se. E melhorar.
Pois no melhorei, nem enriqueci. Sinto-me mais pobre,
mais seca. E no quero continuar empobrecendo e secando.
Graciela, voc continua partilhando as posies polticas de
Santiago?
Claro. So as minhas tambm, no? S que ele caiu. E eu, ao
contrrio, estou aqui.
Voc o recrimina pelos compromissos que assumiu?
Est louco? Fez o que tinha que fazer. Eu tambm fiz a
minha parte. Por a voc est no caminho errado. Nisso estivemos e estamos unidos. Onde no me sinto unida na relao a dois. No na social, mas na conjugal, entende? Isso pelo menos est claro para mim. O
que no est claro o motivo. E isso me angustia. Se Santiago tivesse me
feito alguma coisa ou se o tivesse visto fazer uma baixeza com algum.
Mas no. um sujeito de primeira. Leal, bom amigo, bom companheiro, bom marido. Eu era muito apaixonada por ele.
E ele?
Tambm. E ao que parece continua sendo. A louca sou eu.
Graciela. Voc ainda moa. linda, inteligente, carinhosa s vezes. Talvez o que lhe faa falta seja a contrapartida, a retribuio afetiva.
Ui, que difcil!
Aquilo que Santiago no pode lhe dar por correspondncia e
menos ainda por correspondncia sob censura.
possvel.
Posso lhe fazer uma pergunta muito, mas muito indiscreta?
Pode. E eu tambm posso no responder.
Certo.
Pode mandar, ento.

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Sonha com outros homens?


Voc quer dizer sonhos amorosos?
Sim.
Est falando de sonhar dormindo ou sonhar acordada?
De ambos.
Quando durmo no sonho com homem nenhum.
E acordada?
Acordada sonho. Voc vai rir. Sonho com voc.

Dom Rafael (Loucos lindos e feios)

Santiago me escreveu e est bem. Aprendi a ler suas entrelinhas e sei por
elas que continua mentalmente so. Meu temor era esse. No que delatasse ou esmorecesse. Isso no. Acho que conheo meu filho. Meu temor
era de que deslizasse da sanidade para sabe-se l o qu. Como um diretor
da Priso disse a ele, no sei se o ltimo ou o penltimo: No nos atrevemos a liquidar todos vocs quando tivemos a oportunidade e, no futuro, teremos que solt-los. Temos que aproveitar o tempo que nos resta
para deix-los loucos. Pelo menos foi franco, no mesmo? Franco e
abjeto. Mas de alguma maneira essa confisso impudica nos deu a chave:
neles, nos tiras, que existe algo de demente. So eles que aproveitaram
o tempo para enlouquecer. Mas no so loucos lindos; so loucos disformes, grotescos. Loucos por vocao e livre escolha, que a forma mais
ignbil de loucura. Ganharam bolsas em Fort Gulick para se diplomarem dementes. Atualmente, embora aquele diretor da Priso tenha dito
essas palavras h mais de cinco anos, continuo me agarrando s nicas
seis palavras aproveitveis de seu programa arrepiante: No futuro
teremos que solt-los. Digamos que no se atreveram a liquid-lo
quando tiveram a oportunidade, mas Santiago estar entre os que eles sero obrigados a soltar antes de t-los enlouquecido? Espero que sim. Santiago conseguiu gerar, ou talvez descobrir em si mesmo, uma estranha vitalidade. Sua descida aos infernos no o incinerou. Chamuscou talvez.
Penso que, mais do que se entregar a uma esperana, o que conta ali
agarrar-se sanidade. E ele continua sensato. Bato na madeira. E por via
das dvidas que seja sem ps: por exemplo, essa colher de oliveira que,
alm do mais, um presente de Lydia. Continua sensato porque se

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incrustou voluntariamente na sensatez. E est dosando seus dios com


prudncia e sagacidade, o que decisivo. Os dios s vivificam e estimulam se voc os governa, mas destroem e desajustam quando so eles que
dominam. Sei que difcil ter bom senso quando se passou pela humilhao e pelo mutismo obstinado e pelo asco morte e pelo alerta sem
trgua e pelo pavor solitrio e pelo martrio em cotas incmodas. Depois
desse itinerrio, agarrar-se sensatez pode ser uma forma de delrio. S
isso pode explicar essa ferrenha lealdade ao equilbrio. Alm dos princpios, claro. Mas teve gente com muitos e slidos e declarados princpios
que, no entanto, baqueou e depois ficou se sentindo um cu. Gente que
no julgo, que isso fique e me fique bem claro, porque ningum sabe
quem realmente, quo incinervel ou incombustvel , at passar por
alguma fogueira. Digo sinceramente que os princpios so, sem dvida,
um elemento fundamental, mas apenas um. O resto respeito a si
mesmo, fidelidade aos demais e sobretudo muita tenacidade, muita obstinao em estado bruto, e tambm, ocorreu-me agora, uma desmistificao progressiva da morte. Porque esse definitivamente o argumento
mais contundente e penetrante que eles esgrimem: a possibilidade certa,
o comparecimento genuno da morte, no uma morte qualquer, mas a
prpria morte. E somente ao rebaix-la diante de si mesmo, somente ao
mutil-la de sua lendria reputao, um homem pode ganhar a peleja.
Convencer-se de que morrer no , afinal de contas, to fodido assim
quando se morre bem, quando se morre sem rancores contra si mesmo.
No entanto, ocorreu-me tambm (a mim, que nunca passei por esse
risco) que no deve ser fcil, pois numa conjuntura assim a pessoa fica
espantosamente s, no tem sequer a companhia da presena suja do teto
ou das paredes, nem dos rostos imundos dos que o destroam; est s
com seu capuz, ou mais exatamente com o avesso do capuz; s com sua
taquicardia, suas nsias, sua asfixia ou sua angstia sem fim. claro que,
quando isso acaba, quando se conclui e se tem a conscincia de ter sobrevivido, deve restar um sedimento de dignidade e tambm uma borra permanente de rancor. Algo que nunca mais se perder, mesmo que o

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futuro ambguo traga seguranas e confianas e amor e passo firme. Uma


borra de rancor que pode se tornar endmica e at chegar a contaminar
as seguranas e as confianas e o amor e o passo firme, talvez incorporado em mais de um futuro individual. Ou seja, esses implacveis, esses
peritos da sevcia, esses canibais inesperados, esses sacerdotes da Sagrada
Ordem do Cepo, no tm somente a culpa atual, mas tambm uma projeo dessa culpa que roa o infinito. No so apenas responsveis por
cada mancha individual ou pela soma dessas manchas, mas tambm por
terem apodrecido os velhos cimentos de uma sociedade inteira. Quando
supliciam um homem, matem-no ou no, martirizam tambm (apesar
de no prend-los, embora os deixem desamparados e atnitos em sua
casa violada) sua mulher, seus pais, seus filhos, aqueles com quem se
relaciona. Quando arrebentam um militante (como foi o caso de Santiago) empurrando sua famlia para um exlio involuntrio, rasgam o
tempo, transmudam a histria para esse ramo, para esse mnimo cl.
Reorganizar-se no exlio no , como se diz tantas vezes, comear a contar do zero, mas comear de menos quatro ou menos vinte ou menos
cem. Os implacveis, os que ganharam seus gales na crueldade militante, esses que comearam puritanos e acabaram corruptos, eles abriram
um enorme parntese nessa sociedade, um parntese que certamente se
fechar um dia, mas quando ningum mais for capaz de retomar o fio da
antiga orao. Ser necessrio comear a tecer outra, a incorporar outra
na qual as palavras no sero as mesmas (porque houve tambm lindas
palavras que eles torturaram e justiaram ou incluram nas listas de desaparecidos), na qual os sujeitos e as preposies e os verbos transitivos e os
complementos diretos j no sero os mesmos. A sintaxe ter mudado
nessa sociedade, ainda recm-nascida, que nessa ocasio se mostrar dbil, anmica, vacilante, excessivamente cautelosa, mas que com o tempo
ir se recompondo, inventando novas regras e novas excees, palavras
chamejantes a partir das cinzas das que foram prematuramente calcinadas, conjunes copulativas mais adequadas a servir de ponte entre os
que ficaram e os que se foram e que ento voltaro. Mas nada poder ser

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igual pr-histria de setenta e trs. Para melhor ou para pior; no tenho


certeza. E tenho menos certeza ainda de que poderei me habituar, de que
algum dia voltarei a esse pas distinto que est se formando agora, atrs
das cortinas do proibido. Sim, provvel que o desexlio seja to duro
quanto o exlio. A nova sociedade no ser erguida pelos veteranos como
eu, nem sequer pelos jovens maduros como Rolando ou Graciela. Somos
sobreviventes, claro, mas tambm feridos e contundidos. Eles e ns. Ser
construda ento pelas crianas de hoje, como minha neta? No sei, no
sei. Talvez os oficiantes, os fazedores dessa ptria pendular e peculiar sejam aqueles que hoje so crianas mas permanecem no pas. No os
meninos e meninas que trazem na retina as neves de Oslo ou os entardeceres do Mediterrneo ou as pirmides de Teotihuacn ou as lambretas
da Via Appia ou os negros cus do inverno sueco. Tampouco os meninos e meninas que carregam na memria as crianas mendigas da
Alameda ou os drogados do Quartier Latin ou a bebedeira consumista de
Caracas ou o tejerazo de Madri ou as algazarras neonazistas do milagre
alemo. No mximo pode ser que ajudem, que transmitam o aprendido,
que perguntem pelo desaprendido, que tentem se adaptar e lutar. Mas
quem forjar o novo e peculiar pas do futuro mediato, essa ptria que
ainda um enigma, sero os pberes de hoje, os que estiveram e esto l,
os que a partir de uma tica infantil, mas nada amnsica, viram uma boa
parte dos duros confrontos e viram como outros adolescentes, os de sessenta e nove e setenta, eram feridos como inimigos e como sequestraram
seus pais, s vezes suas mes e at seus avs, que eles s voltariam a ver
muito mais tarde e ainda atrs das grades e de longe ou tambm de uma
proximidade feita de incomunicao e distncia. E viram chorar e choraram eles mesmos junto de atades que era proibido abrir, e viram como
depois veio o silncio estrondoso nas esquinas, e as tesouras nos cabelos e
no dilogo, e isso sim, muito rock e jukeboxes e caa-nqueis para que esquecessem o inesquecvel. No sei como nem quando, mas essa garotada
de hoje ser a vanguarda de uma ptria realista. E ns, os veteranos? Ns,
as carroas, como dizem os galegos? Bem, os que ainda estivermos

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lcidos na poca, ns, as carroas que ainda estivermos rodando, ns os


ajudaremos a recordar o que viram. E tambm o que no viram.

Exlios (A solido imvel)

Em Sfia, Bulgria, foi parar H., jornalista, especialista em assuntos internacionais, correspondente de um dirio blgaro em Montevidu. Logo depois
de uma das tantas investidas do regime, teve que se exilar na Argentina,
onde viveu sete meses, mas aps o assassinato de Zelmar Michelini e Gutirrez Ruiz a Argentina tambm se tornou inabitvel para os exilados uruguaios. Sob a proteo das Naes Unidas, subiu para Cuba e de l para a
Bulgria.
Vivia s, longe da mulher e dos filhos, mas fez sem dvida muitos
amigos entre os blgaros, uma gente calorosa e acolhedora, amiga das celebraes nobres e sentimentais, e deve ter desfrutado daquelas avenidas incrveis, com canteiros de rosas que se encontram por todo lado naquela terra
linda de Dimitrov, claro, mas tambm de meu amigo Vasil Popov, que h
mais de dez anos escreveu e publicou um conto muito carinhoso sobre dois
tupamaros que encontrou certa vez no elevador de um hotel havans.
Sim, com certeza acostumou-se ao iogurte (fermentos casualmente
blgaros) e aos sacerdotes ortodoxos e ao caf turca, que para mim insuportvel. Mas mesmo assim deve ter experimentado a indesejada humilhao de estar s e de olhar-se cotidianamente com novo espanto e velha
resignao.
Quando em meados de 1977 cheguei a Sfia para assistir ao Encontro de Escritores pela Paz, fazia poucos dias que H., que era to jornalista,
tinha se tornado notcia. Como todas as tardes, chegou a seu apartamento,
provavelmente se deitou e s se ficou sabendo dele vrios dias depois, quando
os colegas de trabalho, estranhando sua ausncia, foram bater em sua porta
e, ao no obterem resposta, trouxeram a polcia para abri-la.

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Estava em sua cama, ainda com vida, mas j sem sentidos. Um


derrame tinha provocado uma hemiplegia. Estava naquele estado havia pelo
menos trs dias. De nada valeram os cuidados intensivos.
A rigor, no morreu de hemiplegia, mas de solido. Os mdicos disseram que se tivesse sido encontrado a tempo, teria certamente sobrevivido.
Quando seus amigos o encontraram, j tinha perdido os sentidos, mas se
supe que, pelo menos durante as primeiras vinte e quatro horas, soubesse o
que estava ocorrendo. desolador tentar introduzir-me, inventando seus
pensamentos de homem imobilizado. No vou faz-lo por respeito, embora
talvez tivesse possibilidades particulares de torn-los verossmeis.
Um par de anos antes, em meu exlio portenho, em meu apartamento de solteiro em Las Heras e Pueyrredn, passei por uma situao
bastante semelhante. Estive inconsciente um dia inteiro, vtima do chamado
mal asmtico. Segundo parece, alguns amigos telefonaram, mas no percebi,
embora o telefone estivesse sobre a cama. Pensaram certamente que eu no
estava. Naqueles meses sombrios da Argentina de Lpez Rega, em que apareciam dez a vinte cadveres nas lixeiras por dia, era frequente que muitos de
ns, em certas noites particularmente inquietantes, dormsssemos na casa de
amigos. Em meu chaveiro havia sempre pelo menos trs chaves solidrias.
Durante a tarde, recuperei vagamente a conscincia, atendi um
telefonema, apenas um, e voltei a desfalecer. Esse nico gesto conseguiu
salvar-me. H. no teve sequer essa possibilidade. A solido o deixou imvel.

O outro (Titular e suplente)

Uma coisa louca, a Beatricita, ah se Santiago pudesse v-la, Rolando sabe


que essa deve ter sido a prova mais dura para aquele sabicho famoso.
Anos sem Beatriz, sabe-se l quantos. Agora existe alguma esperana,
mas na poca. Claro que Santiago tem vrios outros verbetes de nostalgia, Graciela entre eles, evidentemente, mas o mais feroz deve ser Beatriz,
pois quando caiu mal tinha comeado a desfrutar de sua companhia.
No muito, claro, pois foram anos tremendos, mas de qualquer maneira
a cada dois ou trs dias separava um tempinho para v-la: ele a levava
para a cama grande e papeava um pouco com a pequena, que sempre foi
espertssima, desde pequenininha. Santiago sim era um pai por vocao,
no como ele, Rolando Asuero, habitu de bordis em primeira instncia
e de motis em seguida. Na realidade, foi a poltica que acabou com seu
latin american way of life, h que lembrar que nos ltimos tempos at os
motis eram usados para reunies clandestinas, que desperdcio, sempre
sentia um pouco de vergonha por no tirar nem a jaqueta e por ter que
respeitar rigorosamente a companheira (tango habemus: me dei mal, que
imbecil)10 naquele ambiento clssico de folgana, bem, na verdade algumas vezes o contexto foi mais forte que o texto, mas de todo modo
sempre me pareceu que era um abuso de autoridade por parte dos irresponsveis Responsveis, porque as companheiras eram em geral
gostosssimas e era preciso ficar atento para no se excitar, to concentrado em pensar em blocos de gelo e cumes nevados que depois esquecia a mensagem recebida e a transmitir.
Uma coisa louca, a Beatricita. Hoje tinha conversado com ela
um bom tempo, enquanto esperavam por Graciela. Rolando se encanta

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com o modo como a menina fala da me e como a enquadra direitinho,


como conhece todas as suas fortalezas inexpugnveis e os pontos vulnerveis. Mas o curioso que ela o diz sem vaidade, sem petulncia, com um
rigor quase cientfico. claro que esse rigor se esfuma quando comea a
falar de Santiago. Ela o endeusou. Hoje azucrinou Rolando, o tio Rolando (para ela, todos os amigos e amigas de Graciela so tios), perguntando
sobre a Priso, como eram as celas, se era mesmo verdade que d para ver
o cu (ele responde que sim, mas ela pensa que deve ser para que Graciela e eu no choremos) e por que exatamente estava preso se tanto Graciela quanto ele, o tio Rolando, garantiam que era muito bom e amava
muitssimo sua ptria. E nesse momento calou-se um instantinho para
perguntar depois, com os olhos semicerrados, concentrada em uma preocupao que sem dvida no era nova, tio, qual a minha ptria, a sua
eu sei que o Uruguai, mas estou falando no meu caso, que vim para c
pequenininha, hein, diga a verdade, qual a minha ptria. E quando dizia minha tocava o peito com o indicador e ele teve que pigarrear e at assoar o nariz para ganhar tempo e em seguida dizer que existem pessoas,
sobretudo crianas, que tm duas ptrias, uma titular e outra suplente,
mas a garota insistia; qual era ento a sua ptria titular e ele claro que sua
ptria titular o Uruguai, e a garota enfiando o dedinho na ferida e por
que ento no me lembro de nada da minha ptria titular e em compensao sei um monte de coisas da minha ptria suplente. Menos mal
que Graciela chegou bem na hora e abriu a porta (porque estavam esperando perto da janela e sem poder entrar) e foi lavar as mos e pentear-se
um pouco e ordenou que Beatriz tambm lavasse as mos e a garota disse
j lavei ao meio-dia e Graciela se irritando levando-a por um brao at a
pia com certa brusquido e/ou impacincia, voltando agitada para onde
Rolando estava, sentado na cadeira de balano, olhando-o como se s
agora percebesse a sua presena e dizendo oi com uma voz cansada e indefesa que s de longe parecia a sua.
10 Me cachendi, qu gil. Do tango Che Tango, che, de Astor Piazzola e Horacio Ferrer.
(N. da T.)

Intramuros (O balnerio)

No sei por que hoje estive rememorando longamente os veres em


Sols. A casinha era linda e bem prxima da praia. s vezes, quando fico
impaciente ou irritado, penso nas dunas e me tranquilizo. Naquelas
pequenas temporadas to calmas, to parecidas com a felicidade, quem
poderia pensar que depois viria o que veio? Lembro quando subimos a
Serra e quando nos encontramos com Sonia e Rubn e quando alugamos
os cavalos e voc s ficava no trote e no conseguia, apesar de suas ordens e seus esforos, fazer o cavalinho galopar, e ficava pssima por causa
disso. Mas no me lembro apenas desses detalhes costeiro-buclicos;
tambm tenho presente certo mal-estar incmodo que no me deixava
usufruir plenamente daquele sbrio conforto de trs semanas. Lembra-se
do que conversamos umas tantas vezes, quando a tarde caa sobre a casa e
a hora do ngelus nos punha melanclicos e at um pouco sombrios?
Sim, nosso conforto era terrivelmente austero, nosso descanso era baratssimo e nada ostentoso, e no entanto pensvamos naqueles que nada
tinham, nem trabalho, nem po, nem moradia, e muito menos uma
hora especial para a melancolia pois sua amargura era em tempo integral.
E assim acabvamos em silncio, sem solues vista, mas nos sentindo
vagamente culpados. E obviamente, na manh seguinte, quando o ar
fresco de maresia e o primeiro sol penetravam desde cedo na casinha, diante desse respaldo da natureza, a tristeza ia embora e voltvamos a nos
sentir plenos e otimistas: voc se dedicava a juntar conchinhas e eu a andar de bicicleta porque j naquele anos voc argumentava que eu tinha
certa tendncia a criar barriga mas, como pode ver, passaram-se muitos
anos mais e no fiquei barrigudo, claro que o mtodo talvez no seja o

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mais recomendvel. E os ltimos tempos, quando os amigos vinham


tambm. Isso tinha um lado bom e outro ruim, no? Era mais divertido,
claro, e estimulava proveitosas (embora longas demais, s vezes) discusses, que para mim sempre tiveram uma utilidade evidente: serviam
para descobrir em mim mesmo o que realmente pensava sobre tantas
questes. Mas esse vero coletivo tambm tinha seu lado ruim, pois nos
tirava intimidade e cerceava nossa possibilidade de dilogo (ns, os dois),
limitando-a apenas cama, um lugar onde em geral usvamos outros
meios de comunicao. E em que disperso terminou todo o cl. Alguns
j nem existem mais. Acho que as mulheres esto pela Europa (vocs se
escrevem?). Tenho ouvido dizer que um dos rapazes anda por a, voc
encontra com ele s vezes? D-lhe um abrao meu: o que est fazendo?
Trabalha? Estuda? Continua muito mulherengo? Guardo uma boa lembrana de sua erudio tanguista e de sua veia conciliadora. Como estar
Sols? El Chaj continuar existindo? Era fantstico almoar em seu salo
de troncos de madeira, em geral repleto de ingleses, amveis e distantes
como sempre. Por que ser que os ingleses gostavam tanto dessa praia?
No mnimo, pelas mesmas razes que ns: ali ainda era possvel (pelo
menos naqueles anos) recuperar a sensao de espao, ver a praia como
praia e no como um vasto comrcio com areia; a estrutura natural tinha
sobrevivido, pois as casas, mesmo as suntuosamente decoradas, no agrediam a paisagem. De manh cedo era brbaro caminhar e caminhar na
beira da praia, recebendo nos ps as ondinhas suaves que davam vontade
de seguir vivendo. Acho que gostvamos disso tambm porque de alguma forma simbolizava o Uruguai de ento, pas de ondinhas suaves,
no das tempestades furiosas que vieram depois. Em um dos extremos
havia umas pedras, mas no grandes rochedos. A pessoa simplesmente se
sentava e a gua invadia os espaos entre as pedras, percorria e limpava os
canaizinhos, botava os caranguejos de patas para o ar e sacudia as metades dos mexilhes sempre agrupados em alguma reentrncia nas pedras
e cantos. Ao entardecer, a sensao era distinta, talvez gerasse menos energia e otimismo, mas era portadora de um sossego que nunca voltei a

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experimentar. O sol ia se escondendo atrs das dunas de Jaureguiberry, e


o marulhar rtmico das ondas mansas se misturava a algum mugido que
parecia longnquo e que talvez por isso mesmo soasse taciturno e
agourento. Certos dias, essa angstia providencial nos contagiava, mas s
vezes se convertia inesperadamente no sal do dia, simplesmente porque
no tnhamos motivos pessoais para hipocondrias e, portanto, embora s
vezes seus olhos verdes se umedecessem e um n se formasse em minha
garganta, sempre tnhamos conscincia de que no havia causas concretas para a tristeza, salvo as congnitas, as que so inerentes ao mero
fato de viver e morrer. E voltvamos caminhando devagarinho, agora abraados e em silncio, e na palma de minha mo direita sentia que a pele
de sua cintura nua se arrepiava, certamente porque comeava a soprar
um anncio da brisa noturna, e dava vontade de chegar em casa para vestir o pulver e tomar uma grapinha com limo e preparar o churrasco
com ovos e salada e nos beijar um pouco, no demais, pois o melhor
ficava para depois.

Beatriz (Uma palavra enorme)

Liberdade uma palavra enorme. Por exemplo, quando terminam as


aulas, pode-se dizer que uma pessoa fica em liberdade. Enquanto a liberdade dura, voc passeia, brinca, no tem por que estudar. Dizem que um
pas livre quando uma mulher qualquer ou um homem qualquer pode
fazer o que lhe der na cabea. Mas at nos pases livres tem coisas proibidas. Matar, por exemplo. Mas a que est, matar mosquitos e baratas
pode e vacas tambm, para fazer churrasco. Por exemplo, proibido
roubar, mas no to grave ficar com umas moedinhas quando Graciela,
que minha me, me manda fazer alguma compra. Por exemplo, proibido chegar tarde escola, embora nesse caso tenha que escrever uma
cartinha, ou melhor, Graciela tem que escrever uma cartinha justificando
por qu. o que diz a professora: justificando.
Liberdade quer dizer muitas coisas. Por exemplo, se voc no est presa se diz que est em liberdade. Mas meu pai est preso e no entanto est em Liberdade, pois assim que se chama a priso onde est h
muitos anos. Tio Rolando chama isso de sarcasmo. Um dia, contei a
minha amiga Anglica que a priso em que meu pai est se chama Liberdade e que tio Rolando tinha dito: que sarcasmo, e minha amiga
Anglica gostou tanto da palavra que quando seu padrinho lhe deu um
cachorrinho ela botou o nome de Sarcasmo. Meu pai um preso, mas
no porque tenha matado ou roubado ou chegado tarde escola. Graciela diz que meu pai est em Liberdade, ou seja preso, por suas ideias.
Parece que meu pai era famoso por suas ideias. Eu tambm tenho ideias,
s vezes, mas ainda no sou famosa. Por isso no estou em Liberdade, ou
seja no estou presa.

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Se estivesse presa, gostaria que minhas bonecas, Toti e Mnica,


tambm fossem presas polticas. Porque gosto de dormir abraada pelo
menos com a Toti. Com a Mnica nem tanto, porque muito resmungona. Eu nunca bato nelas, sobretudo para dar bom exemplo a Graciela.
Ela j me bateu umas poucas vezes, mas quando faz isso eu queria ter muitssima liberdade. Quando me bate ou ralha comigo eu a
chamo de Ela, porque ela no gosta que a chame assim. claro que
tenho que estar de muito mau humor para cham-la de Ela. Se, por exemplo, meu av chega e pergunta onde est sua me e eu respondo Ela
est na cozinha, todo mundo sabe que estou de mau humor, porque
quando no estou de mau humor digo s Graciela est na cozinha. Meu
av sempre me diz que sou a mais mal-humorada da famlia e isso me
deixa muito contente. Graciela tambm no gosta muito que eu a chame
de Graciela, mas eu chamo porque um nome lindo. S quando gosto
muito, muito dela, quando a adoro e a beijo e a aperto e ela diz ai
pequerrucha no me aperte assim, ento eu a chamo de mame ou
mami, e Graciela se comove e fica toda derretida e faz carinho no meu
cabelo, e isso no seria assim to bom se eu a chamasse de mame ou
mami por qualquer besteira.
De forma que liberdade uma palavra enorme. Graciela diz que
ser um preso poltico como meu pai no nenhuma vergonha. Que
quase um orgulho. Por que quase? orgulho ou vergonha? Gostaria
que eu dissesse que quase vergonha? Estou orgulhosa, no quase orgulhosa, de meu pai, porque teve muitssimas ideias, tantas e tantas que foi
preso por causa delas. Acho que agora meu pai vai continuar tendo ideias, ideias espetaculares, mas quase certo que no fale sobre elas com
ningum, porque se falar, quando sair da Liberdade para viver em liberdade, podem fech-lo outra vez na Liberdade. Esto vendo como
enorme?

Exlios (Penltima morada)

A morte de um companheiro (mais ainda quando se trata de algum to


querido quanto Luvis Pedemonte) sempre um dilaceramento, uma ruptura. Mas quando a morte arremata seu bote no exlio, mesmo que tenha
lugar num mbito to fraterno quanto este, o dilaceramento tem outras implicaes, outro significado.
Esse desenlace natural, esse final obrigatrio que a morte, tem
sempre alguma coisa de regresso. Volta terra nutriz; volta matriz de
barro, de nosso barro, que nunca vai ser igual aos outros barros do mundo. A
morte no exlio aparentemente a negao do regresso, e esse talvez seja seu
lado mais obscuro.
Por isso, durante o longo perodo da penosa enfermidade de Luvis,
era to difcil v-lo animar-se, sorrir, fazer projetos, e mais difcil ainda continuar a dissimular, nomear futuros que o incluam, imaginar ou subentender que voltaria a respirar o ar de seu bairro, a ver a praia, esse luminoso
corao do dia montevideano, e a saborear as uvas e os pssegos, esses luxos de
pobre.
Como falar das boas coisas simples que do gosto vida e que davam sentido sua, se sabamos que a morte seguia seu rastro e que ningum
poderia livr-lo nem escond-lo, nem morrer por ele, e menos ainda convencer seu algoz, nem sequer derramar um pranto em sinal de sua presena vital
entre ns.
Nos primeiros tempos, o exlio era, entre outras coisas, o duro osso de
viver longe. Agora tambm o de morrer longe. A lista j tem cinco ou seis
nomes. A solido, as enfermidades ou os tiros acabaram com eles e quem sabe
com quantos mais, agora so tantos: menos no vastssimo pas errante.

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O trago mais amargo se pensamos que morrer no exlio o sinal de


que nos foi negado, no apenas a Luvis, mas a todos ns, o supremo direito
de abandonar o trem na estao onde a viagem comeou. Tiraram de ns a
nossa morte domstica, simplesmente nossa, essa morte que sabe de que lado
dormimos, de que sonhos se nutrem nossas viglias.
Por isso, quando admitimos agora que Luvis, companheiro querido
como poucos, partiu sem ter regressado, ns lhe prometemos lutar no
somente para mudar a vida, mas tambm para preservar a morte, essa morte
que matriz e nascimento, a morte em nosso barro.
Luvis foi um excelente jornalista, um militante revolucionrio, um
amigo leal, um fervoroso admirador da Revoluo Cubana, mas talvez possamos sintetizar todos esses matizes dizendo que foi um excepcional homem
do povo, com os atributos de simplicidade e modstia, de paixo e generosidade, de capacidade de afeto e de trabalho, alegria e coragem, eficincia e responsabilidade que resumem de certa maneira o melhor de nosso povo.
Nele conviviam dois traos complementares que nem sempre coexistem no exilado; por um lado, olhos e ouvidos indeclinavelmente atentos aos
sofrimentos e s lutas, aos rumores e s imagens da ptria distante e, por
outro, a ampla capacidade de ser til posta a servio da fecunda integrao
em Cuba, cuja revoluo compreendia, defendia e queria como se fosse a prpria, sabendo de algum modo que era a dele, era a nossa.
Com todas as frustraes e amarguras, o exlio nunca foi para ele
um motivo e muito menos um pretexto para autoconfinamento e solido. Sabia que a melhor frmula contra o aoite do exlio a integrao na
comunidade que acolhe o exilado e assim, firme em sua convico, trabalhou
com desembarao e alegria, quase como um cubano mas sem nunca deixar de
ser plenamente uruguaio.
Recordemos que entre os lugares comuns que cercam o negcio da
morte no mundo capitalista, fala-se frequentemente da ltima morada.
Sem dvida para um companheiro como Luvis, a morada em que o
deixamos hoje ser a penltima, j que a ltima estar sempre em ns, em

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nosso afeto, em nossa lembrana. E ser uma morada de portas abertas e


janelas para o cu.
S assim venceremos essa morte que parece sem regresso. E
haveremos de venc-la porque ningum duvida de que Luvis regressar com
aqueles de ns que conseguirmos voltar um dia terrinha. Regressar em
nossos coraes, em nossa memria, em nossas vidas. Coraes, memria e vidas que sero consideravelmente melhores pelo simples fato de retornarem
com to honesto e leal, to digno e generoso, to simples e veraz homem do
povo.

Feridos e contundidos (Verdade e prorrogao)

Na ltima hora da tarde foi ver o sogro. Fazia uns quinze dias que no o
visitava. O nico problema era que seus horrios no coincidiam.
Caramba, caramba! disse dom Rafael depois de beij-la.
Deve ter acontecido algo de muito grave para voc vir me ver.
Por que est dizendo isso? Sabe bem que gosto muito de conversar com voc.
Eu tambm gosto de conversar com voc. Mas voc s vem
quando est com problemas.
Pode ser. Peo que me perdoe.
No se chateie. Venha quando quiser, com ou sem problemas. E minha neta?
Um pouco resfriada, mas em geral bem. Nos ltimos meses
tem conseguido boas notas na escola.
inteligente, mas alm disso esperta. Digamos que puxou
o av. No a trouxe por causa do resfriado?
Um pouco por isso, mas tambm porque queria lhe falar a
ss.
Bem que adivinhei, viu s? Pois bem, qual o problema?
Graciela sentou no sof verde, quase se jogou nele. Olhou lenta
e detidamente para o aposento levemente desordenado, aquele apartamento de velho solitrio, e sorriu com tristeza.
difcil para mim comear. Sobretudo porque o senhor. E
no entanto o nico com quem quero falar sobre isso.
Santiago?

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Sim. Melhor dizendo: sim e no. O tema paralelo Santiago,


mas o central sou eu.
Veja s como so egocntricas as mulheres.
No somente as mulheres. Mas falando srio, Rafael, o tema
especfico talvez seja Santiago e eu.
O sogro sentou-se tambm, mas na cadeira de balano. Seus
olhos ensombreceram-se um pouco, mas antes de falar se balanou um
par de vezes.
O que que no vai bem?
Eu no vou bem.
O sogro pareceu disposto a cortar caminho.
Deixou de am-lo?
Evidentemente Graciela no estava preparada para entrar to abruptamente no assunto. Ele emitiu um som pouco menos que gutural e
depois bufou.
Fique calma, mulher.
No consigo. Olhe como minhas mos esto tremendo.
Se lhe servir para alguma coisa, posso dizer que j sentia que
algo assim estava para acontecer h alguns meses. De modo que no vou
me assustar com nada.
Sentia que algo ia acontecer? Ento dava para notar?
No, mocinha. No se nota assim, em geral. Eu notei
simplesmente porque a conheo h muitos anos e alm do mais sou o
pai de Santiago.
Graciela tinha diante dela uma boa reproduo do Fumante, de
Czanne. Tinha visto aquela imagem tranquilamente umas cem vezes,
mas sentiu de repente que no conseguia suportar aquele olhar, que lhe
parecia oblquo. Em outras tardes e em outras penumbras o olhar do Fumante lhe pareceu perdido em divagaes, mas agora, ao contrrio, teve
a impresso de que olhava para ela. Talvez tudo viesse daquele cachimbo,
sustentado na boca de modo muito semelhante ao de Santiago. Ento
desviou os olhos e fitou suavemente o sogro.

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Vai achar que uma loucura, uma insensatez. Posso adiantar


que eu tambm penso assim.
Na minha idade nada parece loucura. Acabamos por nos
acostumar aos inesperados, aos repentes, aos impulsos. A comear pelos
prprios.
Graciela pareceu animar-se. Abriu a bolsa, tirou um cigarro e
acendeu. Ofereceu o mao a dom Rafael.
Obrigado, mas no. Faz seis meses que no fumo. No tinha
percebido?
E parou por qu?
Problemas de circulao, mas nada srio. No fim das contas,
foi bom. No comeo era desesperador, sobretudo depois das refeies.
Agora j me acostumei.
Graciela aspirou lentamente a fumaa, e ao que parece isso lhe
deu coragem.
Perguntou-me se deixei de amar Santiago. Tanto se lhe disser
que sim, quanto se lhe disser que no estarei distorcendo a verdade.
Parece que a coisa complicada, no?
Um pouco. claro que num certo sentido continuo a amlo, entre outras coisas porque Santiago no fez nada para que eu deixasse
de am-lo. Sabe melhor que ningum como ele tem se comportado. E
no somente em suas lealdades polticas, militantes. No pessoal tambm.
Sempre foi muito bom comigo.
E ento?
Ento eu continuo a gostar dele como se gosta de um amigo
maravilhoso, de um companheiro de comportamento impecvel que,
por outro lado, no nada mais nada menos do que o pai de Beatriz.
Porm...
Porm, como mulher, deixei de am-lo. No sentido em que
no sinto necessidade dele, entende?
Claro que entendo. No sou to tapado. Alm do mais, voc
explicou com muita clareza e com muita convico.

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Como poderia resumir? Talvez falando abertamente. E espero que possa me perdoar. No gostaria de ter que dormir com ele de
novo. Parece horrvel, no mesmo?
No, no parece horrvel. Parece triste, talvez, mas a verdade
que ultimamente o mundo no uma festa.
Se Santiago no estivesse preso, no seria to grave. Seria
simplesmente o que acontece com tanta gente. Poderamos falar do assunto, discutir. Tenho certeza de que Santiago acabaria entendendo,
mesmo que minha deciso o amargurasse ou decepcionasse. Mas ele est
na priso.
Sim, est na priso.
E isso faz com que eu me sinta cercada. Ele est preso l, mas
eu tambm estou aprisionada em uma situao.
O telefone tocou. Graciela fez um gesto de irritao: a campainha destrua o clima de comunicao, estragava a confidncia. O
sogro saiu da cadeira de balano e tirou o fone do gancho.
No, no momento no estou sozinho. Mas venha amanh.
Quero muito v-la. Sim, de verdade. No estou sozinho, mas no uma
presena que possa preocup-la. Bem, estarei esperando tardinha. s
sete, est bem para voc? Tchau.
O sogro desligou e voltou a se instalar na cadeira. Olhou para
Graciela, avaliou sua expresso de surpresa e no teve outro remdio
seno sorrir.
Bem, estou velho mas nem tanto. E alm do mais, a solido
completa muito dura.
Fiquei um pouco surpresa, mas alegre, Rafael. Tambm me
deu um pouco de vergonha. Estamos sempre atentos demais a nossos
prprios umbigos, parece que os nossos so os nicos problemas importantes. Nem sempre nos damos conta de que os outros tambm tm os
seus.
Devo dizer que no chamaria isso propriamente de problema. No uma moa, sabe? Embora seja bem mais jovem que eu. Isso

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sempre estimula. E tambm boa gente. Ainda no sei quanto vai durar,
mas por agora me parece muito bom. Confidncia por confidncia, direi
que estou me sentindo menos inseguro, mais otimista, com mais vontade
de seguir vivendo.
Fico contente, de verdade.
Sim, sei que est sendo sincera.
O sogro esticou o brao para uma portinha da estante de livros,
abriu e tirou uma garrafa e dois copos.
Quer um trago?
Sim, cairia bem.
Antes de beber, olharam-se e Graciela sorriu.
Com sua inesperada histria quase me fez esquecer a minha.
No acredito.
Estou brincando. Como posso esquecer?
s isso mesmo, Graciela? No ir mais para a cama com
Santiago quando ele sair algum dia da Priso? simplesmente isso ou
tem mais?
No incio no tinha. Era apenas o afastamento, na realidade,
meu afastamento. Descartar uma futura relao conjugal com Santiago.
E agora?
Agora diferente. Acho que estou comeando a me
apaixonar.
Ah...
Disse que acho que estou comeando.
Olhe, se admite que est comeando porque j se
apaixonou.
Pode ser, mas no tenho certeza. Voc o conhece.
Rolando.
E ele?
difcil para ele tambm. Sempre foram bons amigos, ele e
Santiago. No pense que no percebo que isso uma complicao a
mais.

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Escolheu o caminho mais difcil, hein!


verdade. Demais.
E o que vai fazer? O que j fez? Escreveu para Santiago?
Este fundamentalmente o motivo pelo qual vim v-lo. No
sei o que fazer. Por um lado, Santiago continua me escrevendo cartas
apaixonadas e sei que sincero. E eu me sinto uma cretina quando tento
responder altura. Por outro, acho pavoroso que um belo dia ele receba,
l em Liberdade, preso entre quatro paredes, uma carta minha (estou
certa de que o sadismo dos milicos faria com que a entregassem imediatamente) dizendo que no quero mais ser sua mulher e, para culminar,
que estou apaixonada por um de seus melhores amigos. H dias em que
concluo que, apesar dos pesares, necessrio que lhe escreva de uma vez
por todas, e outros em que digo a mim mesma que seria apenas uma
crueldade intil.
penoso, no?
Sim.
Tendo a pensar que o mero fato de lhe contar seria o que voc disse por ltimo: uma crueldade intil. Voc e Beatriz so para Santiago a razo de sua vida.
E voc?
Eu sou o pai. outra coisa. Os pais vm de presente, ningum pode escolh-los. A mulher e os filhos so adquiridos num ato de
vontade, de deciso prpria. Santiago gosta de mim, claro, e eu dele, mas
sempre houve entre ns uma certa distncia. Com sua me era diferente.
Ela sim conseguiu estabelecer com Santiago uma boa comunicao, e sua
morte foi uma catstrofe difcil de assimilar para ele. Claro que tinha
quinze anos na poca. Mas, como ia dizendo, para ele, l onde est, voc
e Beatriz so o futuro; a curto ou mdio prazo, no importa. Ele pensa
que algum dia vir se juntar a vocs duas e tudo vai recomear.
Sim, o que ele pensa.
bem verdade, como voc disse, que se ele no estivesse
preso tudo isso seria triste, porm mais normal. A separao de um casal

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nunca uma coisa boa, mas s vezes uma continuidade forada pode ser
muito pior.
O que me aconselha, Rafael?
O sogro vira o copo e acaba com o usque que tinha se servido.
Agora ele quem suspira.
Meter-se na vida dos outros sempre uma imprudncia.
Mas Santiago seu filho.
E voc tambm um pouco minha filha.
como eu me sinto.
Eu sei. Mas fica ainda mais complicado.
O telefone toca outra vez, mas o sogro no levanta o fone.
No se preocupe, no Lydia. J tinha dito o seu nome?
Quem liga sempre a essa hora um chato. Um aluno que faz consultas
interminveis sobre bibliografia.
Ao que tudo indica, o aluno perseverante ou turro ou as duas
coisas, pois o telefone continua a tocar. Finalmente, volta o silncio.
J que est perguntando, eu seria favorvel a que no lhe dissesse nada, ou seja, a que continue fingindo. Sei que isso faz com que se
sinta mal. Mas tem que pensar que voc est livre. Tem outros motivos
de interesse e afeio. Ele, em compensao, s tem quatro paredes e algumas grades. Dizer a verdade seria destru-lo. No quero que meu filho
se destrua justamente agora, quando conseguiu sobreviver a tantas calamidades. Algum dia, quando sair (se que vai sair) poder lhe contar
com todas as letras e enfrentar tambm a sua amargura. E quando essa
ocasio chegar, posso autoriz-la a dizer que fui eu quem a aconselhou o
silncio. No comeo ficar furioso, explodir como em seus melhores
tempos, talvez chore, talvez pense que o mundo est vindo abaixo. Mas
ento j no estar entre quatro paredes, estar longe das grades e ter
tambm, como voc agora, outros motivos de interesse e afeio. Bem,
essa a minha opinio. Foi voc quem pediu.
Sim, pedi mesmo.
E o que acha?

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Agora o sogro parecia mais ansioso e nervoso que ela. Quando


inclinou novamente a garrafa, percebeu que a mo que a segurava tremia
um pouco. Graciela tambm percebeu.
Fique calmo disse, parodiando-o. Ele relaxou e riu, mas
sem muita vontade. Talvez seja o melhor mesmo. Ou pelo menos a
nica coisa sensata a fazer.
Compreendo que nenhuma soluo totalmente aceitvel. E
sabe por que no? Porque a nica coisa realmente inaceitvel a situao
que Santiago est vivendo.
Acho que vou seguir o seu conselho. Continuarei fingindo.
Alm disso, o futuro pode trazer surpresas. Para todos. Assim
como no sente necessidade dele hoje, pode voltar a sentir.
Pensa que sou muito inconstante, no, Rafael?
No. Penso que todos ns, os que estamos aqui e os que esto em outras partes, vivemos um desajuste. Uns mais, outros menos,
nos esforamos para nos organizar, para comear de novo, para botar um
pouco de ordem em nossos sentimentos, em nossas relaes, em nossas
saudades. Mas assim que nos descuidamos, ressurge o caos. E cada recada no caos (perdoe-me a redundncia) mais catica.
Graciela fechou os olhos por um instante. O sogro fitou-a, intrigado. Talvez tivesse medo de que desandasse a chorar. Mas ela voltou a
abri-los e s estavam levemente midos ou apenas um pouco brilhantes.
Olhou atentamente para o copo vazio que ainda tinha na mo e
estendeu-o a dom Rafael.
Pode me dar outro?

Dom Rafael (Notcias de Emilio)

Sinto-me como se estivesse esgotado, perdido. Como ofegante, mas sem


ofegar. Como quem vivenciou a paternidade de forma miservel e
primria. Como se me visse de longe num escaparate (j quase perdi o
hbito de dizer vitrine) e minha prpria imagem fosse a de um
manequim no qual, para torn-lo ainda mais ridculo, s tivessem deixado uma gravata. Felizmente, parece que convenci Graciela, mas e eu, estou mesmo convencido? A hipocrisia um vcio, mas no estou muito
convencido de que a franqueza seja uma virtude. Quero ser realista,
quero ser amplo, quero ser flexvel, quero ser contemporneo. O foda
que alm de tudo sou pai. Ou seja, quando Santiago finalmente sair de
sua priso (o advogado acabou de mandar uma carta bastante esperanosa), uma outra o espera aqui. Ver Graciela atravs das grades de um
amor alheio. Pegar Beatriz nos fins de semana e lev-la ao zoolgico e aos
parques e algumas vezes ao cinema e perguntar muito poucas coisas que
possam ser comprometedoras, pois cada resposta, por mais cndida que
seja, lhe trar um desassossego, o levar a uma especulao. E mais: tratar
Rolando como o qu, agora? O velho companheiro de militncia e at de
cela ou o homem que est dormindo com sua mulher? O que se passa,
senhores, com meu filho? Sei o que possui e at o que lhe sobra, mas a
pergunta hoje o que lhe falta. Qual foi a carncia dessa histria? No
me custa imaginar as caractersticas que fazem com que as pessoas
gostem dele, mas me declaro nulo acerca dos pontos que o conduzem ao
desamor. Que carncia herdou de mim ou de sua me? Preciso encontrla. Tenho que encontrar esse filho verdadeiro que por acaso ainda no sei
quem . Precisamente hoje desempoerei a carta clandestina, a nica que

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(ainda ignoro qual foi o inslito canal) pde enviar, at agora, com
garantia total de que no passaria pela censura carcerria. E estranhamente essa carta singular foi endereada a mim e no a Graciela. Imagine, Velho, que confio tanto nesse correio que resolvi lhe dizer as imprudncias que ler. Tenho que mandar sinais daqui dessas paragens
para algum e a quem mais seno voc? Tenho que mandar sinais para
no me desarmar, para no me reduzir a pedaos. No se aflija: uma
metfora. Mas de alguma maneira traduz uma sensao, no? Vamos
logo esclarecer as coisas: no tenha medo de que eu tenha falado ou delatado algum. Isso no. H algumas coisas que voc me ensinou e essa
uma das que aprendi. Ah, mas tampouco sou um heri. Ficaria espantado se lhe dissesse que ainda no sei se me calei por convico ou
por clculo? Sim, por clculo. Sempre observei que enquanto se nega
tudo, se voc se obstina em dizer que no e no com a cabea, com as
mos, com os lbios, com os olhos, com a garganta, os caras enchem voc de porrada da mesma maneira, claro, mas s vezes d para notar que,
no fundo, suspeitam que est mesmo dizendo a verdade, ou seja, que
no sabe nada de nada; ah, mas em troca se voc fraqueja e diz uma
coisinha de nada, uma babaquice que no lhes sirva para nada e com a
qual voc no fode ningum, ento a atitude muda, pois a partir desse
momento acreditam que sabe muito, muito mais, e a sim arrebentam
voc, ficam encarniados. Se voc nega permanentemente, vo
arrebent-lo, lgico, mas tambm possvel que a partir de certo dia o
deixem tranquilo, pois talvez se convenam de que, efetivamente, no
sabe nada. Mas se disser alguma coisa, um dado mnimo que seja, ento
nunca vo deix-lo tranquilo. No mximo abandonam voc por um
tempo, para depois voltar carga. Ficam obcecados em extrair-lhe o
resto. Por isso repito que no sei se calei por convico ou por clculo.
Talvez seja pelo ltimo. Mas no fundo so defesas que a pessoa vai criando. De todo modo, estou bem, pois ningum caiu por um vacilo meu.
Mas no disso que queria falar. Sabe qual tem sido a argumentao do
advogado, de que no matei ningum, certo? Pois matei. E no v ter

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um enfarte, hein? Ningum sabe disso, nem o advogado, nem meus


companheiros, nem Graciela, ningum. S voc vai ficar sabendo agora,
e vai saber porque preciso tirar esse peso de cima de mim. Pode imaginar
o risco que corro colocando tudo aqui preto no branco, por maior que
seja a segurana do correio, mas fao isso porque no consigo carregar
isso sozinho. Conto. Fazia uns dez dias que estava no enterradero, um
dos muitos. Tinha passado os ltimos dias sozinho no apartamento, sem
sair nunca para a rua, comendo exclusivamente enlatados, lendo algum
romance policial, ouvindo rdio de pilha, mas s com fones para no
chamar ateno. De dia as persianas ficavam fechadas, de noite tambm,
claro, mas sem acender luz alguma. Era preciso manter o aspecto de
casa desabitada. A grande vantagem desse enterradero era que tinha sada
para duas ruas distintas, e isso, em meio a tudo, me dava certa segurana,
porque a segunda sada estava bem oculta, no final de um corredor para
o qual davam vrios apartamentos. A maioria eram quitinetes, de modo
que o movimento era pequeno e isso tambm ajudava. Mas eu dormia
com um olho aberto e, certa noite, rudos leves e passos quase imperceptveis fizeram com que abrisse o olho nmero dois. Tive a impresso
de que vinham do jardinzinho em frente. Olhei por entre as persianas e
vi uma sombra que se balanava, mas no consegui distinguir se era de
um sujeito ou de um pinheiro meio ano que ficava no segundo
canteiro. Fiquei imvel, mas de repente tive a intuio de que algum se
movia dentro de casa. Pensando agora, acho que eles estavam to certos
de que no havia ningum ali que se descuidaram um pouco das normas
de segurana. Tenho, alm disso, a impresso de que eram poucos, s
trs ou quatro, e de que tinham se aproximado do apartamento no
porque soubessem de algo, mas porque naquela altura suspeitavam de
tudo. Ento uma lanterna iluminou-me, passou-se um minuto que foi
uma eternidade para mim e uma voz disse bem baixinho: Santiago, o
que est fazendo aqui? No comeo pensei em algum companheiro, mas
no podia ser, eles me conheciam por outro nome, mas em seguida o
homem afastou um pouco a lanterna que me ofuscava e pude ver,

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primeiro o uniforme, depois a arma que empunhava e por ltimo o


rosto. Sabe quem era? Segure-se, Velho. Era Emilio. Sim, esse mesmo, o
filho de tia Ana, seu sobrinho. No tem ideia do desfile de imagens que
passam pela cabea de uma pessoa num momento desses. Dispunha de
pouca margem para tomar decises: a bem dizer, era ele quem dominava
a situao, pois eu no tinha condies de alcanar minha arma. No
jardinzinho ouviam-se passos, pequenos rudos. Ele voltou a falar:
Santiago, entregue-se, melhor, no podia imaginar que estivesse nessa,
mas se renda. E olhava a arma, no a sua, mas a minha, a que eu no
conseguia alcanar. Eu tambm no imaginava que estivesse nessa,
Emilio. Ambos falvamos em sussurros. Tantos anos sem nos vermos,
murmurou. M hora para nos encontrarmos, no?, sussurrei. E de repente tomei uma deciso instantnea. Juntei os dois punhos e inclineime para ele, como se entregasse os pulsos para que os algemasse. Est
bem, eu me rendo. E ele confiou. No teria confiado em nenhum outro.
Deixou que me aproximasse e tenho a impresso de que at baixou a
arma. No sei agora que movimento vertiginoso fiz, mas o certo que
trs segundos mais tarde essas duas mos minhas que iam ser algemadas
apertavam seu pescoo e continuaram apertando at que ficasse imvel.
No sei como pde acontecer to silenciosamente. As sombras continuavam a se mover no jardinzinho, mas tambm no falavam, o que
era compreensvel, no podiam revelar sua presena sem mais nem
menos. Eu estava descalo, mas vestido, sempre dormia vestido. Caminhei o mais rpido que pude para a segunda sada, recolhendo na passagem um par de alpargatas que estava numa cadeira. Cheguei porta da
outra rua, a que dava para o corredor dos quitinetes. No havia persianas
nem postigos, ou seja, tinha simplesmente que arriscar, e arrisquei. Sa e
no havia ningum. Eram trs da madrugada. Avancei dez metros sem
correr, e de repente o vi e mal pude acreditar: um nibus avanava lentamente, com apenas dois passageiros, um desses velhos nibus da Cutcsa11 com plataforma aberta. Subi num salto. Meia hora depois desci na
praa Independncia. Os jornais nunca mencionaram essa minioperao

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frustrada, nem o nome de Emilio apareceu como uma das nobres vtimas
da subverso assassina. S o aviso fnebre. E ns (voc, eu, Graciela etc.)
entre os vivos que participavam com profunda dor o seu falecimento.
Talvez voc tenha ido ao velrio. Eu no, claro, embora por um momento tenha ficado tentado. Mas a essa altura dos acontecimentos j estava muito queimado. Um ano depois, quando nos pegaram na batida
de Villa Muoz, submeteram-me a centenas de interrogatrios,
espancaram-me bastante, mas nunca perguntaram nada sobre isso. Por
que no se deram conta do fato? Nunca saberei. A verdade que ningum na famlia sabia que Emilio era cana. Mas se sua profisso era to
misteriosa, por que usava uniforme? Deve estar se perguntando por que
despejo tudo isso em cima de voc. Conto porque nunca me livrei dessa
ao, embora tenha sido inevitvel para mim. Preconceito pequeno-burgus? Talvez. minha nica morte, que ironia. Estive em mais de um
confronto e em vrias ocasies estiveram a ponto de acabar comigo, e eu
tambm estive a ponto de liquidar algum, mas parece que minha pontaria deixa um pouco a desejar. No tenho nenhuma outra morte a creditar (ou ser debitar?). Qual o problema? Que a primeira no se apaga.
Nem se apagam as minhas mos crispadas apertando seu pescoo. Sonho
com ele duas ou trs vezes por ms, mas nunca no ato de mat-lo. No
so pesadelos. Sonho com um passo longnquo, quando ambos ramos
pequenos (ele tinha um ano a mais, no?) e jogvamos futebol no campinho atrs da igreja ou durante os meses de frias quando amos ao
Prado, na hora da sesta, enquanto vocs adultos sucumbiam sonolncia, ns nos sentamos particularmente livres e nos estendamos na grama
ou no colcho de folhas secas e divagvamos, divagvamos e fazamos
projetos nos quais estaramos sempre juntos e viajando, mas de barco
porque os avies nos davam medo e alm do mais, na coberta do barco,
dizia Emilio, poderamos pular carnia ou jogar cinco-marias, enquanto
nos avies isso era proibido pelas aeromoas, e continuvamos divagando
e ele ia ser engenheiro, porque gosto de regra de trs composta, dizia, e
eu ia ser msico porque gostava de tocar La Cumparsita soprando num

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papel de cigarro atravs de um pente, e tambm falvamos de vocs, os


velhos, e ele decretava, no nos entendem porque no querem, e fixamos
a fronteira dos quatorze anos para escaparmos definitivamente de nossas
casas, comeando assim o volume de aventuras que tantas vezes construmos oralmente. com esse Emilio que sonho e por isso no so pesadelos. O pesadelo acontece quando acordo e vejo minhas mos apertando o
cangote que no era suave e fino como quando tnhamos oito nove dez,
mas curto e macio ou talvez tenha me parecido assim por causa da gola
do uniforme. Em vrias ocasies, aqui na priso ou antes, no quartel, seu
nome veio baila, mas ningum sabia que era meu primo e todos concordavam que era um carrasco, um dos durssimos, um canalha que
gozava dando choque no cu ou nos colhes dos presos, e alguns sabem
que morreu h algum tempo, mas ignoram em que circunstncias e eu
no esclareo nada quando algum comenta tomara que no tenha sido
de morte natural, tomara que tenham arrebentado o crebro daquele
filho da puta, sdico de merda e outros qualificativos igualmente
elogiosos. De modo que no exatamente um sentimento de culpa o
que me desassossega s vezes, mas pensar que de alguma maneira enforquei minha infncia naquela madrugada. E talvez me lembrar do olhar
de confiana que tinha quando estendi os punhos unidos para que me
algemasse. E talvez pensar hoje que naquele momento ele falou sussurrando por alguma razo. Quem sabe porque pensou que eu no estava
sozinho na casa e ele no tinha o controle da situao, embora estivesse
consciente de que a arma no estava a meu alcance. Ou para que os outros no me matassem por puro nervosismo ou por pura crueldade, pois
afinal eu era seu primo Santiago e era melhor conseguir que eu me entregasse vivo e no me levar cadver, imagine se algum dia a famlia ficasse
sabendo de semelhante despropsito. Ou quem sabe porque todo o passado comum voltou de repente para ele tambm, com nossos devaneios
na grama e no colcho de folhas, e isso o desconcertou, deixando-o sem
ao. Ou quem sabe porque no foi assaltado to rapidamente quanto eu
pelas profundas diferenas ideolgicas que agora nos colocavam frente a

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frente em uma batalha sem quartel e sem primos. Mas eu nunca tinha
matado ningum, Velho, e creio que essa primeira e nica prova de fogo
me marcou para sempre. Vai ver que isso quer dizer que sou um frouxo,
embora tenha sido bastante forte em outras coisas. E digo mais: penso
que no me sentiria assim se o tivesse matado a tiros num confronto.
Sinto-me assim porque o matei desse outro modo, como direi, ignbil,
um pouco nefasto talvez, usando e abusando de seu assombro que era (se
devo ser sincero, no consigo evitar de pensar nisso) um assombro afetivo. E embora eu saiba agora que se converteu num sujeito sinistro,
numa pessoa sanguinria e sem escrpulos, e todos digam, e eu tambm,
que est melhor morto, o certo que quando apertei seu pescoo com
minhas mos crispadas, ignorava tudo isso e matei-o simplesmente para
sobreviver, a ele, que tinha devaneado comigo sobre um colcho de folhas e comigo tinha feito projetos comuns de fugas de sua casa e da
minha e de viagens de barco para jogar cinco-marias e pular carnia. So,
como posso dizer?, dois valores distintos, duas identidades distintas, dois
Emilios justapostos. Voc me entende, Velho? No conto nada a Graciela nem contarei porque ela no entenderia, pois tende a simplificar as
coisas. Diria, fez muito bem, um carrasco a menos. Ou diria: como pde
fazer uma coisa dessas com seu primo? E no uma coisa nem outra.
mais complicado, Velho, mais complicado. Mais uma coisa. Note bem
que esta carta uma oportunidade nica (algum dia espero poder lhe
contar como aconteceu esse inacreditvel acaso) que certamente no se
repetir nunca mais. impossvel enviar uma resposta por essa mesma
via ou por outra que seja to digna de confiana. No entanto, voc precisa me responder. No , Velho, no verdade que vai responder? Ter
que faz-lo pela via normal, que passa infalivelmente pela censura carcerria. Teremos que nos limitar a apenas duas respostas possveis, embora
saibamos quantas nuanas podem existir entre uma coisa e outra. Anote,
portanto. Se aceita a situao, no digo se aprova ou justifica, mas se
pelo menos compreende, d um jeito de fazer figurar, algumas linhas
antes da despedida no final, a palavra entendo. Se ao contrrio acha que

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se trata de algo abjeto e inadmissvel, ento d um jeito de escrever no


entendo. Certo? Tchau, Velho. Li aquela carta pelo menos dez vezes e
esperei dois dias antes de comear a responder. Minha carta terminava
assim: Minha neta, que como segunda prioridade tambm sua filha,
linda e esperta como sempre, comeou a estudar francs, o que me diz?
s vezes, quando vem me visitar, me pe a par de suas ltimas
francesices. Devo estar meio ruim do ouvido (os anos no passam em
vo) ou talvez da memria, j que s a duras penas entendo quando recita, com o envernizado sotaque da Alliance, alguns contos de Perrault.
Tchau, filho.
11 Companhia Uruguaia de Transportes Coletivos S/A. (N. da T.)

O outro (Embasbacado e tudo)

Para ele era uma sensao nova. E no desagradvel, mas vai ser.
certo, porm, que se meteu num atoleiro. Nunca tinha lhe acontecido
isso com mulher alguma. Sempre tinha sido ele, Rolando Asuero, o
dono da iniciativa, aquele que segurava as rdeas de cada relao, terminasse ou no na cama. E isso, sim, uma questo de princpios: que
fosse provisrio, com todos os dados e propsitos bem clarinhos, transparente como H2O, para que ningum pudesse encurral-lo com o certificado oral de uma promessa no cumprida. Como o Eclesiastes esqueceu de dizer: para no descumprir promessas, melhor no faz-las. Felizmente, tinha que reconhecer, sempre encontrou mulheres fortes e bem
dispostas, que aceitavam as regras do jogo logo de sada e que depois,
quando ele acabava, desapareciam com um tchau cordial e at mais ver.
Por outro lado, as donas ou escravas, esposas enfim, de seus amigos mais
ntimos, sempre as tratou como irms e, embora lhes dedicasse de vez em
quando uma olhadela incestuosa, nunca ia alm do flerte bem-humorado
de camaradagem, ainda que despertasse frequentemente a coqueteria
inata das supracitadas. Olhadinhas incestuosas que no foram escassas,
em tempos idos, para Graciela, que, l em Sols, balnerio afinal, quando
botava o mai de duas exguas peas (no era um biquni, sem dvida,
pois at a no chegava o cauto liberalismo de Santiago Apstolo) exibia
uma figura ou palminho de cara ou corpo docente realmente dignos de
considerao e xtase, ah, mas nunca tinha ultrapassado a decorosa barreira do suspiro ou da admirao descaradamente visual por trs dos culos escuros, verdade que ocasionalmente estimuladas por algum
comentrio do mesmssimo Santiago, que ao v-la correr at a gua

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como num comercial de TV, numa tarde de ondas por exemplo, murmurava como para si mesmo mas na verdade para os trs, est linda a
gata, hein?, provocando as brincadeiras ambguas e risadinhas viris,
bom diz-lo, dos outros casados e do nico solteiro incorrigvel, ou seja,
ele, Rolando Asuero, a seu servio e de sua senhora, frase clebre e nada
ingnua que ele havia espetado, dez anos atrs, a um gerente-geral da
empresa que imediatamente decidiu transform-lo em ex-caixeiro.
Mas a Graciela de agora outra coisa. E ele tambm est
mudado. Como no? Primeiro foi a etapa poltica, com aqueles dois anos
anteriores ao golpe que foram simplesmente do caralho. Quem voc ,
no ertico? Linda e substanciosa pergunta para se fazer Esfinge,
lacnica bisav de Anwar El-Sadat. Ah, mas o difcil ser simplesmente
ertico em pocas de memorveis patriotadas. Naquele renhido binio,
s vezes no se conseguia um catre nem mesmo para dormir decentemente, quanto mais para outras atividades. E depois a maldita cana, com
seus capitulozinhos de plantes, choques, submarino e outras delikatessen. A sim que a banda toca incansavelmente. Voc fabricar
resignaes, como no, e depois nem se lembrar, pois de noite, quando
nem sequer a barata nossa de cada dia comparece como testemunha, vai
enfiar a cabea na pardia de travesseiro e soltar a franga at se desidratar
de tanta lgrima (TH, ou seja, tango habemus: transtornado em minha
tristeza, ah, mas nunca: se fui frouxo, se fui cego).12 Sim, a Graciela de
agora outra coisa. Em primeiro lugar, mais mulher, e em segundo,
mais confusa, talvez como consequncia dessa maturidade. Como corpo
(e como alma tambm, no sejamos dogmticos) amadureceu notria e
maravilhosamente, e v-la, por exemplo, aproximar-se devagarinho pela
calada florida que leva a seu edifcio (ele, como tantas outras vezes, esperando na porta) gera lindas expectativas nem sempre confirmadas. Est
um pouco confusa, por certo, embora talvez o mais correto fosse dizer
desorientada. E no centro vital da turbulncia: Santiago. Santiago na
Priso, sem poder se defender nem atacar, sozinho com sua melancolia e
seu acervo cultural, que terminologia, hein, e alm disso que situao.

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Rolando chegou ao diagnstico preliminar de que Graciela uma mulher que no se d bem com a distncia e foi a que, sem ter culpa no
cartrio, o pobre Santiago perdeu pontos. Mas da a imaginar que ele,
Rolando Asuero, teria um papel a desempenhar nessa histria, h uma
boa diferena. No sabe. Ainda no sabe. Embora pouco a pouco v se
dando conta. Gosta de Graciela, preciso descont-lo e/ou impugn-lo.
Mas reconhece que em vrias ocasies, quando ela falava de suas teias de
aranhas ou dos estados alternados de nimo e desnimo, tinha realizado
sbrios avanos, lanado indiretas abusivas, oferecido ajuda, digamos,
fraterna e pouco a pouco, talvez sem querer, tinha semeado veladas mas
concretas aluses a seu interesse afetivo por ela ou, melhor ainda, atrao que sentia por ela. E claro, nessa fase ambgua, com seus sentimentos e emoes em franca revoluo e reviso, Graciela era receptiva como
uma esponja. E com certeza tinha captado aqueles movimentos cautelosos, prudentes. E um dia, de repente, no meio de uma dessas conversas
equvocas, de equilibrista, ela se saiu com aquela de no sinto necessidade de Santiago, ele me abandonou; e ele compreensivo, no Graciela
no abandonou, mas foi levado embora; e ela, absurdo ou ser que o
exlio me transformou em outra; e ele, acaso no continua a partilhar a
posio poltica de Santiago; e ela, claro, pois a minha tambm; e ele,
por fim, com a pergunta dos dez milhes, ser que sonha com outros homens; e ela, refere-se a sonhar dormindo ou sonhar acordada; e ele, ambos; e ela, quando durmo no sonho com homem nenhum; e ele, e
acordada; e ela, bem, acordada eu sonho, voc vai rir, e a deu uma
parada, uma pausa no teatral mas apenas um breve silncio para tomar
flego e avaliar todo o peso do que ia acrescentar: sonho com voc. Ele
ficou embasbacado, sentiu um repentino mormao nas orelhas e o
prprio, ningum menos que o tremendo pilantra e don jun de
primeira, mordeu o lbio at sangrar, mas s foi notar horas depois. E ela
tensa na frente dele, espera de algo, no sabia exatamente o qu, mas
tremendamente insegura pois, entre outras coisas, conjecturava que ele
estaria se atormentando naquele momento com a palavra lealdade,

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lealdade ao amigo to s num calabouo que por mais que estivesse


limpo sempre estaria imundo, lealdade a um passado pesado e pisado e a
uma moral no articulada mas vigente e a longussimas discusses at o
amanhecer nas quais sempre estavam o Silvio, que j no est, e Manolo,
que agora tcnico em eletrnica em Gotemburgo, e as esposas semialijadas pelo machismo-leninismo dos ilustres vares, mas participando de
vez em quando com objees bvias, mas sobretudo preparando saladas
churrascos nhoques empanadas milanesas doce de leite e lavando os
pratos depois, enquanto eles faziam a sesta a bandeiras despregadas.
Ficou embasbacado, ele, to casanova e to dado s putas, com a testa
suada como um colegial seduzido por uma vedete do Maipo, e com uma
comicho no tornozelo esquerdo, provavelmente uma reao alrgica diante do futuro nebuloso que se aproximava. Embasbacado e tudo, conseguiu balbuciar gragraciela no brinque com fofogo e at tentou levar o
dilogo para o terreno da frivolidade, algo do tipo a carne fraca e no
cobiar a mulher do prximo, tudo para tomar um pouco de flego, ah,
mas ela manteve a expresso de austeridade intimidante, olhe que no estou brincando, isso srio demais para mim, e ele, perdo Graciela, a
surpresa, voc sabe, e a partir dessa frase de segundo ato de vaudeville
portenho parou de gaguejar e de se sentir embasbacado para ficar definitivamente arrasado e mesmo assim conseguir murmurar uma lstima
que no possa responder pare de dizer loucuras, pois vejo em seus olhos
que terrivelmente srio e tambm uma lstima que no possa dizer,
olhe estou fora, pois estou dentro. E nem bem pronunciou esse dentro,
pensou que tinha sido sincero e fatal, sincero porque esse era realmente o
sentimento safri que comeava a abrir caminho na selva de seu espanto,
e fatal porque no lhe escapava que aquele dentro relativamente imprudente era algo assim como o primeiro versculo de seu apocalipse
pessoal. Mas j estava dito e sublinhado, e Graciela, que at ento estava
graciosamente plida, coloriu-se de repente e suspirou como quem entra
numa floricultura de luxo, e ele pensou que agora caberia estender-lhe a
mo e, consequentemente, estendeu-a por sobre a mesinha de centro

114/183

evitando habilmente o vaso sem cravos e o cinzeiro com guimbas, e ela


ficou um momento, ou seja, quatro segundos vacilando e depois estendeu tambm a sua mo delgada que parecia de pianista e era de datilgrafa e essa acabou sendo a prova dos nove, pois afinal o contato foi
suficientemente revelador e eles se olharam como quem se descobre. Em
seguida, veio a longussima anlise e a palavra lealdade saltando outra vez
sobre o vaso sem flores e o cinzeiro com guimbas, detendo-se s vezes
nos speros ns dos dedos dele e outras no fragrante decote dela, e Graciela, no momento mais atormentada do que feliz, eu compreendo que
uma situao injusta, mas a essa altura dos fatos no posso mentir para
mim mesma e sei muitssimo bem tudo o que devo a Santiago, mas evidentemente essa convico no um seguro vitalcio contra o desapego
conjugal, e Rolando, por seu lado, no momento mais desconcertado que
feliz, vamos encarar com serenidade, como se Santiago estivesse presente
em nosso dilogo, j que ele uma parte indescartvel da situao, vamos encarar como se Santiago realmente pudesse compreender e sobretudo tratando, em primeira instncia, ns mesmos, de compreend-lo. E
assim falaram e fumaram durante um par de horas, quase sem se tocar,
embaralhando solues e resolues, pegando com pinas a questo de
Beatriz, ainda sem se atreverem a esmiuar ou planejar o futuro,
prometendo-se um tempo para se habituarem ideia, prometendo-se de
todo modo no fazer loucuras demais nem tampouco demasiadas
prudncias, e Rolando sentindo-se cada vez mais hipnotizado pelos verdssimos olhos dela e pelas pernas dela e pela cintura dela, e Graciela
evidentemente perturbando-se com tal reao que no entanto queria e
esperava, e Rolando comeando a apaixonar-se por essa perturbao, e
Graciela de repente deslizando desarmada para um soluo nada premeditado e portanto persuasivo como poucos, e ele tomando seu rosto com
ambas as mos e notando, s ento, no doce contato com os lbios dela,
que, de to zureta, tinha mordido os seus quando, uma hora antes, ela
tinha dito sonho com voc.

115/183

12 Rechiflao en mi tristeza: do tango Mano a Mano, de Carlos Gardel, Jos Razzano e


Celedonio Flores; si fui flojo, si fui ciego: do tango Cuesta abajo, de Carlos Gardel e Alfredo Le Pera. (N. da T.)

Beatriz (A poluio)

Tio Rolando disse que essa cidade est ficando imbancvel de tanta
poluio que tem. Eu no disse nada, para no passar por burra, mas da
frase inteira s entendi a palavra cidade. Depois fui ao dicionrio e procurei a palavra IMBANCVEL e no achei. No domingo, quando fui
visitar meu av, perguntei o que queria dizer imbancvel e ele riu e explicou de muitos bons modos que queria dizer insuportvel. A sim entendi o significado, pois Graciela, ou seja, minha me, me diz s vezes,
ou melhor, todo dia, por favor, Beatriz, por favor, s vezes voc fica realmente insuportvel. Precisamente nesse mesmo domingo ela me disse
isso, mas dessa vez repetiu trs vezes, por favor, por favor, por favor, Beatriz, s vezes voc fica realmente insuportvel, e eu, bem tranquila: voc
est querendo dizer que estou imbancvel, e ela achou graa, mas no
muita, mas me tirou do castigo, o que foi muito importante. A outra palavra, poluio, bem mais difcil. Essa sim est no dicionrio. Ele diz,
POLUO: efuso de smen. O que ser efuso e o que ser smen.
Procurei EFUSO e achei: derramamento de um lquido. Tambm
achei SMEN e diz: germe, semente, lquido que serve para a reproduo. Ou seja, o que tio Rolando falou quer dizer o seguinte: essa
cidade est ficando insuportvel de tanto derramamento de smen. Tambm no entendi e assim que me encontrei com Rosita, minha amiga,
falei do meu grave problema e de tudo o que dizia o dicionrio. E ela:
tenho impresso de que smen uma palavra sexual, mas no sei o que
quer dizer. Ento prometeu que ia consultar sua prima Sandra, porque
mais velha e na escola dela tem aula de educao sexual. Quinta-feira ela
veio me ver toda misteriosa: eu a conheo bem e quando tem algum

117/183

mistrio ela franze o nariz, mas como Graciela estava em casa, esperou
com toda a pacincia que fosse para a cozinha preparar empanadas milanesas para dizer, j descobri, smen uma coisa que os homens grandes
tm, no os meninos; e eu, ento ns ainda no temos smen; e ela, no
seja burra, nem agora nem nunca, s os homens tm smen quando so
velhos, como o meu pai e o seu, o que est preso, ns, meninas, no
teremos smen nem quando formos avs; e eu, que esquisito, hein; e ela,
Sandra disse que todos ns, meninos e meninas, viemos do smen, pois
um lquido que contm bichinhos que se chamam espermatozoides, e
Sandra estava muito feliz porque tinha aprendido na aula de ontem que
espermatozoide se escreve com z. Quando Rosita foi embora, fiquei
pensando e achei que tio Rolando talvez tenha querido dizer que a cidade estava insuportvel de tantos espermatozoides (com z) que tinha.
De modo que fui falar outra vez com meu av, porque ele sempre me
entende e me ajuda, mas no demais, e quando contei o que tio Rolando
tinha dito e perguntei se era certo que a cidade estava ficando imbancvel porque tinha muitos espermatozoides, meu av teve um ataque
de riso to grande que quase sufocou e tive que lhe dar um copo dgua e
ele ficou todo vermelho e eu fiquei com medo de que tivesse um treco e
eu sozinha naquela situao to assustadora. Por sorte, ele foi se acalmando aos poucos e quando conseguiu falar disse, entre uma tosse e
outra, que o que tio Rolando falou se referia poluio, contaminao
atmosfrica. Eu me senti ainda mais burra, mas em seguida ele explicou
que a atmosfera era o ar, e como nesta cidade h muitas fbricas e
automveis toda essa fumaceira suja o ar, ou seja, a atmosfera, e isso a
maldita poluio e no poluo, a do smen que vi no dicionrio, e no
devamos respir-la, mas como se no respiramos morremos do mesmo
jeito, no temos outro remdio a no ser respirar toda essa porcaria.
Disse a meu av que tinha notado agora que meu pai tinha essa vantagenzinha l onde estava preso, porque l no havia muitas fbricas nem
muitos automveis porque os familiares dos presos polticos so pobres e
no tm carro. Meu av disse que sim, que eu tinha toda razo, e que

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devamos sempre encontrar o lado bom das coisas. Ento eu lhe dei um
beijo muito grande e a barba me pinicou mais que das outras vezes e fui
correndo procurar a Rosita, mas como na casa dela estava a me dela,
que se chama Asuncin, igualzinho capital do Paraguai, ns duas esperamos com toda pacincia at que ela fosse regar as plantas e eu tambm muito misteriosa: diga a sua prima Sandra que ela muito mais
burra do que voc e eu, pois agora descobri tudo e ns no viemos do smen, mas da atmosfera.

Exlios (A acstica de Epidauro)

Quando se faz um rudo em Epidauro


Se escuta mais acima, entre as rvores
Em pleno ar.
ROBERTO FERNNDEZ RETAMAR
Estivemos em epidauro vinte e cinco anos depois de roberto
e tambm escutamos dos degraus mais altos
o riscar do fsforo que l embaixo
era aceso pela guia, a mesma gordinha
que entre templo e templo
entre adarme socrtico e pitadas de termpilas
contou como niarchos se ajeitava
para pagar apenas nove mil dracmas
digamos uns trezentos dlares de imposto por ano
e com sua jovem nfase nos tinha anunciado
ante o assombro de cinco portenhos
especialistas em citaes do astro da tv tato bores
a vitria prxima e segurssima do socialista papandreu
estivemos portanto em epidauro respirando o ar transparente e seco
e contemplando os profusos imemoriais verdes
das rvores que deram e do as costas ao teatro
e o rosto plida clareira
verde e ar provavelmente no muito alheios
aos que contemplou e respirou policleto o jovem
quando fazia seus clculos de eternidade e enigma

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e tambm eu desci ao centro mgico da orquestra


para que luz me tirasse a foto de praxe
em paragens de to benquista e slida memria
e de l resolvi tentar a extraordinria acstica
e pensei ol lber ol hctor ol ral ol jaime
devagarinho como quem risca um fsforo ou amassa um bilhete
e assim pude confirmar que a acstica era tima
j que minhas sigilosas saudaes no s se ouviram nos degraus
mas at l em cima no ar com um s pssaro
e atravessaram o peloponeso e o jnico e o tirreno
e o mediterrneo e o atlntico e a nostalgia
e por fim deslizaram por entre as grades
como uma brisa transparente e seca.

Intramuros (Uma mera possibilidade)

Ontem o advogado esteve aqui e me deu a entender que as coisas esto


caminhando muito bem. Que no improvvel. Que talvez. Uma mera
possibilidade, j sei. Mas devo reconhecer que me produziu uma comoo, creio que at uma taquicardia. No que alguma vez tenha perdido a esperana. Sempre soube que algum dia ia me encontrar com vocs novamente. Mas uma coisa conjecturar que alguns anos tero que
se passar antes que isso ocorra e outra bem diferente que tal perspectiva
ingresse de repente no campo do possvel. No quero alimentar iluses.
E, no entanto, as alimento, no posso evitar. compreensvel, no acha?
Ainda anteontem admitia como provvel a permanncia aqui por vrios
anos e at fabriquei uma atitude mental para habituar-me a pagar esse
dzimo, a beijar o aoite, como dizia, lembra?, aquele padre saltenho
com sua inflexo luciferina. Agora, em compensao, quando surge a
possibilidade de que no mximo, de que talvez, de que porventura, de
que qui seja um ano s ou at menos, curioso que esse lapso to
mensurvel em termos de resistncia me parea, sem a menor dvida,
bem mais insuportvel do que o outro, extenso, quase infinito, ao qual
de alguma maneira j tinha me resignado. Somos complicados, no? E
voc e o Velho, o que acham disso? Por enquanto no digam nada
pequerrucha, no quero que comece a construir iluses para depois tudo
acabar em frustrao, algo que em seus verdes anos pode ser traumatizante. S imaginar que posso v-la em breve, digamos em um prazo alcanvel, s isso j me arrepia todo. Ver voc, ver o Velho, outra coisa.
Imagine se no os quero contemplar e abraar. Falar longamente com
vocs, que festa, santo deus. Mas com Beatriz me arrepio. Cinco anos

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sem ver um filho, sobretudo se uma criana, significam uma eternidade. Cinco anos sem ver um adulto, por mais querido que seja, so
simplesmente cinco anos e tambm horrvel. A mim, por exemplo,
descobririam sem barriga alguma e com menos cabelo (no me refiro s
razes do bvio penteado local, mas a evidentes entradas que nada tm a
ver com semelhante ortodoxia). Tambm tenho uma ou outra ausncia
incisiva e molar (e ateno que eu no disse moral, hein!). E o que mais?
Bem, algumas sardas, novas pintas, alguma cicatriz. Como pode ver, me
conheo de memria. O que acontece que, numa circunstncia como a
que vivo, quase de monge cartuxo, o prprio corpo se transforma numa
chave. E no por narcisismo, mas porque durante horas e horas no se
conta com nenhum outro sinal de vida mo. De minha parte, sei que o
Velho ter algum cabelo grisalho a mais. Mais rugas no, porque aquele
velho ladino nasceu enrugado. Lembro que, quando menino, sempre me
impressionaram os franzidos e as estrias que ele tinha junto aos olhos, na
testa etc. Ao que parece, isso no o impedia de ter sucesso com as meninas. Acho que com a Velha ainda viva ele tinha l seus casos. E como encontrarei voc? Mais madura claro e, por isso, ainda mais linda. s vezes,
as angstias vividas deixam uma expresso de amargura; pelo menos era
o que escreviam os romancistas do incio do sculo. Os de agora no
empregam floreios to afetados, ah, porm esses rictos nunca saram de
moda; ser que as amarguras continuam to florescentes? Mas sei que voc no tem desses rictos e, se tiver, eu a curarei deles. provvel, isso
sim, que esteja mais sria, que no ria to estrondosamente, to primria
e primaveril como antes. Mas tambm certo que conservou e enriqueceu sua capacidade de alegria, sua vocao de eficcia. Se o que o advogado me deixou entrever efetivamente se realizar, no tenho a menor
ideia de como (e se) poderei me unir a vocs. Quero dizer: ignoro se poderia nesse caso sair do pas. Sei demasiadamente bem que, nesse aspecto, tudo ser complicado, mas ser sempre melhor do que essa separao, que nesse exato momento j nem sei se injusta, absurda ou
merecida. Preferiria viajar, claro, pois que famlia me resta aqui? Depois

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do falecimento de Emilio, s ficou tia Ana, mas no creio que tenha


muita vontade de v-la; afinal, nunca nem tentou me visitar. Dizem que
est mais cheia de achaques que de costume, deve ser por isso. Quanto
aos outros primos, no podem me ver por razes bvias, nem penso,
mesmo que sasse, que possa v-los. Conseguir trabalho aqui seria muito
difcil por vrios motivos, de modo que insisto em que o melhor seria
viajar, mas prematuro conjecturar (com base apenas nos breves indcios
que o doutor me deixou entrever) qualquer coisa sobre os detalhes. Enquanto isso, penso. E sobre coisas concretas. Diante dessa nova possibilidade, deixei imediatamente de fantasiar, de refugiar-me em lembranas,
de reconstruir situaes do balnerio ou da casa, de reconhecer figuras e
rostos nas manchas de umidade das paredes. Agora foco minha ateno
em questes concretas: trabalho, estudo, vida familiar, projetos de
naturezas diversas. No seria nada mal se pudesse completar os estudos.
Por que no vai verificando a, na universidade, que matrias poderia revalidar e quais teria que fazer de novo? Se por uma eventualidade, sabe?
E trabalho? J sei que voc tem um bom emprego, mas quero trabalhar o
mais rpido possvel. E no pense que por machismo. Precisa entender
simplesmente que trabalhei e estudei simultaneamente a vida inteira, de
modo que tenho esse costume e alm do mais me agrada. Por que no
vo pesquisando, voc e o Velho, alguma possibilidade nesse sentido?
Sabem bem o que sei fazer melhor, mas nessa altura dos fatos no posso
pretender que o trabalho responda exatamente a meus conhecimentos ou
a minha vocao. Posso fazer qualquer coisa, entende? Fisicamente estou
bastante recuperado e com certeza acabarei de me recuperar a, cuidando
sempre, claro, para que a barriga no volte. Sinto gua na boca s de
imaginar que poderia recuperar uma vida normal, uma vida com voc e
com Beatriz e com o Velho. H quinze dias tenho algum com quem
compartilhar o espao, um companheiro de quarto, digamos, que
muito boa gente, nos entendemos magnificamente. Claro que, com ele,
no me atrevo a falar sobre minha nova perspectiva, simplesmente
porque ele no a tem, pelo menos por agora, e se dou rdea solta a

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minha euforia (sempre com a ntima e inevitvel desconfiana de que esteja padecendo de otimite aguda) temo provocar nele, mesmo que indiretamente, uma certa desesperana e dor. Todos somos muito generosos, aqui pelo menos aprendemos a s-lo, sobretudo quando deixamos
para trs a primeira etapa, que costuma ser egosta, ensimesmada, arisca,
at hipocondraca; mas a generosidade tambm tem fronteiras, confins e
extremos. Lembro perfeitamente que, h pouco mais de um ano, quando
J. saiu, eu mesmo experimentei sentimentos desencontrados. Como no
sentir alegria diante da realidade de que justamente ele, que um sujeito
excepcional, pudesse se reunir com a mulher e a me e trabalhar de novo
e sentir-se outra vez plenamente humano. E no entanto sua ausncia
tambm me desalentou, em primeiro lugar porque J. um sujeito incrvel com quem compartilhar as vinte e quatro horas e depois porque
sua ida revelava o rigor e a tristeza que me restavam. curioso, mas o
bom companheirismo no consiste sempre em falar ou ouvir, em contar
vidas e mortes, amores e desamores, em narrar romances que lemos h
muito tempo e que agora j no temos mo, em discutir filosofia e seus
meandros, em tirar concluses de experincias passadas, em analisar e
nos analisar ideologicamente, em intercambiar as respectivas infncias
ou, quando se pode, em jogar xadrez. O bom companheirismo consiste
muitas vezes em calar, em respeitar o mutismo do outro, em compreender que disso que o outro necessita naquela precisa e obscura jornada, e ento envolv-lo com nosso silncio ou deixar que ele nos envolva com o seu, porm, e esse porm fundamental, sem que nenhum
dos dois o pea ou exija, mas que o outro compreenda por si mesmo,
numa espontnea solidariedade. s vezes uma boa relao de clausura ou
recluso, uma relao que pode se converter em amizade para sempre,
constri-se melhor com silncios oportunos do que com confidncias
intempestivas. Existem at mesmo pessoas que se sentem to obrigadas a
trocar peripcias autobiogrficas que chegam a invent-las. E no se trata
sempre de mitmanos ou mentirosos, que tambm existem; s vezes
inventa-se um episdio como uma deferncia, como uma cortesia para

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com o companheiro, acreditando que com isso o estamos distraindo ou


ajudando a esquecer o desamparo ou retirando de um poo de angstia,
e com isso lhe estamos provocando saudades, acendendo suas memrias
e at contagiando-o com o vrus da lembrana-fico. Bicho raro o ser
humano quando est condenado sua prpria solido ou quando o castigo consiste em compar-la cotidianamente com as respectivas solides
de um ou dois ou trs prximos, cuja proximidade nenhum deles escolheu. No acredito (nem sequer depois desses ltimos e durssimos anos)
quando o taciturno existencialista diz que o inferno so os outros, mas
em compensao posso admitir que muitas vezes os outros no so exatamente o paraso.

Feridos e contundidos (O adormecido)

primeira hora da tarde, o silncio est fora e est dentro. Graciela sabe
o que vai encontrar se resolver olhar atravs das persianas. No
somente o passeio dos floristas que est deserto, mas tambm os arredores: os canteiros, as ruas internas do condomnio, as janelas, as
pequenas varandas do edifcio B.
Os nicos habitantes mveis naquela hora so uns estranhos besouros que se apoiam zumbindo nas persianas, mas no conseguem entrar. A distncia, bem a distncia, soam de vez em quando, em ondas
quase imperceptveis, os gritos e as risadas de um colgio misto que fica a
umas doze ou quinze quadras.
Ento, por que se levanta para olhar atravs das persianas se sabe
de antemo o que vai encontrar? Esse exterior rotina e, ao contrrio, no
interior, na cama, por exemplo, h uma novidade.
Graciela apaga o cigarro apertando-o contra um cinzeiro na
mesinha de cabeceira. Ergue-se um pouco, apoiando-se num cotovelo.
Examina sua prpria nudez e sente um calafrio, mas no faz nenhuma
meno de recolher o lenol amontoado aos ps da cama.
Continua olhando para as persianas, mas sem que nada atraia
seu interesse. Provavelmente apenas uma maneira de dar as costas para
o resto da cama, no como uma rejeio, mas antes como o adiamento
de um prazer. E ento, antes de se virar, antes de olhar, vai movendo
lentamente a mo at pous-la sobre a pele do adormecido.
A pele do adormecido estremece, um pouco maneira dos
cavalos quando tentam espantar as moscas. A mo no d mostras de se
importar e permanece ali, tenaz, at que aquela carne volta a serenar.

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Em seguida, Graciela move seu corpo semilevantado a fim de


confront-lo totalmente ao adormecido, e sem abandonar o arquiplago
de sardas que a palma da mo cobre, ela o olha de cima a baixo e viceversa, detendo-se em pontos, rinces, breves territrios que no curso das
ltimas horas foram ganhando suas preferncias e perturbando sua
bssola.
E se demora por exemplo no ombro macio que horas antes acariciou com a orelha e a ma do rosto; e no peito no muito peludo; e no
umbigo estranho, como de criana, que a fita como um olho de assombro, movido indiretamente pelo compasso da respirao; e na cicatriz
profunda no quadril, aquela que fizeram num certo quartel que ele
nunca menciona; e no veludo desordenado e meio ruivo do tringulo inferior; e no sexo mgico, agora em repouso depois de tanta faina; e nos
testculos desiguais, pois o esquerdo nunca se recuperou e ficou meio pisado e contrado depois de tanto choque no quartel sem nome; e nas pernas bem trabalhadas do corredor de oitocentos com obstculos que ele
foi faz algum tempo; e nos ps toscos e grandes, de dedos longos e um
pouco torcidos e uma unha a ponto de encravar-se.
Graciela retira a mo daquela orografia e aproxima a boca da
outra boca. Nesse preciso instante, a dele, que talvez sonhe, esboa um
sorriso e ela resolve afastar-se para v-lo melhor, para imagin-lo melhor
at que o sorriso se transforma em suspiro ou ronco ou arpejo e vai esmorecendo at se converter outra vez em mera boca entreaberta. Ela
afasta a sua, de lbios apertados.
Agora se estende de costas, com as mos sob a nuca e olhando
para o cu claro. Do exterior continua a chegar o silncio e tambm a insistncia dos besouros, mas j no se ouvem as risadas e os gritos do colgio misto.
No o colgio de Beatriz, nem tem o mesmo horrio, mas
Graciela levanta um brao at ver a hora no relgio digital, presente de
seu sogro. Volta a colocar a mo sob a nuca e, em tom suave, para que o
adormecido no acorde com um sobressalto, diz:

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Rolando.
O adormecido se move um pouco, estira lentamente uma perna
e, sem abrir os olhos, pousa a mo sobre o ventre liso da mulher
desperta.
Rolando. Levante. Beatriz vai chegar daqui a uma hora.

O outro (Sombras e meias-luzes)

O pior de tudo era deixar o tempo passar sem ter chegado a um acordo
sobre o futuro. Porque no importava quantas horas tinham conversado
sobre o assunto nem quantas vezes se animaram a discuti-lo. Todos os
argumentos e contra-argumentos acabavam caindo quando ele, Rolando
Asuero, voltava a repetir o gesto j clssico, o do primeiro dia da criao,
ou seja, segurar seu rosto com ambas as mos e beij-la com uma convico que a cada novo ensaio ia se ajustando e amadurecendo e deixando um sedimento mais entranhado. E quando a despia com a mesma responsabilidade e o mesmo prazer da primeira vez, e ela se deixava acariciar e acariciava com uma alegria corporal que, ao ilumin-la, a transformava rapidamente de seduzida em sedutora, ento se acabavam todas
as humilhaes e todas as dores de conscincia e o colocar-se arbitrariamente no lugar do ausente. Nunca o faziam de noite, porque Graciela
no queria que Beatriz soubesse antes de Santiago. Graciela no queria
que sua filha convertesse, com seu olhar de espanto ou com seu ouvido
involuntariamente atento, aquele ato translcido em ar confinado,
aquela necessidade mtua em enigma a ser decifrado. Por isso eles faziam
de tarde, ele estava de acordo, enquanto a cidade fazia a sesta e s se
ouvia o zumbido dos besouros que perambulavam no passeio dos floristas ou junto s persianas.
Graciela disse que essa hora imperiosa acabou com um preconceito antigo, mais arraigado em seus hbitos do que jamais pensou ou
admitiu. Com Santiago, nunca tinha feito amor de tarde, porque exigia
escurido absoluta para a cerimnia, no queria que nada a distrasse do
tato, j que o tato era para ela o sentido cardeal da unio amorosa, e

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Santiago, que no estava de acordo com essa preponderncia e exclusividade do tato, tinha, apesar disso, se resignado, embora de m vontade,
a essa exigncia que atribua a um puritanismo mal digerido e ponto final, e sobretudo a sua educao em colgios de freiras. Contra o cu no
h quem possa, dizia Santiago, para justificar o carter irremedivel de
sua concesso. Mas Graciela sempre teve muito claro que as Irms no
tinham culpa e que, de todo modo, a razo ltima residia nela mesma,
num pudor obscuro do qual no se orgulhava. Por seu lado, Rolando se
mostrava muito aberto e condescendente, mas na realidade no gostava
nem um pouco desse reconhecimento to pormenorizado daquelas
noites alheias nuas, e s para se vingar moderadamente desse mal-estar,
perguntava como era antes de Santiago, e ela no se indignava, mas antes
se envergonhava de confessar que antes de Santiago nada, e embarcava
outra vez no liame de sombras e meias-luzes, e a prova voc tem agora,
porque fazendo amor como fizemos em plena hora da sesta e mesmo
com as persianas fechadas a penumbra to luminosa que tudo fica bem
vista. Mas era to poderoso o seu desejo de outro corpo, to prioritrio
e to terno o prazer de juntar-se a ele, que em nenhum momento ela
tinha fincado p em seu anacrnico culto do escuro, e no apenas tinha
se distrado do tato, como tinha descoberto, quase sem perceber, o
quanto a deciso de olhar o outro corpo em todas as suas manobras e
rotinas e novas propostas enriquecia o tato, e o quanto ser olhada em todos os seus vales e musgos e colinas enriquecia o tato. S depois do gozo
e do relaxamento, quando ele, Rolando Asuero, acendia um cigarro e depois outro e o estendia para ela, s ento, ou melhor, um pouco depois,
quando voltava do banho e se enrodilhava contra ele, s ento a questo
do ausente voltava a se instalar entre eles, entre os dois corpos satisfeitos
e cansados.
Ela falava e falava, dava voltas e mais voltas situao, e chegava
a dizer que nunca tinha sentido seu prprio corpo tanto quanto sentia
agora, nunca tinha tirado tanto partido, no somente fsico, mas
tambm espiritual, de um fato que afinal no tinha tantas variantes assim

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(sobre isso Rolando no est muito de acordo, mas se limita a sorrir) e,


sem dvida, tal plenitude no a levava a fazer comparaes, pois no
queria afrontar a lembrana de Santiago, nem mesmo a lembrana de seu
corpo (aqui Rolando deixa de sorrir), no queria de forma alguma obscurecer sua imagem, pois tambm no tinha direito de fazer isso, j que
quando ela e Santiago faziam amor eles eram mais jovens, mais urgentes,
mais vitais talvez (aqui Rolando franze o cenho), mas tambm mais inexperientes e, afinal de contas, o que sofreram em carne prpria e alheia
durante aqueles anos todos os tinha transformado em seres mais duros e
ao mesmo tempo mais ternos, em homens e mulheres mais reais e ao
mesmo tempo mais irreais, mais concretos e, no entanto, mais moldveis
pela imaginao, e tudo isso, todo esse desmoronamento de rituais e normas, toda essa contradio entre passado e presente, entre presente e futuro, toda essa chamejante objetividade, despojada de horscopos (sorriso de Rolando com suspiro adicional) e melancolias, convertia-se de repente na nica vantagem de uma triste histria: ser menos mentirosos no
trato recproco, menos injustos na relao mtua, mais humanos de terceira classe, pois os de primeira e segunda j estavam ou j no eram
mais ou talvez tivessem pertencido a estratos de fingimento e
dissimulao.
At que, da outra vez em que fizeram amor, quando ela recomeava seu padre-nosso ps-afrodisaco, Rolando apagou o cigarro e
pegou o dela, apagando-o tambm, e tomou sem violncia os seus cabelos soltos, deitou-a suavemente e trepou sem pressa naquele corpo assombrado e estremecido e depois de beij-la junto orelha disse simplesmente, Graciela no comece de novo, voc e eu conhecemos a histria
inteira, ento para quem a est contando?, ele seu marido e eu sou
amigo dele, e alm do mais um grande sujeito, mas no podemos continuar com esse pingue-pongue da conscincia, entende, temos que decidir e aparentemente j o fizemos. Encontramos algo que nos importa
muito e, portanto, vamos continuar juntos, com todos os problemas e
desajustes que isso vai implicar. Os prximos captulos sero duros, mas

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vamos seguir juntos. Voc sabe disso e eu tambm. Ento vamos deixar a
questo de Santiago para quando ele estiver em condies de saber, de se
adaptar nova realidade. Voc e dom Rafael resolveram no contar nada
a ele enquanto estiver em cana. Eu no estou to certo de que o melhor, no se esquea de que tambm estive preso e acho que sei como essas coisas so avaliadas l de dentro, mas aceito essa deciso e aceito tambm minha responsabilidade na omisso. Sim, em que pese tudo isso,
voc continua a respeitar Santiago e eu tambm o respeito, mas no podemos continuar falando obsessivamente dele toda vez que fazemos
amor. Continuar pensando, eu sei, e eu continuarei pensando tambm,
cada um por sua conta e risco. Fez uma pausa, voltou a beij-la e quando
ele, Rolando Asuero, j estava no ponto, acrescentou como pde: o
simples fato de no triturar o assunto com palavras que se repetem e se
gastam e nos desgastam, esse simples silncio ir nos ajudar, ir nos
ajudar a nos amarmos como somos realmente e no como teramos a frgil obrigao de ser.

Exlios (Adeus e boas-vindas)

Holweide um bairro de Colnia, na Repblica Federal da Alemanha.


Melhor cham-la de Kln, para no confundir com a de Sacramento. Em
Holweide, portanto, estabeleceu-se (em carter provisrio que j acumula
sete anos) uma famlia uruguaia, quer dizer, Olga e seus trs filhos, que em
1974 eram crianas e agora j so adolescentes. Famlia incompleta, pois o
pai, David Cmpora, estava preso no Uruguai desde 1971. Para ganhar sua
liberdade, obtida em 1980, foi decisivo o papel desempenhado pela escola
onde estudam os trs jovens: Ariel, Silvia, Pablo.
Segundo os Cmpora, Holweide um bairro proleta, um pedao
de povoado alemo. Tem de tudo: gente trabalhadora e excludos sociais,
praas de esportes, pequenos comrcios, velhas simpticas e velhas fofoqueiras,
vrias igrejas, um par de bancos, uma escola-piloto extremamente progressista, gente simples, enfim.
A escola foi inaugurada, conta Olga, justamente quando as crianas comearam a frequent-la. Hoje, tem uns mil e duzentos alunos. Das
atividades desenvolvidas para a libertao de David, participaram pais, professores, alunos, a diretora da escola e at o prprio Ministrio da Educao,
que reconheceu que para aquela escola os direitos humanos eram algo mais
do que uma aula terica. Criou-se uma Comisso Cmpora e nos reunamos
quinzenalmente para bolar novas atividades. s vezes pensvamos que no
havia mais nada a fazer, mas sempre surgia alguma ideia nova.
Foram feitos vrios atos pelo Uruguai. No primeiro deles, a escola
convocou uma assembleia de pais para inform-los sobre a situao de David
e consult-los acerca do que se podia fazer. Espervamos que viessem uns
trinta, diz Olga, mas, para nossa surpresa, apareceram quinhentos e da

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surgiu a ideia de fazer uma manifestao diante da embaixada uruguaia.


Contrataram nibus, fizeram coletas e foi preciso at pagar um seguro para
as crianas, j que a manifestao implicava transport-las de Kln at
Bonn. Algumas crianas contriburam para o financiamento com parte de
sua mesada. O custo total foi de 4.000 marcos e mais de 800 pessoas participaram. Isso representa muito aqui, sobretudo levando em conta que as crianas menores tinham que estar acompanhadas por seus pais ou trazer uma
autorizao por escrito. Assim comeou uma bem nutrida srie de atividades.
Foram enviadas ao governo uruguaio 20.000 cartas, outras tantas assinaturas, e treze outras escolas da cidade foram convencidas a participar. Foram
publicados artigos na imprensa e o caso Cmpora foi ficando conhecido e, ao
mesmo tempo, era encarado como uma coisa prpria. Boas mes de famlia
que nunca tinham distribudo um panfleto agora recolhiam assinaturas na
rua e explicavam o que estava acontecendo no Uruguai. Alguns poucos diziam Se est preso, alguma coisa deve ter feito, mas constituam realmente
uma exceo.
Aquela solidria comunidade viveu todas as alternativas com a
famlia, tanto as esperanas de libertao como as negativas categricas da
ditadura. Por fim, e antes que o prprio David, ficamos sabendo que sua
libertao era iminente, e a diretora da escola consultou-nos para decidir o
que podamos fazer quando ele chegasse, j que muitos pais queriam esperlo no aeroporto. Isso era claro: quem tanto tinha feito por sua liberdade
tinha todo o direito de compartilhar de nossa alegria. Fui at Frankfurt para
prevenir David, j que ele, por razes bvias, ignorava a magnitude da mobilizao. Em seguida, no aeroporto de Kln, 300 pessoas esperavam por ele:
crianas com desenhos, flores e mas de presente e tambm muitas
lgrimas.
Resolvemos, ento, que faramos uma grande festa na escola, assim
todos poderiam ver e tocar David, que era seu sucesso, sua conquista, o resultado de seu trabalho solidrio. Antes foi preciso, claro, recauchut-lo.
A festa teve sua parte oratria. Falou a dra. Focke, 65 anos, da
velha guarda da socialdemocracia: de certo modo, ela algo assim como a

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garantia moral de David na Alemanha. Na realidade, prossegue Olga,


nossa madrinha protetora. Falaram tambm a diretora da escola, um representante dos pais (operrio da construo e um dos melhores amigos que
temos aqui), um aluno (que se transformou num poltico brilhante) e
uma representante dos professores. Em seguida, David devia agradecer em
apenas cinco minutos, mas com a traduo (feita por Silvia, sua filha)
chegou a oito. Finalmente, falaram um deputado, o prefeito da cidade e
(como tambm foram convidados os vrios grupos que trabalham pela
Amrica Latina) uma delegada da Frente Democrtica Revolucionria salvadorenha. E a, enfim, comeou o baile com uma orquestra integrada por
trabalhadores italianos. No fim, grande arrasta-p, com comida, bebida,
prantos etc.
Estas so as palavras que David Cmpora pronunciou nesse 20 de
maro de 1981: Esta noite tem um significado especial. De alguma querida
e estranha maneira estamos nos despedindo e, ao mesmo tempo, dando boasvindas: estamos nos despedindo, sem tristeza, de um homem que esteve preso
nove anos. Que esteve preso por se negar a cruzar os braos quando seu povo
teve fome, dor e sofreu injustia. Estamos nos despedindo, sem esquecimento,
de uma experincia muito dura, um pouco longa, mas enormemente valiosa.
Todo preso poltico deve agradecer a seus carcereiros por confirmarem, nos
fatos e em sua pessoa, a validade de suas convices, a razo de seus passos.
Um homem nunca estar mais seguro do que faz do que quando percebe que
nem uma dor prolongada conseguiu lhe tirar o alento e derrot-lo. Estamos
nos despedindo de uma situao, mas dela conservaremos copiosa memria.
Hoje tambm damos, nesta escola, boas-vindas a um pai. Trs filhos e uma
esposa me trouxeram pela mo: querem me mostrar a excelncia que se aninha nos seres humanos. Homens e mulheres do povo capazes de dar e de se
dar. um pai emocionado, que se sente em sua prpria casa, esse que hoje
pode lhes dizer ol e perguntar para onde iremos juntos. Sinto dentro de
mim que esta festa algo de especial, muito diferente de tudo, algo novo e
importante. To, mas to importante que no sou capaz de dizer as palavras
exatas que gostaria. To, mas to novo quanto pode ser o calor das pessoas

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voltadas para fora de si mesmas, das pessoas capazes de querer bem aos outros. Aqui tambm h muita grandeza, nesta noite. H a necessidade imperiosa de continuar fazendo, de continuar podendo. Porque vocs puderam.
Puderam mais que a brutalidade de uma ditadura, mais que a obstinao e
o dio dos carcereiros, mais que a preguia e a comodidade de uma vida para
si mesmos. Vocs puderam e estou aqui como prova do poder de vocs. Prova,
mas no medida. Pois no h medida que possa abarcar tudo o que se torna
possvel para pessoas que comearam a poder. Atrevo-me hoje a tomar as
vozes de meus tantos irmos presos, a represent-los por inteiro, para dizer:
muito obrigado por no nos deixarem sozinhos, muito obrigado por nos
quererem tanto bem. Para pedir-lhes que mantenham sua solidariedade para
com a Amrica Latina, continente que est comprando com sangue o seu
direito de ser livre. Esta noite, podemos falar de priso e morte sem perder a
alegria. Pois nossa alegria a alegria do triunfo militante, pois nossa festa a
festa do esforo combatente. Estamos felizes porque soubemos assumir a dor
das outras pessoas. No existe forma adequada para agradecer pelo que me
deram. A vocs devo o ar livre, a luz, as ruas e as vozes, o sonho e os livros.
Vocs me devolveram meus filhos e minha esposa: meu lugar de carinho,
minha permanente ternura. Tenho vergonha de estar aqui falando, dizendo
coisas. A nica coisa que posso lhes transmitir minha f no homem,
minha obscura sabedoria de preso. Precisamente a vocs, obstinada gente boa
que acaba de realizar o impossvel. Vocs que sabem e podem. para vocs a
festa, para vocs o carinho. Sou eu quem os abraa e aplaude.
Os alemes choraram e dos latino-americanos melhor nem falar.
No era para menos. Segundo nos conta Olga (pois David muito discreto)
uma moa abraou-o e acariciou suas costas durante um longo instante,
agradecendo o muito que tinha lhe dado. Depois de tudo, a moa tinha
razo. Sem saber nem pretender, David tinha brindado aquela comunidade
com a excepcional ocasio de expressar o melhor de si mesma.

Dom Rafael (Um pas chamado Lydia)

Sou estrangeiro? H dias em que tenho certeza de s-lo, outros em que


no dou a menor importncia questo e, por ltimo, outros ainda
(melhor diria que so noites) em que no admito de modo algum essa estraneidade. Ser que a condio de estrangeiro um estado de esprito?
Provavelmente se estivesse na Finlndia ou nas ilhas de Cabo Verde ou
no Vaticano ou em Dallas iria me sentir inexoravelmente estrangeiro,
mas ainda assim, quem pode garantir? De passagem, uma observao:
por que comeamos sempre qualquer lista de distncias, de lonjura, de
extraterritorialidades pela Finlndia? Quem ter posto esse preconceito
em nossas cabeas? Falar de algum que est na Finlndia sempre foi
para ns como dizer que est nos quintos dos infernos e se nem sempre
assimilamos as duas acepes porque nunca se viram quintos dos infernos com tanto gelo e tanta neve. Afinal, o que sabemos dos fineses ou
finlandeses, parte o Kalevala e o Nobel para Sillamp, aquele dos
quatro pontinhos sobre dois as? At as olimpadas de 1952, os jornais do
Cone Sul escreviam Helsinski, com um S antes do K, mas um tempo depois comearam a escrever Helsinki. O que ter acontecido nos jogos
olmpicos para que Helsinki perdesse seu segundo S?
No entanto, no estou na Finlndia, mas aqui. E aqui, sou estrangeiro? No faz muito tempo, li numa boa obra de um autor alemo
desses nossos dias ambivalentes: curioso que os estrangeiros aprendam
primeiro os insultos, as expresses indecorosas e a gria do pas em que
vivem (a moa com apenas alguns meses em P. j solta gritos de dor em
francs e diz: Ai! em vez de Au!). Segundo essa definio, eu no seria
estrangeiro pois continuo xingando tal e qual fazia em minha terra

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prpura e quando sinto uma dor intensa no pronuncio nenhuma interjeio, nem as importadas, nem as domsticas, simplesmente porque
emito um som estranho que seria melhor definido como onomatopaico,
embora o dicionrio registre alguns exemplos de onomatopeias (miau,
gluglu, catapluft) que, sem dvida e por sorte, nada tm a ver com os
grunhidos, os bufos ou estridncias guturais que costumo produzir em
tais lancinantes ocasies.
Por exemplo, o que pensaria eu de mim mesmo se, no ms passado, exatamente na quarta-feira, 9, eu tivesse gritado gluglu ou catapluft
quando o professor Ordez apertou meu dedo com a costumeira e consistente porta de seu Volkswagen? Em troca, minha modesta estridncia
gutural, acompanhada de um olhar incisivo (no na acepo de
categrico, mas de que talha ou corta), certamente no deixou ao
pobre Ordez a menor dvida acerca de meu dio instantneo, dio
por outro lado injusto, alm de instantneo, j que ele s tinha esmagado
meu indicador por uma imperdovel distrao e no por xenofobia militante. Reconheo no entanto que no representou nenhum consolo ou
atenuante para mim a indubitvel certeza de que aquele tarado seria
capaz de massacrar, com toda a imparcialidade e igual falta de jeito, o
dedo de qualquer um de seus queridos compatriotas. Embora parea
mentira, aquela desgraa me fez rir, pois durante alguns minutos
parecamos dois caras plidas (felizmente no apareceu nenhum sioux
no horizonte): eu, porque estive a ponto de desmaiar em meio a meus
grunhidos guturais, e Ordez porque ele tambm. Com a nica diferena de que o dedo era meu. No entanto, eu teria sentido, no mesmo
grau, esse dio instantneo e injusto, devo reconhecer, que senti por meu
colega quando estive a ponto de desmaiar, se o dono do Volkswagen
fosse um uruguaio de Paso Molino, de Tambores ou de Palmitas? Tenho
minhas dvidas a esse respeito, mas como a nica forma de resolv-las
seria que um compatriota de Paso Molino, de Tambores ou de Palmitas
me esmagasse o dedo com a porta de seu Volkswagen (bem, a marca poderia ser outra), no vejo nenhum inconveniente em manter-me no

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precrio e confortvel territrio da dvida filosfica. De todo modo, se


meu dio instantneo pelo palerma do Ordez tivesse conotaes internacionais, ou pelo menos interamericanas, meu caso j no seria de
xenofobia, mas bem ao contrrio.
A mudana forada dura em qualquer idade. Sofri isso em
minha prpria carne. Mas talvez os jovens sejam mais castigados. No
falo por Graciela, por Rolando ou pelo prprio Santiago, quando algum
dia for libertado. Penso antes nos garotos que ainda eram uns fedelhos
quando a confuso comeou. Para eles deve ser quase impossvel conceber esse episdio de suas vidas como algo no transitrio, como uma
frustrao a longussimo prazo. E o perigo que tal sensao possa
convert-los em vtimas de uma eroso irreversvel.
Quantos deles que vimos antes militando bravamente em La
Teja ou Malvn ou em Industrias, e hoje vemos em Paris, na frente do
Sacr-Coeur ou na Ponte Vecchio florentina ou no Rastro de Madri, estendidos junto a produtos artesanais que eles mesmos moldaram ou teceram; quantos desses rapazes e moas, de sorriso vago e olhar distante,
no tero visto, meses ou anos atrs, os camaradas mais queridos carem
a seu lado, ou no tero ouvido gritos aterrorizados de uma cela
nauseabunda ao lado? Como julgar com justia esses neopessimistas,
esses cticos prematuros, se no comearmos a entender que suas esperanas foram abruptamente mutiladas? Como omitir que para esses
jovens, segregados de seu meio, de sua famlia, de seus amigos, de suas
aulas, foi suspenso o humanssimo direito de rebelar-se como jovens, de
lutar como jovens? S lhes restou o direito de morrer como jovens.
s vezes os jovens tm uma coragem prova de bala e, no entanto, no possuem um nimo prova de desencantos. Se pelo menos eu
e outros veteranos pudssemos convenc-los de que sua obrigao s a
de continuarem jovens. No envelhecer de saudade, de tdio ou de rancor, mas continuar jovens, para que na hora da volta voltem como jovens
e no como resduos de rebeldias passadas. Como jovens, quer dizer,
como vida.

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Depois dessa tirada, penso que tenho direito a respirar fundo.


Decididamente, quando me ponho srio posso ficar insuportvel. Mas
tambm cabe a possibilidade de que o verdadeiro Rafael Aguirre seja
esse, o insuportvel, o chato, o retrico, e que, por outro lado, o outro
Rafael, o que se diverte fazendo jogos de palavras e debocha um pouco
dos outros e bastante de si mesmo, seja na realidade uma mscara do
outro.
Talvez essa seja uma maneira irregular, anmala, de responder
minha prpria pergunta: sou estrangeiro? E respondo-me assim, com
uma mo, a direita, na mortalha, e a outra, a esquerda, desenhando um
sol que oxal fosse to espontneo e luminoso como o que minha neta
me trouxe, com suas cores inslitas e insolentes. S que no posso desenhar um sol verde e nuvens rosa como ela faz, sem a menor retrica do
cu. E definitivamente acho que em mim pode mais o sol (apesar de ortodoxamente amarelo e laranja) do que a mortalha.
A nica coisa que pode redimir um velho que a duras penas se
sinta jovem. Note bem, eu falei jovem e no verde. No que queira se
fazer de garoto, vestindo roupa colorida ou ouvindo essas porcarias com
que se aturdem nas discotecas (ah, os incomparveis Beatles de minha
pr-velhice, os Beatles de Michelle ou Yesterday ou Eleanor Rugby), mas se
sentindo, a duras e maduras penas, um velho jovem.
Talvez isso tenha sido a primeira coisa que Lydia entendeu e
talvez isso (quero dizer, o fato de que tenha entendido) tenha sido a
primeira coisa de que gostei nela. E sem alimentar esperanas demais.
Talvez tenha acontecido assim porque ela daqui, porque no compatriota, digamos. Ningum quer nem pode abandonar suas nostalgias, mas
o exlio no deve se transformar em frustrao. Criar vnculos, trabalhar
com a gente do pas como se fosse nossa prpria gente a melhor forma
de nos sentirmos teis e no h melhor antdoto contra a frustrao do
que a sensao de utilidade.
Criar vnculos com a gente do pas. Bem, eu me vinculei a Lydia. Como costumo dizer: afinal, como se pode ver, estou lydiando. E

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me sinto melhor. O simulacro da bengala j vai longe. E tambm por


isso no me sinto estrangeiro, porque ela no minha estrangeira, mas
algo assim como minha mulher. Tem seu pouco de sangue ndio, em boa
hora. Ou talvez de sangue negro, tambm em boa hora. Digamos que
sua linda pele mais escurinha do que a de Graciela ou a de Beatriz. E
ainda mais escurinha (e muito menos enrugadinha) do que a minha.
Talvez tenha me vinculado a um pas chamado Lydia. E trata-se
de um vnculo diferente de todos os anteriores. Faltam vrios ingredientes clssicos: urgncia, paixo, opresso no peito, no me atreveria
nem mesmo a dizer que estou apaixonado, mas pelo menos me atrevo a
pens-lo. claro que se cometer o erro de olhar-me no espelho, enchome automaticamente de prudncia. No h (e talvez no haja)
casamento, mas o que no posso negar que, embora Lydia no seja de
minha aldeia, ela , em compensao, de minha casta, de minha tribo. E
isso de ter me vinculado ao pas Lydia no simplesmente linguagem
figurada, pois foi ela quem me introduziu nas coisas, nas comidas, nas
gentes daqui. J comecei a festejar (no a pronunciar, hein) os modismos
locais, no apenas os definitivos, mas tambm os transitrios, como por
exemplo quando o concunhado de Lydia confessa que j est com vontade de mexer o bigode e isso significa que quer almoar.
Continuo, porm, a me encontrar com os compatriotas. H um
monte de assuntos dos quais s posso falar com eles, quer dizer, falar
com plenitude, com conhecimento de causa, embora nem sempre com
conhecimento de efeitos. Fazer o complexo balano do passado, to mais
rduo quanto mais prximo, ou como diz o bonacho do Valds (medicina geral e vias respiratrias) com sua deformao profissional: preciso
auscultar o pas, senhores, colar a orelha em seu lombo para ouvir como
respira e ento ordenar, diga trinta e trs, diga, por favor, Trinta e Trs
Uruguaios.
Mas nessa altura dos fatos isso no me basta. No posso viver
aqui e assim, com a obsesso de que amanh ou em outubro prximo ou
dentro de dois anos vou soltar as amarras e empreender o regresso, o

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mtico regresso, pois o estilo provisrio jamais concede plenitude, e


ento interno-me no pas Lydia, e isso muito mais do que um smbolo
sexual (sem prejuzo de internar-me l tambm e de ser uma linda
viagem), tambm ficar sabendo aquilo que as pessoas do pas Lydia
ficam sabendo, ouvir os noticirios de rdio e televiso de cabo a rabo e
no somente na hora das notcias internacionais, na espera cotidiana de
que algo de bom chegue enfim l de baixo. Mas o que chega que desapareceram mais quatro ou morreram trs na priso e nem sempre por
causa do que certo defenestrado presidente chamava de o rigor e a
exigncia nos interrogatrios, mas pura e exclusivamente por cansao e
superlotao do crcere. O que chega que houve mais batidas e caram
quinhentos e depois soltaram apenas quatrocentos e vinte, como era previsvel, mas quem sero os oitenta restantes, o que faro com eles?
Estamos perdendo o saudvel costume da esperana. J quase
no entendemos que outras sociedades continuem a ger-la. Me lembro
da madrugada de trinta de novembro. Tinha dito a Lydia que no viesse.
Queria ficar sozinho com meu ceticismo. No acreditava no plebiscito,
pois me parecia uma armao ridcula. Mas s trs da manh acordei
com o impulso de ligar as ondas curtas. E a notcia veio como que misturada em meu sonho (que no era particularmente estimulante): o
NO tinha derrubado a proposta dos milicos e s quando me convenci
de que no se tratava de um adendo do meu sonho, mas de uma notcia
real, s ento pulei da cama e gritei como se estivesse no estdio e me dei
conta de repente de que estava chorando sem nenhuma vergonha e at
soluando e que esse pranto no era excessivo nem ridculo e me surpreendi tanto com minha prpria exploso que tentei lembrar quando
tinha chorado assim pela ltima vez e tive que retroceder a outubro de
67, em Montevidu, tambm sozinho e de noite, quando outra onda
curta pormenorizou a tristeza informativa de Fidel sobre a morte de Che.
Mas em novembro de 80, as pessoas do pas de Lydia me deixaram chorar a ss e eu agradeci. S vieram no dia seguinte para me abraar, depois de se certificarem de que estava com os olhos secos e para

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que explicasse o inexplicvel; e ento fui dizendo enquanto eu mesmo


me convencia: a ditadura resolveu abrir, no uma porta, mas uma fresta,
uma fresta to pequena que s uma nica pequena slaba conseguiu passar por ela, e ento as pessoas perceberam aquela fresta e, sem pensar
duas vezes, colocaram nela a slaba NO. provvel que amanh batam
a porta, tranquem de novo a fortaleza que pensaram ser inexpugnvel,
mas j ser tarde, a rotunda slaba ficar l dentro, ser impossvel se desfazer dela. Nessa poca de bombas de nutron e ogivas nucleares, incrvel o que uma pobre slaba negativa ainda pode fazer.
E Lydia veio, claro (no o pas Lydia, mas Lydia apenas e sua
alma) e no disse nada e tambm lhe agradeci por isso, e depois de
assegurar-se, ela tambm, de que eu tinha os olhos secos, sentou-se no
cho junto a mim (eu estava como sempre na cadeira de balano, mas
parei de balanar) e apoiou em meus joelhos sua cabea morena e seus
cabelos negros.

Beatriz (A anistia)

Anistia uma palavra difcil ou, como diz meu av Rafael, muito cabeluda, porque em espanhol tem um M e um N que vm sempre juntos.13 Anistia quando perdoam e retiram o castigo de algum. Por exemplo: se eu venho da escola com a roupa suja e Graciela, ou seja, minha
me, me diz vai ficar sem sobremesa por uma semana e depois eu me
comporto muito bem e trs dias depois trago boas notas em aritmtica,
ento ela me d uma anistia e posso voltar a tomar sorvete, daquele que
vem numa taa canoa e que so trs bolas, uma de baunilha, uma de
chocolate e outra de morango, o que vem a ser a mesma coisa que meu
av Rafael chama de frutillas.14
Tambm quando Teresita e eu estivemos brigadssimas porque
ela me deu um sopapo cheio de barro e passamos quase duas semanas
sem dar nem oi e sem emprestar nem a escova de dentes, vi de repente
que a pobre estava muito arrependida e no podia viver sem meu
carinho e me dei conta de que suspirava fundo quando eu passava e
comecei a ficar com medo de que se suicidasse como na televiso, de
modo que a chamei e disse olhe, Teresita, vou anistiar voc, mas ela pensou que eu tinha chamado s para xingar e comeou a chorar lgrimas
cada vez mais fortes at que no tive outro remdio seno dizer deixe de
ser burra, Teresita, anistiar quer dizer perdoar e ento ela comeou a
chorar de novo, mas com outro choro, porque esse era de emoo.
Tambm outro dia vi na televiso uma tourada que como um
estdio onde um senhor brinca com um manto vermelho e um touro
que se faz de furioso mas bonssimo, e depois de muitas e muitas horas
brincando o homem se aborreceu e disse no quero brincar mais com

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esse bicho que se finge de furioso, mas o touro queria continuar e ento
foi o homem quem ficou furioso e como era muito estpido enfiou-lhe
bem aqui na nuca uma espada muito comprida e o touro que j estava
quase pedindo anistia olhou o senhor com uns olhos muito, mas muito
tristes e desmaiou bem no meio do campo sem que ningum lhe desse
anistia e eu fiquei com tanta pena que me saiu um suspiro fininho fininho e naquela noite sonhei que acariciava o touro e dizia fofo, fofo,
como digo para Sarcasmo, o cachorro de Anglica, e ele sacode o rabinho
contentssimo, mas no sonho o touro no sacudia o rabo porque continuava desmaiado no meio do campo e eu lhe dava anistia, mas em
sonho no vale.
Meu dicionrio diz que anistia o esquecimento dos delitos
polticos e eu estava pensando que talvez deem anistia para meu pai, mas
tambm fico com medo de que o general que botou meu pai preso
poltico tenha boa memria e no esquea os delitos. Claro que, como
meu pai muito, mas muito bom e sabe at varrer os calabouos, no
mnimo o general que o botou preso poltico vai fazer vista grossa, igual
meu av faz comigo, como se esquecesse os delitos, embora na verdade
no esquea, e talvez uma noite o general que botou meu pai preso
poltico lhe d anistia assim de repente e, sem dizer nada, deixe a porta
sem passar a chave para que meu pai saia na ponta dos ps e chegue bem
quietinho at a rua e pegue um txi e conte muito feliz ao chofer que
acabam de lhe dar anistia, de modo que melhor que o leve imediatamente para o aeroporto porque quer vir logo nos ver, a Graciela e a
mim, e saiba que eu tenho, dir ao chofer, uma filhinha que no vejo h
muitos anos, mas que sei que lindssima e muito boa e o chofer dir ah,
que interessante, senhor, eu tambm tenho uma menina e continuaro
falando, falando, falando porque at o aeroporto uma quantidade
brbara de quilmetros e quando chegarem j ser noite e meu pai dir o
problema que, como estive preso poltico, agora no tenho dinheiro
para lhe pagar e o chofer dir no se aflija senhor, so apenas trinta e oito
milhes, pague quando puder e conseguir trabalho; e meu pai, como o

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senhor bom, muito obrigado; e o chofer, no h de qu e d lembranas sua senhora e sua menina que to boa e to linda e faa
uma boa viagem e meus parabns pela anistia.
Anglica, em compensao, muito rancorosa e quando Sarcasmo a morde um pouco, no muito porque tem os dentes bem
pequenininhos e no faz por mal, ela bate forte nele e no fala com ele
por trs dias e eu sei que Sarcasmo quase morre de tristeza e ela, mesmo
assim, no lhe d anistia. Eu fico com muita pena do Sarcasmito e at
levaria ele para casa, mas Graciela sempre diz que no exlio no se deve
ter animaizinhos, pois a pessoa se afeioa e de repente um dia tem que
voltar a Montevidu e no pode levar o cachorro ou o gato porque eles
fazem xixi nos avies.
Quando vier a anistia vamos danar tango. Os tangos so umas
msicas tristes que se danam quando se est alegre e assim se fica triste
de novo. Quando vier a anistia, Graciela vai me comprar uma boneca
nova porque a Mnica j est boa para ser aposentada. Quando vier a
anistia, no haver mais touradas nem vo me sair mais espinhas. E meu
av Rafael vai me comprar um relgio de pulso. Quando vier a anistia
no haver mais amnsia. A anistia como um feriado que vai se esparramar por todo o pas. Os avies e os navios chegaro lotados de turistas
cheios de grana que viro para ver a anistia. Os avies ficaro to cheios
que haver gente de p nos corredores e as senhoras diro aos senhores
que estiverem sentados ah, o senhor tambm vai ver a anistia e ento o
senhor no ter outro remdio seno lhe ceder o lugar. Quando vier a
anistia haver colherinhas e camisetas e cinzeiros com a palavra anistia e
tambm bonecas que diro a-nis-ti-a e tocaro uma musiquinha quando
algum apertar suas barrigas. Quando vier a anistia acabaro as tabuadas
de multiplicar, sobretudo a de oito e a de nove que so uma chatura.
Imagino que quando meu pai vier um dia ficar pelo menos um ano
falando sempre da anistia. Teresita diz que Sandra disse que os pases
muito frios tm menos anistia, mas acho que no deve ser to grave,
porque como l fora est nevando e sopra um vento gelado os presos

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polticos no vo querer ser postos em liberdade, porque no calabouo


est mais quentinho. s vezes penso que a anistia est demorando tanto
que quando vier no mnimo eu j vou ser grande como Graciela e trabalharei em arranha-cus e at poderei atravessar as ruas com sinal vermelho
como gente grande sempre faz. Quando vier a anistia capaz que Graciela diga a tio Rolando, bem, tchau.
13 Em espanhol, amnistia. (N. da T.)
14 Em espanhol da Espanha, morango fresa. (N. da E.)

O outro (Use o corpo)

Ento est me achando estranho? Pode ser, Rolando, pode ser. Alm
disso, fazia muito tempo que no nos vamos. No entanto, deveria estar
feliz. Quem sabe no estou feliz e justamente isso que me deixa estranho? Acha que impossvel? Estamos to acostumados com as mortes
que quando por exemplo um nascimento acontece nos pega desprevenidos, ou como diria um aficionado local de beisebol (est vendo como
estou me adaptando?) nos pega fora da base. Voc sem dvida estar se
perguntando o que houve. E no vai querer acreditar que o ocorrido seja
algo estimulante. Desconfia, no ? Eu tambm me tornei desconfiado.
Entretanto, o elemento novo uma boa notcia: soltaram Claudia, que j
est na Sucia. No imaginava, hein? Pois foi solta e j est na Sucia e
j me escreveu e eu j respondi. O que acha? Seis anos so longussimos,
sobretudo quando se leva em conta que eu pude me safar e ela no, ela
teve que engolir esses seis anos de merda, de humilhaes, de podrido,
de delrio. E agora diga, como ia poder aproveitar minha liberdade,
como ia ter prazer com meu trabalho (por fim, estou fazendo alguma
coisa de que gosto, que corresponde minha vocao), com o mero e
simples fato de dizer em voz alta o que me der na telha, como ia usufruir
minha vida se sabia que Claudia estava l, arrebentada, corajosa, mas
ferida, leal, mas terrivelmente ansiosa? Tenho trinta e dois anos e sou um
sujeito robusto e sexualmente so, em pleno vigor. Sabe bem que nessa
idade, quando se normal, impossvel passar seis anos sem ter, de vez
em quando, uma mulher. Eu tambm sei e Claudia sabe e em suas cartas
me sugeria indiretamente e por outras vias me mandava dizer sem evasivas: No se preocupe, ngel. Eu o amo como nunca, mas no posso

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exigir uma coisa assim de voc. um homem jovem e est a fora. No


pode se negar ao que o corpo espera. seu corpo. No vou ficar ofendida. Nunca. Estou falando srio. Por favor, acredite. Mais tarde,
quando eu sair, veremos o que fazer. Sim, continuo amando voc como
nunca, mas no fique sem mulher, no se condene a viver sem um corpo
de mulher. Sei melhor que ningum o quando necessita disso. E sempre
assim. S faltou transcrever aquele verso de Vallejo: J vai chegar o dia.
Use o corpo. Era quase uma obsesso em suas cartas e mensagens. Eu
respondia que no se preocupasse, que talvez mais adiante, mas que
agora no tinha vontade, nem desejo, nem nada. E ela insistindo. At
que finalmente se deu uma situao que no procurei, algo que aconteceu muito naturalmente, e resolvi usar o corpo, ou seja, fui para a cama
com uma moa estupenda, e fizemos amor, claro, mas em outro sentido
foi um fracasso. Eu olhava meu vaivm, sabe?, como se fosse de outro.
Os rgos reagem, claro, ao contato de uma linda carne contgua: podem se desenvolver, se excitar, chegar por si mesmos a um pice, mas eu
continuava alheio a esse gozo, eu estava l, em uma cela remota, murmurando meu apoio a uma mulher distante e minha, consolando-a, sem
toc-la, de feridas que nunca cicatrizaro; dizendo-lhe palavras, palavrinhas isoladas que para ns dois tm o significado de um ritual, so como
marcos de nossa histria particular. Vai me dizer que isso acontece com
todos os casais. Ah, mas nesse casal um estava aqui, livre, mas sentindose estupidamente culpado de sua liberdade, e a outra estava l, em
clausura e em luta, acompanhada e solitria, pensando provavelmente
em mim, pensando em mim me sentindo estupidamente culpado de
minha liberdade. E a moa que estava comigo logo compreendeu claramente toda a situao e compreendeu-a apesar de ser daqui ou talvez por
isso mesmo, e quando j estvamos deitados e em silncio, olhando o
teto, apoiou sua mo em minha perna e disse: No se aflija, isso est
acontecendo porque voc boa gente, e levantou-se e vestiu-se e foi embora sem dizer mais nada, depois de me dar um beijo no rosto. Assim,
imagine se no foi uma boa notcia para mim saber que, depois de seis

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anos, a outra, ou seja, a nica, a martirizada, a leal, estava livre e na Sucia e com amigos. Essa a histria. Por enquanto. Ns nos escrevemos,
nos falamos ao telefone. Posso garantir que o telefone no foi o meio de
comunicao ideal, pois ambos chorvamos e no final ainda custou um
monte de dinheiro s para ouvir, durante quinze minutos, trs
monosslabos e quatro soluos. Desde o primeiro momento, escrevi
dizendo que viesse em seguida e comprei uma passagem de avio, open,
para que viajasse quando quisesse e pudesse. Mas em resposta notei certa
reticncia e comecei a imaginar coisas absurdas. Imagine a liberdade que
se tem quando se comea a imaginar coisas absurdas. As razoveis tm a
ver com vistos, residncias, passaportes etc., mas eu escolhi as outras,
pelos menos algumas, e enumerei-as em minha outra carta. E hoje acabo
de receber sua resposta. Diz assim, vou ler: Voc continua pensando na
Claudia que deixou de ver h seis anos, mas nesses seis anos aconteceram
muitas coisas e at os rostos mudam e essa transformao tem um ritmo
distinto da simples passagem do tempo. Sei que voc, por exemplo, tem
o mesmo aspecto, s com seis anos a mais. o normal, no? Mas eu,
querido, no tenho o mesmo rosto. Essa a reticncia que percebeu em
minha carta. Mas como imaginou tantas barbaridades, tomei a seguinte
deciso: fiz vrias fotos e confesso que, embora no acredite, selecionei a
melhor e, bem, essa que estou mandando, ngel, quero que antes de
decidir se devo ir ou ficar por aqui veja como esses seis anos passaram
por meus olhos, por minha boca, por meu nariz, por minhas orelhas, por
minha testa, por meu cabelo. E, se me quer de verdade e me respeita,
quero (sabe bem que sou catlica, assim eu lhe peo pelo amor de Deus)
que seja rigorosamente sincero comigo. Voc se d conta, Rolando, de
tudo que essa carta diz? Pode ler, como eu, todas as entrelinhas? Por isso
eu disse h pouco que talvez esteja feliz e isso que me deixa um pouco
estranho. Estar feliz e, no entanto, no ser feliz. Ah, nunca imaginei que
estar feliz pudesse incluir tanta tristeza, sabe?

Feridos e contundidos (Merda de vida)

E o que voc sentiu quando ele leu a carta, quando lhe contou a
histria da foto?
Desconcerto. Realmente, acho que me senti desconcertado.
Desconcertado e culpado?
No. Culpado, no.
E ento por que chegou aqui com essa cara de velrio?
No seria porque esse enredo no exatamente uma festa?
Quando diz enredo, est se referindo ao nosso?
Sim, o que mais poderia ser?
No acho que seja um enredo.
Ah, no? Mas .
Est arrependido?
No. Mas no uma festa.
Voc j disse isso. Mas a situao deles tambm no uma
festa.
A de Claudia e ngel? Tambm no. Mas pelo menos
transparente. Uma dor transparente. Um amor transparente.
Ao contrrio do nosso, que opaco.
No foi o que eu disse.
Mas deu a entender. Tudo o que no diz, voc est dizendo
do mesmo modo. Pensa por acaso que eu no me digo isso?
Sabe muito bem que para mim a nica coisa opaca que
ainda no contamos a Santiago. O resto, no. Eu a amo de verdade, Graciela, e isso no opaco.

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De nada adianta voltar a esse assunto. Falei com Rafael e ele


me convenceu. E continuo a acreditar que ele tinha razo. Ficar sabendo
assim e l, entre quatro paredes.
Bem, agora ele vai chegar.
Sim, e fico contente com isso.
Contente com isso quer dizer arrependida do resto?
No, Rolando, tambm no estou arrependida. Contente
quer dizer contente, nada mais. Contente porque ele vai ficar livre, coisa
que ele bem merece. E tambm porque vou poder lhe contar.
Vai?
Sim, Rolando, vou. Sou bem mais forte do que voc pensa.
Alm do mais, sinto-me segura. Sei agora que no funcionaria de outra
forma. E respeito Santiago demais para continuar mentindo.
Merda de vida, no? O sujeito sai depois de tantos anos e o
que o espera isso. Quer dizer: ns, que o esperamos com essa boa-nova.
No sei. Afinal, como dizia Rafael, melhor que fique
sabendo aqui, com outras perspectivas.
E os outros tambm vo ficar sabendo. Os companheiros.
Seu admirado Rafael acaso lhe falou disso?
No. Mas sei bem disso.
No creio que fiquem do nosso lado.
Provavelmente no. Todo mundo gosta de Santiago. Vai ser
difcil.
E como voc vai contar?
No sei, Rolando, no sei.
Prefere que falemos juntos?
Olha, no sei como vou lhe contar. Improvisarei. Mas sei,
em compensao, que quero falar com ele a ss. Tenho esse direito, no?
Tem todos os direitos. E Beatricita?
Anda meio distante. Isso tambm me deixa arrasada.
J sabe que o pai vai chegar em quinze dias?

153/183

J sabe desde domingo. Apesar da advertncia de Santiago,


resolvi contar. Sabe por qu? Porque pensei que tinha sabido da histria
por alguma estranha via ou que a intua e que talvez a sua atitude distante se devesse ao fato de eu no ter lhe dado a notcia. Mas depois que
contei, ela continuou igual.
muito esperta, a pequena. Tenho certeza de que suspeita de
ns dois.
Tambm acho.
Bem, afinal uma reao inevitvel.
Pode ser, mas fico preocupada.
E agora, por que est chorando?
Porque voc tem razo.
Sim, claro, mas em qu?
Nisso que disse: merda de vida.

Exlios (Os orgulhosos de Alamar)

Morei mais de dois anos em Alamar, uma regio situada a uns quinze
quilmetros de Havana e integrada basicamente por blocos de moradias construdos incessantemente por brigadas de trabalhadores da capital. uma
das maneiras que os cubanos inventaram para tentar resolver seu rduo
problema habitacional sem que a produo se ressentisse com isso. Em cada
fbrica ou oficina ou armazm forma-se pelo menos uma brigada de 33 trabalhadores cada. Como no so, em geral, operrios da construo civil,
comeam com um curso bsico e em seguida dedicam-se construo de edifcios de cinco a doze andares, que sero ocupados posteriormente pelos colegas (ou por eles prprios) que necessitem mais urgentemente de uma nova
casa. O vazio laboral que cada brigada deixa em seu centro de trabalho
compensado pelas horas extras dos outros. Curiosamente, a ideia veio dos operrios: o governo limitou-se a viabiliz-la.
Mas h um detalhe adicional que nos concerne diretamente. Em
cada um desses edifcios, as brigadas cedem um apartamento (se for de cinco
andares) ou quatro (se for de doze) a famlias de exilados latino-americanos,
que os recebem j mobiliados, com geladeira, rdio, televiso, fogo a gs e
at lenis e louas. Tudo gratuito.
Vem da que um bom nmero de latino-americanos concentra-se
precisamente em Alamar. As crianas e os adolescentes uruguaios costumam
ser, se no bilngues, pelo menos bitonais. Quando brincam e correm pelas
ruas com seus cupinchas locais, falam com um puro sotaque cubano. Mas
quando entram em casa, onde os pais continuam usando robusta e conscientemente o ch, ento os moleques, que os cubanos chamavam de fies,
voltam a ser botijas novamente.

155/183

Alamar um lindo lugar, talvez com menos nibus e rvores do que


seria necessrio, mas com um ar leve e salitroso, o mar ao alcance da mo e
uma fraternidade sem ostentaes.
Em 30 de novembro de 1980, dia do plebiscito, armadilha que a
ditadura uruguaia armou para si mesma, eu j no estava em Alamar, mas
na Espanha. Naquela madrugada, enquanto as notcias do explosivo triunfo
popular iam ganhando as primeiras pginas das notcias internacionais, pensei em muitas coisas, claro, mas entre outras tambm em Alamar, onde teria
sido muito bom comemorar a incrvel goleada.
E quando em janeiro seguinte fui a Havana, esse foi o primeiro assunto que comentei com Alfredo Gravina. Alfredo e eu temos vrias coisas
em comum, mas sobretudo duas que so muito importantes: a literatura e
Tacuaremb, embora ele seja da capital do departamento e eu apenas de
Paso de los Toros.
Ah, essa noite. E revirou os olhos. Sempre achei que Alfredo (seu
segundo nome Dante, mas nunca me atrevi a pegar no p dele, pois o meu
terceiro Hamlet) tinha fugido, com seu passinho inimitvel, de algum filme
de Vittorio de Sica com roteiro de Cesare Zavattini. Ah, mas quando revira
os olhos fica igualzinho a Tot.
Olhe, naquela noite, tnhamos nos reunido, vrios da colnia,
para conversar e beber. O plebiscito? O mais previsvel era a fraude. Entre
suas rugas de farra aparece esse sorriso aberto e sempre disposto a se ampliar,
e quem no o conhece pode pensar que de zombaria contra o prximo, mas
ns sabemos que autoironia. No autocrtica, bom esclarecer, mas deboche de si mesmo. Existem matizes, no?
Comeamos a cantar tango, velhos tangos, talvez como forma de
sublimar a saudade. Mas uma companheira mais realista (como costumam
ser as mulheres) estava com a orelha grudada no rdio apesar da cantoria.
De modo que o panorama era o seguinte: ns com Gardel e ela com a BBC.
E de repente deu um pulo: Ganhou o NO! Ganhou o NO com mais de
60%! A, claro, abandonamos o pobre Gardel e nos grudamos na BBC, que
confirmava a notcia.

156/183

Naquele mesmo 30 de novembro, em Mallorca, eu tambm fiquei


sabendo pela BBC: nunca antes aquele espanhol belo e desinfetado, aquela
espcie de mistura de Guadalajara com Ushuaia, me pareceu to esplndido.
Descemos para a rua com uma bandeira, continua Alfredo, nem
sei de onde a pegamos. Era preciso comunicar a todos e festejar. Fomos bater
nas casas dos compatriotas, mas a maioria no tinha vacilado, como ns,
entre o Mago e a BBC: tinha simplesmente escolhido o colcho, pois segunda
dia de trabalho. Muitos pensaram que era brincadeira, mas pouco a pouco
foram se convencendo e se somando ao coro, cada vez mais entusiasmado e
desafinado. O escndalo j era tanto que a polcia no teve outro remdio
seno se aproximar, um pouco assustada diante de semelhante alvoroo num
Alamar que naquelas horas s descansa e faz amor. O que era aquilo? O que
havia conosco? Nosso primeiro argumento foi a bandeira e a partir dela eles
entenderam o resto. Sugeriram apenas que no fizssemos tanto barulho, mas
creio que no tinham nenhuma esperana de que segussemos o conselho. Na
realidade, a comemorao s terminou quando o sol comeou a raiar.
Mas afinal, como estavam? Orgulhosos, ch, orgulhosos, conclui
o velho Alfredo, magro, enrugado e ereto, estufando o peito como em
Tacuaremb.

Dom Rafael (Remover os escombros)

estranho. Meu filho vai sair da priso, vai chegar aqui qualquer dia
desses e eu recebo a notcia com toda a naturalidade, quase como se fosse
o corolrio de um pressgio. Seria mesmo to previsvel? Quantos, at
com menos anos de priso que Santiago, um dia no aguentaram mais a
angstia ou o cncer ou sua prpria histria e morreram? Quantos outros enlouqueceram de desalento e impotncia? No entanto, desde o
comeo eu sabia que ele ia sair. Por instinto, talvez, por intuio de um
velho corao. O mais curioso que quando Graciela me contou, nesse
primeiro instante revelador, no pensei nele, nem em mim, nem em
minha neta, nem no problema cabeludo que o espera aqui. S pensei em
sua me, em Mercedes. Pensei nela como se estivesse viva, como se meu
legtimo, razovel impulso fosse ir correndo avis-la, dizer que logo
poderia abra-lo, apert-lo, tocar seu rosto, chorar em seu ombro, sei l
mais o qu. E assim percebi que, apesar dos anos transcorridos, apesar de
Lydia hoje e outras mais ontem e anteontem, ainda existe um vnculo especial que me une a Mercedes, ao nome e lembrana de Mercedes,
com seu vestido invariavelmente marrom; seu olhar quieto, que sempre
tinha l no fundo uma pontinha de emoo; suas mos fracas e no entanto seguras; seu sorriso inconfundvel e muitas vezes hermtico; sua
terna solicitude para com Santiago. s vezes me passa pela cabea (uma
loucura como outra qualquer) que ela bem que gostaria de um biombo
atrs do qual pudesse falar com Santiago, acariciar Santiago, olhar Santiago sem que o resto do mundo (eu includo no mundo) a importunasse
com sua curiosidade, sua deferncia ou sua desconfiana. Mas como,
claro, no havia biombo, sofria um pouco, no escandalosamente, mas

158/183

com moderao, como era de seu estilo. No era feia, Mercedes. Nem
linda. Tinha um rosto personalssimo e atraente, impossvel de confundir ou esquecer. E uma bondade bastante complicada, mas legtima.
Agora, a tanta distncia, se quisesse ser descaradamente franco comigo
mesmo, talvez no soubesse reconhecer por que me apaixonei ou se realmente me apaixonei algum vez por essa mulher to descomedidamente
comedida. Digo-me isso e sinto imediatamente que estou sendo injusto.
claro que devo ter me apaixonado. S que no me lembro. Conversvamos entre ns bem menos do que um casal comum conversa, mas,
claro, no ramos um casal comum. Entretanto, essas poucas conversas
certamente no eram banais. Ela me desconcertava bastante, mas nunca
pude ofend-la, ou gritar ou recriminar-lhe alguma coisa. Sempre parecia
algum recm-salvo de um naufrgio, que ainda no se habituara prpria sobrevivncia. Foi difcil para mim comunicar-me com ela, mas nas
poucas vezes em que consegui foi uma comunicao milagrosa, quase
mgica. Fazer amor com Mercedes era, talvez, como fazer amor com um
conceito e no com um corpo, mas em seguida ela ficava to doce e to
trmula que esse eplogo representava uma unio mais estreita do que o
ato em si. S conseguia recuperar essa mesma expresso de modelo de
Filippo Lippi quando ouvia boa msica. Quando tnhamos apenas dois
anos de casados, em um de seus infrequentes impulsos de confidncia,
que eram como uma concesso que nos fazia s vezes (a ela e a mim),
disse que bom seria morrer ouvindo alguma das Quatro Estaes de
Vivaldi. E muitos anos depois, exatamente em dezessete de junho de mil
novecentos e cinquenta e oito, quando estava lendo e de repente ficou
imvel para sempre, no rdio (no era sequer um toca-discos) estava
tocando a Primavera. Santiago ficou sabendo e talvez por isso essa palavra, primavera, tenha se ligado para sempre sua vida. como o seu termmetro, seu padro, sua norma. Embora a pronuncie muito raramente, sei que para ele os acontecimentos do mundo em geral e de seu
mundo em particular se dividem em primaveris, pouco primaveris e
nada primaveris. Suponho que estes ltimos cinco anos no tenham lhe

159/183

parecido primaveris. Pois bem, agora vai sair. Terei feito mal em aconselhar Graciela a no escrever sobre a nova realidade? Faltam apenas doze
dias para que fique sabendo. Mas talvez seis meses ou seis anos tenham
que se passar para que possa comprovar efetivamente se meu conselho
foi um acerto ou uma burrada. A vida continua, dizem e repetem as canes banais ou, se no o dizem, pelo menos insinuam. E como so as
canes banais que dizem isso, ns, os sensatos, descartamos radicalmente essa xaropada. E, no entanto, em tudo o que cafona h sempre
uma semente de realidade. A vida continua, evidente, mas no h uma
forma nica de continuar. Cada um tem seu caminho e seu rumo. Conheo o caso difano desse casal, ngel e Claudia (tenho a impresso de
que ele foi meu aluno), porque a prpria Graciela me contou, espantadssima. Para eles a vida continuou desse modo terno, comovedor.
Ah, mas isso no lei. comovedor e terno justamente porque aconteceu sem violncia interior, com uma inevitabilidade absolutamente natural. Confio em Santiago. Creio que, apesar do muito que amou e admirou sua me, puxou mais a mim do que a ela. Imagino o que eu faria,
qual seria a minha atitude num caso assim. E por isso confio em Santiago. claro que tenho sessenta e sete e ele apenas trinta e oito. Mas tem
Beatricita, que uma maravilha e que preencher plenamente essa nova
existncia de Santiago. At agora tinha guardado essa histria para mim
mesmo, mas ontem noite contei a Lydia. Ouviu meu longo monlogo
sem me interromper nem uma nica vez. Tinha (foi o que confessou em
seguida) duas sensaes desencontradas. Por um lado, curtia aquela
prova de confiana. Penso que a partir dessa noite, murmurou, nos
aproximamos mais, penso que j somos um casal. Talvez. Mas tambm
ficou preocupada com minha preocupao. Ficou um momento em
silncio. Enrolou e desenrolou muitas vezes uma de suas lindas madeixas
negras e depois disse, deixe-os sem deix-los, no intervenha a no ser
que peam, deixe-os e ver que a vida no somente continua, como diz
voc, mas tambm se acomoda, se reajusta. Talvez tenha razo. Todo
esse terremoto nos deixou mancos, incompletos, parcialmente vazios,

160/183

insones. Nunca mais seremos o que ramos antes. Melhores ou piores,


cada um saber. Por dentro, e s vezes por fora, uma tormenta passou
sobre ns, um vendaval, e essa calma de agora tem rvores cadas, telhados desmoronados, terraos sem antenas, escombros, muitos escombros.
Temos que nos reconstruir, claro: plantar novas rvores, mas talvez no
haja nos hortos as mesmas mudas, as mesmas sementes. Erguer novas casas, fantstico, mas ser melhor que o arquiteto se limite a reproduzir
fielmente o projeto anterior ou ser infinitamente melhor que repense o
problema e desenhe um novo projeto, que contemple as nossas necessidades atuais? Remover os escombros, dentro do possvel, pois tambm
haver escombros que ningum poder remover do corao e da
memria.

Extramuros (Fasten seat belt)

j se apagou o fasten seat belt ou seja recupero minha vida e a aeromoa


linda / quando me passa o suco de laranja vejo suas unhas de um discretssimo rosa plido e muito mas muito cuidadas / percebo que minha
boina lhe chama um pouco a ateno mas no vou tirar nem morto
cinco anos dois meses e quatro dias e ainda existo hurra so mil oitocentas e oitenta e nove noites bah
que sono tenho e no entanto quero usufruir com plenitude essa tremenda mudana / saber que posso tirar e colocar e tirar o cinto de segurana quando quiser enquanto ouo o murmrio dos besouros / nenhum
dos trezentos passageiros desfruta dos besouros a jato como este seu
servidor
a aeromoa me entrega um jornal e peo mais outro / ento olha para a
boina e deixa os dois / e ento que bomba de nutrons hein permanecero as prises mas no os presos mas tambm os milhes e no os
milionrios / ficaro as escolas e no as crianas mas tambm os canhes
e no os generais / ah e o mssil que partir de hamburgo talvez caia em
moscou mas pode ser que a resposta no caia em hamburgo mas em oklahoma trocas trocas trocas que sono e no entanto quero recordar todas
as caras dos meus l / os que ficaram / anbal no um nmero esteban
no um nmero rubn no um nmero / quiseram nos transformar
em coisas mas fodemos com eles no nos coisificamos / esteban irmo

162/183

voc tem alento para dar e vender / ter que ajudar os desalentados / ah
mas quem vai ajudar voc
que dio e no entanto no quis despedaar-me nele perder-me nele /
durante os primeiros anos eu o reguei cotidianamente como se fosse uma
planta extica / depois compreendi que no podia lhes render essa homenagem e alm disso havia muita coisa a pensar e programar e analisar e
fazer / vo apodrecer sozinhos isso a
conseguiram arrastar o andrs at a loucura / talvez isso tenha lhe acontecido por excesso de inocncia excesso de f no homem / tudo o surpreendia sempre pensava at aqui chegaram e acabou no podem ser to cruis
mas sim eles eram / vou convenc-los e comeava a falar e arrebentavam
sua boca / excesso de inocncia por isso enlouqueceu
pelo relgio de meu vizinho sei que dormi mais de uma hora / j posso
pensar melhor / me sinto gil e resolvo ir ao banheiro / inimaginvel essa
liberdade de ir ao banheiro todas as vezes que quiser / minha primeira
mijada de homem livre / salve
o da minha direita est lendo time e esquerda fica o corredor / como
encontrarei o esprito do mundo a formao e deformao do mundo /
seria muita falta de sorte se justo agora que sa o planeta explodisse
beatricita que festa nos espera / a verdade que no sei exatamente o que
me aguarda / evidentemente h um problema sei que h um problema /
nas ltimas cartas graciela no a mesma e no coisa para se ler nas entrelinhas / s vezes parece que est doente e no quer me dizer / ou talvez
a menina e isso nem pensar beatricita que festa nos espera / at o velho
ficou enigmtico e no comeo atribu isso censura mas no

163/183

cinco anos muito / graciela um encanto mas o exlio uma fenda que
se aprofunda diariamente / graciela um encanto e temos muito passado
em comum e isso pesa / decididamente eu a amo como no vou am-la
mas essa dvida um pouco louca no favorece o amor e o mais provvel
que esteja sendo injusto
o velho respondeu em cdigo quando perguntei do emilio / foi prudente
mas logicamente um pouco obscuro embora tenha a impresso de que
efetivamente entendeu e j estou melhor j no sonho com emilio da
carnia e das cinco-marias / anbal falou longamente dele sem saber nada
sobre os pormenores claro / ele sofreu em sua prpria carne / parece
que era um monstro com todas as letras
como soa bem o besouro / senhores estou voando
a aeromoa sorri e eu sorrio para ela / talvez tenha se impressionado com
minha boina mas no vou tir-la s faltava essa
o que pensaria a velha de tudo isso / talvez seja melhor que no tenha
visto nem sentido / falava pouco mas comigo falava / entre ela e o velho
havia uma terra de ningum mas em certas ocasies a atravessavam algumas vezes ele algumas vezes ela / o velho sempre se mostrou um pouco
desconcertado e no era para menos mas a velha se comprazia em me
dizer muito em segredo o quanto o amava / sempre sob o juramento de
que jamais abriria a boca / linda velhinha a velha ainda sinto falta dela
depois desses cinco anos de inverno ningum vai me roubar a primavera
a primavera como um espelho mas o meu est com a ponta quebrada /
era inevitvel no ia sair inteirinho desse bem nutrido quinqunio / mas
apesar da ponta quebrada o espelho serve a primavera serve

164/183

o sagacssimo neruda perguntava em uma de suas odes / agora primavera


revela-me para que serves e a quem serves sorte que recordei / para que
serve / eu diria que para resgatar as pessoas de qualquer poo / s a palavra j um ritual de juventude / e a quem serve bem minha modesta
impresso de que serve vida / por exemplo pronuncio simplesmente
primavera e me sinto vivel animado vivo
parece que mexi os lbios quando pronunciei primavera porque o da
minha direita est me olhando alarmado / coitado / tenho a impresso
de que s sabe dizer inverno / e alm do mais eu poderia estar rezando o
que caralho ainda se usa
uma ponta quebrada / talvez a nova graciela a tenha quebrado a graciela
distante mas isso certamente uma loucura e ela estar me esperando no
aeroporto com beatricita e o velho / tudo recomear normalmente naturalmente mas que o espelho da primavera est com uma ponta partida
l isso est
assim que puder comprarei um relgio
a aeromoa me passa uma bandeja com a comida e dada a minha condio necessitada e ps-masmorra peo apenas coca-cola no como concesso ideolgica mas porque no cobram / salada mariscos bisteca pssegos em calda / minha boca se enche de saliva incrdula / linda a colherinha gostaria de guard-la para me sentir pelo menos uma vez delinquente comum
pensando bem no to grave que em suas ltimas cartas graciela tenha
estado lacnica e distante / conseguirei me aproximar de novo / artigo
primeiro beij-la / quantas vezes discutamos aos berros e nos dizamos
coisas muito idiotas e muito duras e de repente nos olhvamos assombrados e ento eu ia beij-la e outra vez o mundo voltava a ficar em ordem

165/183

ou melhor dizendo em esplndida desordem / mas mesmo assim durante


um bom tempo com sua boca tapada pela minha ela continuava
censurando-me no sei o que cada vez mais suavemente mais ternamente
e conclua num murmrio e finalmente ela tambm beijava / artigo
segundo beij-la / a verdade que faz cinco anos que no beijo / s isso
j d para enlouquecer qualquer um
cinco anos dois meses e quatro dias provavelmente tempo demais
como preo de um erro / quase a oitava parte de minha vida vivida /
erro logo existo disse certa vez santo agostinho ao errneo / s vezes
penso o que teria acontecido comigo se fosse um operrio e no um
notrio membro do to depreciado setor tercirio / teria ido em cana
igualmente / segurssimo / mas talvez tivesse me adaptado melhor digamos comida / mquina no porque a isso ningum se acostuma /
vamos ver que diferena h entre minha conscincia de classe e a conscincia de classe de um proleta / no fim das contas tambm sou trabalhador mas claro existe uma tradio um mbito familiar / anbal proleta jaime tambm / para os milicos eram nmeros assim como ns / no
sabem diferenciar / pelo menos preciso ensinar-lhes que h nmeros
arbicos e nmeros romanos / com essa equiparao todos aprendamos
e verdadeiramente nos equiparvamos
claro que um proleta est sempre mais seguro e dificilmente se deixar
arrastar aos meandros mentais em que costumamos nos contorcer / mas
na hora de ser leal todos podemos s-lo / digo se precisar / eles talvez
mais naturalmente mais modestamente e ns em compensao explicando a fundo o suposto sacrifcio e tirando da manga todos os princpios
que tivermos colecionado / repisando todas as honorveis razes que existem para calar / os proletas complicam menos a vida / sofrem e ponto /
calam e tchau

166/183

ser preciso voltar mas para que pas que uruguai / ele tambm ter uma
ponta quebrada e mesmo assim refletir mais realidades do que quando o
espelho era virgem / ser preciso voltar mas para que primavera / no importa em que estado calamitoso esteja mas quero recuperar minha
primavera / eles a cobriram de folhas secas de neve televisionada de
papais nois suando de alunos de dan mitrione de mundialito ganho e
mundialote perdido de assessores subdesenvolventes mas o que ignoram
que sob essas camadas de merda permanecem a velha e a nova
primavera talvez com uma ponta partida mas com trigais e umbuzeiros e
tangos proibidos e autorizados e o compadre gervasio e cielitos lindos e
central operria e pastoreios e rebeldias e regulamento provisrio e
comits de base e povo ingovernvel e via lctea e autonomia universitria e mate amargo e o plebiscito e o time do colombes / ser preciso voltar / naturalmente / e o uruguai com uma ponta quebrada
mostrar sem vaidade essa ferida em linha reta e o universo acatar compreender respeitar
levaram a bandeja e agora meus joelhos doem um pouco / que coisa ser
essa que at estou achando bom que os joelhos me doam
as pernas de graciela as coxas de graciela o bosquezinho de graciela
o que os meus de l estaro fazendo agora
enquanto o suave letrgico besouro continua zumbindo o senhor do time
adormeceu em meu ombro / pensei que merecia melhor destino / por
sorte uma jovem que est sua direita espirra providencialmente e com
vontade / o vizinho acorda sobressaltado e se endireita murmurando
sorry / o time cai para o meu lado e eu o devolvo / na cana podamos ler
claudia que amplido no sei de que se queixa a cruz vermelha / preciso
dormir mas confio que no me apoiarei no ombro pontiagudo de meu
vizinho

167/183

no posso / acontece que agora descobri / o que ocorreu que a boina


me d comicho mas juro que no vou tir-la
terei que comear do zero como se fosse um recm-nascido e sou / como
recm-nascidos so os pelinhos ousados que espetam sob a boina
vamos ver o que gostaria de ter / operao franqueza / prioridade
nmero um relgio / depois uma esferogrfica que funcione / e que vergonha um jogo de pingue-pongue com rede e tudo / como jogvamos l
em sols com silvio manolo e tambm com mara del carmen era danada
de boa a mooila / sempre pegava a raquete chinesa e dava bolinha
um efeito do caralho / rolando no / rolando ficava de lado olhando debochado e sempre com o mesmo estribilho / no entendo como gente
to cheia de marra e dialtica pode levar a srio esse cocozinho de celuloide / e silvio entre um saque e outro recordava olhe que mao
campeo nisso / por isso que nunca vou ser maosta dizia rolando / no
me distraaaaaaiam vociferava a mooila isso exige tanta concentrao
quanto o xadrez / como no xadrez e no coitus interruptus respondia rolando exalando fumaa / porco porco gritava outra vez a mooila
no me distraaaaaaia que o magro j me tirou cinco pontos / mas nem o
magro nem eu nunca conseguimos ganhar dela por mais de vinte e um a
dezenove
e tambm quero falar e ouvir e falar e ouvir / no mais esses entrecortados dilogos com anbal ou esteban que em certas ocasies duravam dois
meses repartidos em quatro meias horas / trinta minutos por quinzena
nos recreios
grande sujeito o rolando / com seus tangos suas minas / sempre galinhando at que se politizou ou melhor dizendo ns o politizamos mas ele
ficou surpreso / se autodenominava solteiro impenitente / quem sabe se
ainda se mantm invicto / vai cair vai cair / como defini-lo / lmpen

168/183

elegante / cavaleiro arruinado / manolo dizia que era um duque em desgraa e no final todos o chamvamos de duque e quando ficava fino reclamava salada de endvia ou nada ento silvio completou seu tratamento
nobilirquico e ele tornou-se para sempre o duque de endives / e adorava
/ uma vez em el chaj foi apresentado recm-importada esposa de um
diplomata noruegus e beijou sua mo e murmurou muito elegante
sobrepondo-se ao short pudo e s alpargatas duque de endives senhora
para servi-la e claro para a pobre escandinava foi a mesma coisa que
dissesse patati-patat
o joelho continua me fodendo / deve ser outra vez a ameaa de reumatismo artroptico / mas agora vou fazer ginstica e alm de seis metros
quadrados qualquer pocilga vai parecer para mim o salo dos passos
perdidos
estou contente / no sei se d para notar mas estou contente / espero que
no se note / o da minha direita vai pensar que sou um pirata do ar / e
sou de terra mster sou de terra / que curioso os nicos piratas que se tornaram completamentre anacrnicos foram os do mar / sandokan incorporated e ramos anexos
os amigos caramba / silvio nunca mais porm rolando e manolo eu vou
poder encontrar / bem parece que o duque est no mxico / brbaro /
manolo em gotemburgo / separou-se da tita / provavelmente os dois tm
razo / a culpa no est neles / essa sacudidela que nos abalou a todos /
alm do mais o exlio achata tritura / o exlio tambm uma mquina /
tem que botar em algum a culpa de toda a frustrao de toda a angstia
e claro sacaneia-se o vizinho o prximo mais prximo / oxal graciela e
eu
tambm tenho vontade de ver o mar

169/183

afinal de contas sa melhor do que entrei / que primeira semaninha /


bem basta basta basta / sou o mesmo e sou outro / e esse outro melhor
/ gosto desse outro em que me transformei
a primavera ainda no est ao alcance da mo / a primavera no chegar
amanh mas talvez depois de amanh / reagan neurtico e turro no
poder impedir que a primavera chegue depois de amanh
o cheiro de sovaco no meu
pensamento profundo / a unidade latino-americana tem nesses momentos dois motores essenciais / reagan e o z / do rio grande at a terra
do fogo renegamos o imbecil e no pronunciamos o z / ou seja no se
rechaza o sujeito mas se rechaa o sujeito
ah mas a outra unidade a que no legal / claro que a cana une a cana
acaba com todas as fissuras / mas essa no deve ser a frmula ideal / acho
eu
tive medo s vezes para que negar / um medo cujos gemidos tinha que
engolir / no um mas muitssimos medos / medo de depreciar-me de
preferir morrer de ficar sem o mundo / sem o mundo e sem colhes / de
terminar como um trapo / horrvel ter tanto medo porm mais horrvel
ter que engolir os gemidos
e depois o medo passava e at mesmo o fato de t-lo pressentido parecia
mentira / de to corajoso e estoico que podia me sentir logo depois / e
me transfigurava tanto que podia sentir certo desdm por algum outro
que sentia medo e tinha que engolir os gemidos / algum que em algum
momento sempre e quando parasse de gemer haveria de sobrepujar esse
instante de merda e sentir-se to corajoso e estoico que at podia sentir

170/183

certo desdm por algum outro que no cepo de seu medo tinha que engolir os gemidos etc. etc.
o medo o pior abismo e s existe um capaz de se arrancar do poo agarrando os prprios cabelos e puxando para cima / pouco a pouco vai se
aprendendo a no ter medo do medo / muito pouco a pouco / e quando
voc o enfrenta o medo foge
a aeromoa das unhas rosa plido passa oferecendo fones de ouvido para
os que quiserem ver o filme / mas no uma gentileza da casa / custa
dois dlares e meio e estou pobre de solenidade e solene de pobreza d
no mesmo / e digo que pelo sim pelo no s queria dormir / por acaso
queria
a tristeza tambm temvel / no somente a prpria mas tambm a alheia / o que fazer por exemplo diante do companheiro de cela um
homo daqueles que de repente se sacode e solua em meio eterna penumbra da noite na priso / v saber o que recorda ou anseia ou lamenta
ou suporta / o soluo fraterno empapa como uma chuvinha pertinaz da
qual impossvel proteger-se / e assim que voc fica calado at os ossos
comeam a despertar uma a uma as tristezas pessoais / as tristezas so
como os galos / canta uma e em seguida as outras se inspiram / e s assim a pessoa se d conta de que a coleo enorme e que inclusive h
tristezas repetidas
o filme de pianistas / deve ser algo assim como um concurso internacional para jovens talentos / sem som no parece msica mas ginstica
/ cmulo da coincidncia os dois so pianistas / a moa prolixa e o rapaz
desalinhado / na primeira parte ela domina e trocam beijos prolixos na
segunda domina ele e trocam beijos desalinhados / e eu que h cinco
anos no beijo nem prolixo nem desalinhado / o filme claro norteamericano mas uma das jovens competidoras deve ser sovitica pois est

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sempre acompanhada de dois desses atores de linhagem escocesa que


antes faziam papel de nazistas e agora passam por russos e alm disso a
professora da jovem promessa pede asilo ostensivamente embora para
isso precise superar o enorme carinho que lhe inspira a sua prodigiosa
aluna que por influncia nefasta do marxismo-leninismo um rob de
tranas / o final disputadssimo mas a vitria do teclado ocidental
cristo / piano piano
o concerto silente me deu sono / impressionante v-los na telinha espancando o instrumento e enquanto isso voc igual a uma porta / pior
surdo o que quer ouvir
tambm est presente a ideia da morte / vem e vai / s vezes coincide
com o medo e outras no / em mim geralmente no coincidia / no fim a
dor provoca mais medo que a morte / pode-se inclusive encarar a morte
como um analgsico definitivo mas h sempre um pedacinho de
primavera que resiste
tenho vontade de ficar uma semana sentado conversando com o velho /
tenho vontade de dizer a ele tudo o que no disse nesse perodo e tambm de que fique sabendo tudo o que aprendi / pensamos diferente em
muitas coisas mas ficarmos a par das diferenas tambm uma forma de
diminu-las
durante cinco anos o mais estimulante era o sol
como ficam distantes a infncia o ginsio as lutas estudantis o trabalho
os salrios / parecem de outra pessoa / s vezes lembro at os detalhes
mas como se algum tivesse me contado em uma noite de neblina
foi em buenos aires quando beatricita ainda no tinha nascido foi em
buenos aires quando graciela me disse inimaginvel no ter voc / uma

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tarde de chuva caminhando juntinhos por lavalle para aproveitar o nico


guarda-chuva quando toda a portenhada saa dos cinemas
para mim a nica prova da existncia de deus so as pernas de graciela
na cana muitos deram para escrever versos / eu no / dei para cantar tangos sem volume caladinho caladinho em completo silncio e como saam
bem / desafinar jamais
para no delatar para nunca amolecer h que erguer uma paliada e ter
conscincia de que mesmo sofrendo mesmo temendo mesmo vomitando
a paliada deve ser defendida at a morte / obrigado john ford
quando voc est livre e apreensivo imediatamente comea a sentir dores
imaginrias e pensa que so reais / em cana diferente / quando se sente
uma dor real h que pensar que imaginria / s vezes ajuda
fora para que a solidariedade se faa sentir h que reunir milhares de
pessoas e coletas e denncias e direitos humanos / dentro em compensao a solidariedade pode ter o tamanho de meio biscoitinho
quando so os cabos e sargentos que olham pelo buraquinho para nos vigiar nunca acordo nem dou a menor bola / s acordo sobressaltado
quando depois das duas so os oficiais que espiam
suponhamos que chego ao aeroporto e no tem ningum me esperando /
nada disso / apago e conto de novo / suponhamos que l esto graciela e
o velho e beatricita
jogar uma partida de vlei ou de futebol era to importante quanto
fundar uma dinastia ou descobrir a lei da gravidade

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no total estive incomunicvel vinte dias / de l ou seja da famosa ilha se


sai louco ou se sai mais forte / eu sa mais forte mas o ruim que no
descobri o mtodo
a aeromoa passa to silenciosa entre os adormecidos que quase todos
acordam e pedem desculpas e olham dissimuladamente para a braguilha
/ em alguns pases so chamadas de portinhola mas deve ser uma derivao de portinha
a jovem que est direita do que est minha direita dorme literalmente
desconjuntada e de um bolso de sua linda jaqueta desponta a metade de
um garfo / uma delinquente comum
est comeando a se mexer / fasten seat belt / despertar unnime / a
desconjuntada trata de conjuntar-se e esconde o garfo rapidamente
meu estmago tambm se mexe mas mesmo assim estou contente / no
hora nem ocasio de vomitar / meu estmago sobe at a garganta e
cumprimentam-se como vai como vai / a despedida tambm
comovedora
por razes bvias eu no recebia visitas / ruim e no to ruim / quando
algum tem visitas angustia-se a semana inteira / tenta inutilmente no
correr o risco de alguma sano / espera essa curta espiada familiar como
se fosse uma maravilha e s vezes at / em compensao quando no h
visitas no h sano que valha / voc se sente asquerosamente s porm
mais solto ou menos preso
quanto eu tinha nove anos mais ou menos a idade de beatricita havia
duas coisas que valiam a pena nas frias / uma era sentar-se na escada de
mrmore na hora da sesta e com a bunda fresquinha fresquinha ler e ler /
assim devorei verne e salgari inteiros e at tarzan dos macacos / bom

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lembrar que na escola nossa palavra-chave era Kagoda / e outra era ir


para o stio de meus tios no litoral / dos nove aos catorze fui para l todos os veres / no havia outros moleques de modo que tinha que me
virar sozinho e ento escapulia para o rio / contei a graciela em uma carta
ou talvez em um projeto de carta ou em um pobre monlogo solitrio
que subia no bote e remava at o centro do rio ou ento ficava na
margem ou ainda deitado ao p de umas rvores enormes ou que
pareciam s-lo para mim e tudo era um descobrimento as pedras os
cogumelos os bichinhos da umidade ou um casal de ces sebentos que
em certa ocasio fornicaram ostensivamente embora eu ignorasse o sentido de sua ginstica e ficaram grudados com cara de pobres resignados /
sentia-me no prprio centro do universo e queria averiguar o segredo de
cada cortia de cada centopeia de cada bem-te-vi e no me mexia porque
sabia que somente ficando imvel teria alguma chance de descobrir a
verdadeira intimidade daquela minisselva / e curiosamente nunca me
ocorreu gritar Kagoda porque sabia que o ultimato tarzanista no tinha
nenhuma validade ali ningum poderia ouvi-lo nem seria afetado por seu
sentido intimidatrio / e nessa realidade apareceu certa manh bem cedinho um ser estranho embora tenha ficado sabendo depois que ele podia
ser parte legtima da paisagem com muito mais propriedade que eu /
pois era um menino mas descalo e andrajoso / a cara e as pernas e os
braos tinham uma crosta que me pareceu csmica / assustei-me um
pouco porque no meio de meus devaneios no tinha percebido sua
aproximao ou talvez tenha pensado que o rumor entre as plantas era
causado pelos cachorros vagabundos de sempre e quando me assustei ele
riu um pouquinho no muito riu como a contragosto e sentou na minha
frente sobre um tronco / eu disse ol e ele emitiu um soprinho / s vezes
mexia a cabea ou as mos para espantar as moscas / perguntei voc daqui e ele emitiu outro sopro / no sabia o que fazer ou que iniciativa tomar e ento tive a ideia de pegar uma pedrinha e fazendo um enorme esforo o mximo que podia atirei-a na direo do rio e ela afundou logo
ali perto do bote / ele ento sorriu de novo e emitiu outro soprinho e

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levantou e pegou outra pedrinha e quase sem esforo colocando o brao


um pouco de lado jogou na direo do rio e aquele seixo insignificante
no s chegou a uma distncia descomunal mas alm disso foi dando
saltos sobre a gua quase parada e ento senti que meu peito se enchia de
admirao e disse que brbaro e aplaudi e ri e no sei quantas coisas mais
disse para que ele percebesse o quanto tinha me deslumbrado e para culminar disse voc um campeo / e ento ele me olhou dessa vez sem assoprar e falou pela primeira vez / no sou um campeo porque a nica
coisa que sei fazer
com esse fundo de lembrana silvestre e infncia remota creio que agora
a modorra me pega / vou contar miliquinhos e ver se durmo
de modo que outra vez fasten seat belt / est bem est bem / devo ter dormido umas duas horas / o ruim que sonhei novamente com emilio

Beatriz (Os aeroportos)

O aeroporto um lugar a que chegam muitos txis e s vezes est cheio


de estrangeiros e revistas. Nos aeroportos faz tanto frio que sempre instalam uma farmcia para vender remdio para as pessoas com
propenso. Eu tenho propenso desde pequenininha. Nos aeroportos as
pessoas bocejam quase tanto quanto nas escolas. Nos aeroportos as malas
sempre pesam vinte quilos de forma que as balanas poderiam ser
poupadas. Nos aeroportos no tem barata. Na minha casa tem porque
no aeroporto. Os jogadores de futebol e os presidentes so sempre fotografados nos aeroportos e saem muito bem penteados, mas os toureiros
quase nunca e muito menos os touros. Deve ser porque os touros preferem viajar de trem. Eu tambm gosto muito. As pessoas que chegam aos
aeroportos so muito abraadoras. Quando algum lava as mos no aeroporto elas ficam bem mais limpas mas enrugadinhas. Tenho uma
amiguinha que rouba papel higinico nos aeroportos porque diz que
mais macio. A alfndega e os carrinhos de bagagem so as coisas mais
bonitas que o aeroporto tem. Na alfndega preciso abrir as malas e
fechar a boca. As aeromoas andam juntas para no se perderem. As
aeromoas so muitssimo mais bonitas do que as professoras. Os maridos das aeromoas se chamam pilotos. Quando um passageiro chega
tarde ao aeroporto, tem um policial que pega seu passaporte e pe um
carimbo que diz Essa criana chegou tarde. Entre as coisas que s vezes
chegam ao aeroporto est por exemplo meu pai. Os passageiros que
chegam sempre trazem presentes para suas filhinhas queridas mas meu
pai que vai chegar amanh no vai trazer presente nenhum porque esteve
preso poltico cinco anos e eu sou muito compreensiva. Quando o

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aeroporto est de folga, muito mais fcil pegar um txi para o aeroporto. Tem alguns aeroportos que alm de txis tm avies. Quando os
txis fazem greve os avies no podem aterrissar. Os txis so a parte
mais importante do aeroporto.

O outro (Por enquanto improvisar)

A esta altura dos acontecimentos, Rolando Asuero para de questionar-se.


Fabricou uma resposta aos trancos e barrancos e alm do mais est sinceramente convencido. Agora s resta ir ao aeroporto e enfrentar passado, presente e futuro, tudo junto. Provavelmente Graciela tem razo e
o melhor improvisar. Improvisao sobre um mesmo tema, claro.
Mas o que fazer quando Santiago chegar e abra-las, ela e Beatricita,
como suas razes e desrazes de viver. O que fazer. Onde pr as mos.
At para onde olhar. O que fazer quando Santiago abraar Rafael e ele
acariciar um pouco a sua nuca porque um gesto prprio dessa gerao
em retirada. E sobretudo o que fazer, caralho, quando ele o abraar e disser que sorte, duque, que voc est aqui, vim pensando em voc no
avio, temos que comear a juntar todo o cl, o que acha? E que cara vai
fazer Graciela quando ele a encarar por sobre o ombro de Santiago, na
metade do abrao. No entanto, os piores momentos vo acontecer depois, quando Graciela finalmente lhe contar e o recm-chegado comear
a reconstruir a ceninha do aeroporto e a se achar ridculo a mais no
poder e a se menosprezar e a nos menosprezar porque todos sabamos do
enredo menos ele e a refazer os beijos que deu em Graciela na minha
frente e o abrao que me deu na frente de Graciela e vai ser muito duro
remontar esse passadozinho que fica logo ali, a umas poucas horas.
Como convenc-lo de que tudo foi acontecendo sozinho, de que ningum premeditou nada, de que aquele velho companheirismo dos sete
foi de certa forma o caldo de cultura dessa aproximao e definitivamente desse amor. Porque amor, Santiago, e no uma aventurazinha.
Isso o bom e o fodido, pensa Rolando, o que afinal nos justifica

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humanamente, a mim e a Graciela, mas tambm transforma Santiago


em perdedor obrigatrio. Obrigatrio? Uma pergunta lgica se vai se
dar por vencido ou vai lutar, se vai aceitar os fatos evidentssimos ou se,
jogando a cartada inteligente da serenidade, dir a Graciela no vamos
resolver nada agora, lembre que acabei de chegar, recm-saidinho da
priso, e que preciso me acostumar no somente a essa nova situao mas
ao mundo em geral, melhor a gente conversar, acho que ainda no os
trs, mas ns dois que vivemos tantas histrias a quatro mos, por que
vamos decidir tudo agora se temos todo o tempo do mundo, antes de
decidir, deixe-me desfrutar um pouco de Beatricita, deixe-me falar
longamente com ela, e tambm com Rolando, mas depois, por enquanto
tudo me parece incrvel e a cada minuto tenho a impresso de que vou
acordar de outra cochilada no avio. Claro, essa uma variante bastante
verossmil, sobretudo conhecendo Santiago, que quando se prope a no
perder a calma geralmente consegue, e temos que considerar que aqui se
trata de no perder nem a calma, nem a mulher. Rolando pensa tambm
que isso o que faria se fosse Santiago. Por enquanto, remexe nas suas
e levanta as sobrancelhas. Queria que tudo chegasse o quanto antes a um
desenlace. Na realidade, a deciso ltima cabe a Graciela, j que Santiago, por um lado, e ele, por outro, querem ficar com ela, dormir com
ela, viver com ela. E talvez resida a a reduzida vantagem que ele, Rolando Asuero, tem sobre Santiago, porque lhe consta que na semntica dos
corpos Graciela e ele se entendem s mil maravilhas e que, alm do mais,
nos ltimos tempos ela lhe deu repetidas vezes uma segurana terna,
uma segurana quase feroz de que vai ficar com ele e no com Santiago.
Mas a vantagem dele pode se chamar Beatricita, porque se, diante dos
acontecimentos e das decises, Santiago quiser lev-la consigo, j no
to certo que Graciela, que como me uma leoa, se conforme sem mais
nem menos a perder a menina, que alm de tudo est evidentemente encantada com um pai que passou cinco anos na priso e que uma grande
novidade para ela. Bem, diz Rolando Asuero consigo mesmo enquanto
se encaminha para o aeroporto, essa , por acaso, uma situao, no vou

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dizer ideal, mas pelo menos razovel? Que benefcio profundo Santiago
pode tirar de uma unio to forada, onde a menina se transforme meramente em motivo de chantagem? Com certeza no gosta dessa palavra,
reconhece que uma falta de respeito com Santiago e decide
mentalmente apag-la de suas colocaes. Mas o ser humano to imprevisvel. Pode acontecer tambm que Santiago prefira ter Graciela em
uma relao deteriorada a ter Graciela na cama de outro, embora esse
outro seja um amigo da alma ou justamente por causa desse detalhe no
to descartvel. Bem, aqui est enfim o aeroporto, e Rolando desce do
nibus ruminando tanto que por pouco no perde um degrau.

Extramuros (Arrivals Arrives Chegadas)

estranho me sinto estranho pisando esse solo / menos mal que chove /
com a chuva tudo se equivale e o guarda-chuva se transforma no denominador comum da humanidade / pelo menos da humanidade protegida
sinto-me estranho mas j vai passar / no se morre de estranheza, mas
pode-se morrer de saudade15 / o que acontece que coisas demais se juntaram / a notcia / a despedida dos meus l / os trmites fodidos / a
careta jactanciosa do penltimo oficial / carrasco / a partida sem ningum para mim / a viagem a longa viagem com sonhos e ardis e projetos
/ bem e as comidas / como no me sentir desconcertado depois de cinco
anos daquele guisado infame
o funcionrio que examina longamente o documento / a verdade que
quatro minutos podem ser uma eternidade / por favor poderia tirar a
boina e cuidadosa comparao com a foto / sempre srio mas muito
vontade de modo que mais uma comparada / sim mais uma / e eu tambm muito vontade / s ento um sorriso e o rosto fechado se transforma em cara de indiozinho bacana / boa sorte amigo / ele me disse boa
sorte amigo e agora esperar as malas / a minha a pobre minha vir ou
no vir / isso vai demorar / e os que esperam / o monto de cabeas atrs das vidraas / se pudesse v-los encontr-los
mas l esto / so eles claro que so eles / uruguaios ptria ou morte /
trabalhadores do mundo inteiro uni-vos / eureca / salve a celeste / fiat

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lux / nosce te ipsum / ptria ou morte venceremos / viva os que lutam /


caralho que alegria
graciela e o velho e essa coisinha maravilhosa que deve ser a minha menina / graciela linda / e pensar que essa a minha mulher / beatricita que
festa nos espera / e esse outro que levanta os braos / mas o duque /
mas o duque de endives em pessoa
Palma de Mallorca
outubro de 1980 a outubro de 1981
15 Em espanhol extraar significa tanto estranhar, com o sentido que tem em portugus,
quanto sentir falta, sentir saudade de algum ou algo. Donde o jogo de palavras entre
no se morre de extraeza, mas pode-se morrer de extraar, que no faz sentido em
portugus. (N. da T.)

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