Oscar Cavalcanti de Albuquerque Bisneto - P - 134-150 PDF

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HEGEL E O PROBLEMA DO CETICISMO


Oscar Cavalcanti de Albuquerque Bisneto




RESUMO:
O desafio ctico um tema presente no pensamento de Hegel desde 1802, poca em que
publica, no kritisches Journal der Philosophie, seu artigo Verhltnis des Skepticismus zur
Philosophie. A preocupao primeira de Hegel, neste artigo, consiste em desfazer um mal-
entendido que havia se tornado um lugar comum nas discusses filosficas de seu tempo,
difundido sobretudo a partir da publicao do Aenesidemus de Gottlob E. Schulze, que
identificava o ceticismo antigo a uma espcie de empirismo vulgar. Segundo Hegel, ainda
que o ceticismo antigo possa ser avaliado a partir de diferentes pontos de vista, sob hiptese
alguma ele poderia ter tomado a experincia sensvel como critrio ltimo de verdade. Ao
contrrio, sustenta ele, a postura ctica entre os antigos estava voltada em seus ataques, em
primeiro lugar, contra o conhecimento do tipo sensvel. Dito isso, convm frisar que a nossa
pesquisa consiste em mostrar que o ceticismo pirrnico desempenha uma importante funo
na economia interna do pensamento de Hegel. Conforme entendemos, essa importncia reside
no fato de que alguns dos principais argumentos do pirronismo, tal como aparecem no livro
primeiro das Hipotiposis, esto diretamente ligados ao processo de fundamentao do incio
do sistema hegeliano.

Palavras-chave: Hegel Ceticismo - Fundamentao


O pensamento de Hegel ainda hoje acusado, como sabemos, de ter cometido
diversos deslizes epistemolgicos, constituindo sua filosofia, ento, a mais alta dose de
dogmatismo, que, presume-se, somente o cientificismo e a anlise lgica da linguagem
poderiam erradicar
60
. Embora tal acusao seja correta em relao ao perodo de Berna, cuja
preocupao central era de carter eminentemente prtico-religioso, o mesmo no se pode
afirmar no tocante aos perodos subseqentes, sobretudo ao de Iena. Em vista disso, esta
pesquisa encontra sua justificativa na suposio de que a figura do ceticismo, longe de ser
negligenciada, desempenha uma funo realmente importante no conjunto de sua filosofia, na
medida em que ela se encontra na base do projeto de fundamentao do sistema hegeliano
61
.

Doutorando em filosofia (e-mail: [email protected]; Endereo: R. Voluntrios da Ptria, 670-Cidade


Alta, Natal-RN; Tel: 84-88827010; Intituio: Ufrn; Agncia de Fomento: Capes).
60
FORSTER 1989, p. 98.
61
Embora seja esse, de fato, o foco principal da nossa pesquisa, isto , destacar o papel que os principais
argumentos dos antigos cticos desempenham no processo de fundamentao do sistema hegeliano, sabemos,
todavia, que no podemos prescindir, ao longo do nosso estudo, de uma considerao mais atenta do contexto
mais abrangente do Idealismo alemo.

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Em outras palavras, tal projeto de fundamentao constitui, conforme entendemos, o elemento
terico determinante que teria levado nosso autor a se ocupar com o problema do ceticismo,
especialmente pelas razes que vamos apresentar com aquele de linhagem pirrnica
62
.
Agora, para tornar mais claro o significado filosfico que a postura ctica ocupa no
sistema de Hegel, nosso ponto de partida deve girar em torno de sua apreciao crtica da
histria do ceticismo, cujo material vamos buscar no ensaio de 1802, Relao do Ceticismo
com a Filosofia, bem como em algumas passagens da Fenomenologia do Esprito e das
Lies sobre a Histria da Filosofia, textos nos quais a figura do ceticismo recebe destacada
ateno por parte do nosso autor. Porm, na medida em que representa como que o alicerce
lgico-ontolgico do absoluto, a Cincia da Lgica passa a ser o foco de nossas atenes
apenas num segundo momento, quando tratarmos do projeto de fundamentao do sistema.
Aps analisar alguns dos principais aspectos da histria do ceticismo, Hegel passa a
sustentar a tese de que em toda a tradio filosfica, apesar da flagrante heterogeneidade de
postura entre os prprios cticos, encontramos, a rigor, apenas duas correntes cticas uma
antiga, outra moderna
63
(esta ltima, vale frisar, sempre associada ao Enesidemo de
Schulze
64
). O fato inusitado aqui consiste, porm, na sua posio quanto relevncia que cada
uma dessas correntes possui para o empreendimento filosfico, j que entre a antiga e a
moderna, diferente do que pensa a maioria dos intrpretes do ceticismo
65
como Hume, por
exemplo , ele no enxerga um aperfeioamento da prtica ctica, mas antes uma degenerao
da mesma
66
. Segundo o autor da Fenomenologia, isso ocorre porque o ceticismo moderno
restringe suas objees filosofia especulativa, com a censura de que esta constri seu
conhecimento totalmente desvinculado da experincia, mas, em contrapartida, deixa o
conhecimento sensvel intacto, pelo fato de que este constitui um tipo de conhecimento
evidente completamente fora do alcance das dvidas cticas.

62
Isto , determinado tipo de ceticismo, inspirado nos preceitos bsicos dos ensinamentos de Pirro de lis,
considerado pela tradio como o criador da doutrina ctica.
63
Ainda que as censuras de Hegel ao ceticismo moderno possam se estender a toda uma vasta gama de
filosofias, segundo ele impregnadas de ceticismo, como, por exemplo, o probabilismo de Hume ou a filosofia
crtica de Kant este que, segundo ele, representa uma sorte de "ceticismo imperfeito", pois assegura um
conhecimento fenomenal ao mesmo tempo em que nega definitivamente um conhecimento da coisa em si,
ao menos para ns, humanos, cuja estrutura cognitiva finita (HARRIS 2000, p. 256) , particularmente
com o tipo de ceticismo advogado por Schulze que Hegel est preocupado, quando escreve seu artigo Relao
do Ceticismo com a Filosofia (1802). Com o sistema j maduro, apesar das repetidas aluses a Hume e a
Kant, novamente o nome de Schulze que reaparece associado ao ceticismo moderno, tanto na Enciclopdia
das Cincias Filosficas (1830) quanto nas Lies sobre a Histria da Filosofia (1838).
64
Segundo Tefilo Urdanoz, Schulze figurava como o adversrio mais penetrante e profundo do sistema de
Kant na primeira hora. Sua principal obra foi a da crtica do kantismo, o Enesidemo de 1792. Para mais, cf.
URDANOZ 1975, 125.
65
Cf. FORSTER 1989, p. 9.
66
Acerca da superioridade do ceticismo antigo sobre o moderno, cf. FOSTER 1989, p. 10; Cf. PIPPIN 1989, p.
96.
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Das razes levantadas por Hegel contra a incoerncia dos cticos modernos, uma,
segundo entendemos, deve se encontrar na base de todas as demais
67
, qual seja, a de que
Schulze defende que o verdadeiro motivo do surgimento do ceticismo entre os antigos
residiria nas pretenses especulativas dos dogmticos. De modo que a natureza das dvidas
levantadas pelos pirrnicos se estenderia apenas quela classe de conhecimento que se
adquire atravs da razo. No apenas isso, os pirrnicos teriam admitido que h um
conhecimento certo mediante os sentidos (HEGEL 2000, p. 320).
Segundo nosso autor, porm, um ctico como Schulze, que toma a experincia
sensvel como critrio ltimo de verdade, torna-se totalmente injusto em relao s fontes de
sua doutrina, porque foi justamente deste tipo de critrio que os antigos mais se afastavam
68
.
Por esse motivo, essa postura ctica moderna s pode exercer seu ceticismo, julga Hegel, de
uma maneira completamente dogmtica, visto que toda sua crtica filosofia terica est
fundada num comprometimento ingnuo com algumas teses injustificveis, sobretudo do
ponto de vista dos antigos pirrnicos. Diferente da postura autntica destes ltimos, que
consistia em nada afirmar, a dos modernos torna-se ela mesma dogmtica no exato momento
em que deixa de ser isenta de pressupostos, ou seja, quando lana mo da experincia sensvel
para refutar as afirmaes da filosofia terica.
No que diz respeito aos antigos pirrnicos, entretanto, o contedo do seu pensamento
no pode ser alvo de nenhuma das censuras levantadas h pouco contra os cticos modernos.
Essa modalidade antiga de ceticismo, com efeito, goza de um grande mrito filosfico, pela
simples razo, para Hegel de fundamental importncia, de que estava totalmente dirigida, em
seus ataques, primeiro e antes de tudo, contra a conscincia imediata, que sempre toma o dado
sensvel como algo estvel. Ademais, na medida em que os pirrnicos estendiam sua skpsis
tanto ao conhecimento emprico quanto ao conhecimento racional (HEGEL 2000, p. 320),
mostrando, ainda que ceticamente
69
, a contradio como um aspecto inerente a todas as
coisas, no entender do nosso autor, eles no s exibem um profundo conhecimento

67
Vale salientar que, em funo do objetivo aqui traado, no vamos abordar todas as crticas hegelianas a esta
ltima forma de ceticismo, mas to somente aquelas que nos conduzem anlise hegeliana dos argumentos
dos antigos pirrnicos, que, no nosso entendimento, guardam ligao direta com o projeto hegeliano de
fundamentao da cincia especulativa.
68
Pois, como se sabe, os dez tropos de Enesidemo que Hegel equivocadamente atribura a Pirro de lis , com
exceo do ltimo, tinham como alvo de seus ataques unicamente o tipo de conhecimento fundado na
realidade sensvel.
69
Isto , numa perspectiva hegeliana, sem defender um determinado contedo particular. Diferente do que
fazem os cticos modernos, quando afirmam duplamente: no apenas que temos conhecimento certo dos fatos
da conscincia, mas tambm quando elegem um critrio de verdade como infalvel, pois, para eles, nada do
que ensina a experincia, como j foi mencionado, passvel de dvida.
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especulativo das categorias filosficas
70
, como tambm simbolizam o momento da
negatividade no processo dialtico
71
progressivo de autoconhecimento da Idia.
Noutras palavras, quando, nas Lies sobre a Histria da Filosofia, Hegel afirma que
o ceticismo encerra a dialtica de todo contedo determinado
72
, ele est se referindo no aos
cticos modernos, que igual a Schulze, como vimos, tomam a experincia como critrio de
verdade incorrendo assim num crasso dogmatismo , mas sim aos antigos cticos. Somente
estes, salienta nosso autor, determinam uma forma estritamente dialtica de superao na
qual, em verdade, acaba sendo conservado tudo aquilo que antes fora superado
73
. Exatamente
por isso, o autntico ceticismo pirrnico representa, numa perspectiva interna ao sistema
hegeliano, a mola propulsora do movimento dialtico, ao mostrar a necessidade de superao
em tudo o que naturalmente finito. Como vem dito no captulo IV da Fenomenologia do
Esprito, todo outro tende a desvanecer diante do infinito poder do negativo da conscincia-
de-si ctica
74
.
ausncia de dogmatismo dos antigos deve-se ainda acrescentar o elemento terico
que, no entender de Hegel, constitui o ponto forte da prtica ctica entre os pirrnicos, e que
merece especial ateno no apenas por impedir que o pirrnico ataque determinadas crenas
com base em outras crenas igualmente dogmticas tal como procedera inadvertidamente o
ceticismo moderno
75
mas, acima de tudo, por legitimar a reiterada prtica pirrnica da
suspenso do juzo
76
(epoch), a saber: os cinco tropos
77
(tropoi) de Agripa
78
. Por isso, faz-se
necessrio um breve comentrio sobre os mesmos.
Ao darmos ouvidos a Sexto Emprico
79
, verificamos que o primeiro tropo conduz o
pirrnico suspenso do juzo com base na constatao histrica da diversidade dos sistemas

70
HEGEL 1997, p. 453.
71
Acerca da influncia dos argumentos cticos na formao da dialtica hegeliana, cf. FORSTER 1989, p. 171;
cf FORSTER 1998, pp. 130-170.
72
Cf. HEGEL 1997, p. 422.
73
O que nos remete necessariamente ao conceito de aufheben (que Paulo Meneses traduz por suprassumir),
formulado por Hegel, to importante para sua concepo de dialtica. Cf. HEGEL 1838, p. 422.
74
HEGEL 1807, p. 138.
75
FORSTER 1989, p. 11.
76
Isto , como a cada discurso levantado sempre se pode aduzir outro do lado oposto com igual peso epistmico
(equipolncia), o pirrnico simplesmente se abstm de escolher entre os dois, caracterizando assim sua famosa
suspenso do juzo.
77
Como veremos adiante, os tropos consistem basicamente numa srie de argumentos, recolhidos no universo
mesmo das discusses filosficas, que tinham como principal finalidade legitimar o processo de suspenso do
juzo entre os cticos antigos. (HARRIS 2000, p. 260).
78
Pouco ou nada se sabe com segurana a respeito desse filsofo ctico. Apesar disso, Sexto Emprico e
Digenes Larcio esto de acordo com relao ao fato de que esses cinco tropos da suspenso do juzo so
realmente de sua autoria.
79
Na verdade, um mdico de profisso, segundo Popkin, que por ter sido o nico ctico pirrnico grego cuja
obra, ainda que obscura e sem qualquer originalidade, ficara intacta, haveria de nos legar quase tudo o que
hoje sabemos por ceticismo antigo. Para mais, cf. POPKIN 2000, p. 50.
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filosficos
80
, j que, dada a igualdade epistmica dos mesmos (equipolncia), no h como
escolher entre eles seno arbitrariamente; o segundo consiste no regresso ao infinito ao qual
se v comprometida toda tentativa de fundamentao; o terceiro, por sua vez, o da relao,
segundo o qual nada se mostra em sua pureza mas sempre em relao com algo outro; sendo o
quarto o do axioma ou da hiptese, que consiste no fato de postular um primeiro princpio
com base unicamente no arbtrio, conferindo assim ao ctico o mesmo direito de postular
outro princpio igualmente vlido do lado oposto; e, enfim, o quinto, o da prova circular, no
qual se prova o fundamentado mediante o fundamento e este, por sua vez, mediante aquele
81
.
Todas as doutrinas dos dogmticos, por esse motivo, encontram-se fatalmente
envolvidas em sua malha lgica de refutao. Numa palavra, as premissas que servem de base
aos sistemas filosficos, sem margem a exceo, esbarram necessariamente em pelo menos
um daqueles tropos. Acerca da virulncia neles contida, Sexto relata que possvel reduzir
todo objeto de indagao (isto , toda questo essencialmente filosfica) a um desses
[cinco] tropos (Hipotiposis, I 1, 170).
No entender de Hegel, enquanto evidenciam em tudo que finito seu carter instvel,
isto , que tudo est continuamente em devir sendo esse um aspecto determinante do
movimento dialtico
82
do prprio esprito (Geist), mas que passa necessariamente
despercebido ao entendimento , os tropos pressupem um forte contedo especulativo, na
medida em que colocam em questo no apenas teorias ligadas ao conhecimento da
conscincia imediata, isto , ao conhecimento sensvel, mas tambm, e sobretudo, aquelas
teorias cujos enunciados so derivados da faculdade do entendimento, antes totalmente
imunes aos primeiros dez tropos
83
.
Cumpre salientar, todavia, que essa viso favorvel de Hegel a respeito do ceticismo
antigo tem limites bastante determinados. Mesmo porque deve haver uma alternativa legtima
que no se resuma dicotomia ceticismo ou dogmatismo, a saber: seu idealismo absoluto. O
ceticismo antigo, ainda que encontre sucesso contra o dogmatismo do entendimento ordinrio,
superado, segundo nosso autor, porque fica preso ao momento da negatividade. Noutras
palavras, como ao negativo se contrape necessariamente o positivo, isto , o positivo

80
A objeo contra a legitimidade do empreendimento filosfico pautada na pluralidade das doutrinas
filosficas no decorrer da histria j se encontrava presente, embora no nesse formato, nos dez primeiros
tropos de Enesidemo. Cf. HARRIS 2000, p. 260.
81
Hipotiposis, I 1, 164-177.
82
O que parece sugerir, ao menos primeira vista, que podemos encontrar nos tropos de Agripa a fonte histrica
originria do conceito de negatividade, to fundamental para a estrutura lgica do sistema hegeliano,
enquanto constitui a mola propulsora do movimento dialtico.
83
Pois, como dissemos, os tropos de Enesidemo colocam em questo apenas o conhecimento sensvel. Cf. nota
13.
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racional, entendido como o momento lgico superior do dialtico, a conscincia-de-si ctica
tambm traz em si um aspecto finito, unilateral, ao no perceber que o negativo somente em
sua recproca referncia ao positivo
84
. De modo que nenhum dos dois termos existe
isoladamente, mas antes, e to somente, numa concreta unidade diferenciada de termos
contrapostos.
Eis, portanto, a fonte do equvoco, salienta Hegel, de toda e qualquer postura ctica.
Uma vez que no compreende que toda negao consiste numa negao determinada
(expresso claramente inspirada na Carta L de Spinoza, "omnis determinatio est negatio"), e
que exatamente por isso qualquer negao deve necessariamente trazer consigo um
determinado contedo, o ceticismo antigo, enquanto est preso a uma lgica bivalente
85
, de
carter no dialtico, vale frisar, encontra em si mesmo os germes de sua prpria superao
86
.
Mas no basta, filosoficamente falando, superar as implicaes cticas dos tropos de
Agripa a partir do ponto de vista do sistema hegeliano, pura e simplesmente. Pois, como
sabemos, um asseverar seco vale tanto quanto outro
87
. Por essa razo, com o intuito de no
ver seu sistema sucumbir ao mtodo da equipolncia, pensa Hegel, faz-se ento necessrio
fundament-lo em bases realmente slidas. Alm disso, como dissemos, essa necessria
fundamentao do incio do sistema deve encontrar seu ponto de partida na arena de batalhas
do prprio ceticismo
88
. O que se traduz ento numa necessria apropriao dialtica
89
, por
parte do idealismo hegeliano, dos tropos da suspenso do juzo. Ou seja, nesse contexto os
tropos acabam funcionando como uma espcie de instrumento
90
, sendo esse, pode-se dizer, o
nico modo vivel de superar
91
definitivamente o fantasma do ceticismo.
Entretanto, antes de apresentar as teses defendidas por Hegel a favor da legitimidade
da sua filosofia, cumpre dizer algumas palavras sobre o local na arquitetura do sistema que,
conforme entendemos, corresponde ao momento de sua fundamentao; sobretudo porque a

84
FORSTER 2000, p. 39.
85
Isto , a uma lgica aristotlica, que nada mais que um produto das determinaes fixas e estanques do
entendimento. Para mais sobre a relao entre a lgica de Aristteles e a lgica dialtica de Hegel, Cf.
CIRNE-LIMA 1996, p. 14.
86
HEGEL 1838, p. 422.
87
HEGEL 1807, p. 66.
88
FORSTER 1989, p. 4.
89
Dialtica, cumpre ressaltar, porque passam a cumprir uma finalidade outra que aquela unicamente em vista
da qual foram criados, contrariando assim seu prprio princpio. Ou seja, quando utilizados pelos cticos,
reduzem a nada a possibilidade de um conhecimento seguro. Quando utilizados por Hegel, todavia, reduzem a
nada a segurana do ceticismo, ao mesmo tempo em que servem como instrumento para a consecuo de uma
forma de conhecimento absolutamente segura que, por seu turno, fica imune ao desafio ctico.
90
Apesar de todas as ressalvas hegelianas a essa palavra, como os primeiros pargrafos da sua famosa
introduo Fenomenologia do Esprito demonstram. Sobre isso, cf. HYPPOLITE 2003, p. 22.
91
Em virtude do princpio que adotou, como lembra Chtelet, Hegel "no pode refutar nenhuma filosofia,
limita-se a situ-la no seu contexto", cf. CHTELET 1994, p. 117.
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respeito deste tema ainda reina muita impreciso
92
. Dito isso, sustentamos a tese de que o
idealismo absoluto hegeliano no encontra sua fundamentao na Fenomenologia do Esprito,
mas sim na Cincia da Lgica. Realmente, a Fenomenologia tem como principal tarefa
demonstrar a parcialidade de todos os saberes imperfeitos da conscincia natural atravs de
um processo dialtico-fenomenolgico cumulativo de superao, no qual cada um desses
saberes da conscincia dentre os quais se inclui tambm o ceticismo como uma das figuras
da conscincia ordinria encontra sua verdade no em si mesmo, mas no saber da figura
fenomenolgica que dialeticamente o sucede. De modo que esse processo dialtico-
fenomenolgico cumulativo tem como resultado o puro saber de si do esprito, isto , o puro
saber, enquanto pura identidade de ser e pensar
93
; sendo este, segundo Hegel, o conceito da
cincia fornecido pela Fenomenologia Cincia da Lgica
94
. Como enfatiza nosso autor, o
conceito da cincia pura e sua deduo devem funcionar como as pressuposies bsicas da
Cincia da Lgica, mesmo porque a Fenomenologia do Esprito no mais do que a deduo
desse conceito (HEGEL 1816, p. 46). Ou seja, se a Lgica deve pressupor o conceito da
cincia oriundo da Fenomenologia, ento parece inevitvel concluir que o resultado da ltima
figura da cincia da experincia da conscincia deve servir, por si s, como o nico
fundamento legtimo do incio da grande Lgica.
Noutro momento, porm, o prprio Hegel salienta que o "comeo [da cincia] no
deve pressupor nada, no deve ser mediado por nada, nem ter um fundamento, melhor, deve
ser ele mesmo o fundamento de toda a cincia" (HEGEL 1816, p. 65). Se se trata de um
comeo absoluto, como ele realmente almeja, ento sua importncia reside em que ele deve
suportar todo o edifcio da Lgica (BONACCINI 2000, p. 147). Assim, muito embora o
sistema constitua um todo orgnico, no qual cada uma de suas partes guarda uma conexo
dialtica intrinsecamente necessria com as demais, a Lgica no pode garantir a necessidade
do seu comeo absoluto baseando-se unicamente no conceito de cincia oriundo da
Fenomenologia.
Por essa razo, o argumento de que o incio da Lgica mediado pela
Fenomenologia funciona apenas para o indivduo que no possui nenhuma objeo
passagem dialeticamente necessria do puro saber, como identidade de ser e pensar, obtido
atravs do processo fenomenolgico, ao puro ser, ponto de partida da Cincia da Lgica. Ao
passo que para o ctico, e reside aqui todo o problema, esse mesmo argumento no

92
Embora no seja nossa inteno sobretudo em se tratando de uma pesquisa em andamento apresentar algo
definitivo sobre este problema.
93
BONACCINI 2000, p. 154.
94
HEGEL 1968, 46.
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funcionaria como uma prova satisfatria, pois, do ponto de vista do ceticismo, soaria
arbitrrio o fato de o incio de uma obra filosfica, que se pretende cincia, pressupor o
resultado de outra obra. Com efeito, isso significa simplesmente que o desafio ctico ainda se
impe como um forte obstculo, enquanto implica que a verdadeira cincia no pode
pressupor absolutamente nada, sob pena de sucumbir aos tropos da suspenso do juzo.
Uma vez esclarecido esse ponto, passemos agora ao exame do processo de
fundamentao, propriamente dito. Conforme mencionamos acima, tal processo ocorre num
dilogo com os cinco tropos de Agripa, precisamente num texto que antecede o primeiro
captulo da Cincia da Lgica, intitulado Com o que deve ser feito o incio da Cincia?.
Dos cinco tropos, vale frisar, apenas trs interessam a Hegel nesse contexto, que so o
segundo, o quarto e o quinto; ao passo que os outros dois, o primeiro e o terceiro, so
refutados a partir do interior mesmo do sistema. Apesar disso, em funo da natureza do
problema aqui considerado, algumas palavras devem ser ditas sobre os mesmos.
No que respeita ao primeiro tropo, que consiste em desacreditar o empreendimento
filosfico com base no argumento da diversidade, a resposta de Hegel, bastante conhecida,
consiste em afirmar que essa suposta pluralidade de sistemas filosficos, se observada mais de
perto, mostrar-se- ilusria. Na verdade, no h seno uma nica idia de filosofia. Todas as
filosofias histricas, segundo essa perspectiva, so essencialmente ligadas umas s outras em
funo de uma determinada conexo interna e dialtica assim como as sucessivas etapas no
processo histrico de formao do esprito na Fenomenologia , posto que a idia que as
anima somente uma, ainda que assuma formas diferentes. No entanto, para alar ao ponto de
vista especulativo, momento do lgico capaz de identificar a unidade na multiplicidade,
condio indispensvel para compreender que a unio diferenciada de contrrios um aspecto
inerente a todas as coisas, necessrio, segundo Hegel, no se ater lgica dual do
entendimento, que, diante da diversidade, apenas abstrai e pra inadvertidamente na
contradio.
Com relao ao terceiro tropo, o da relao, o prprio conceito de absoluto por si s
o reduz a nada. Como nenhum tipo de dicotomia tem direito de cidadania no seio do absoluto,
cai por terra a idia, at ento dominante no cenrio filosfico do Idealismo alemo
95
, de que
h no processo de conhecimento o sujeito cognoscente de um lado, e o objeto cognoscvel, de
outro. Aqui, contudo, o prprio absoluto que se conhece a si mesmo, de maneira tal que ele
simultaneamente sujeito cognoscente e objeto cognoscvel. Logo, como revela a introduo

95
Constituindo a doutrina do jovem Fichte e a filosofia da identidade de Schelling as duas nicas excees.
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da Fenomenologia do Esprito ao tratar da conscincia natural que ainda no se sabe esprito,
o absoluto seu prprio padro de medida, no havendo necessidade por isso de nenhum
padro de verdade extrnseco a ele.
Mesmo porque o absoluto possui como caracterstica principal no guardar relao
com nada que no seja ele mesmo, isto , com o prprio absoluto. No fosse assim, seria
contraditrio, pois no seria absoluto, j que lhe faltaria algo, com o qual, de alguma forma,
haveria de se relacionar, privando-o assim de corresponder ao seu prprio conceito, isto , de
sua absolutidade. Nesse sentido, a nica forma de relao possvel apenas do absoluto
consigo mesmo, portanto, uma relao interna e necessria, uma vez que precisamente nessa
relao interna consigo mesmo que o absoluto se conhece, atravs de um longo processo
histrico dialtico, como esprito absoluto.
No obstante isso, a ateno de Hegel, quando parte para legitimar o incio do
sistema no texto acima citado , est completamente voltada, como dissemos, para os outros
trs tropos. Por esse motivo, o primeiro conceito que deve lhe servir de fundamento para a
cincia justamente o puro ser que, por ser absolutamente vazio de determinaes, fica
idntico ao puro nada repousando assim a legitimidade do incio da lgica dialtica nessa
imediatez pura, que nada mais que o puro ser. Numa palavra, temos o puro ser, categoria
mais universal do absoluto, como a absoluta identidade de ser e pensar
96
. O que significa
dizer, portanto, que o idealismo absoluto no parte arbitrariamente de nenhum pressuposto
injustificado e, por essa razo, no confere ao ctico o direito de, com base no tropo do
axioma, postular outro princpio do lado oposto igualmente vlido, de modo a legitimar sua
suspenso do juzo. O mesmo se pode dizer a respeito do segundo tropo, o do regresso ao
infinito na tentativa de fundamentao, j que o fundamento aqui, o puro ser, totalmente
indeterminado, pois no traz consigo nenhuma determinao. Ou seja, como o puro ser
totalmente indeterminado, vazio de todo e qualquer contedo, no h como regredir
infinitamente na tentativa de legitimar um contedo determinado, simplesmente porque no
h o que fundamentar.
Mas, alm do comeo lgico, enquanto indeterminao absoluta, isto , como puro
ser, cimenta tambm o princpio de sua Lgica o argumento da prova circular. Sua pretenso
bsica consiste, pois, na asseverao de que a verdade se organiza em um todo dialtico
estrutural cujo ponto de partida coincide necessariamente com o resultado final e forma assim
uma unidade com ele
97
. Noutro momento, Hegel chega a afirmar que o essencial para a

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HEGEL 1816, p. 65.
97
HEGEL 1838, p. 455.
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cincia no tanto que o comeo constitua um imediato puro, mas que sua totalidade no seja
mais que um percurso circular em si mesmo, no qual aquilo que primeiro torna-se o ltimo
e o ltimo, por sua vez, torna-se tambm o primeiro
98
. Ou seja, na medida em que o Absoluto
se apresenta em sua mais genuna verdade sob a forma fechada de uma circularidade
categorial estritamente dialtica, desse modo passa a ser totalmente irrelevante, no caso da
cincia, se esta possui um incio imediato ou no, uma vez que todas as suas categorias seriam
simultaneamente mediatas e imediatas. Assim, o sistema hegeliano no ficaria devedor do
ltimo tropo, o da circularidade na fundamentao, porque, em se tratando do absoluto,
fundamento e fundamentado so uma e a mesma coisa. O que no significa outra coisa seno
que precisamente o absoluto que se justifica a si mesmo, causa sui, no havendo portanto
uma relao extrnseca entre os dois, fundamento e fundamentado, tal como ocorre nas teorias
dogmticas, ainda presas lgica dual do entendimento.
Certamente, estamos cientes de que existe muito ainda a ser dito a respeito dos
problemas aqui levantados. Apesar disso, acreditamos ter mostrado que os principais
argumentos dos antigos cticos gozam, com efeito, de importncia fundamental no conjunto
da filosofia hegeliana e que, longe de negligenciar, ou simplesmente tratar marginalmente o
problema do ceticismo, Hegel como pretendemos demonstrar ao trmino da pesquisa
parece partir do princpio de que a nica forma vivel de fundamentao filosfica legtima
consiste, portanto, em levar devidamente a srio o problema do ceticismo.


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