Elogio Aos Errantes

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por Paola Berenstein Jacques

Elogio aos Errantes: a arte de se perder na cidade

Tanto os mtodos de anlise contemporneos das disciplinas urbanas quanto o que poderia
ser visto como um de seus resultados projetuais, a cidade-espetculo[1], se distanciam
cada vez mais da experincia urbana, da prpria vivncia ou prtica da cidade. Errar
poderia ser um instrumento desta experincia urbana, uma ferramenta subjetiva e
singular, ou seja, o contrrio de um mtodo ou de um diagnstico tradicional. A errncia
urbana seria uma apologia da experincia da cidade, um tipo de ao que poderia ser
praticada por qualquer um.
Os praticantes das cidades atualizam os projetos urbanos, e o prprio urbanismo, atravs
da prtica dos espaos urbanos. Os urbanistas indicam usos possveis para o espao
projetado, mas so aqueles que o experimentam no cotidiano que os atualizam. So as
diferentes aes, apropriaes ou improvisaes, dos espaos que legitimam ou no
aquilo que foi projetado, ou seja, so essas experincias do espao pelos habitantes,
passantes ou errantes que reinventam esses espaos no seu cotidiano.
Enquanto o urbanismo busca a orientao atravs de mapas e planos, a preocupao do
errante estaria mais na desorientao, sobretudo em deixar seus condicionamentos
urbanos, uma vez que toda a educao do urbanismo est voltada para a questo do se
orientar, ou seja, o contrrio mesmo do se perder. Em seguida, pode-se notar a lentido
dos errantes, o tipo de movimento qualificado dos homens lentos, que negam, ou lhes
negado, o ritmo veloz imposto pela contemporaneidade. E por fim, a prpria corporeidade
destes, e, sobretudo, a relao, ou contaminao, entre seu prprio corpo fsico e o corpo
da cidade que se d atravs da ao de errar pela cidade. A contaminao corporal leva a
uma incorporao, ou seja, uma ao imanente ligada materialidade fsica, corporal, que
contrasta com uma pretensa busca contempornea do virtual, imaterial, incorporal.
As trs propriedades mais recorrentes das errncias se perder, lentido, corporeidade
esto intimamente relacionadas, e remetem a prpria ao, ou seja, a prtica ou
experincia do espao urbano. O errante urbano se relaciona com a cidade, a experimenta,
e este ato de se relacionar com a cidade implica nesta corporeidade prpria, advinda da
relao entre seu prprio corpo fsico e o corpo urbano que se d no momento da
desterritorializao lenta da errncia. Para resumir pode-se dizer que o errante faz seu
elogio experincia principalmente atravs da desterritorializao do ato de se perder, da
qualidade lenta de seu movimento e da determinao de sua corporeidade. As trs
propriedades poderiam ser consideradas como resistncias ou crticas ao pensamento
hegemnico contemporneo do urbanismo que ainda busca uma certa orientao
(principalmente atravs do excesso de informao), rapidez (ou acelerao) e, sobretudo,
uma reduo da experincia e presena fsica (atravs das novas tecnologias de
comunicao e transporte).

Apesar da intma relao entre essas propriedades da errncia, talvez seja a relao
corporal com a cidade, na experincia da incorporao, que mostre de forma mais clara e
crtica, o cotidiano contemporneo cada vez mais desencarnado e espetacular. Diante da
atual espetacularizao das cidades que se tornam cada dia mais cenogrficas, a
experincia corporal das cidades, ou seja, sua prtica ou experincia, poderia ser
considerada

como

um

antdoto

essa

espetacularizao.

que

chamo

de

espetacularizao das cidades contemporneas[2] que tambm pode ser chamado de


cidade-espetculo (no sentido debordiano) est diretamente relacionado a uma
diminuio da participao mas tambm da prpria experincia urbana enquanto prtica
cotidiana, esttica ou artstica.
A reduo da ao urbana pelo espetculo leva a uma perda da corporeidade, os espaos
urbanos se tornam simples cenrios, sem corpo, espaos desencarnados. Os espaos
pblicos contemporneos, cada vez mais privatizados ou no apropriados, nos levam a
repensar as relaes entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidado,
o que abre possibilidades tanto para uma crtica da atual espetacularizao urbana quanto
para uma pesquisa de outros caminhos pelos errantes urbanos, que passariam a ser os
maiores crticos do espetculo urbano.
Ao se observar mais de perto a histria crtica do urbanismo, a histria marginal, possvel
se perceber um outro caminho, que critica a espetacularizao desde seus primrdios.
Nesta pista, as principais questes so as diferentes formas de ao, e participao, na
cidade mas tambm as relaes corporais, atravs das experincias efetivas dos espaos
urbanos. As relaes sensoriais com a cidade que passam pela experincias corporais
destes espaos, em suas diferentes temporalidades, seriam o oposto da imagem da
cidade-logotipo. Os cenrios ou espaos espetacularizados, desencarnados, seriam
propcios somente para os simples espectadores.
Os praticantes da cidade, como os errantes urbanos, realmente experimentam os espaos
quando os percorrem, e assim lhe do corpo, e vida, pela simples ao de percorr-los.
Uma experincia corporal, sensorial, no pode ser reduzida a um simples espetculo, a
uma simples imagem ou logotipo. A cidade deixa de ser um simples cenrio no momento
em que ela vivida, experimentada. Ela ganha corpo a partir do momento em que ela
praticada, se torna outro corpo. Para o errante urbano sua relao com a cidade seria da
ordem da incorporao. Seria precisamente desta relao entre o corpo do cidado e deste
outro corpo urbano que poderia surgir uma outra forma de apreenso da cidade, uma outra
forma de ao, atravs da experincia da errncia desorientada, lenta e incorporada a
ser realizada pelo urbanista errante, que se inspiraria de outros errantes urbanos e, em
particular, das experincias realizadas pelos escritores e artistas errantes.
Paola Berenstein Jacques doutora em histria da arte pela Universidade de Paris 1
(Sorbonne), professora da Faculdade de Arquitetura e vice-coordenadora da Ps-Graduao
em Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora CNPq, coordenadora do

acordo CAPES/COFECUB Territrios Urbanos e Polticas Culturais, autora dos livros: Les
favelas de Rio (Paris, lHarmattan, 2001); Esttica da Ginga (Rio de Janeiro, Casa da
Palavra, 2001); Esthtique des favelas (Paris, lHarmattan, 2003); co-autora de Mar, vida
na favela (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002) ; organizadora de Apologia da Deriva (Rio
de Janeiro, Casa da Palavra, 2003), Corps et Dcors urbains (Paris, lHarmattan, 2006), e
Corpos e cenrios urbanos (Salvador, Edufba, 2006).
[1] Espetculo no sentido dado por Guy Debord em A sociedade do Espetculo, Rio de
Janeiro, Contraponto, 1997 (verso original francesa de 1967). Ver tambm IS (Paola
Berenstein Jacques, org.), Apologia da Deriva, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
[2] Ver Espetacularizao Urbana Contempornea in Cadernos PPG-AU/FAUFBA, nmero
especial Territrios Urbanos e Polticas Culturais, PPG-AU/UFBA, Salvador, 2004

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