Didascálicon de Hugo de São Victor

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O Didasclicon de Hugo de So Vtor Regras de leitura enquanto

normas de vida

The Disdacalicon of Hugh of St. Victor Rules of reading as norms of


life
Maria Simone Marinho NOGUEIRA1
Resumo: No presente texto procura-se fazer uma reflexo sobre algumas
normas estabelecidas em Da arte de ler, de Hugo de So Vtor, objetivando
mostrar que estas ultrapassam a ideia de uma mera normatividade e se
revestem, por sua vez, de uma verdadeira disciplina moral.
Abstract: In the present text looks to make a reflection about some
established norms in the Didascalicon of Hugh of St. Victor, seeking to show
that these overwhelm the idea of a simple normativity and, in turn, recover
themselves as a true moral discipline
Palavras-chave: Leitura Regras Mtodo Disciplina moral.
Keywords: Reading Rules Method Moral Discipline.
RECEBIDO: 12.02.2013
ACEITO: 22.03.2013

***
O sculo XII um momento extremamente representativo de uma cultura
intelectual que se desenvolve, simultaneamente, em dois tipos de Escola: a
1

Professora de Filosofia Medieval da Universidade Estadual da Paraba. Professora


Colaboradora do Programa de Ps-Graduao (Mestrado) em Filosofia da Universidade
Federal da Paraba. Coordenadora e Pesquisadora do Principium Ncleo de Estudo e
Pesquisa em Filosofia Medieval/CNPq: sites.uepb.edu.br/principium E-mail:
[email protected]

TRRES, Moiss Romanazzi (org.). Mirabilia 16 (2013/1)


A Filosofia Monstica e Escolstica na Idade Mdia
La Filosofa Monstica y Escolstica en la Edad Media
Monastic and Scholastic Philosophy in the Middle Ages
Jan-Jun 2013/ISSN 1676-5818

Escola Monstica, que se guiava por um ideal de contemplao, percorrido


em silncio e no afastamento das cidades; e a Escola Catedral que se fixou
no centro das cidades, em torno das catedrais e que, apesar de no desmerecer
o ideal contemplativo, inclua nas suas reflexes os diversos tipos de saberes
como as artes liberais (divididas entre o trvio [gramtica, retrica e dialtica
disciplinas formais] e o quadrvio [aritmtica, geometria, astronomia e msica
disciplinas reais]), consciente de que o estudo dessas era um caminho para a
verdadeira sabedoria.2
Nesse segundo tipo, destaca-se a Escola de So Vtor, instalada em Paris, que
teve em Hugo seu grande mestre, autor de uma vasta obra, da qual se
sobressai o Didasclicon Da arte de ler, um verdadeiro currculo dos estudos
medievais. Composto de seis livros, divididos em duas partes, conforme
escreve o prprio Hugo no Prefcio, a primeira d instrues ao leitor sobre as
artes e a segunda sobre os livros divinos, ambas procuram prescrever aos
leitores uma disciplina de vida.
apoiando-se nessa ideia que no texto vitorino apresentada a regra da
humildade3 como pressuposto de todo saber. Neste sentido, no presente
artigo, procura-se fazer uma reflexo sobre algumas normas estabelecidas em
Da arte de ler, objetivando mostrar que essas ultrapassam a ideia de uma mera
normatividade e se revestem, por sua vez, de uma verdadeira disciplina moral.
Para tanto, focaremos a nossa anlise no Livro III do texto em epgrafe,
levantando algumas regras ali expostas, procurando, ao mesmo tempo,
relacion-las humildade, que, apesar de possuir muitos ensinamentos, podem
ser destacados trs, que, segundo Hugo, importam mais de perto ao estudante.
So eles: 1) primeiro, no reputar de pouco valor nenhuma cincia e nenhum
escrito; 2) segundo, no ter vergonha de aprender de qualquer um, 3) terceiro,
no desprezar os outros depois de ter alcanado o saber.4
2

Este texto uma verso modificada de um trabalho apresentado no I Encontro Regional


ABREM Centro-Oeste, na cidade de Cuiab.
3
importante esclarecer que Hugo de So Vtor no utiliza o termo regra para expor os
preceitos elencados em Da arte de ler, Livro III. A opo nossa e, portanto, sempre que
citarmos o que consideramos, na nossa interpretao, ser uma regra da correta conduo da
leitura (como a ordenao, a diviso, a moderao e a sntese), utilizaremos esses preceitos
entre aspas. Por exemplo: regra da humildade, regra da sntese e assim sucessivamente.
4
(...) primum, ut nullam scientiam, nullam scripturam vilem teneat, secundum, ut a
nemine discere erubescat, tertium, ut cum scientiam adeptus fuerit, ceteros non
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No entanto, antes de nos determos no Livro III, objeto de nosso estudo,


vejamos, de uma forma geral e sucinta, o Da arte de ler do Mestre Hugo. A
obra, como j dissemos, est dividida em seis livros que, por sua vez, se
subdividem em duas partes. A primeira composta pelos trs primeiros livros
que versam sobre as coisas humanas que podem ser conhecidas atravs das
obras literrias; a segunda parte composta pelos trs ltimos livros que
discorrem sobre as coisas divinas que podemos conhecer atravs da Escritura.
Em ambas as partes o fio condutor o da correta leitura, ou, como escreve o
Mestre de So Vtor no Prefcio: Existem principalmente duas coisas por meio
das quais uma pessoa adquire conhecimentos, ou seja, a leitura e a meditao.
Destas, a leitura detm o primeiro lugar na instruo, e dela se ocupa este
livro, dando as regras do ler.5
Posto isso, o Livro I abre-se com a seguinte afirmao: De todas as coisas a
serem buscadas, a primeira a Sapincia, na qual reside a forma do bem
perfeito6. Ora, essa Sapientia nada mais do que a Mente Divina ou a Forma
Perfeita que forma todas as coisas, inclusive o homem que, olhando para si
mesmo, encontra os vestgios daquela Sapientia atravs de um processo de
iluminao.7

contemnat, p.154-155 (as pginas pares correspondem ao texto em latim, as mpares,


traduo em lngua portuguesa. Estamos utilizando a seguinte edio brasileira: HUGO
DE SO VTOR. Didasclicon Da arte de ler. Traduo Antonio Marchionni. Petrpolis:
Vozes, 2001. O texto latino dessa traduo se pauta, por sua vez, na seguinte edio crtica:
Edio do Migne, Hugonis de Sancto Victore Canonici Regularis S. Victoris Parisiensis Tum pietate
Tum doctrina insignis Opera Omnia tribus tomis digesta, accurante J.-P. Migne, Parisiis, apud
Garnier Frates, Editores et J.-P. Migne successores, 1879. Vol. 175, 176, 177. Doravante,
toda referncia a esse texto seguir o seguinte modelo: Da arte de ler, III, Cap. 1, p.131-132
(respectivamente: subttulo da obra, nmero do livro [j que a obra dividida em 6 livros],
captulo do livro e pgina.
5
Duae praecipue res sunt quibus quisque ad scientiam instruitur, videlicet lectio et
meditatio, e quibus lectio priorem in doctrina obtinet locum, et de hac tractat liber iste
dando praecepta legendi. Da arte de ler, Prefcio, p. 44-45.
6
Omnium expetendorum prima est sapientia, in qua perfecti boni forma consistit. Da
arte de ler, I, Cap. 1, p. 46-47.
7
Nosso texto, como j dissemos, limitar-se- s regras de leitura na sua relao com as
regras da moral estabelecidas no Livro III. Portanto, no abordaremos aqui a reflexo
que feita sobre a Sapientia.
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Este processo, por sua vez, implica trs aes por parte do homem: ler,
refletir e contemplar, como veremos mais adiante quando analisarmos
algumas regras do texto do vitorino. No momento, voltemos ao Livro I a fim
de resumirmos o seu contedo. Logo depois de colocar a Sapientia como
indispensvel para o autoconhecimento humano, Hugo de So Vtor d uma
primeira definio da filosofia como sendo a procura da Sapientia.8
Coloca, assim, nesse Livro, as bases da sua filosofia, expondo, ainda, as
divises e subdivises da filosofia, incluindo a uma novidade para a poca: as
artes mecnicas, que sero o objeto de estudo, juntamente com as artes do
quadrvio, do Livro II. Por fim, os Livros IV, V e VI abordam,
respectivamente, a leitura dos livros sagrados, a interpretao dessa leitura e os
mtodos de interpretao da Escritura. Feita, ento, essa breve exposio,
passemos ao texto do Livro III e sua normatividade.
O Livro III est dividido em 19 captulos que discorrem desde as divises da
filosofia, passando pelas suas funes e pelos seus principais representantes,
chegando at as normas sobre o que necessrio a um correto estudo, como a
ordem da leitura, o modo correto de ler, a importncia da memria, a
dedicao pesquisa, a anlise minuciosa, por fim, at o final desse livro,
Hugo aborda, ainda, questes como a disciplina moral, a humildade, a
quietao, a sobriedade, concluindo com uma reflexo sobre o exlio.
Desse modo, logo depois de enumerar as divises da filosofia, ele discorre
sobre as artes que devem ser lidas inicialmente, destacando, como natural
para a sua poca, as disciplinas do trvio e do quadrvio. Chega mesmo a
mostr-las como propeduticas para o pleno conhecimento da verdade
filosfica. No entanto, escreve Hugo, como os estudantes do seu tempo (e
pensamos que o mesmo pode ser dito, infelizmente, da muitos dos nossos
8

Pauta-se, para essa definio, em Pitgoras (cf. Da arte de ler, I, Cap. 1, p. 53-54). Oferecenos, ainda, mais algumas definies da filosofia, como podemos ler, por exemplo, em Da
arte de ler, II, Cap. 1, p. 84-85: (...) Philosophia est meditatio mortis, quod magis convenit
Christianis, qui saeculi ambitione calcata, conversatione disciplinali, similitudine futurae
patriae vivunt. ([...] A filosofia a meditao da morte, coisa que convm, sobretudo, aos
cristos, os quais, desprezada a ambio terrena, vivem num estilo de vida disciplinado,
semelhana da ptria futura). Tal definio justifica o que um dos seus estudiosos escreve
sobre o livro: Dependendo do ngulo de anlise, visto como um livro ora filosfico, ora
mstico, ora tico, ora antropolgico, ora pedaggico. MARCHIONNI, Antonio.
Introduo traduo Da arte de ler. Petrpolis: Vozes, 2001, p. 27.
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estudantes) no querem ou no sabem manter um mtodo adequado de


aprendizagem e nem todos possuem discernimento para compreender o que
mais proveitoso nos estudos, ele indica os escritos que lhe parecem mais teis,
bem como o modo como os estudantes podero melhor aprender, no sem
antes fazer a seguinte advertncia: mal fazer o bem com negligncia, mas
pior gastar muitas energias inutilmente.9
Depois disso, o professor da Escola de So Vtor enumera dois tipos de
escritos: os que se chamam propriamente artes e os que so complementos
das artes. Na primeira categoria esto aqueles cujos contedos fazem parte de
alguma diviso da filosofia (como a gramtica e a dialtica, por exemplo); na
segunda categoria esto os escritos que se relacionam com a filosofia (como as
tragdias e a comdias, por exemplo). Estes ltimos escritos, conforme Hugo,
quando tm uma exposio clara, preparam a via para a filosofia e, assim,
pode-se afirmar que (...) as artes, sem seus complementos, podem levar o
leitor perfeio, mas os complementos, sem as artes, no conseguem
conferir nenhum grau de perfeio.10
No entanto, ele demonstra que um bom mestre de filosofia deve possuir, alm
do rigor, a sensibilidade e, desse modo, depois de afirmar que se deve
procurar ler os escritos onde se encontram os fundamentos do saber, ou seja,
as artes e no os seus complementos, acrescenta, entretanto, que (...)
sobrando tempo, leiam-se tambm os outros escritos, pois s vezes as coisas
srias, quando misturadas com as jocosas, agradam mais, e a raridade torna
precioso o bom.11
Ora, a partir desse ponto comea a se evidenciar que as regras do texto
vitorino esto inter-relacionadas a uma certa disciplina moral, posto que no
so apresentadas numa espcie de manual normativo em que apenas so
enumeradas e devem ser cumpridas sem que se reflita sobre o seu real valor
para a construo de um ser humano, minimamente, ntegro e tico. Neste
sentido, em um certo passo do seu texto, quando se refere ao ensino, Hugo
9

Malum est bonum negligenter agere, peius est in vanum labores multos expendere. Da
arte de ler, III, Cap. 3, p. 138-139.
10
(...) artes sine appendiciis suis perfectum facere lectorem possunt, illa sine artibus nihil
perfectionis conferre valent,(...). Da arte de ler, III, Cap. IV, p. 140-141.
11
(...) si vacat, legantur, quia aliquando plus delectare solent seriis admixta ludicra, et
raritas pretiosum facit bonum. Da arte de ler, III, Cap. IV, p. 142-143.
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critica aqueles professores que em vez de atribuir a cada arte aquilo que lhe
prprio, misturam todas elas, acumulando coisas suprfluas, o que s
demonstra que esto muito mais preocupados em ostentar a sua prpria
cincia que em ensinar corretamente aos seus alunos, ou seja, quando o
professor repassa aos seus alunos muitas informaes acessrias, sem ir
diretamente ao cerne da questo ou sem atribuir a cada disciplina o que lhe
devido, est preocupado apenas consigo e com a sua falsa imagem de
sbio e no com o seu aluno e com aquilo que deve ser ensinado. Ele chega
mesmo a chamar de perverso esse costume, pois, nas suas prprias palavras,
quanto mais voc acumula as coisas suprfluas, tanto menos poder
compreender e reter as teis.12
Logo, se em meio ao que importante h muita superficialidade e o professor
mistura o importante com o suprfluo apenas para mostrar que domina
muitas artes, ento, os alunos tero muito mais dificuldades para compreender
e reter o que realmente interessa. Talvez isso marque uma diferena,
contempornea, importante, entre ser professor e ser educador e as
consequncias dessa diferena nos permite afirmar, como Hugo j fizera em
sua poca, que encontramos muitos estudantes, mas poucos sbios.
Desta forma, e procurando no somente ensinar, mas tambm educar, o
Mestre Hugo estabelece trs coisas necessrias ao estudante, que esto
relacionadas s regras que so colocadas ao longo do Livro III e tambm
regra da humildade. Aquelas trs coisas so:
1) as qualidades naturais, 2) o exerccio e 3) a disciplina. As qualidades naturais,
para que entenda facilmente aquilo que ouve e memorize firmemente aquilo
que entendeu. O exerccio, para que eduque as qualidades naturais mediante o
trabalho e a persistncia. A disciplina, para que, vivendo em modo louvvel,
harmonize a conduta com o saber.13

12

Eis s citao completa: Attende quam perversa sit haec consuetudo, cum profecto
quanto magis superflua aggregaveris, tanto minus ea quae utilia sunt capere possis vel
retinere. Da arte de ler, III, Cap. V, p. 144-145.
13
(...) natura, exercitium, disciplina. In natura consideratur ut facile audita percipiat et
percepta firmiter retineat; in exercitio, ut labore et sedulitate naturalem sensum excolat; in
disciplina, ut laudabiliter vivens mores cum scientia componat. Da arte de ler, III, Cap. VI,
p. 146-147.
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Percebemos, portanto, sobretudo no que ele denomina por disciplina, que o


saber deve estar harmonizado com a conduta humana e, assim, quase todas as
regras que aparecem como necessrias ao exerccio do aprender revestem-se
de uma verdadeira disciplina moral, cujo incio, como o prprio Hugo afirma,
a humildade.
Ora, se esta aparece explicitamente na reflexo que feita sobre a disciplina
moral, aparece, tambm, s que de forma implcita, no que diz respeito s
qualidades naturais, ao exerccio e disciplina, que em vrios passos do texto
no tem o sentido de disciplina moral, mas apenas de constncia ou de
comportamento metdico. Reflitamos, assim, sobre algumas regras que
aparecem nas trs coisas necessrias aos estudantes.
Das qualidades naturais ou do engenho natural fazem parte a inteligncia e a
memria e as duas esto de tal forma unidas que, se uma faltar, a outra
sozinha no conduz ningum a lado algum. Por sua vez, o exerccio dessa
fora natural da alma (o engenho) acontece atravs de duas atividades: a leitura
e a meditao.
Enquanto esta ltima no est presa a nenhuma regra, j que fruto da
liberdade e fim da aprendizagem14, na leitura preciso observar a regra da
ordenao que, dentre outras coisas, diz que o texto possui trs nveis de
exposio que devem ser observados, logo, a leitura correta (...) consiste em
inquirir primeiro a frase, depois o sentido, depois o pensamento (...), j que a
frase a organizao apropriada das palavras (...). O sentido o significado
fcil e acessvel que a frase apresenta primeira vista (...) e o pensamento um
entendimento mais profundo(...) que s se descobre por meio da
interpretao.

14

Como podemos ler, por exemplo, em Da arte de ler, III, Cap. 10, p. 150-151: Meditatio
principium sumit a lectione, nullis tamen stringitur regulis aut praeceptis lectionis.
Delectatur enim quodam aperto decurrere spatio, ubi liberam contemplandae veritati aciem
affigat, et nunc has, nunc illas rerum causas perstringere, nunc autem profunda quaeque
penetrare, nihil anceps, nihil obscurum relinquere. (A meditao comea com a leitura,
mas no se amarra a nenhuma regra ou prescrio da leitura. Ela se deleita em correr pela
campina aberta, onde fixa o livre olhar para a verdade a ser contemplada, e deleita-se em
examinar ora estas ora aquelas causas, em penetrar as coisas profundas, em deixar nada
ambguo, nada obscuro).
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Alm disso, preciso atentar, tambm, para a regra da diviso, a qual


resumida por Hugo do seguinte modo: (...) investigamos com a razo, qual
prprio dividir, quando descemos dos universais para os particulares
dividindo e investigando a natureza de cada coisa15. De toda forma, dentre as
normas colocadas para as atividades que exercitam o nosso engenho natural
est o que poderamos chamar de regra da moderao ou do bom senso e
que no podemos deixar de citar: O engenho nasce da natureza, melhora
com o uso, se idiotiza com o trabalho desmedido, se agua com o exerccio
moderado.16
Ora, o pensador medieval est a nos dizer que a nossa capacidade para
compreenso das coisas ou para o saber terico ou, ainda, a nossa inteligncia
e a nossa memria precisam ser estimuladas com atividades que advm da
leitura e da meditao, como j vimos. No entanto, a noo de justa medida
em tudo que fazemos e, portanto, a ponderao dos nossos atos
fundamental no s na nossa conduta de vida, mas tambm no
aperfeioamento da nossa capacidade de entender e de memorizar. Por isso, o
exerccio melhora a fora natural que temos para conhecer, mas feito de
forma desmedida apenas nos idiotiza.
Assim, se preciso saber dividir (no que se refere leitura) preciso saber
sintetizar (no que se refere memria). Logo, aqui vlida a regra da
sntese, ou seja, (...) aquilo que dividimos aprendendo, devemos sintetiz-lo
para ser confiado memria. (...) Procurar e centrar isto resumir17. No se
trata apenas de compendiar o que lido, o resumo, para Hugo, no apenas
algumas pginas de texto abreviadas, remete antes para um conceito basilar
em que toda a argumentao est fundamentada.
Resumir, portanto, ser capaz de extrair do texto o que lhe d sustentao e
isso deve ser no s guardado na memria como revisitado frequentemente
para que no se perca. Esse exerccio da memria narrado por ele de uma
forma que une na lngua latina o saber e o sabor (sapere e sapore), cujo jogo
lingustico no possvel ser feito no portugus do Brasil e mesmo o Vitorino
15

Da arte de ler, III, Cap. 8 e 9, passim.


Ingenium a natura proficiscitur, usu iuvatur, immoderato labore retunditur, et temperato
acuitur exercitio. Da arte de ler, III, Cap. 7, p. 146-147.
17
(...) quae discendo divisimus, commendanda memoriae colligamus. (...) Hoc quaerere et
considerare colligere est. Da arte de ler, III, Cap. 11, p. 152-153.
16

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no usando os dois termos latinos supracitados, a referncia quela relao


clara, pois ele diz que o resumo deve ser revisitado e, do ventre da memria,
ser chamado de volta para o paladar (...).18
Este gosto pelo saber, por sua vez, de nada adianta se no soubermos como
conduzi-lo, isto , no basta querer aprender, preciso saber como aprender e
esse como aparece no texto vitorino no apenas como um mtodo, mas
tambm como uma conduta: a moderao na leitura, o entendimento do que
importante no resumo, a preocupao em educar o aluno e no somente em
demonstrar muitos saberes, tudo isso compe com rigor e sensibilidade uma
verdadeira conduta humana, cuja regra da humildade j pode ser percebida
na norma de no multiplicarmos as explicaes no pertinentes ao que est
sendo estudado, o que se reflete tambm no tratamento que Hugo faz do uso
da memria quando diz: Afirmo que a memria do homem fraca e gosta de
brevidade, e se ela se dissipa em muitas coisas, fica menor em cada uma
delas.
Ou ainda, para encerrarmos esta reflexo sobre a memria: Por isso,
aconselho a voc, estudante, a no alegrar-se excessivamente por ler muitas
coisas, mas por entender muitas coisas, e no somente entender, mas poder
memorizar. Do contrrio, no adianta ler muito nem entender muito.19
Passemos agora, com o intuito de concluir o nosso texto, regra da
humildade. Esta, no livro de Hugo, antecedida por uma pequena reflexo
sobre a disciplina moral. Ele diz que um certo sbio, ao responder a pergunta
que lhe foi feita sobre o modo e a forma de aprender, falou: Mente humilde
(...), nsia de querer, vida quieta, considerao silenciosa, pobreza, terra
estrangeira, isto costuma descortinar a muitos coisas obscuras da leitura.20
No deixa de ser curioso o fato de a resposta do sbio elencar, exatamente, os
seis ltimos aspectos que sero refletidos pelo pensador medieval no restante
18

(...) et de ventre memoriae ad palatum revocare necesse est (...). Da arte de ler, III, Cap.
11, p. 152-153.
19
Respectivamente: Hoc idcirco dico, quoniam memoria hominis hebes est et brevitate
gaudet, et, si in multa dividitur, fit minor in singulis. / Unde rogo te, o lector, ne nimium
laeteris si multa legeris, sed si multa intellexeris nec tantum intellexeris sed retinere potueris.
Alioquin nec legere multum prodest, nec intelligere. Da arte de ler, III, Cap. 11, p. 152-153.
20
Mens (...) humilis, studium quaerendi, vita quieta, scrutinium tacitum, paupertas, terra
aliena, haec reserare solent multis obscura legendi. Da arte de ler, III, Cap. 11, p. 154-155.
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do Livro III De a arte de ler: a humildade (mente humilde), a dedicao


pesquisa (nsia de querer), a quietao (vida quieta), a anlise minuciosa
(considerao silenciosa), a sobriedade (pobreza) e o exlio (terra estrangeira).
Nesses ltimos aspectos, texto, normatividade e disciplina moral se tocam e se
complementam. Talvez, por isso, o Mestre de So Vtor no s exponha a
disciplina moral antes dos aspectos referenciados logo acima, como afirma,
numa espcie de comentrio resposta do sbio, que este acrescentou aos
preceitos do aprender os preceitos do viver, (...) para que o estudante
conhea seja o modo de viver seja o modo de aprender.21
A unio do modo de viver com a teoria do estudo s possvel quando
pautamos a nossa conduta na humildade, assim, os trs ensinamentos acerca
da humildade que colocamos no incio do nosso texto podem ser retomados,
agora, sob uma outra formulao. Dessa forma, reitera Hugo:
1) e 2) O estudante prudente, portanto, ouve todos com prazer, l tudo, no
despreza escrito algum, pessoa alguma, doutrina alguma. Pede
indiferentemente de todos aquilo que v estar-lhe faltando, nem leva em conta
quanto sabe, mas quanto ignora.
3) Igualmente, lhe convm que, quando comear a conhecer alguma coisa, no
despreze os outros. Este vcio de vaidade ocorre a alguns, porque olham com
demasiada diligncia o seu prprio conhecimento e, parecendo-lhes de ter-se
tornado alguma coisa, pensam que os outros no so como eles nem poderiam
nunca s-lo, sem conhec-los.22

A humildade, portanto, o princpio de toda a normatividade do texto


vitorino, pois Hugo ainda a relaciona aos outros aspectos ligados ao exerccio,
como a dedicao pesquisa, a anlise minuciosa e a sobriedade; e aos
aspectos ligados disciplina, como a quietao, a sobriedade e o exlio. No
21

(...) ut et modum vitae suae et studii sui rationem lector agnoscat. Da arte de ler, III,
Cap. 12, p. 154-155.
22
Respectivamente: Prudens igitur lector omnes libenter audit, omnia legit, non
scripturam, non personam, non doctrina spernit. Indifferenter ab omnibus quod sibi deesse
videt quaerit, nec quantum sciat, sed quantum ignoret, considerat; Similiter tibi quoque
expedit, ut, cum tu aliquid sapere coeperis, ceteros non contemnas. Hoc autem tumoris
vitium hinc quibusdam accidit, quod suam scientiam nimis diligenter inspiciunt, et cum sibi
aliquid esse visi fuerint, alios, quos non noverunt, tales nec esse nec potuisse fieri putant.
Da arte de ler, III, Cap. 13, p. 156-157 e 158-159.
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ao acaso que pensamos ser este ltimo o coroamento da regra da


humildade, pois o que significa exilar-se para aquele que filosofa seno um
crescente desapego s coisas concretas, muitas vezes suprfluas, e um
mergulho no conhecimento das coisas virtuosas, cujo aprendizado deve levar
libertao do homem.
Por isso, afirma Hugo no incio do Cap. 19 que versa sobre o exlio: Em
ltimo lugar pusemos a terra estrangeira, porque ela tambm exercita o
homem. O mundo inteiro um exlio para quem faz filosofia (...).23
Viver exilado, essa a condio do espanto filosfico e, portanto, condio de
todo filosofar. Mas no se trata de se afastar do mundo e das pessoas que nele
esto; trata-se antes de ver o mundo e as pessoas com olhar renovado. Tratase, tambm, de um desapego que nada tem a ver com desprezo ou arrogncia,
mas com humildade, e que s aquele que procura a verdadeira Sapientia sabe
realmente atribuir quela o seu verdadeiro valor. Por isso, no podemos deixar
de concluir nosso texto com as palavras finais de Hugo, do ltimo captulo do
Livro III Da arte de ler.
Nessas ltimas palavras a humildade e o exlio misturam-se liberdade e
ultrapassam no s as normas das regras de leitura, mas tambm a
normatividade da conduta humana, ou seja, tanto o Mestre da Escola
vitorina quanto o homem de f que fala aos seus alunos e, consequentemente,
nos fala, pois ele quer preparar o caminho para o estudo das Escrituras
Sagradas, mesmo sem fazer, em todo seu texto, recurso algum autoridade
dessas mesmas Escrituras. Ouamos, ento, para concluir, o que nos diz o
Mestre Hugo sobre a humildade, o exlio e a liberdade, coroamento das
regras at ento expostas:
um grande incio da virtude para o nimo exercitado aprender devagar a
trocar primeiramente estas coisas visveis e transitrias, para que depois consiga
tambm deix-las. ainda delicado aquele ao qual a ptria doce; todavia j
forte aquele para o qual qualquer terra a ptria; mas na verdade perfeito
aquele para o qual o mundo inteiro um exlio. O primeiro fixou o seu amor
ao mundo, o segundo o espalhou, o terceiro o extinguiu. Eu mesmo desde
menino tomei o caminho do exlio, e sei com quanta tristeza o esprito
abandona o estreito fundo de um pobre tugrio, mas sei tambm com qual
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Postremo terra aliena posita est, quae et ipsa quoque hominem exercet. Omnis mundus
philosophantibus exsilium est (...). Da arte de ler. III, Cap. 19, p. 166-167.
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TRRES, Moiss Romanazzi (org.). Mirabilia 16 (2013/1)


A Filosofia Monstica e Escolstica na Idade Mdia
La Filosofa Monstica y Escolstica en la Edad Media
Monastic and Scholastic Philosophy in the Middle Ages
Jan-Jun 2013/ISSN 1676-5818

liberdade, mais tarde, desdenha habitaes de mrmore e casas munidas de


teto.24

Resta, portanto, ao sbio/estudante, atento s regras apresentadas, seguir a


ordenao do curso das estrelas (regra da ordenao), a diviso dos dias e das
noites pela alternao do sol e da lua (regra da diviso), a moderao ou o
bom senso na leitura e na meditao da natureza (regra da moderao), e a
capacidade de extrair da leitura do mundo proporcionada pela leitura dos
textos o que h de mais fundamental (regra da sntese), ou seja, a extino do
amor ao mundo e o pleno gozo do amor Sapientia.
Em ltima anlise, o exlio um exerccio de humildade que no s desdenha
habitaes de mrmore, mas conduz a plena meditao, fim ltimo da
aprendizagem. Leitura dos textos, leitura do mundo, leitura da vida, eis o que
nos parece essencial em Da arte de ler de Hugo de So Vtor.
***
Bibliografia
Textos primrios
HUGONIS DE SANCTO VICTORE. Canonici Regularis S. Victoris Parisiensis Tum pietate
Tum doctrina insignis Opera Omnia tribus tomis digesta, accurante J.-P. Migne, Parisiis, apud
Garnier Frates, Editores et J.-P. Migne successores, 1879. Vol. 175, 176, 177.
HUGO DE SO VTOR. Didasclicon Da arte de ler. Traduo Antonio Marchionni.
Petrpolis: Vozes, 2001.

Textos secundrios
ILLICH, Ivan. Du lisible au visible, sur lArt de lire de Hugues de Saint-Victor. Paris: ditions du
Cerf, 1991.
LIBERA, Alain de. A filosofia medieval. Traduo de Nicols Campanrio e Yvone da Silva.
So Paulo: Loyola, 1998.
MARCHIONNI, Antonio. Introduo traduo Da arte de ler. Petrpolis: Vozes, 2001.
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Magnum virtutis principium est, ut discat paulatim exercitatus animus visibilia haec et
transitoria primum commutare, ut postmodum possit etiam derelinquere. Delicatus ille est
adhuc cui patria dulcis est; fortis autem iam, cui omne solum patria est; perfectus vero, cui
mundus totus exsilium est. Ille mundo amorem fixit, iste sparsit, hic exstinxit. Ego a puero
exsulavi, et scio quo maerore animus artum aliquando pauperis tugurii fundum deserat, qua
libertate postea marmoreos lares et tecta laqueata despiciat. Da arte de ler. III, Cap. 19, p.
166-167.
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TRRES, Moiss Romanazzi (org.). Mirabilia 16 (2013/1)


A Filosofia Monstica e Escolstica na Idade Mdia
La Filosofa Monstica y Escolstica en la Edad Media
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Jan-Jun 2013/ISSN 1676-5818

ROSA, Antonio Donato. Princpios fundamentais de pedagogia. So Paulo: Editora Salesiana


Dom Bosco, 1991.
SICARD, Patrice. Hugues de Saint-Victor et son cole. Turnhout: Brepols, 1991.

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