Didascálicon de Hugo de São Victor
Didascálicon de Hugo de São Victor
Didascálicon de Hugo de São Victor
normas de vida
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O sculo XII um momento extremamente representativo de uma cultura
intelectual que se desenvolve, simultaneamente, em dois tipos de Escola: a
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Este processo, por sua vez, implica trs aes por parte do homem: ler,
refletir e contemplar, como veremos mais adiante quando analisarmos
algumas regras do texto do vitorino. No momento, voltemos ao Livro I a fim
de resumirmos o seu contedo. Logo depois de colocar a Sapientia como
indispensvel para o autoconhecimento humano, Hugo de So Vtor d uma
primeira definio da filosofia como sendo a procura da Sapientia.8
Coloca, assim, nesse Livro, as bases da sua filosofia, expondo, ainda, as
divises e subdivises da filosofia, incluindo a uma novidade para a poca: as
artes mecnicas, que sero o objeto de estudo, juntamente com as artes do
quadrvio, do Livro II. Por fim, os Livros IV, V e VI abordam,
respectivamente, a leitura dos livros sagrados, a interpretao dessa leitura e os
mtodos de interpretao da Escritura. Feita, ento, essa breve exposio,
passemos ao texto do Livro III e sua normatividade.
O Livro III est dividido em 19 captulos que discorrem desde as divises da
filosofia, passando pelas suas funes e pelos seus principais representantes,
chegando at as normas sobre o que necessrio a um correto estudo, como a
ordem da leitura, o modo correto de ler, a importncia da memria, a
dedicao pesquisa, a anlise minuciosa, por fim, at o final desse livro,
Hugo aborda, ainda, questes como a disciplina moral, a humildade, a
quietao, a sobriedade, concluindo com uma reflexo sobre o exlio.
Desse modo, logo depois de enumerar as divises da filosofia, ele discorre
sobre as artes que devem ser lidas inicialmente, destacando, como natural
para a sua poca, as disciplinas do trvio e do quadrvio. Chega mesmo a
mostr-las como propeduticas para o pleno conhecimento da verdade
filosfica. No entanto, escreve Hugo, como os estudantes do seu tempo (e
pensamos que o mesmo pode ser dito, infelizmente, da muitos dos nossos
8
Pauta-se, para essa definio, em Pitgoras (cf. Da arte de ler, I, Cap. 1, p. 53-54). Oferecenos, ainda, mais algumas definies da filosofia, como podemos ler, por exemplo, em Da
arte de ler, II, Cap. 1, p. 84-85: (...) Philosophia est meditatio mortis, quod magis convenit
Christianis, qui saeculi ambitione calcata, conversatione disciplinali, similitudine futurae
patriae vivunt. ([...] A filosofia a meditao da morte, coisa que convm, sobretudo, aos
cristos, os quais, desprezada a ambio terrena, vivem num estilo de vida disciplinado,
semelhana da ptria futura). Tal definio justifica o que um dos seus estudiosos escreve
sobre o livro: Dependendo do ngulo de anlise, visto como um livro ora filosfico, ora
mstico, ora tico, ora antropolgico, ora pedaggico. MARCHIONNI, Antonio.
Introduo traduo Da arte de ler. Petrpolis: Vozes, 2001, p. 27.
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Malum est bonum negligenter agere, peius est in vanum labores multos expendere. Da
arte de ler, III, Cap. 3, p. 138-139.
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(...) artes sine appendiciis suis perfectum facere lectorem possunt, illa sine artibus nihil
perfectionis conferre valent,(...). Da arte de ler, III, Cap. IV, p. 140-141.
11
(...) si vacat, legantur, quia aliquando plus delectare solent seriis admixta ludicra, et
raritas pretiosum facit bonum. Da arte de ler, III, Cap. IV, p. 142-143.
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critica aqueles professores que em vez de atribuir a cada arte aquilo que lhe
prprio, misturam todas elas, acumulando coisas suprfluas, o que s
demonstra que esto muito mais preocupados em ostentar a sua prpria
cincia que em ensinar corretamente aos seus alunos, ou seja, quando o
professor repassa aos seus alunos muitas informaes acessrias, sem ir
diretamente ao cerne da questo ou sem atribuir a cada disciplina o que lhe
devido, est preocupado apenas consigo e com a sua falsa imagem de
sbio e no com o seu aluno e com aquilo que deve ser ensinado. Ele chega
mesmo a chamar de perverso esse costume, pois, nas suas prprias palavras,
quanto mais voc acumula as coisas suprfluas, tanto menos poder
compreender e reter as teis.12
Logo, se em meio ao que importante h muita superficialidade e o professor
mistura o importante com o suprfluo apenas para mostrar que domina
muitas artes, ento, os alunos tero muito mais dificuldades para compreender
e reter o que realmente interessa. Talvez isso marque uma diferena,
contempornea, importante, entre ser professor e ser educador e as
consequncias dessa diferena nos permite afirmar, como Hugo j fizera em
sua poca, que encontramos muitos estudantes, mas poucos sbios.
Desta forma, e procurando no somente ensinar, mas tambm educar, o
Mestre Hugo estabelece trs coisas necessrias ao estudante, que esto
relacionadas s regras que so colocadas ao longo do Livro III e tambm
regra da humildade. Aquelas trs coisas so:
1) as qualidades naturais, 2) o exerccio e 3) a disciplina. As qualidades naturais,
para que entenda facilmente aquilo que ouve e memorize firmemente aquilo
que entendeu. O exerccio, para que eduque as qualidades naturais mediante o
trabalho e a persistncia. A disciplina, para que, vivendo em modo louvvel,
harmonize a conduta com o saber.13
12
Eis s citao completa: Attende quam perversa sit haec consuetudo, cum profecto
quanto magis superflua aggregaveris, tanto minus ea quae utilia sunt capere possis vel
retinere. Da arte de ler, III, Cap. V, p. 144-145.
13
(...) natura, exercitium, disciplina. In natura consideratur ut facile audita percipiat et
percepta firmiter retineat; in exercitio, ut labore et sedulitate naturalem sensum excolat; in
disciplina, ut laudabiliter vivens mores cum scientia componat. Da arte de ler, III, Cap. VI,
p. 146-147.
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Como podemos ler, por exemplo, em Da arte de ler, III, Cap. 10, p. 150-151: Meditatio
principium sumit a lectione, nullis tamen stringitur regulis aut praeceptis lectionis.
Delectatur enim quodam aperto decurrere spatio, ubi liberam contemplandae veritati aciem
affigat, et nunc has, nunc illas rerum causas perstringere, nunc autem profunda quaeque
penetrare, nihil anceps, nihil obscurum relinquere. (A meditao comea com a leitura,
mas no se amarra a nenhuma regra ou prescrio da leitura. Ela se deleita em correr pela
campina aberta, onde fixa o livre olhar para a verdade a ser contemplada, e deleita-se em
examinar ora estas ora aquelas causas, em penetrar as coisas profundas, em deixar nada
ambguo, nada obscuro).
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(...) et de ventre memoriae ad palatum revocare necesse est (...). Da arte de ler, III, Cap.
11, p. 152-153.
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Respectivamente: Hoc idcirco dico, quoniam memoria hominis hebes est et brevitate
gaudet, et, si in multa dividitur, fit minor in singulis. / Unde rogo te, o lector, ne nimium
laeteris si multa legeris, sed si multa intellexeris nec tantum intellexeris sed retinere potueris.
Alioquin nec legere multum prodest, nec intelligere. Da arte de ler, III, Cap. 11, p. 152-153.
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Mens (...) humilis, studium quaerendi, vita quieta, scrutinium tacitum, paupertas, terra
aliena, haec reserare solent multis obscura legendi. Da arte de ler, III, Cap. 11, p. 154-155.
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(...) ut et modum vitae suae et studii sui rationem lector agnoscat. Da arte de ler, III,
Cap. 12, p. 154-155.
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Respectivamente: Prudens igitur lector omnes libenter audit, omnia legit, non
scripturam, non personam, non doctrina spernit. Indifferenter ab omnibus quod sibi deesse
videt quaerit, nec quantum sciat, sed quantum ignoret, considerat; Similiter tibi quoque
expedit, ut, cum tu aliquid sapere coeperis, ceteros non contemnas. Hoc autem tumoris
vitium hinc quibusdam accidit, quod suam scientiam nimis diligenter inspiciunt, et cum sibi
aliquid esse visi fuerint, alios, quos non noverunt, tales nec esse nec potuisse fieri putant.
Da arte de ler, III, Cap. 13, p. 156-157 e 158-159.
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Postremo terra aliena posita est, quae et ipsa quoque hominem exercet. Omnis mundus
philosophantibus exsilium est (...). Da arte de ler. III, Cap. 19, p. 166-167.
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Textos secundrios
ILLICH, Ivan. Du lisible au visible, sur lArt de lire de Hugues de Saint-Victor. Paris: ditions du
Cerf, 1991.
LIBERA, Alain de. A filosofia medieval. Traduo de Nicols Campanrio e Yvone da Silva.
So Paulo: Loyola, 1998.
MARCHIONNI, Antonio. Introduo traduo Da arte de ler. Petrpolis: Vozes, 2001.
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Magnum virtutis principium est, ut discat paulatim exercitatus animus visibilia haec et
transitoria primum commutare, ut postmodum possit etiam derelinquere. Delicatus ille est
adhuc cui patria dulcis est; fortis autem iam, cui omne solum patria est; perfectus vero, cui
mundus totus exsilium est. Ille mundo amorem fixit, iste sparsit, hic exstinxit. Ego a puero
exsulavi, et scio quo maerore animus artum aliquando pauperis tugurii fundum deserat, qua
libertate postea marmoreos lares et tecta laqueata despiciat. Da arte de ler. III, Cap. 19, p.
166-167.
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