Sobre A Ternura, Noção Esquecida

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Estados Gerais da Psicanlise: Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro 2003

TEMA 5 : As subjetividades contemporneas


SUB-TEMA 5b: As outras modalidades de filiao e aliana; o gnero sexual

SOBRE A TERNURA, NOO ESQUECIDA


ANA LILA LEJARRAGA
RESUMO
Este trabalho trata da pouco explorada noo de ternura, na tentativa de refletir sobre as
relaes amorosas no mundo contemporneo. O estudo aborda criticamente a reduo da
noo de ternura inibio do pulsional, procurando nas idias de Ferenczi, Balint e Winnicott,
contribuies para conceber positivamente a ternura.
PALAVRAS CHAVE: ternura, amor, contemporneo, Winnicott

Meu objetivo neste trabalho abordar a esquecida noo de ternura


noo imprecisa, mas frtil na tentativa de abrir novas perspectivas para
pensar as relaes amorosas contemporneas.
Entendo que a ternura no pode ser reduzida inibio do pulsional,
com seus conseqentes efeitos de restrio e diminuio do prazer. Proponho,
assim, resgatar a outra faceta da ternura - sua dimenso mais originria apontada por Freud em 1912. Essa outra dimenso da ternura, que remete
necessidade infantil de ser amado, cuidado e considerado, ser explorada com
base nas contribuies de Ferenczi, Balint e Winnicott. Conceber a ternura
positivamente, e no s como inibio de um alvo sexual, seria, a meu ver,
uma pea fundamental para refletir sobre o mal-estar amoroso nos dias atuais.

Se com a hegemonia do ideal de amor romntico, o amor era


inseparvel do sexo e do lao conjugal, com o declnio deste ideal e as
transformaes sociais das ltimas dcadas, o sexo divorcia-se do sentimento
amoroso e da famlia. No mundo atual, para gozar dos prazeres erticos,
outrora condenados pela moral burguesa, no mais necessrio se apaixonar
ou assumir compromissos e deveres maritais. Como diz Bauman: O sexo est
sendo completamente purificado de todas as poluies e corpos estranhos
tais como obrigaes assumidas, laos protegidos, direitos adquiridos1. A
funo social do sexo muda: de base da famlia e suporte na construo das
estruturas sociais durveis, desloca-se para o universo da coleo de
experincias, transformando-se o indivduo ps-moderno num colecionador de
sensaes2.
A hiperinflao da sexualidade e seu crescente isolamento de qualquer
modalidade de lao afetivo, parece ter diminudo o valor das relaes
amorosas, que se tornam cada vez mais distantes e efmeras: os indivduos
fecham-se em suas couraas narcsicas e preservam-se da ameaadora
dependncia do outro. O amor romntico, referncia idealizada e inatingvel
nas pocas passadas, questionado e aparentemente ultrapassado e, no seu
lugar, s encontramos sentimentos de desencontro, insatisfao e solido.
Segundo Lipovetsky, na Era do vazio, as paixes so canalizadas no sentido
do Eu, promovido categoria de umbigo do mundo. Assim, ama-se
narcisicamente o prprio eu e renuncia-se ao amor pelo outro, que ameaa a
autonomia individual, sem deixar, porm, de continuar aspirando aos laos
sentimentais, cada vez mais raros e breves. Nas palavras de Lipovetsky: Por

que no posso amar e vibrar? Desolao de Narciso, demasiado bem


programado na sua absoro em si prprio para poder ser afectado pelo Outro,
para sair de si e, no entanto, insuficientemente programado, pois que deseja
ainda um mundo relacional afetivo3.
A vida amorosa atual parece estar encurralada: o ideal de amor
romntico, tirnico e excludente, encontra-se em decadncia, mas o sujeito
contemporneo, a despeito de seu carter narcsico e individualista, no pode
deixar de querer amar e ser amado.
Interrogamos-nos em que consiste esse desejo de um mundo relacional
afetivo, ou essa necessidade de ser amado, irredutvel, evidentemente,
simples satisfao ertica.
Quando Freud teorizava sobre o amor, a imagem do amor era
indissocivel do amor romntico, e nessa imagem se fundiam a idealizao
passional, o amor e a sexualidade. Assim, quando Freud constri a
metapsicologia do amor, no estabelece uma clara distino terica entre
essas dimenses do fenmeno amoroso, tornando-se quase sinnimas as
noes de amor e apaixonamento4.
Freud recorre ao mito de Narciso -uma histria de amor que culmina em
morte- para falar do amor. A dinmica amorosa se compreende em torno dos
processos de idealizao e das tentativas de restaurao do estado narcsico.
O estar apaixonado consiste num transbordar da libido narcisista sobre o
objeto, que elevado ao nvel do ideal. O apaixonamento representa uma via
imediata de acesso ao ideal e onipotncia narcsica5.

O investimento libidinal do objeto amado torna o eu apaixonado frgil e


dependente do amado. O trabalho de idealizao outorga ao objeto virtudes e
perfeies imaginrias, deixando cego o eu apaixonado. E na medida em que
o objeto colocado no lugar do ideal, o amante torna-se um humilde servo do
objeto idealizado. Atravs da idealizao do objeto de amor, e da aspirao de
unio com ele, o eu pretende a fuso narcsica, a plenitude. O amor, por sua
natureza narcsica, aspira a um reencontro com os primeiros objetos, perdidos
para sempre. O apaixonamento tem um carter ilusrio, j que, por um lado,
projeta no objeto os prprios ideais narcsicos, conferindo-lhe perfeies
inexistentes e, por outro lado, acena imaginariamente com uma completude
irrealizvel. Desse modo, a metapsicologia do amor centrada no narcisismo
enfatiza o carter impossvel e ilusrio da plena realizao amorosa,
constituindo uma magistral metfora da paixo romntica.
A teoria freudiana do amor inclui, em 1921, o ingrediente da ternura,
responsvel pela persistncia do sentimento amoroso, alm da simples atrao
sensual. Na Psicologia do grupo e anlise do ego 6, Freud considera que o estar
apaixonado resultado da confluncia do amor sensual e da ternura, e que
graas contribuio da corrente terna, possvel medir o grau de
apaixonamento.
No Ps-Escrito do mesmo texto, Freud faz uma longa anlise sobre a
noo de ternura como pulso sexual inibida quanto ao alvo, contraposta
sensualidade, que corresponde s pulses sexuais diretas ou sem inibio.
Embora na Psicologia do amor, em 1912, a ternura fosse considerada a
corrente mais antiga, ligada aos cuidados parentais, Freud retoma em 1921 a

noo de ternura esboada nos Trs Ensaios, em que o sentimento terno era
um derivado do recalque da sexualidade. Assim, na Psicologia do amor, Freud
considerava que De essas duas correntes (terna e sensual), a terna a mais
antiga. Ela procede da primeira infncia; formou-se fundando-se nos interesses
da pulso de auto-conservao e se dirige para as pessoas da famlia e
aquelas que cuidam criana 7. E em 1921, afirma Freud: A observao direta,
bem como a subseqente investigao analtica dos resduos da infncia, no
deixa dvidas quanto confluncia de sentimentos ternos e ciumentos, por um
lado, e propsitos sexuais, pelo outro8. A pessoa amada, conclui Freud,
objeto das aspiraes sexuais, enfatizando s um dos plos dessa confluncia
de afetos.
Posteriormente, toda a configurao amorosa edpica sucumbe ao recalque, e
as aspiraes sexuais ficam recalcadas e inconscientes, s restando, em
relao aos primeiros objetos de amor, laos de ternura. Assim, o sentimento
de ternura proviria das aspiraes sexuais incestuosas, constituindo uma
pulso inibida quanto ao alvo, produto da ao do recalque9.
Entretanto, Freud reconhecia uma mistura de sentimentos ternos e
desejos sexuais num momento anterior ao drama edpico e castrao, no
comeo das relaes do infante com as pessoas encarregadas de seu cuidado.
Qual seria a origem da ternura infantil anterior castrao, se ainda no houve
motivos para a inibio do alvo sexual? A noo de inibio supe a existncia
de obstculos que impedem a pulso de atingir sua meta de forma direta,
"encontrando uma satisfao atenuada em atividades ou relaes que podem
ser consideradas como aproximaes mais ou menos longnquas do alvo
primitivo"10. A inibio considerada como um princpio de sublimao, porque

em ambas a pulso se afasta do alvo sexual direto. Mas enquanto a


sublimao substitui o alvo sexual por outro socialmente valorizado, a inibio
no abandona totalmente a meta originria, se contentando com aproximaes
da mesma e satisfaes atenuadas. Em funo disso, a pulso inibida nunca
atingiria uma cabal satisfao, j que o prazer obtido seria sempre menor ou
diminudo em relao satisfao do alvo originrio.
Resumindo, vemos que Freud oscila entre uma concepo de ternura como
pulso inibida, na descrio da vida sexual adulta, e uma idia de ternura
infantil, cuja origem no poderia ser teorizada como inibio. Como explicar
que a ternura seja uma pulso de alvo inibido o que pressupe uma restrio
do alvo direto e, portanto, alguma forma de interdio e a existncia da
ternura na infncia, desde as origens?
Frente a esse impasse, sucessores de Freud como Ferenczi, Balint e
Winnicott, desenvolveram uma noo de ternura mais complexa, que no
poderia ser reduzida inibio do funcionamento pulsional.
Ferenczi, com sua noo de linguagem da ternura contraposta
linguagem da paixo nos ajuda a pensar a ternura positivamente, como uma
modalidade da vida ertica infantil, de carter ldico, que precede castrao
e ao recalque, diferente do erotismo passional adulto e sem a conotao de
restrio ou inibio da concepo freudiana11.
Balint, discpulo de Ferenczi, desenvolve uma concepo da ternura e
das relaes objetais precoces irredutveis ao pulsional. Considera ele que
devemos distinguir o desenvolvimento pulsional, que diz respeito s pulses
parciais auto-erticas, e o desenvolvimento relacional, que diz respeito s

relaes de objeto amorosas12. Para Balint, os modos de amar no dependem


dos objetivos e fontes das pulses parciais, j que se trata de processos
diferentes. Uma coisa seria, para o autor, o desenvolvimento do erotismo e
outra, o desenvolvimento do amor. A criana apresenta, inicialmente, na teoria
balintiana, um desejo passivo de ternura, ou desejo de ser amado, cuja
satisfao uma sensao calma e tranqila de bem-estar. Esse desejo de
ternura passivo, que Balint denomina tambm de amor de objeto passivo ou de
amor primrio, consiste no desejo de ser amado e cuidado sempre, de ser
atendido em todos os desejos, interesses e necessidades, de forma
incondicional, sem ter que dar nada em troca. O fato de se tratar de um desejo
passivo de ternura13 no significa que o mesmo seja exprimido de forma
atenuada ou passivamente. A demanda infantil de ternura tem um carter
apaixonado, e a reao ausncia de gratificao dessa demanda suscita
respostas passionais e agressivas.
Balint considera que embora Freud tenha apontado duas facetas da
ternura como a corrente mais antiga e como sexualidade inibida quanto ao
alvo s se preocupa em teorizar a segunda faceta. Da perspectiva balintiana,
temos duas formas de ternura: a ternura ativa dos adultos e a ternura passiva
infantil.
A ternura ativa adulta corresponde pulso sexual inibida no seu alvo.
sabido que o alvo sexual se refere ao prazer de rgo das pulses parciais ou
ao prazer orgstico. Contudo, entendo que a ternura s pode corresponder
inibio de um alvo sexual que pressuponha uma relao objetal para sua
satisfao. Pensamos que a inibio de um objetivo auto-ertico, como por

exemplo de uma pulso parcial anal, no provocaria ternura. A ternura


enquanto pulso inibida seria a contrapartida do amor sensual, e o alvo sexual
inibido seria o prazer orgstico genital. E como a pulso inibida no abandona
totalmente a meta originria, contentando-se com aproximaes da mesma, o
prazer obtido na ternura ser sempre menor ou diminudo que o sexual direto.
A ternura adulta no existiria antes do recalque. Entretanto, a ternura passiva
infantil14 existe durante toda a vida, desde a primeira infncia at a velhice, e
funciona como um componente imprescindvel de toda relao amorosa.
O impasse freudiano da ternura como pulso sexual de alvo inibido e
como corrente mais antiga se dilui, assim, com as contribuies de Ferenczi e
Balint, j que se trataria de duas formas diferentes de ternura.
A concepo de Winnicott do desenvolvimento emocional primitivo15,
tambm nos auxilia para positivar a ternura como uma modalidade de lao
precoce entre o beb e a me, no derivando da inibio do pulsional.
Winnicott explora terrenos no desenvolvidos por Freud, valorizando o amor
nas primeiras trocas entre o beb e o meio-ambiente, tanto da perspectiva dos
indispensveis cuidados amorosos do ambiente, quanto do desenvolvimento
da capacidade de amar no sujeito.
A expresso primitiva do amor inclui a agressividade, que quase um
equivalente da atividade ou da motilidade da fora vital. Como nesse momento
inicial ainda no existe integrao nem organizao egicas, os impulsos
amorosos coexistem com os impulsos ativos e impiedosos que no tem
considerao com o objeto16. Devemos diferenciar, nesse estgio inicial, o
amor

primitivo

da

criana

da

devoo

amorosa

materna,

condio

indispensvel para a experincia dos estados de tranqilidade, a confiana no


ambiente e a prpria constituio subjetiva. A nfase de Winnicott reside nos
cuidados amorosos que o ambiente pode brindar, j que o amor primitivo
infantil no poderia ser definido muito alm da total dependncia do beb e de
seu impulso vital criativo.
No estgio inicial da dependncia absoluta, o fundamental o processo
silencioso da integrao, personalizao e adaptao realidade que realiza o
beb, sustentado pela proviso do amor materno, e condio de possibilidade
das conquistas posteriores. Nesse estgio, convivem os estados tranqilos e
excitados do beb, que correspondem a duas funes de me: a meambiente, amada pelos cuidados que propicia e a me-objeto, atacada pela
excitao pulsional17. Aos poucos o beb vai reconhecendo que a me dos
estados calmos; a me do amor calmo ou da ternura, e a me dos estados
excitados; a me do amor excitado ou da paixo18, so uma mesma pessoa.
Assim, o beb percebe que o objeto atacado o mesmo que o amado,
desenvolvendo a capacidade de concernimento19 (concern) pelos possveis
danos feitos pessoa amada. Se a me for suficientemente boa e sobreviver
aos impulsos erticos e impiedosos do beb, aceitando seu concernimento e
reparao, ele aprende a dar e reparar, estabelecendo-se um ciclo benigno de
destruir e reparar, machucar e curar, etc. A criana aprende a ter confiana no
ambiente, que propicia e reafirma seu impulso espontneo. A criana se torna
responsvel e preocupada com o objeto amado, integrando a frustrao e a
raiva no sentimento amoroso. A criana passa a reconhecer o outro como uma
pessoa total e aprende a cuidar dele, o que constitui a base das relaes
amorosas. O amor, nesta perspectiva, pode ser concebido como a capacidade

de reconhecer o outro, de cuidar do outro, e permanecer, ao mesmo tempo,


espontneo e criativo. O amor ou a capacidade amorosa surge de um longo
processo de trocas entre o indivduo e seu ambiente, como uma afirmao do
gesto criativo conjuntamente com a descoberta do outro.
importante salientar, no intuito de definir melhor a noo de ternura, a
distino winnicottiana entre a dependncia do lactente e a condio
psicolgica da me. No final da gravidez e at as primeiras semanas ou meses
aps o nascimento, a me comumente desenvolve um estado de sensibilidade
aumentada para atender incondicionalmente s necessidades e desejos do
beb: estado de preocupao materna primria, ou devoo materna20. As
necessidades do beb, que so inicialmente corporais e aos poucos se
transformam em necessidades do ego, no podem, segundo Winnicott, serem
reduzidas a tenses instintivas; trata-se de necessidades do ego ou de
necessidades psquicas primrias, como aconchego, calor, colo, contato
corporal, etc.
A sensibilidade exacerbada da me devotada, que seria, a meu ver, um
sentimento de ternura intensificado, corresponde capacidade da me de se
identificar21 com o que o beb sente. Entendo que o eu materno se identifica
com a condio dependente e frgil do recm-nascido, como se a me
projetasse no beb seu prprio desamparo infantil. Nesse sentido, minha
hiptese considerar que a ternura pressupe uma forma de identificao, que
pode ser chamada de identificao terna, em que uma parte do eu se identifica
com um aspecto desvalido do objeto, remetendo-se a sua prpria dependncia
infantil.

10

Recapitulando, vimos que autores como Ferenczi, Balint e Winnicott


desenvolvem uma concepo da ternura que no deriva da inibio do
pulsional nem pressupe a interdio do sexual. Ferenczi criou a noo de
linguagem da ternura ou estdio da ternura, considerando que crianas nesse
estdio no poderiam se abster da ternura, sobretudo materna. Balint
desenvolve a idia de um desejo passivo de ternura irredutvel ao pulsional,
cuja satisfao gera uma sensao de calmo e tranqilo bem-estar. E Winnicott
aborda a construo da capacidade amorosa num longo processo de trocas
entre o indivduo e o ambiente, teorizando sobre os cuidados amorosos
maternos, que permitem a satisfao das necessidades psquicas primrias,
propiciando os estados calmos do beb.
Para efeitos deste trabalho, e sem desconhecer as diferenas tericas
entre os autores, aproximamos as noes de necessidades psquicas
primrias e desejo passivo de ternura. Essas necessidades psquicas, que
produzem, quando satisfeitas, estados calmos e experincias de bem-estar,
poderiam ser ressignificadas como necessidade infantil de ternura, j que
embora o beb nada saiba sobre a necessidade que o aflige, quando no
recebe uma adequada proviso de ternura materna, sofre danos na
constituio de seu self y na sua integrao egica22.
Essa necessidade infantil de ternura, do meu ponto de vista, deriva da
dependncia do beb dos cuidados do adulto para sua sobrevivncia e sua
organizao psquica. Assim, se temos que supor alguma base para a
necessidade infantil de ternura, esta no seria a satisfao das pulses de
auto-conservao nem a inibio das pulses sexuais, mas o estado de

11

desamparo23. Como diz Freud, o estado de desamparo produz as primeiras


situaes de perigo e cria a necessidade de ser amado, de que o homem no
se livrar mais24.
Entendo que essa necessidade de ser amado, que acompanhar o
homem durante toda sua vida, porque sua condio no deixar nunca de ser
desamparada, no se refere necessidade do amor romntico, nem da
idealizao passional, que Freud teorizava na metapsicologia do amor, mas
necessidade de ternura, de ser reconhecido, cuidado e amado por um outro.
Por outro lado, o que se entende geralmente como capacidade de
amar no seria a capacidade orgstica nem de idealizar o objeto, mas a
capacidade de reconhecer o outro; de considerar e se preocupar com ele; de
se identificar ternamente com sua condio desvalida, ou seja, a capacidade
de sentir ternura.
Quando Freud, em 1921, acrescentava o ingrediente da ternura,
ampliava sua concepo do amor, indissocivel at esse momento da imagem
da paixo romntica, impossvel e absoluta. A incluso da ternura pode ser
pensada como um tributo freudiano viso romntica do amor e do
casamento, que conjugaria, numa relao nica, desejo sexual, paixo,
ternura, amizade e durao. Desse modo, a ternura permitiria ultrapassar a
fugacidade e precariedade da idealizao passional, garantindo a permanncia
do lao.
O sentimento de ternura no seria s condio para medir o grau de
apaixonamento, como afirmava Freud em 1921, mas condio dos laos
afetivos em geral. A marca distintiva do apaixonamento, no meu entender, que

12

o diferencia do simples desejo ertico, a idealizao narcsica do objeto, que


pode levar ao total domnio do ego por parte do objeto idealizado e
humilhao egica, como tambm s sensaes de fuso e completude e aos
estados de xtase amoroso.
Com esta nova leitura da noo de ternura, o componente de ternura
deixaria de ser imprescindvel no apaixonamento, para se tornar condio do
amor num sentido amplo. Assim, teramos apaixonamentos em que no se
desenvolve o sentimento de ternura, como acontece em certas paixes com
evolues perversas, como tambm teramos relaes ternas em que no
existe a idealizao passional. A ternura no se associa necessariamente a
mecanismos de idealizao, mas remeteria, a meu modo de ver, a processos
precoces de identificao.
Vemos que as contribuies de Balint e Winnicott nos ajudam a
conceber a ternura positivamente e no como uma satisfao atenuada ou
substituta frente ao gozo sensual. Entendo que no se trata de perspectivas
tericas opostas do fenmeno amoroso, mas de leituras complementares
desse fenmeno. Enquanto Freud, leitor de Goethe, teorizava sobre
impossveis paixes romnticas, Balint e Winnicott, com outras influncias
tericas, enfatizam o valor positivo da ternura e a construo da capacidade de
amar no sujeito, acenando com a viabilidade amorosa.
Finalizando, sabemos que o modelo de amor romntico, proposta moral
e poltica de Rousseau para a sociedade burguesa em ascenso, foi atomizado
com as transformaes sociais das ltimas dcadas. Entretanto, o declnio do
ideal romntico no foi substitudo por outro ideal amoroso, permanecendo

13

ainda, no imaginrio de nossa cultura, como imagem do verdadeiro amor e


via privilegiada de acesso felicidade.
A alternativa amorosa nos dias atuais parece se reduzir polaridade
entre o refgio no amor romntico de outrora, com a conseqente perda da
liberdade sexual e o sofrimento pela impossibilidade de atingir um ideal to
absoluto, ou a insatisfao sentimental com o livre gozo da sexualidade. Creio,
contudo, que o indivduo no anseia hoje por uma maior liberdade sexual, j
conquistada, nem aspira retornar tirania do amor romntico, com suas
renncias, padecimentos e excluses. O que o indivduo contemporneo no
pode, apesar do livre acesso aos prazeres sexuais e da decadncia do ideal
romntico, se abster dos laos afetivos, da necessidade de amar e de ser
amado de alguma forma. O sujeito contemporneo, o colecionador de
sensaes, um ser agnico de ternura, que no consegue abrir mo da
necessidade de ternura.
Minha crena de que, assim como o amor romntico deixou de ser a
nica alternativa possvel para a vida sexual, tambm pode deixar de ser o
reduto nobre da ternura. Da mesma forma que o sexo pde se libertar do
modelo romntico, que s o legitimava quando fusionado ao amor apaixonado
e construo de um lao conjugal, com sua conseqente carga de
padecimento e tragdia, talvez a ternura possa tambm ser desatrelada desse
modelo, buscando novas formas de expresso fora dos totalizantes imperativos
romnticos.
Encontramos um exemplo dessas novas expresses da ternura no
belssimo filme de Almodvar, Fale com ela, em que os personagens principais

14

vivem raros amores no convencionais, cuja marca a ternura. O filme nos


mostra dois homens solitrios, que conseguem, apesar das condies sofridas
e adversas a qualquer ideal de felicidade romntica, acenar com a
possibilidade da ternura. Poderia parecer que Fale com ela trata da
impossibilidade amorosa, do desencontro e da incomunicao, j que as
namoradas esto comatosas e mudas, mas provoca, curiosamente, uma
sensao de esperana na viabilidade amorosa, pelos laos ternos entre os
personagens.
Para concluir, minha esperana de que o declnio do ideal romntico,
embora tenha produzido desconcerto e incerteza, possa trazer a vantagem de
ter que reinventar novas modalidades amorosas, talvez mais ternas e
possveis, criando novas combinaes de erotismo e ternura que contribuam
para diminuir o mal-estar contemporneo.

NOTAS BIBLIOGRFICAS
1

BAUMAN, Z. O mal-estar da ps-modernidade, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 185


Ibid, p. 184
3
LIPOVETSKY, G. A era do vazio, Lisboa: Relgio dgua, 1983, p. 48
4
Cf LEJARRAGA, A.L. Paixo e ternura, um estudo sobre a noo de amor na obra freudiana, Rio de
Janeiro: Relume-Dumar, 2002
5
Cf FREUD, S. Introduccin del narcisismo, Obras Completas, Buenos Aires: Amorrortu, 1988, v. VII
6
Cf FREUD, S. Psicologa de las masas y anlisis del yo, ed. cit, v. XVIII
7
FREUD, S. Sobre la ms generalizada degradacin de la vida amorosa (Contribuciones a la psicologa
del amor II), ed. cit., v. XI, p. 174
8
FREUD, S. Psicologa de las masas y anlisis del yo, ed. cit., v. XVIII, p. 130
9
Ibid
10
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulrio da psicanlise, So Paulo: Martins Fontes, 1979, p. 311
11
Cf FERENCZI, S. Confuso de lngua entre os adultos e as crianas in: Escritos Psicanalticos, Rio
de Janeiro: Taurus, 1989
12
Cf BALINT, M. Remarques critiques concernant la thorie des organisations prgnitales de la libido
in: Amour primaire et technique psychanalytique, Paris: Payot, 1972, p. 52
13
Ibid, p. 62
14
Cabe destacar que a noo de ternura passiva alude ao desejo de ser amado ternamente, correspondendo
aquilo que a criana deseja receber do objeto, e no ao que ela sente pelo objeto. A ternura passiva no
porque a criana tenha um comportamento passivo, mas porque objeto da ternura do outro.
15
Cf WINICOTT, D. W. Desenvolvimento emocional primitivo in: Da pediatria psicanlise, Rio de
Janeiro: Imago, 2000
2

15

16

Cf WINNICOTT, D. W. A agressividade em relao ao desenvolvimento emocional in: Da pediatria


psicanlise, Rio de Janeiro: Imago, 2000
17
Cf WINNICOTT, D. W. O desenvolvimento da capacidade de se preocupar in: O ambiente e os
processos de maturao, Porto Alegre: Artes Mdicas, 1990
18
Cf ODWYER de MACEDO, H. Do amor ao pensamento, So Paulo: Via Lettera, 1999, p. 56
19
Cf WINNICOTT, D. W. O desenvolvimento da capacidade de se preocupar in: Op. cit.
20
Cf WINNICOTT, D. W. A preocupao materna primria in: Da pediatria psicanlise, ed. cit.
21
Ibid
22
Winnicott considera, referindo-se s necessidades egicas, que se trata de necessidades e no de
desejos, porque sua no satisfao provocaria graves danos na formao egica e na constituio do self.
23
Referimo-nos ao estado de desamparo no sentido dado por Freud no Projeto de 1895, como um
estado de dependncia fsica e psquica do infante, que precisa da ao de outrem para sua sobrevivncia,
o que no deve ser confundido com o sentimento de desamparo nem com a ausncia de amparo.
24
FREUD, S. Inibicin, sintoma y angustia, ed. cit, v. XX, p. 145

16

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