1) O texto discute a teologia da tradução na Europa, particularmente no período romântico alemão, quando a tradução da Bíblia estabeleceu as línguas naturais.
2) A tradução na Alemanha romântica envolveu intensa reflexão sobre a possibilidade, necessidade e significado da tradução para a língua e literatura alemãs.
3) O texto explora a dimensão ontológico-teológica subjacente a certos conceitos de tradução literária, particular
1) O texto discute a teologia da tradução na Europa, particularmente no período romântico alemão, quando a tradução da Bíblia estabeleceu as línguas naturais.
2) A tradução na Alemanha romântica envolveu intensa reflexão sobre a possibilidade, necessidade e significado da tradução para a língua e literatura alemãs.
3) O texto explora a dimensão ontológico-teológica subjacente a certos conceitos de tradução literária, particular
1) O texto discute a teologia da tradução na Europa, particularmente no período romântico alemão, quando a tradução da Bíblia estabeleceu as línguas naturais.
2) A tradução na Alemanha romântica envolveu intensa reflexão sobre a possibilidade, necessidade e significado da tradução para a língua e literatura alemãs.
3) O texto explora a dimensão ontológico-teológica subjacente a certos conceitos de tradução literária, particular
1) O texto discute a teologia da tradução na Europa, particularmente no período romântico alemão, quando a tradução da Bíblia estabeleceu as línguas naturais.
2) A tradução na Alemanha romântica envolveu intensa reflexão sobre a possibilidade, necessidade e significado da tradução para a língua e literatura alemãs.
3) O texto explora a dimensão ontológico-teológica subjacente a certos conceitos de tradução literária, particular
Baixe no formato PDF, TXT ou leia online no Scribd
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 11
Teologia datradu~ao: tal titulo deveria engajar-me emurn cami-
nho necessario e, emsuma, facilmente reconhedvel. A historia ea
problematica datradu~ao, naEuropa, constituiram-se bemcedo sobre osolo e, naverdade, sobre 0proprio corpo ou 0corpus daSanta Es- critura. Unguas naturais fixaram-se, seassim0podemos dizer, enrai- zadas ou reenraizadas, no proprio acontecimento datradu~ao daBi- blia. Por economia, so pronunciarei 0nome proprio deLutero e0 emblema bastara. Poderiamos seguir, apartir desseacontecimento ou dessaserietipica deacontecimentos, 0que setornaram naEuropa a tradu~ao, 0discurso sobre atradu~ao, apratica datradu~ao. Outros acontecimentos, outras muta~6es, semduvida, afetaram aestrutura. Masalgodessarela~aoessencial a estrutura sagradaparecepermanecer inapagavel- enisso nao hanada defortuito. Tentei mostrar issoem 1 Este texto seoriginou deuma conferi:ncia pronunciada emingli:s, naUniver- sidade deToronto, por ocasiao deurn col6quio sobreA Semi6tica daTradu<;:ao Literaria. Essa conferi:ncia vem finalizar 0seminario acima mencionado. Foi publicado inicialmente em Texte, n" 4, 1985, loc. cit., eemseguida emQu'est- ce que Dieu? Philosophie/Thriologie. Hommage a l'abbri Coppieters de Gibson. Bruxelas: Publications des Facultes Saint-Louis, 1985. * Teologia da tradufao faz parte deuma serie de quatro conferi:ncias proferidas, emingli:s, no Fifth International Summer Institute for Semiotic and Structu- ral Studies, de 31demaio a25dejunho de 1985, sobre 0tema "Lelangage et les instituitions philosophiques". (N. do Org.) Este texto foi publicado pos- teriormente emDu droit ala philosophie. Paris: Galilee, 1990, pp. 371- 94. (N. daT.) Tradu<;:ao:Nicia Bonatti. Maspor quechamamos aterceira epocaaultima, e0quevamos indicar empoucas palavras. Umatradw.ao quevisaaidentificar-se aooriginal tende aaproximar-se, afinal decontas, daversaointerlinear, efacilitaenormemen- teacompreensao do original; por ai, encontramo-nos dealguma forma le- vados ao texto primitivo, eassimsecompleta finalmente 0ciclo segundo 0 qual seopera atransi<;aodo estrangeiro aofamiliar, do conhecido aodesco- nhecido. 5 mento, digamos, "luterano" (como 0faz todo conceito de traduc;:ao), nao deixa de conservar certa originalidade, ade uma familia de acon- tecimentos irredudveis na historia da traduc;:ao, de sua problematica ede sua pratica. Quais saDos indkios externos econvencionais para designar essa famllia de acontecimentos? Em geral, 0que chamamos de Roman- tismo alemao, que foi ao mesmo tempo urn momento de reflexao in- tensa, agitada, atormentada, fascinada sobre atraduc;:ao, sua possibili- dade, sua necessidade, sua significac;:ao para allngua epara aliteratu- ra alemas e urn momento em que cerro pensamento da Bildung, da Einbildung ede todas as modificac;:6es de Bilden nao sesepara daqui- 10que podedamos chamar justamente 0imperativo da traduc;:ao, a tarefado tradutor, 0dever-traduzir. Deixei as palavras Bild, bilden, Bildung etoda sua familia em sua llngua de origem porque elas saD desafios a traduc;:ao. Imagem, forma, formac;:ao, cultura, todas sao aproximac;:6es insuficientes, primeiramente porque perrencem afon- tes semanticas diferentes. Sobre essa configurac;:ao da Bildung eda Ubersetzung (palavra que mal podemos traduzir por "traduc;:ao" semperder at de partida, toda adimensao posicional do setzen), comec;:arei par remeter ao belissimo livro deAntoine Berman, L 'tpreuve de I' itranger. Culture et traduction dans I 'Allemagne romantique. 6 * 0 que farei aqui, numa especie de homenagem aesse livro, sed talvez trazer alguma pequena contri- buic;:aosuplementar a respeito da estrutura de suplementaridade na traduc;:ao. Essa modesta contribuic;:ao concernid inicialmente acerta dimensao onto-teologica, uma problematica de onto-teologia que se encontra no fundamento de cerro conceito de traduc;:ao. Berman nao trata disso. Tentarei tambem fazer aparecer alac;:oentre essadimensao onto-teol6gica eaespeculac;:ao da epoca sobre ainstituic;:ao universi- raria. Enfim, para restringir minha analise enao ficar em Torno de generalidades ou ilus6es metatextuais, eu me aproximarei de urn texto outro lugar, em urn ensaio sobre "A tarefa do tradutor", de Benja- min. 2 * Nao me deterei nisso aqui, mas aproximarei simplesmente a conclusao deA tarefa do tradutor** de uma cerra passagem do Divan occidental-oriental,3 de Goethe. Benjamin, na ultima frase deseu texto, fala da versao intralinear (da Biblia) como do Urbild, do ideal proto- dpico, daimagem ou da forma originaria da traduc;:ao(prefiro guardar aqui apalavra alema Urbild, pois ede Bild, bilden, Bildung de que falarei ao longo desta conferencia). Ora, eis 0que diz Goethe, depois deter distinguido, como ]akobson,4*** mas emurn senti do completa- mente diferente, tres especies, na verdade, treS epocas da traduc;:ao: Nao ediretamente dessa dimensao teologica de que falarei. Este dtulo, "Teologia da traduc;:ao", remete aOUtrOconjunto hist6rico, a uma configurac;:ao pre-moderna que, por supor eenvolver emsi amo- J acquesDerrida, "DestoursdeBabel",inDiffirence in translation. Ed.J oseph Graham. Ithaca: Cornell UniversityPress, 1985, pp. 209-84. Publicadotam- bememPsyche. Inventions de l'autre. Paris:Galilee, 1987-[1998]. J . W. Goethe, "Traductions", inDivan occidental-oriental. Trad. franc. De Henri Lichtenberger. Paris:Aubier, Montaigne, 1969. 4 RomanJ akobson, "Aspectslinguistiques delatraduction", inEssais de lin- guistique generaIe. Paris:Minuit, 1963, pp. 78-86. J . W. Goethe, op. cit., p. 443 (tradu<;aoligeiramentemodificada). * Traduzidopara0portuguesporJ uniaBarreto, Torresde BABEL. BeloHorizon- te: EditoraUFMG, 2002. (N. doarg.) ** W. Benjamin,A tareft-renuncia do tradutor (1923). Trad.SusanaKampff Lages. Grg.WernerHeidermann.Florian6polis:UniversidadeFederaldeSantaCatari- na, 2001, vo!. 1, pp. 187-215, ChissicosdaTeoriadaTradu<;ao.(N. doarg.) + ++ "Aspectos lingiifsricos datraduc;ao", inLingiiistica e comunicafiio. Trad. porI. IsidornBliksteineJ osePauloPaes.SaoPaulo: Cultrix, 1973, pp. 62-72. (N .1,1T) 6 AntoineBerman, D!preuve de l'etranger. Culture et traduction dans l'Allemagne romantique. Paris:Gallimard, 1984, co!. LesEssais. * A prova do estrangeiro - Cultura e tradufiio na Alemanha romantica. Trad. Maria Emilia PereiraChanut. Bauru: Universidade do Sagrado Cora<;ao, EDusc,2002. (N. doarg.) edeum autar que Berman mal nomeia, ede quem, emtodo caso, nao diz quase nada: Schelling. A essa "lei da Bildung cldssica", que dominaria 0pensamento da tradu<;:ao, emsuma, de Goethe aHegel, passando por Schelling, Ber- man op6e 0"pensamento de Holderlin", que Faria "explodir a simplici- dade do esquema da Bildung': Se escolhi falar de Schelling etambem por outra razao que nao ousarei chamar de contingente. Esse discurso sobre a"tradu<;:aolitera- ria" que falari menos de tradu<;:aoede literatura "propriamente ditas" que de certa filosofia schellinguiniana da tradu<;:aolitedria, de certa pretensao onto-teologica de fundar atradu<;:ao poetica, etambem a sessao de conclusao do seminirio que dei aqui mesmo sobre "Lan- guages and institutions of philosophy". Voces reconhecerao, portan- to, todos os rastros do compromisso que percorro entre aquele semi- nari~eeste coloquio. A ultima sessao concernia aum certo dispositivo kantlano da filosofia da universidade, da filosofia dentro da univer- sidade, eanunciava acritica schellinguiniana da proposi<;:aokantiana. Esta seencontra, com efeito, recolocada emcausa por Schelling, em suas li<;:6esde 1803, "sobre 0metodo dos estudos academicos". 80que Schelling reprova na constru<;:ao ena dedu<;:aokantianas da estrutura ~niversitiria (principalmente as duas classes de faculdades, as supe- nores - teologia, direito, medicina - ligadas ao poder do Estado que elas representam, eainferior, ada filosofia, sobre aqual 0poder nao tem nenhum direito de censura, na medida emque ela mantem um discurso sobre a verdade no interior da universidade) eaunilate- ralidade de sua perspectiva topologica, sua "Einseitigkeit".9 Essa unilateralidade traduz, sobre 0plano da arquitetura insti- tucional, aunilateralidade da "critica" kantiana emseu proprio prin- cipio. Segundo Schelling, todas asdissocia<;:6es, toda agrade dos limi- tes criticos que quadriculam ainstitui<;:ao universitiria kantiana (tal como edescrita pelo qonflitqcfaSfMufd.a4es) ,so fazem, finalmente, transpor aoposi<;:aoda sensibilidade edo entendimento, do entendi- mento eda razao, da intui<;:ao sensivel eda intui<;:ao intelectual, do i'!.!1!it1fscf~r.iv,!:~ivus edo intuitus originarjus. Entre os dois, ha eviden- temente 0e;qu~~;d;""ima:g{n~~i~-(Einbildungskraft), lugar sensivel para aquestao da poesia eda tradu<;:ao. Mas hi tambem, simplesmen- te, 0pensamento. Pois todas asdissocia<;:6esdacritica kantiana devem evidentemente sedeixar pensar. Elas so podem faze-Io apartir daqui- 10que torna pensivel epossivel a propria dissocia<;:ao, asaber, uma unidade origindria. Para Schelling, esegundo um movimento comum atudo aquilo que se chamad de idealismo alemao pos-kantiano, e ~~~4!:~~1'!~tirti!!q!1:iIQ de onde tezA sir;lqpreciso partir para pensa;;-' _tiiss~citlE~~: ..,!:unidac!~ origindria. E separtirmos disso, entao todas as diferen<;:as so serao tradu<;:6es (em um sentido nao necessariamente lingiifstico) do mesmo que seprojeta ou se reflete emordens diferentes. A filosofia pensante ebem isto: saber partir de onde 0saber ted par- tido, tomar nota desse saber originario pressuposto por toda delimi- ta<;:aocritica. Essegesto nao emais pre-critico, elesequer pos-critico, crftico da critica. A quart ali<;:aode Schelling precisa-o emuma teoria da tradu<;:ao "reflexiva" ou "refletidora". Ela concerne ao estudo das ciencias racionais puras, amatematica eafilosofia. Kant assepara, no _0:.~!!~:.~.~,!:sfaEuldades. Ele explica que amatematica pura, diferen- temente da filosofia pura (metafisica dos costumes emetafisica da natureza) constr6i seu objeto sensfvel puro. Essa constru<;:ao nao tem sentido na filosofia pura. Schelling p6e emquestao essa dissocia<;:aoa partir da unidade do saber originario, anterior aoposi<;:aodo sensivel edo inteligivel. Eleparte da intui<;:aointelectual. Nao que identifique matematica efilosofia, mas fala de sua "semelhanra". Esta permite a ~om efeito, 0movimento de safda ede entrada em si do Espfrito [10 ~ovlmento geral da tradufiio] tal como 0definem Schelling e Hegel, mas Igual.ment~ F. Schlegel, como vimos, etambem a re-formulafiio especulativa dalei.daBtldung clissica: 0pr6prio s6 tern acesso asi mesmo pela experiencia, ou seF, pela prova do estrangeiro.7 7 Idem, op. cit., pp. 258-59 led. port. pp. 290-91]. 8 F. W. J . Schelling, "Lec,:onssur lamethode des etudes academiques", in Philo- sophies de l'universite. L'ideafisme allemand et fa question de f'universite. Trad. J ean-Franc,:ois Courtine eJ acques Rivelaygue. Paris: Payot, 1979, pp. 41-164. eaoutra no real (im Realen). S6 podemos surpreender-nos com essa identidade ou com essa analogia, com essa intertradutibilidade do racional edo fantistico, sepermanecermos no ponto de vista unila- teral dacompreensao. Seaimagina<,:ao(Einbildung) e arazao, eporque aessencia interna do absoluto, portanto do saber originario, eIn-Eins- Bildung. Ai esti 0conceito fundamental dessas li<,:oese, seeleassegura apossibilidade fundamental da tradu<,:ao entre as diferentes ordens (entre 0real e0ideal, eportanto entre os conteudos sensiveis eos conteudos inteligiveis e, por conseguinte, nas linguas, entre as dife- ren<,:assemanticas ideais eas diferen<,:as formais - significantes - ditas sensiveis), ele pr6prio resiste a tradu<,:ao. Seu pertencimento a lingua alema ea explora<,:ao dos recursos multiplos da Bildung na In-Eins-Bildung permanecem urn desafio para n6s. A tradu<,:ao fran- cesa por "uni-forma<,:ao", alem de deformar alingua francesa, dado que apalavra nao existe nela, apaga 0recurso ao valor de imagem que marca precisamente aunidade da imagina<,:ao (Einbildungskraft) eda razao, sua co-tradutibilidade. Nao julgo os tradutores. Sua escolha e semduvida amelhor possivel. Queria somente sublinhar urn parado- xo: 0 conceito da tradutibilidade fundamental se liga poeticamente a uma lingua natural e resiste a tradufiio. Mas isso confirma, naverdade, 0prop6sito schellinguiniano, mes- mo parecendo colod-Io emdificuldade. A In-Eins-Bildung, forma<,:ao, implementa<,:ao da forma edaimagem reune, eclaro, mas essareuniao produz aunidade. Produ<,:aopoetica, dado que uniformiza semunifor- mizar, guarda 0universal e 0particular na marca que produz. Oal, emdecorrencia dessa pr6pria particularidade, seu la<,:oessencial auma poetica eauma lingua natural. A essencia interna do absoluto euma eterna In-Eins-Bildung que se propaga em profusao; sua emana<,:ao (Ausflu~) atravessa 0mundo dos fenomenos por meio da razao eda imagina<,:ao. Nao sepode, portanto, separar filosofia epoesia, afirma- <,:aorepetida sem cessar por Schelling; devemos somente traduzi-Ias uma na outra, mesmo se0poetico (enraizado na particularidade de uma lingua) situa aquilo mesmo que limita a tradutibilidade que, apesar disso, ele reclama. Encontramo-nos no oposto de Kant, emurn caminho que, entre- tanto, eleabriu. Kant opoe 0mestre da razao pura, 0fil6sofo legisla- tradu<,:ao de uma emoutra, pois sefundam ambas sobre aidentidade do geral edo particular. 0triangulo universal s6forma urn com0trian- gulo particular, que etornado, por sua vez, por todos os triangulos, sendo ao mesmo tempo unidade etotalidade, unitotalidade (Ein-und Allheit) oferecida a intui<,:ao. Para afilosofia, aintui<,:ao earazao, e uma intui<,:ao intelectual (intellektuelle Anschauung) que forma urn com seu objeto no saber originario (Urwissen). A matematica separece com afilosofia. Sua intui<,:ao nao eimediata, mas somente refletida (reflektierte). Elapertence ao mundo da imagem refletida (abgebildete welt) es6manifesta 0saber originario emsua identidade absoluta sob aforma do reflexo (Reflex). A tradu<,:ao anal6gica entre os dois mun- dos, que na verdade san urn s6, eassegurada pelo simbolo (Bilel) eesse simbolismo sedesenvolve no jogo daAbbildung eda Einbildung, da reprodu<,:ao imaginativa. Oai acomplexidade emrela<,:aoaKant, pois esseprivilegio daEinbildungskraft (i~~~g!R.~~"i,q)~tambemtern filia<,:ao kantiana. Oal, igualmente, 0papel essencial da poesia edo discurso poetico nessas li<,:oes.A poesia esti no cora<,:aoda filosofia, 0poema eurn filosofema. A oposi<,:aoaKant atesta afilia<,:aoda Critica da fa- culdade dejulgar que Schelling leu enquanto era estudante emTiibin- gen, pouquissimo tempo antes que Fichte (sua grande admira<,:ao) e Goethe 0ajudassem aser nomeado emlena em 1798, no mesmo ana emque Kant reune os textos do Conflito das faculdades. Pouquissimo tempo depois, jovem professor em lena (onde s6 permanece cinco anos), Schelling da suas Lifoes sobre os estudos academicos. 0 esquema argumentativo apartir do qual critica Kant assemelha-se ao daterceira Critica (gesto analogo ao de Hegel, no qual nao seesconderi); elere- corre a unidade das insrancias dissociadas pelas duas outras Criticas. Essa unidade eada imagina<,:ao (Einbildungskraft) eda obra de arte, daqual eproduto. A imagina<,:ao, como Einbildungskraft, que Schelling distingue de imagination (falsafantasia 10 ) , resolve sempre uma contra- di<,:aopropondo urn esquema mediador, isto e, tradutor. Essa tradu<,:ao pela Einbildung etambem 0contrato que liga afilosofia eaarte, espe- cificamente alingua filos6fica ealingua poetica. A razao eaimagi- na<,:aosan uma unica emesma coisa, 11 mas uma "no ideal" (im Idealen) III Cf. Schelling, "Sextali<;:ao",in op. cit., p. 91; note-se, nde como emKant, 0 recurso alternado aspalavras emlatimoualemao. II (:r. "SextaIi<;:ao", inop. cit. dor, ao artista, emesmo ao artista racional. 12Para Schelling, ha uma analogia entre os dois; 0poetico eimanente ao filos6fico eerepleto de conseqiiencias: para a"forma<;:ao" filos6fica, para aBildung como ensino, cultura, aprendizagem da filosofia. E preciso pensar essa "for- ma<;:ao"(Bildung) apartir da In-Eins-Bildung, da essencia interna do absoluto, da uni-forma<;:ao do uni-versal edo particular. Tambem e preciso pensar a11:ll:.i<'(!,~'!J1,!~~na 16gica da uni-forma<;:ao, que etam- bem uma poetica da tradu<;:ao. A filosofia eaalma eavida do saber na medida em que ele tern seufim em si mesmo. Schelling nao tern palavras suficientemente duras para aqueles que querem utilizar 0saber, "dar-lhe urn fim", fazendo- o servir aoutros fins que nao elemesmo ou dobra-lo as exigencias de uma profissionaliza<;:ao "alimentar". Nietzsche eHeidegger farao a mesma coisa. Enquanto "ciencia viva" (lebendige Wissenschaft), afilo- sofia requer uma "pulsao artistica". Ha (esgibt), diz aquinta lic,:ao(in fine), "einen philosophischen Kunsttrieb, wie es einen poetischen gibt". o"como" (wie) articula aanalogia, aafinidade simb61ica, 0lugar de passagem para uma tradu<;:ao. E por isso que Schelling jamais distin- gue 0conteudo filos6fico, 0filosofema, da forma desua apresenta<;:ao. Toda filosofia "nova", diz ele, deve ter feito urn novo "passo" naforma. A uma filosofia nova devem corresponder uma novidade formal, uma originalidade poetica e, portanto, uma provoca<;:ao, assim como urn desafio atradu<;:ao. Ha urn problema, desta vez, da tradu<;:aofilos6fi- ca, urn problema interior eessencial que nao sepoderia colocar para os fil6sofos da tradi<;:ao, ao menos na medida em que nao ligavam a racionalidade filos6fica, nem asemantica filos6fica emgeral, ao cor- po poetico, a "realidade" de uma forma ede uma lingua. Originali- dade de Schelling: eoriginal (novo) dizer que uma filosofia pode e deve ter uma originalidade, que aoriginalidade formallhe eessencial, que etambem uma obra de arte. Essa originalidade distingue 0fi16sofo do mate matico (por isso nao ha problema de tradu<;:ao em matematica: amatematica e, por essencia, a anula<;:ao ou a solu<;:aoimediata da tradu<;:ao). Como os matematicos, os fil6sofos tern rela<;:aocom 0universal, eclaro, esaD unidos emsua ciencia, mas tern aoriginalidade de poder ser originais porque saD capazes dessa "transforma<;:ao das formas" (Wechsel der Formen) que pede tambem uma trans-forma<;:ao ou uma tra-du<;:ao, uma Uber-setzung (podedamos dizer assim, embora nao seja apalavra de Schelling nessa passagem) que poe uma novidade, aimp6e easu- perimp6e, da mesma maneira que assegura apassagem por cima da particularidade diferencial. Se ha (es gibt) uma pulsao anfstica para afilosofia, qual conse- qiiencia tirar disso para aBildung~,"no sentido do ensino? A filosofia pode ser aprendida? Essa q'7iesi::i"o'obcecatodos os pensadores da epo- ca apartir de Kant, como ja vimos: todos setornaram funcionarios do ensino publico, mas nao tern certeza de que essa seja bem ades- tina<;:ao, asorte, ou mesmo apossibilidade da filosofia. Pode afiloso- fia ser adquirida pelo exerdcio epela aplica<;:ao?Ou ela e, ao contra- rio, urn domgratuito (ein freies Geschenk), urn poder inato (angeboren) enviado pelo destino (Schickung) ?13De certa mane ira, a resposta e "sim", ha (das gibt) urn dom ou urn presente (Geschenk) dado, envia- do, legado pelo destino (Geschick); somos assim destinados afilosofia na medida emque elaeuma arte, uma arte degenio regulada por uma intui<;:aointelectual que s6 pode ser dada edar seu objeto ligando-se aqui ao genio de uma lingua natural. Dito isso, se0essencial da filo- sofia nao seaprende, suas formas particulares devem ser aprendidas. Que afilosofia seja urn dom nao significa que cadaurn apossua sem exerdcio. 0 aspecto propriamente artistico dessa ciencia filos6fica (Schelling achama "arte dialetica') nao pode, semduvida, ser aprendi- do, mas podemos exercitar-nos nele. A quarta li<;:ao(sobre matematica efilosofia) precisa que, seaintui<;:aopura do espa<;:oedo tempo esra somente "refletida" no sensfvel ao qual serelaciona amatematica, na filosofia aintui<;:aoesta pura ediretamente na razao. Aquele que nao possui essa intui<;:aonao pode sequer compreender 0que sediz, nao sepode nem mesmo traduzir para ele. Ele pode, na aparencia, com- preender as palavras, mas nao pensa aquilo que as palavras dizem. Entre essas duas compreens6es, apassagem permanece proibida para ele. Portanto, aintui<;:aofilos6fica s6 pode ser dada (entendam como urn dom, urn presente) eisso quer dizer que ela nao saberia ser dada (entendam destavez traduzida edispensada pelo ensino). Mas hauma condi<;ao negativa dessa intui<;ao filos6nca innnita: aconsciencia da inutilidade de todo conhecimento nnito. Essa consciencia ou essa condi<;aonegativa pode deixar-se aprofundar, clarincar, cultivar, for- mar, elaborar emuma Bildung. No fil6sofo que sabeforma-la, culti- va-la emsi (in sich bilden), conformar-se aela, eladevetransformar-se emcarater emesmo emurn 6rgao inalteravel, emhabitus intransfor- ~,,_ ..,.":~;.:"~"".,,,,~-'-1 mavel: aaptidao para ver cada coisa da forma como elaseapresenta (dargestellt) naideia. Essaapresenta<;aopode ser justamente atradu<;ao ou are-tradu<;ao do real no ideal. Pode-se adquirir acaracterfstica ou o tipo do tradutor, do fil6sofo formado nessa tradu<;ao, nesse modo ou nessa forma deapresenta<;ao (Darstellung). osaber originario queconstitui aultima instancia dessediscurso e aUrwissen deDeus, e0'~tf:k!r_qks!JU:t( eaexpressaoeaqui deSchelling. Podemos, entao, falar deuma teologia datradu<;ao. Mas dessateologia da tradu<;ao temos tambem atradu<;ao institucional: para Schelling, na universidade que projeta, "sendo ateologia aciencia emque se encontra objetivado 0cora<;aodafilosona, deve ter 0primeiro lugar eo mais elevado" .14 E aobje<;aodirigida ao Conjlitqdasfaculdades na setima li<;ao. 15 "Ciencias positivas" nao tern ~qui 0~entido mod~rno, como 0notam justamente ostradutores franceses, mas aquele decien- ciasquedesfrutam deuma existencia institucional, decorpo deconhe- cimentos edelegitimidade publica. Sao asciencias que sao objeto de uma disciplina, tais como teo16gica, jurfdica, medica, opostas por Kant a disciplina filos6nca. 0titulo da li<;aomarca bem que essa oposi<;aoentre afilosona eessasciencias "positivas" eexterior, portan- to, filosoncamente injustincada, insuncientemente pensada. E bem osistema dos limites oposicionais sobre 0qual econstruido 0Conflito das faculdades que permanece exterior einjustincado. A Ctitica dirigida aKant tern dois alcances, urn literal ou agudo, isto e, estritamente institucional, eoutro mais fundamental que serve dealicerce aoprecedente. Mas podemos traduzir urn no outro. A crf- tica organizacional eintrafaculdade visa a unilateralidade do ponto devista kantiano: e0ponto devista dannitude que op6e filosona e teologia. Ele faz, entao, da filosona 0campo do pensamento nnito. Por isso, elecia ao mesmo tempo a disciplina filos6nca muito pouco edemais. Muito pouco: elealimita auma disciplina dentre outras. Demais: eleIhecia uma faculdade. Schelling, quevai direto aoponto, prop6e simplesmente que nao haja mais departamento de filosona. Nao para apagar anlosona do mapa universitario, mas, aocontrario, para reconhecer-lhe seudevido lugar, que etodo lugar: "0que etudo nao pode, por issomesmo, ser nada departicular". 16 Schelling nao diz somente que nao deve haver departamento de filosona. Elediz que nao hajamais. Quando acreditamos discerni-lo, enganamo-nos; 0que sechama desse nome por usurpa<;ao nao e autenticamente nlos6nco. Essa "anrma<;ao" (Behauptung) schellin- guiniana parece frontalmente anti-kantiana. De fato, elapermanece nel aurn certo prop6sito kantiano. Aparentemente acantonada em seu lugar, destinada a sua competencia especinca, afaculdade den- losona esra, na realidade, emtodos os lugares, segundo Kant, esua oposi<;ao aos outros permanece secundaria eexterior. Emsuma, ha doisKant, eduas vezesdoisKant emtoda estacena- que etambem uma cena detradu<;aointerpretativa. Ha 0Kant do Conflito que quer fazer existir urn departamento defilosona eprotege-lo (emparticu- lar do Estado). Para protege-lo, epreciso delimira-lo. E depois ha 0 Kant que concede a faculdade de filosona 0direito de olhar critico epan6ptico sobre todos osoutros departamentos, para neles intervir emnome daverdade. E quanto a crftica, ainda ha dois Kant: 0das duas Criticas observa fortemente asoposi<;6es(e0Conflito das facul- dades, posterior a terceira Critica, permanece mais controlado pelos dois primeiros); mas 0Kant da q;itjgLti'!Jfl.Eu:l!ft1A~/!!.i1;':fgf1;~' aquele quesuscita 0entusiasmo do jovem Schelling, vai alemdas oposi<;6es, etenta pensar 0vivente eaarte. (E nao esque<;amos que, para Kant, como jasublinhamos, 0"mestre da razao pura" esra, ao mesmo tem- po, emtodas aspartes eemnenhum lugar. Suaineviravel eevidente 14 F. Schelling, op. eit., p. 105. 15 Idem, "Sobre alguns termos opostos do exterior afilosofia, eemparticular a oposi<;:aodas ciencias positivas". 16 Idem, "Le<;:onssur lamethode des etudes academiques", op. cit., p. 105 (tra- du<;:aoligeiramente modificada). ausencia comanda todo 0campo, mas esvazia tambem 0espa<;:odo departamento de filosofia.1 7 *) Ora, ejustamente do ponto devista davida eda arte que Schelling prop6e reorganizar a universidade, pensar aorganicidade enela res- tituir afilosofia. Seesta se objetiva nas tres ciencias positivas que saG ateologia, 0direito eamedicina, elanao seobjetiva na !~tr:~i~~tle em nenhuma das tres. Cada umdos tres departamentos eu~~,(),~j~tiva<;:~o determinada, parcial, da filosofia, sendo ateologia amais alta. Pode- mos traduzir "objeti~a<;:a?"por"tradu<;:ao". E 0mesmo sentido que se transp6e ou sefrani;port;;-;;~"~~t~~ ~Idi;ma. Mas qual eatradu<;:ao total, apropria tradu<;:ao que assegura averdadeira objetividade da filosofia em sua totalidade? E aarte. "A verdadeira objetividade da filosofia em sua totalidade esomente aarte." E essa arte e, portanto, como a propria universidade, uma arte da tradufiio generalizada. Schelling, por uma logica um pouco surpreendente, admite que, em rigor, "se0caso seapresenta, poderia entao ter ai nao uma faculdade de filosofia, mas uma faculdade de artes". E so uma concessao apas- sagem, pois alogica desejaria que nao houvesse mais departamento, tanto para essa tradu<;:aototal quanto para aonipresente filosofia. E sempre 0"Bild" que assegura aanalogia traduzente entre aarte, singularmente apoesia, eafilosofia: "Assim, entao, poesia efilosofia, que outro tipo de diletantismo op6e, saGsemelhantes no fato de que uma eoutra exigem um 'Bild'do mundo, que seengendra asi mesmo, ,I "18 eque vem a uz espontaneamente . Essa afirma<;:aotambem epolitica. A faculdade de filosofia, no dis- positivo kantiano, permanece determinada elimitada pela potencia ainda exterior do Estado. Ora, a arte - da qual Kant nao fala no Conflito - jamais pode ser limitada por uma potencia (Macht) exte- rior. Ela e, portanto, independente do Estado, nao tem rela<;:ao(ex- terior) com ele, nao sedeixa nem oprimir, nem privilegiar, nem pro- gramar por ele. Nao ha cultura de Estado, parece dizer Schelling. Mas veremos embreve que isso esimples. As ciencias positivas podem de- terminar-se emrela<;:aoaessapotencia exterior (quando elaeexterior) do Estado. Somente afilosofia esta no direito de exigir do Estado uma liber- dade incondicionada (Nur der Philosophie ist der Staat unbedingte Freiheit schuldig). Afirma<;:aokantiana, ao menos para afilosofia, na medida emque elajulga averdade. Como 0Estado nao poderia que- rer suprimir afilosofia anao ser emdetrimento de todas as ciencias, afilosofia deve ter seu lugar, emrigor, emuma faculdade de artes. E para asartes soha associa<;:6eslivres (freie Verbindungen), por oposi<;:ao aos estabelecimentos publicos do Estado. Uma tal proposi<;:ao (afi- losofia no espa<;:odas artes) nao erevolucionaria. Schelling lembra a tradi<;:aodo Collegium artium, 0ancestral da faculdade de filosofia de que falaKant: colegio independente do Estado, institui<;:aoliberal que nao nomeava doctores, professores munidos de privilegios, em troca dos quais prestavam juramento diante do Estado, mas magistri, mes- tres em artes liberais. A decadencia da filosofia, que setorna objeto de zombaria edeixa de ser considerada a altura daverdadeira missao, Schelling aatribui a funcionariza<;:ao de uma corpora<;:ao. Esta deixou de ser uma associa<;:aolivre emvista das artes - e, portanto, da tradu- <;:aopoetica. Schleiermacher dira tambem que, para 0Estado, afaculda- de de filosofia deveria guardar 0estatuto de uma empresa privada. 19 Vamos entao destacar agora os pontos mais gerais dessa crftica determinada da universidade kantiana, osfundamentos dessa tradu<;:ao institucional. A setima li<;:aorecusa aaxiomatica do Conflito das fit- culdades, asaber, adistin<;:aoentre Wissen eHandeln, saber ea<;:ao.0 saber pum estava do lado dafaculdade de filosofia, que nao devia "dar 17 Ver conferencia precedente. * Derrida fazrefereneia aotexto "Chaire vacante: censure, maitrise, magistralite", titulo deumadasquatro confereneias que proferiu no coloquio naUniversidade deToronto em1985(ver n. 1), publicado tambem emDu droit a faphilosophie, op. eit., pp. 343-70. (N. do Org.) 18 F. Schelling, op. cit., p. 101. 19 As proposic;6es que tinham sido feitas ao Estado eao governo Frances com vistas acriac;ao(agora decidida) deurn Colegio Internacional deFilosofia tern algo de mais schellinguiniano que kantiano (J ugar fundamental reservado a diferenc;a internacional das linguas eaproblem:hica da traduc;ao, lugar do poetico edaperformatividade artistica, afilosofia desimpedida etc.), mas de muito anti-schellinguiniano tambem. Pois 0ptincipio de uni-formac;ao ou de uni-totalidade pode tambem inquietar, do ponto devistadeKant edonosso, hoje. 0Estado, veremos emurn instante, pode ai enconttar sub-reptieiamente toda suapotencia, apropria potencia datotalidade. ordem" nem agir, enquanto as outras faculdades superiores seencon- travam ligadas ao poder do Estado, isto e, a a<;:ao.Oposi<;:aohistori- camente datada, diz Schelling, tardiamente vinda, construida e a desconstruir. Ela nao esequer modema no sentido amplo, mas ime- diatamente contempodnea, "produto dos novos tempos, descendente imediato da famosa Aufklarerei" .20Schelling reage violentamente con- tra essas Luzes que, por exemplo, emKant, criam oposi<;:6esartificiais, separam 0saber da a<;:ao,da poHtica eda etica (ha urn movimento analogo em Heidegger - enao seria esta a unica afinidade com Schelling). A institui<;:ao universitaria das Luzes transp6e em si essa infeliz dissocia<;:ao. Kant cometeu 0erro de ter reduzido, emsua filo- sofia te6rica, aideia de Deus ou de imortalidade da alma a "simples ideias", ede ter em seguida tentado reconhecer oficialmente essas ideias na "consciencia ttica" (in der sittlichen Gesinnung). Ora, aeleva- <;:aoetica acima da determina<;:ao nos toma semelhantes a Deus, ea filosofia traduz uma eleva<;:aosemelhante (gleiche Erhebung), elas6faz urn com aetica (0que eainda simultaneamente kantiano eanti-kan- tiano). S6 hi "um mundo", diz S.sbeml1g, nao ha trasmundo,21 nao ha mundo emsi. Desse mundo absoluto, cada urn da uma tradu<;:ao, uma imagem (Bild) a sua maneira (jedes in seiner Art und weise abzubilden strebt), 0saber como tal ou aa<;:aocomo tal. Mas urn traduz 0outro. Ha somente transferencia refletidora, Bildung, Abbildung (reflexo, reflexao), Einbildungskraft. Entre 0saber eaa<;:ao,nao ha nada alem da diferen<;:aentre os doisreflexos ou duas reflex6es do mesmo euni- co mundo, uma diferen<;:a, em suma, de tradu<;:ao (Ubersetzung e Ubertragung). 0mundo da a<;:aoetambem 0mundo do saber, amoral euma ciencia tao especulativa quanto afilosofia teoretica. Para pen- sar adissocia<;:ao, Kant necessariamente terd precisadopensar aunidade originaria dos dois mundos como urn unico emesmo texto adecifrar, emsuma, segundo as duas abordagens, segundo as duas vers6es ou as duas tradu<;:6es do texto original. A partir da unidade desse mundo originario, recolocamos emquestao aoposi<;:aoda filosofia edas cien- cias positivas emsua tradi<;:aoinstitucional (teologia, direito, medici- na), pois essa oposi<;ao era fundada sabre adissocia<;ao entre saber e a<;:ao.Por isso mesmo, eadualidade das linguagens que seencontra nao anulada, mas derivada como efeito de reflexao, de Reflex, de re- flexo, quer dizer tambem de transposi<;:ao traduzente (Ubertragung, Ubersetzung), de transferencia. Todo 0Conflito das faculdades econs- truido, poderiamos verifid-lo, sobre a multiplicidade intraduzivel das linguagens, digamos mais rigorosamente, sobre as dissocia<;:6esde modo discursivo: linguagem de verdade (constativo)/linguagem de a<;:ao(performativo), linguagem publica/linguagem privada, lin- guagem ciendfica (intra-universiraria)/linguagem popular (extra-uni- versitaria), espirito/letra etc. Segundo urn movimento dpico de todos os p6s-kantismos, tudo sepassa como seSchelling dissesse, emsuma, partindo dessa ideia da razao ou dessa intui<;ao intelectual, pretensamente inacessivel: julgan- do-a inacessivel, voce demonstra que ja acedeu aela, que pensa nela, elajachegou avoce, voce ai ja chegou. Voce pensa 0inacessivel, por- tanto, voce acede aele. E para pensar afinitude, voce ja pensou 0in- finito. E, alias, a defini<;:ao do pensamento. Seria muito mais con- sequente, mais responsavel, ordenar tudo a esse pensamento que voce pens a, do que instalar seu "criticismo" na denega<;:ao. De dife- rentes modos, todos os p6s-kantianos tedo, de Schelling aHegel ea Nietzsche, acusado Kant de uma tal denega<;:ao. Resta saber 0que e uma denega<;ao quando elaconcerne nada menos que ao pensamento do pensamento eda lugar aalgo como adialetica transcendental da Critica da raziio pura. ~",,,,_ ..,,,,.,,.,,,,, .. A l6gica dessa acusa<;:ao,essanega<;:aoda denega<;ao ou essa critica da critica tern consequencias poHticas paradoxais. Emtodos os casos. Consideremos 0de Schelling. Ele insinua que Kant submete 0depar- tamento de filosofia, em urn estabelecimento publico, ao poder exterior do Estado; eque assim nao concebe de forma suficientemen- teliberal 0exerdcio e0lugar da filosofia na sociedade. 0liberalismo de Kant nao seria incondicional. Schelling parece entao associar Kant ao liberalismo, como por exemplo, no modelo do College des Arts. Ora, inversamente, 0pensamento schellinguiniano da uni-totalidade ou da uni-forma<;ao como tradu<;ao generalizada, tradu<;:aoonto-teo- l6gica sem ruptura, sem opacidade, tradu<;:aouniversalmente refleti- dora, pode conduzir auma absolutiza<;:ao totalizante do Estado, que 20 Idem, op. cit., p. 99 (traduc,;aomodificada). 21 Ver Nietzsche esuacrftica deKant. Kant, por suavez, teria julgado perigosa epouco liberal. 0liberalis- mo talvez suponha adissocias;ao, aheterogeneidade dos codigos ea multiplicidade daslinguagens, anao-ultrapassagem decertos limites, anao-transparencia. Ora, ha umcerto estatismo schellinguiniano. 0que e0Estado? odevir-objetivo do saber-originario segundo a a~lio. E mesmo amais universal das produs;6es ideais que objetivam e, portanto, traduzem osaber. 0Estado euma forma desaber, traduzida apartir do arque- tipo do mundo das ideias. Mas, como soeo devir-objetivo do saber, oEstado setransporta ou setransp6e, por suavez, emumorganismo exterior emvista do saber como tal, emuma especie deEstado espi- ritual eideal, esaDas ciencias positivas ou, dito de outra forma, a universidade que e, emsuma, umpedas;o do Estado, uma figura do Estado, sua Ubertragung, suas Ubersetzungen que transpoem 0Estado asciencias positivas. 0Estado-saber eaqui uma transposis;ao do Es- tado-as;ao. Nao podemos mais entao separar asfaculdades superiores da faculdade inferior. A diferencias;ao das ciencias positivas sefaz a partir do saber originario, aimagem do tipo interior dafilosofia. As tres ciencias positivas nada mais saDque adiferencias;ao, atradus;ao diferenciada do saber originario, portanto, dafilosofia. Entre.a filo- sofia e0Estado, aidentidade e profunda eessencial. E 0mesmo texto, 0mesmo texto original, sesoubermos ler aidentidade apartir da Ur- Wissen. Esseconjunto (0Estado esuaobjetivas;ao transposta nas tres cien- cias positivas) eumtodo, 0todo da objetivas;ao do saber originario. Esteforma, comafilosofia, um "organismo interno" (innerer Organis- mus) que seprojeta ou setransporta para fora na totalidade exterior das ciencias. Eleseconstroi por divisao eligas;aode modo aformar umcorpo (Korper), que exprime externamente 0organismo interno do saber edafilosofia. A palavra "organismo" efreqiiente edecisiva nesse contexto. Ela nao traduz um biologismo, dado que aparente- mente, pelo menos, setrata deuma metafora. 0ideal eo real nao saD ainda dissociaveis na unidade do saber originario. Essaunidade per- mite que sefale, semtropos, tanto deumquanto deoutro, deumna linguagem do outro. Nao hametafora, mas tambem nao hanada alem damedfora, daimagemno senti do amplo (Bild). A unidade originaria d a linguagem no saber originario autoriza aretorica e, por isso mes- mo, proibe considera-Ia somente como uma retorica restrita. E uma retorica ou uma tradutologia generalizada. Isso justifica que, desde 0 comes;odesta exposis;ao, eutenha falado comfreqiiencia detradus;ao onde sosetratava detransposis;ao, detransferencia, detransporte no sentido nao estritamente lingiiistico. Talvez sepudesse pensar que eu abusava efalava metaforicamente de tradus;ao (subentendido: estri- tamente semiotica ou lingiiistica), ai onde atransposis;ao deque fa- lavanao tinha nada, justamente, depropriamente lingiiistico. Mas e quejustamente para Schelling, dequem euqueria assimapresentar a onto-teologia, alingua eumfenomeno vivo; avida ou 0espirito vivo falanalingua; damesma forma, anatureza eumautor, 0autor deum livro que devemos traduzir comacompetencia de umfilologo. Mo- tivo quereencontramos entao emNovalis, emparticular, masjatam- bememGoethe. Dai esta pedagogia schellinguiniana dalingua, das linguas mortas ou vivas: Formamos imediatamente 0sentido reconhecendo 0espitito vivo em uma lingua que para nos est<!morta, earela<;aoque existe aqui nao edife- rente daquela que 0naturalista mantem comanatureza. A natureza e, para nos, umauror muito antigo, que escreveu emhieroglifos, ecujas paginas san colossais, como diz 0Artista deGoethe. 22 E eprecisamente aquele que quer levar acabo suas pesquisas sobre anatureza de modo puramente empirico que sente amaior necessidade deumconhecimento, por assimdizer, linguis- tico [seriapreciso sublinhar tambem 0"por assimdizer"], aBm decompreen- der essediscurso para eletotalmente mudo. A coisa eigualmente verdadeira da filologia ao sentido eminente do termo. A terra eum livro composto de fragmentos ede rapsodias de epocas muito diversas. Cada mineral eum verdadeiro problema filologico. Na geologia ainda seespera umWolf que analise aterra como foi feito para Homero, eque nos revelesuacomposi<;:aO. 23 Fomos conduzidos aestapantetorica da tradus;ao por considera- s;6esaparentemente politicas. 0hiper-liberalismo oposto aKant sem- pre corre 0risco, segundo uma logica paradoxal, decair na tentas;ao totalizante; nao digo necessariamente totalitaria, cujos efeitos podem inverter aexigencia liberal. Dai aestrategia impossivel das relas;6es 22 J .W. Goethe, L'apotheose de l'artiste, 1789. 23 F.Schelling, "Terceirali<;:ao",in op. cit., p. 73. entre filosofia epolitica, especificamente entre afilosofia e0Estado. Esta proposi<;:ao, segundo aqual 0Estado eatradu<;:aoobjetivante do saber na a<;:ao,cometeriamos urn erro deve-Ia como uma dessas pro- posi<;:6esespeculativas de urn "idealismo alemao" que estudariamos hoje atraves de suas brumas, como urn grande arquivo filosofico. Essa proposi<;:ao esemduvida especulativa (emurn sentido rigorosamente articulado sobre urn pensamento do speculum refletidor epropria- mente "simbolico"),24 mas tanto "realista" quanto "idealista". Ela e moderna. Uma politologia nao pode, hoje em dia, construir 0con- ceito de Estado sem nele incluir a objetiva<;:ao do saber esua obje- tiva<;:aonas ciencias positivas. Urn discurso politico que nao falasse da ciencia seperderia na conversa fiada ena abstra<;:ao. Hoje emdia, mais do que nunca, adetermina<;:ao do Estado compreende 0estado da ciencia, detodas asciencias, do todo da ciencia. 0funcionamento das estruturas estatais (nao falemos de regime) depende essencial e concretamente do estado de todas as ciencias etecnociencias. Nao podemos mais distinguir as ciencias ditas fundamentais das ciencias ditas finalistas. Eo que chamamos justamente complexo militar-in- dustrial do Estado moderno sup6e essaunidade do fundamental edo finalista. Seria tambem necessario fazer comunicar essa "logica" com ada "performatividade" do discurso cientifico. Semduvida, diria Schelling, 0Estado nao eatradu<;:aoobjetivan- te do saber como saber, mas do saber originario como arao. Hoje em dia seria ainda mais fkil demonstrar aque ponto urn Estado moder- no eaimplementa<;:ao de urn saber. Nao somente porque tern uma politica da ciencia que elemesmo quer pilotar, mas porque elemesmo seforma esetransforma, emseu conceito, seu discurso, sua retorica, seus metodos ete., no ritmo da tecnociencia. Seria necessario insistir, eclaro, sobre aunidade do saber origina- rio, sobre a reuniao totalizante da Ein-Bildung der Vielheit in die Einheit enquanto tradutibilidade geral. Mas isso nao significa homo- geneidade eindiferencia<;:ao. Ha "formas" e, portanto, estruturas es- pecificas. Ha diferen<;:as entre filosofia ereligiao, filosofia epoesia. Por isso epreciso traduzir, eessa tradu<;:aosedeve a finitude dos indi- viduos. A filosofia e, certamente, aapresenta<;:ao (Darstellung) ime- diata, a ciencia do saber originario (Urwissen), mas so 0ena ordem do ideal, enao "realmente". Seainteligencia pudesse, em urn so ato de saber, apreender (begreifen) realmente atotalidade absoluta como sistema acabado emtodas assuas partes, elaultrapassaria sua finitude. Elanao teria necessidade de traduzir. Elaconceberia 0todo como urn alem de toda determina<;:ao. A partir do momento em que ha deter- mina<;:ao, ha diferencia<;:ao, separa<;:ao, abstra<;:ao. Schelling nao diz "oposi<;:ao", Entgegensetzung. A apresenta<;:ao real do saber sup6e essa separa<;:ao, poderiamos dizer essa divisao eessa tradu<;:aodo trabalho filosofico. 0 "saber originario" nao pode tornar-se "real", realizar-se em sua unidade em urn so individuo; somente in der Gattung, no genero ou especie, isto e, tambem nas institui<;:6es historicas. A his- toria progride como esse devir real da ideia. Esse esquema construia aprimeira leitura sobre 0conceito abso- luto da ciencia. Ela parte da ideia de totalidade viva, ela deduz dai 0 conceito de universidade, como Kant 0deduz tambem de uma ideia da razao. Schelling, ainda ternos urn indicio, faz reviver atradi<;:ao kantiana a qual eleseop6e, como nos podemos opor auma filosofia da oposi<;:ao. 0 desenvolvimento pens ante da ideia da razao conduz Schelling arejeitar as conseqiiencias limitadoras que Kant deduz. A form~.Q._(Bildung) especializada do estudante deve ser prece- .".-.- dida do conhecimento dessa totalidade viva, dessa "conexao viva" (des lebendigen Zusammenhangs). 0 estudante deve inicialmente aceder a totalidade organica da universidade, a "drvore imensa" do conheci- mento: so podemos apreende-Ia partindo (geneticamente) de sua raiz originaria, 0Urwissen. Alias, no limiar de seus estudos, 0"jovem" (e nao ajovem, eclaro) tern 0sentido e0desejo dessa totalidade (Sinn und Trieb fur das Ganze). Mas nos 0decepcionamos rapidamente. Schelling descreve essas decep<;:6es, todos os maleficios do treinamen- to profissional ou da especializa<;:ao, que barram 0acesso a propria organiza<;:ao, aorganicidade dessatotalidade do saber, ou, dito de ou- tra forma, a filosofia, a filosofia da universidade que constitui 0prin- cipio organico evivo dessa totalidade. Schelling faz entao uma pro- posi<;:aoda qual ainda deveriamos tirar maior proveito. Seria necessa- rio que "fosse dado", ele diz, "nas Universidades", "urn ensinamento publico que tratasse da finalidade, do metodo, da totalidade edos objetos particulares dos estudos academicos".25 0que Schelling faz, dizendo-o. Suas li<;:6esdizem 0que deveriam ser afinalidade, 0me- todo eatotalidade dos objetos particulares deuma universidade dig- na desse nome. Eledefine adestina<;:aofinal (Bestimmung), que de- termina enormatiza todas astradu<;:6esorganicamente interdiscipli- nares dessainstitui<;:ao. Essadestina<;:aofinal, tanto ado saber quanto aquela dauniversi- dade, nao enada menos que ada comunhao comaessencia divina. Todo saber tende aentrar nessa comunidade com0ser divino. A co- munidade filosofica, como acomunidade universidria, eeste "Streben nach Gemeinschaft mit dem gottlichen wesen",26 elatende aparticipar dessesaber originario que eurn edo qual cada tipo desaber participa como membra deuma totalidade viva. Aqueles cujo pensamento nao seordena aessacomunidade vivaezumbidora sao como abelhas as- sexuadas (geschlechtslose Bienen): como lhes erecusado criar, praduzir (produzieren), multiplicam fora dacolmeia excrementos inorganicos como testemunho desuapropria mediocridade, atestando assimsua falta deespirito (Geistlosigkeit). Essadeficiencia etambem uma inap- tidao agrande tradu<;:aoque faz circular emtodo 0corpo do saber 0 sentido do saber originario. ohomem nao euma abelha. Enquanto ser racional (Vernunftwe- sen), edestinado (bingestellt), colocado emvistas de encarregado da tarefadesuplemento ou decomplemento damanifesta<;:aodo mundo (eine Erganzung der welterscheinung). Elecompleta afenomenaliza<;:ao do todo. Eleesd ai para que 0mundo apare<;:acomo tal, epara ajuda- 10aparecer como tal no saber. Mas, seenecessario completar ou su- plementar (erganzen), eque existe uma falta. Semele, apropria ma- nifesta<;:aode Deus nao estaria completa. 0homem deve, por sua propria atividade, desenvolver (entwickeln) aquilo que faz falta na manifesta<;:aototal deDeus (was nur der Offinbarung Gottes fihlt). Eo que chamamos tradu<;:ao,etam na<;:aodauniversidade. 25 Idem, "Primeira lic;:ao", in op. cir., p. 45. 26 Idem, op. cir., p. 49. ~!BD F: LCH USP Flib. FlorGslan F~'T"""llk'> ; ombc' Aquisjr,;l~f); !:)O,tv):\(.';, F,\PESP Pro ,. ;!l){:W>-\,'i28"d ~UL T J RA Assistente tecnico de dite,ao Cootdenadot editorial Secteraria editotial Secrerario grafico Revisao Editora,ao eIetr6nica Design de capa Formato Papel Tipologia Numero depaginas Tradu,ao A pratica da diferen,a J ose Emilio Maiorino Ricardo Lima EvaMaria Maschio Morais Ednilson Tristao Daniela Lellis EvaMaria Maschio Morais Rossano Cristina Barbosa Ana Basaglia 14 x 11 em Offset 71g/m' - miolo Cartao supremo '10g/m' - capa Agaramond eFutura 176 ESTA OBRA FOI IMPRESSA NA GRAFICA EEDITORA DEL REY PARAA EDITORA DA UNICAMP EMAGOSTO DE 2009.