O TEATRO COLABORATIVO

Luiz C. Checchia
(originalmente publicado no site www.encontrosdedramaturgia.com.br)
A forma como vivenciamos o teatro hoje foi consolidada no complexo perodo que compreende o
sculo XVIII at o sculo atual. Tm-se dado, nesse intervalo de tempo, o desenvolvimento e
amadurecimento dos paradigmas hegemnicos da modernidade ocidental, dentre eles: o modo de
produo capitalista; a primazia da individualidade; a complexa diviso social do trabalho; a
globalizao amistosa ou forada das relaes econmicas, sociais, polticas e culturais; a
urbanizao das sociedades; e, ainda, os avanos tecnolgicos e burocrticos que caracterizam as
sociedades burguesas. Por ouro lado, se esses paradigmas se tornaram hegemnicos, outros valores
e prticas antigas, forjados em sculos de convivncia comunal, solidria e cooperativa entre as
pessoas no se perderam de todo, mantendo-se ainda vivas em diversas comunidades rurais, bem
como nas periferias dos centros urbanos, locais para onde massas de pessoas criadas nos campos
convergiram em busca de trabalho no longo processo de urbanizao.
Portanto, sendo as sociedades modernas ocidentais formadas de interesses e princpios to
diversos e dividindo-se em formas diferentes de ver e sentir o mundo e nele atuar, tambm sero
diversas as formas que motivaro a prtica teatral, bem como os seus meios de organizao e
realizao. Uma dessas formas, que chamaremos aqui de teatro de produo ou, ainda, teatro
empresa tornou-se hegemnica (ao menos nos centros urbanos e arredores), sendo ela gerida e
inserida na cultura que se forma, por sua vez, sob os paradigmas modernos. As caractersticas gerais
do teatro de produo so, entre outras: montagens teatrais como mercadorias, carregadas de
valores agregados; organizao sob estrita diviso social do trabalho, com relaes estanques entre
direo, elenco, tcnicos, figurinistas, cengrafos etc; utilizao de espaos especficos para suas
apresentaes que permitem o mximo aproveitamento de recursos tcnicos (tambm utilizados
como valor agregado) e o controle sobre pblico. Entretanto, se o teatro de produo a forma
teatral hegemnica em nossas sociedades modernas ocidentais outras formas mais antigas e
populares foram recuperadas e re-elaboradas por artistas e grupos que nelas encontraram
possibilidades de fazer teatro fora da lgica dominante; tratavam-se de formas cujos procedimentos
de organizao e realizao era praticamente artesanais, motivados por um esprito coletivo e
solidrio. O que hoje chamamos de teatro colaborativo fruto desse processo de recuperao e reelaborao das antigas e populares formas teatrais.
Herdeiro de diversas experincias teatrais que remontam s antigas organizaes populares
de grupos e companhias, o chamado teatro colaborativo no muito mais do que uma forma de

relacionamento entre pessoas dispostas pratica teatral baseada no dilogo, construo do consenso
e na colaborao mtua; se o teatro de produo baseia-se na estrita e estanque diviso de funes,
no teatro colaborativo essas funes, se bem que preservadas, dialogam entre si, e cada artistas que
assume uma delas no deixa de colaborar com os demais integrantes de um mesmo coletivo 1. Dessa
forma, as personagens j no so mais propriedade de determinados atores ou atrizes tidos como
mais talentosos ou notrios mas, ao contrrio, podem ser trocadas entre eles a qualquer momento;
todos podem experimentar e contribuir mutuamente com os processos de construo uns dos outros.
Assim, se de certa forma se percebe a identidade criativa do diretor ou de um integrante do elenco
expressa no trabalho em cena, sabe-se tambm que ele fruto de sua vivncia com os demais
parceiros e parceiras no processo de montagem do espetculo. Ou seja, ao mesmo tempo em que se
percebe a identidade de cada um dos participantes, a montagem no tem a cara do diretor ou do
ator, mas sim a cara do grupo. Torna-se evidente ento que uma certa distino de valores entre as
funes teatrais (ou mesmo entre atores e atrizes de acordo com sua notoriedade junto ao grande
pblico2), to cara e necessria ao teatro de produo, deixa de existir no teatro colaborativo3.
Normalmente, mas no necessariamente, o teatro colaborativo realizado no mbito do teatro de
grupo4, j que comum que a colaborao (acertada como prtica vigente de um processo de
montagem) seja fruto de uma relao mais duradoura do que a de uma produo ou de uma
temporada teatral; na verdade, preciso um bom tempo de convivncia mutua para que um grupo
construa entre si uma relao de confiana e sinergia. Nesse processo, valores e prticas se
constroem na lida cotidiana, resultando na personalidade do grupo, sua identidade coletiva. So
valores e prticas que habitualmente transbordam a vivencia dos artistas em salas de ensaio e
alcanam tambm seu pblico e a regio em que se instalam, promovendo a integrao entre artistas
e populao local; em suma, passam a participar de uma mesma comunidade5.
Estabelecer relaes com as comunidades nas quais esto inseridos no o nico aspecto poltico
assumido por grupos praticantes de teatro colaborativo. comum ao teatro colaborativo um certo
senso tico que busca no fazer artstico um sentido social. De certa forma, os praticantes de teatro
colaborativo, por discordarem e colocarem-se margem da lgica hegemnica do capital, buscam,
por meio de sua arte, promover ou provocar possveis mudanas de paradigmas 6. Por isso, para
muitos praticantes desta modalidade teatral ela se constitui ou participa de num projeto de
transformao social e poltica. Seja como for, mesmo que no leve a cena temas sobre
transformaes e revolues, por exemplo, o simples fato de se buscar uma outra organizao que
no a hegemnica j se constitui numa atitude de resistncia. Alm disso, comum tambm que a
prtica organizativa faa parte do horizonte poltico dos praticantes de teatro colaborativo, por isso
h tantos coletivos que agregam diversos grupos que se formam em torno de demandas comuns.

Tratam-se desde simples confrarias at coletivos de presso poltica, com poder de provocar
mudanas em leis e estabelecer novas polticas pblicas. Seja como for, notrio que muitos grupos
de teatro coletivo tenham por princpio o envolvimento poltico em sua sociedade.
Como dito acima, se o teatro colaborativo constitui-se numa atitude, num posicionamento tico
perante o mundo, ele no constitui uma esttica, ou uma forma artstica acabada. Pelo contrrio,
pode ser praticado por artistas e grupos das mais variadas opes estticas: teatro de rua, de caixa,
de espaos alternativos, de animao, de mmica, at mesmo por grupos de circo e dana. Enfim, o
esprito colaborativo pode invadir todas as formas de artes cnicas, ou outras artes, j que h
experincias colaborativas entre artistas plsticos, por exemplo. Mas se no se constitui numa forma
esttica, propriamente dito, h algumas delas com as quais muitos grupos de teatro colaborativo
estabelecem uma forte aproximao, como os teatros pico-brechtiano e o popular, e ainda com o
teatro antropolgico. Outra caracterstica intrnseca a constante prtica da pesquisa esttica e tica.
Dessa forma, se o teatro colaborativo no uma esttica teatral em si, comum que cada grupo
desenvolva sua esttica prpria, notadamente a partir das recm apontadas. H que se apontar ainda
outra sua peculiaridade que a forma como seus praticantes no se preocupam com notoriedade e
distino, o que evita uma certa submisso da personagem personalidade do ator ou da atriz, em
outras palavras, a personagem no meio para a realizao personalista do intrprete, mas ao
contrario disto o intrprete que se coloca a servio de uma ideia ou mensagem que se queira
passar com a pea. Mas isso no deve ser confundido com a despersonalizao ou neutralidade
comum ao teatro realista (carro chefe do teatro de produo) que se exige do ator e da atriz em
nome de uma valorizao da personagem; no teatro colaborativo, parte da rotina que elenco,
direo, dramaturgo ou de qualquer outro evitem o culto personalidade, mas se sempre
solicitado que a personalidade seja parte dos elementos de criao e construo da obra como um
todo.
Evidentemente que no preciso seguir estritamente a risca as descries acima para se
fazer teatro colaborativo. Como j afirmamos, o teatro colaborativo muito mais uma forma de
relacionamento entre praticantes teatrais do que um modelo fechado de trabalho. Fica evidente
tambm que esse processo no tem nada de mecnico, ao contrrio, se constitui na lida diria, na
vivncia coletiva constante, no cotidiano da vida de um grupo ou companhia teatral, e mais
evidente ainda que os humores e caprichos das pessoas envolvidas criam situaes de conflitos,
diferenas de posicionamento etc, que s podem ser dirimidas s custas do dilogo e da construo
permanente do consenso. Seria tolice dizer que nunca algum desistiu de tal forma de produo
teatral, seja por falta de identificao com ele, seja pela dificuldade de lidar com a prpria

autonomia ou qualquer outra razo. Mas notrio, pelo tempo de existncia dos grupos7, e pelo
tempo em que muitos de seus artistas esto envolvidos com esse modo de produo (seja no mesmo
grupo, ou indo de um para outro), que ele tornou-se o habitat natural de um nmero imenso de
artistas/praticantes fiis. O teatro colaborativo , de certa forma, uma resposta, uma ao de
resistncia a uma organizao social e econmica hegemnica e que se pretende nica na forma e
no contedo; sendo assim, a despeito das mltiplas preocupaes e demandas inerentes a cada
grupo, o teatro colaborativo em si tem a importante e imprescindvel funo de garantir o espectro
democrtico das sociedades modernas, apresentando uma alternativa de arte e de vida.

BIBLIORAFIA
ABREU, Kil. A Dialtica das condies e a fatura esttica no teatro de grupo. In Subtexto
revista de teatro do Galpo Cine Horto. Ano 5, dez 08, nmero 05.
ABREU, Lus Alberto de. O Dramaturgo e suas funes. Rebento: revista de artes do espetculo/
Universidade Paulista Julio de Mesquita Filho. Instituto de Artes, So Paulo. Nmero 2, julho de
2010
BROOK, Peter. Fios do tempo. Ed. Bertrand Brasil. So Paulo. 1998
ORTECHO, Jos Manuel lzaro de. A democratizao da dramaturgia no teatro
contemporneo. Rebento, revista de artes do espetculo. So Paulo. Nmero 2, julho de 2010
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Paz e Terra. SP.2000
_________________. Marxismo e literatura. Zahar Editores.RJ.1979.

O britnico Peter Brook, um dos mais importantes diretores da atualidade, embora no faa uso do termo
colaborativo, tem sua produo pautada pela troca e pelas contribuies mtuas por parte dos integrantes de seu
grupo, configurando-se como um trabalho colaborativo, entretanto, cada qual tem suas funes preservadas , como ele
descreve em suas memrias: Assim, a pea tornou-se uma verdadeira criao colaborativa entre quatro atores
dedicados Yoshi Oida, Sotegui Kouyat, Maurice Benichou e David Bennent , juntos com o msico que estivera
especialmente prximo de ns ao longo dos anos, Mahmoud Trabrizi-Zadeh, assim como Marie-Hlne e eu () Ento
um trabalho mais familiar pde comear, com Marie-Hlne escrevendo e adaptando as palavras que ouvamos serem
ditas e os atores usando as sus tcnicas pessoais para projetar, de modo convincente a um observador externo, as reas
misteriosas s quais ramos conduzidos (BROOK:2000,306)
2

Notoriedade que no deixa de se constituir, na lgica do teatro empresa (que , ao fim e ao cabo, a lgica do
capital) em um valor agregado, um valor de troca.
3

Como afirma o professor Jos Manuel Lzaro de Ortecho (ORTECHO, 2010, 23): a hierarquia dramaturgo
produtor/encenador atores tcnicos desmontada.
4

Utilizaremos aqui o conceito de grupo apresentado por Kil Abreu: grupo/agrupamento a primeira coisa que um
Grupo de teatro nos sinaliza a prtica dos anos recentes no o mesmo que um agrupamento de artistas que se
renem para fazer um trabalho determinado. O que marca a existncia do grupo, no sentido que nos interessa, uma
Experincia comum colocada em perspectiva. Qual seja, a de um tipo de organizao que no tem como finalidade a
criao de pontual de um evento artstico, ainda que um evento, um espetculo, por exemplo, possa estar entre os
planos, como de fato, quase sempre est. Trata-se, antes, de um projeto esttico, de um conjunto de prticas marcadas
pelo procedimento processual e em atividade continuada, pela experimentao e pela especulao criativa, que pode
inclusive se desdobrar ou alimentar desejos de interveno de outra ordem que no a estritamente artstica.
5

Por isso comum que os grupos adotem a comunidades que os abriguem, e com um pouco de sorte muita
dedicao, sejam por elas adotados. Como podemos ver nas aes do grupo Pombas Urbanas, segundo informaes
em seu stio eletrnico: Com sua vinda Cidade Tiradentes em janeiro de 2004, o grupo mergulhou no universo do
desemprego, excluso, da deteriorao do ser humano em busca de sobrevivncia. Durante 3 anos, dedicou-se
intensamente estruturao do Centro Cultural Arte em Construo e em 2.007, realizou a montagem de um novo
espetculo, Histrias Para Serem Contada que deu voz a muitas das histrias e conflitos que o grupo, vivendo no
bairro Cidade Tiradentes, acompanhou de perto. desta forma que os integrantes do grupo Pombas Urbanas
compreendem e exercem sua condio de artistas: situando sua pesquisa e produo teatral junto sociedade com o
desenvolvimento de propostas prticas e concretas de acesso Arte, desenvolvimento de conhecimentos e ferramentas
para que populaes historicamente marginalizadas possam produzir teatro e refletir sobre sua realidade por meio da
Arte.
6

Segundo o dramaturgo Lus Alberto de Abreu, ele prprio um dramaturgo que trabalha em processos colaborativos a
funo social de um artista est intimamente ligada importncia, sempre menosprezada, das linguagens artsticas na
transformao do ser humano e da sociedade () Querendo ou no, os artistas tm poder e responsabilidade no que se
refere fixao dos valores presentes na transformao do mundo ou em sua manuteno (ABREU: 2010,29)
7

Para se ter noo do tempo de existncia de alguns grupo, considerando, como referncia, o ano de 2011,
quando este ensaio foi escrito: Grupo Pombas Urbanas, 22 anos de existncia (http://www.pombasurbanas.org.br/);
Buraco d'Orculo, 10 anos (http://www.buracodoraculo.com.br/); Brava Companhia, 10 anos
(http://blogdabrava.blogspot.com/); Ncleo Pavanelli, 11 anos (http://www.nucleopavanelli.com.br/site/historico);
Dolores boca Aberta Mecatrnica de Artes 09 anos (http://doloresbocaaberta.blogspot.com/2009/06/oficina-deteatro-no-dolores.html); Pia Fraus, 25 anos (http://www.piafraus.com.br/perfil.php?action=historico); Parlapates
Patifes e Paspalhes, 21 anos (http://www2.uol.com.br/parlapatoes/espetaculos/historia/index.htm). Esses so alguns
grupos de referncia, apenas em so Paulo, entre tantos outros grupos pelo pas todo.