José de Alencar - Iracema (1866)
José de Alencar - Iracema (1866)
José de Alencar - Iracema (1866)
Texto-Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994.
rusticidade dos costumes, uma alma prpria para amar e para sentir.
Iracema tabajara; entre a sua nao e a nao potiguara h um dio de sculos;
Martim, aliado dos potiguaras, andando erradio, entra no seio dos tabajaras, onde
acolhido com a franqueza prpria de uma sociedade primitiva; estrangeiro,
sagrado; a hospitalidade selvagem descrita pelo autor com cores simples e
vivas.
O europeu abriga-se na cabana de Araken, onde a solicitude de Iracema preparalhe algumas horas de folgada ventura.
O leitor v despontar o amor de Iracema ao contacto do homem civilizado. Que
simplicidade, e que interesse! Martim cede a pouco e pouco influncia invencvel
daquela amorosa solicitude. Um dia lembra-lhe a ptria e sente-se tomado de
saudade: "Uma noiva te espera?" pergunta Iracema.
O silncio a resposta do moo. A virgem no censura, nem suplica; dobra a
cabea sobre a espdua, diz o autor, como a tenra planta da carnaba, quando a
chuva peneira na vrzea.
Desculpe o autor se desfolhamos por este modo a sua obra; no escolhemos
belezas, onde as belezas sobram, trazemos ao papel estes traos que nos parecem
caracterizar a sua herona, e indicar ao leitor, ainda que remotamente, a beleza da
filha de Araken.
Herona, dissemos, e o decerto, naquela divina resignao. Uma noite, no seio
da cabana, a virgem de Tup torna-se esposa de Martim; cena delicadamente
escrita, que o leitor adivinha, sem ver. Desde ento Iracema disps de si; a sua
sorte est ligada de Martim; o cime de Irapu e a presena de Poti, precipitam
tudo; Poti e Martim devem partir para a terra dos potiguaras; Iracema os conduz,
como uma companheira de viajem. A esposa de Martim abandona tudo, o lar a
famlia, os irmos, tudo para ir perecer ou ser feliz com o esposo. No o exlio,
para ela o exlio seria ficar ausente do esposo, no meio dos seus. Todavia, essa
resoluo suprema custa-lhe sempre, no arrependimento, mas tristeza e
vergonha, no dia em que aps uma batalha entre as duas naes rivais, Iracema
v o cho coalhado de sangue dos seus irmos. Se esse espetculo no a
comovesse, ia-se a simpatia que ela nos inspira; mas o autor teve em conta que
era preciso interess-la, pelo contraste da voz do sangue e da voz do corao.
Da em diante a vida de Iracema uma sucesso de delcias, at que uma
circunstncia fatal vem pr termo aos seus jovens anos. A esposa de Martim
concebe um filho. Que doce alegria no banha a fronte da jovem me! Iracema vai
dar conta a Martim daquela boa nova; h uma cena igual nos Natchez; seja-nos
lcito compar-la do poeta brasileiro.
Quando Ren, diz o poeta dos Natchez, teve certeza de que Celuta trazia
um filho no seio, acercou-se dela com santo respeito, e abraou-a
delicadamente para no machuc-la. "Esposa, disse ele, o cu abenoou as
tuas entranhas."
A cena bela, decerto; Chateaubriand quem fala; mas a cena de Iracema aos
nossos olhos mais feliz. A selvagem cearense aparece aos olhos de Martim,
adornada de flores de maniva, trava da mo dele, e diz-lhe:
Teu sangue j vive no seio de Iracema. Ela ser me de teu filho.
Filho, dizes tu? exclamou o cristo em jbilo.
Ajoelhou ali, e cingindo-a com os braos, beijou o ventre fecundo da
esposa.
V-se a beleza deste movimento, no meio da natureza viva, diante de uma filha da
floresta. O autor conhece os segredos de despertar a nossa comoo por estes
meios simples, naturais, e belos. Que melhor adorao queria a maternidade feliz,
do que aquele beijo casto e eloqente? Mas tudo passa; Martim sente-se tomado
de nostalgia; lembram-lhe os seus e a ptria; a selvagem do Cear, como a
selvagem da Luisiana, comea ento a sentir a sua perdida felicidade. Nada mais
tocante do que essa longa saudade, chorada no ermo, pela filha de Araken, me
desgraada, esposa infeliz que viu um dia partir o esposo, e s chegou a v-lo de
novo, quando a morte j voltava para ela os seus olhos lnguidos e tristes.
Poucas so as personagens que compem este drama da solido, mas os
sentimentos que as movem, a ao que se desenvolve entre elas, cheia de vida,
de interesse, e de verdade.
Araken a solenidade da velhice contrastando com a beleza agreste de Iracema:
um patriarca do deserto, ensinando aos moos os conselhos da prudncia e da
sabedoria. Quando lrapu, ardendo em cime pela filha do paj, faz romper os
seus dios contra os potiguaras, cujo aliado era Martim, Araken ope-lhe a
serenidade da palavra, a calma da razo. Irapu e os episdios da guerra fazem
destaque no meio do quadro sentimental que o fundo do livro; so captulos
traados com muito vigor, o que d novo realce ao robusto talento do poeta.
Irapu o cime e o valor marcial; Araken a austera sabedoria dos anos; Iracema
o amor. No meio destes caracteres distintos e animados, a amizade simbolizada
em Poti. Entre os indgenas a amizade no era este sentimento, que fora de
civilizar-se, tornou-se raro; nascia da simpatia das almas, avivava-se com o
perigo, repousava na abnegao recproca; Poti e Martim, so os dois amigos da
lenda, votados mtua estima e ao mtuo sacrifcio.
A aliana os uniu; o contacto fundiu-lhes as almas; todavia, a afeio de Poti
difere da de Martim, como o estado selvagem do estado civilizado; sem deixarem
de ser igualmente amigos, h em cada um deles um trao caracterstico que
corresponde origem de ambos; a afeio de Poti tem a expresso ingnua,
franca, decidida; Martim no sabe ter aquela simplicidade selvagem.
Martim e Poti sobrevivem catstrofe de Iracema, depois de enterr-la ao p de
um coqueiro; o pai desventurado toma o filho rfo de me, e arreda-se da praia
cearense. Umedecem-se os olhos ante este desenlace triste e doloroso, e fecha-se
o livro, dominado ainda por uma profunda impresso.
Contar todos os episdios desta lenda interessante seria tentar um resumo
impossvel; basta-nos afirmar que os h, em grande nmero, traados por mo
hbil, e todos ligados ao assunto principal. O mesmo diremos de alguns
personagens secundrios, como Caubi e Andira, um, jovem guerreiro, outro,
guerreiro ancio, modelados pelo mesmo padro a que devemos Poti e Araken.
O estilo do livro e como a linguagem daqueles povos: imagens e idias, agrestes e
pitorescas, respirando ainda as auras da montanha, cintilam nas cento e cinqenta
pginas da Iracema. H, sem dvida, superabundncia de imagens, e o autor com
uma rara conscincia literria, o primeiro a reconhecer esse defeito. O autor
emendar, sem dvida a obra, empregando neste ponto uma conveniente
sobriedade. O excesso, porm, se pede a reviso da obra, prova em favor da
poesia americana, confirmando ao mesmo tempo o talento original e fecundo do
autor. Do valor das imagens e das comparaes, s se pode julgar lendo o livro, e
para ele enviamos os leitores estudiosos.
Tal o livro do Sr. Jos de Alencar, fruto do estudo, e da meditao, escrito com
sentimento e conscincia. Quem o ler uma vez, voltar muitas mais a ele, para
ouvir em linguagem animada e sentida, a histria melanclica da virgem dos
lbios de mel. H de viver este livro, tem em si as foras que resistem ao tempo, e