Casamento - Prof Menezes Cordeiro
Casamento - Prof Menezes Cordeiro
Casamento - Prof Menezes Cordeiro
46
1.
Introduo
I. A histria tem um sentido? Pensadores ocidentais ilustres, como Karl Marx e Francis Fukuyama respondem sim; o fim
de grandes civilizaes e os retrocessos scio-culturais que se lhe
seguiram inculcam o no. Fica a dvida. Mas alguns padres de
evoluo parecem repetir-se, num fenmeno a que as Cincias
humansticas devem dedicar a sua ateno.
Ponto particularmente controverso, no estudo e na explicao
das sociedades humanas e da sua evoluo, o do papel do irracionalismo. Condutas errticas, inexplicveis luz da racionalidade,
podem ser fatores decisivos na evoluo humana? Aparentemente:
sim. A Europa no seria a mesma sem Napoleo ou sem Adolf
hitler. E todavia: ambas essas personagens to diferentes e em
pocas to distintas, tomaram decises erradas idnticas, com
resultados compaginveis: a invaso da Rssia e as derrocadas, da
resultantes, dos invasores.
II. A irracionalidade das condutas no impede, verificadas as
circunstncias, resultados previsveis. certo que a sua previsibilidade s constatvel, muitas vezes, a posteriori. Mas ao menos
nesse plano, recupera-se a racionalidade que faltou partida.
Isto dito: a conduta irracional deixa de o ser quando, com ela,
se procurem certos efeitos pretendidos. Nova questo clssica: os
efeitos (lgicos) de opes ilgicas no podem, eles prprios, ser
contaminados pelo irracionalismo de raiz, acabando por desencadear processos que ultrapassem os decisores de incio?
III. Na presente pesquisa, vamos procurar testar estas questes luz da histria recente do Pas. Para tanto, escolhemos um
tema clssico: o do divrcio e do casamento na I Repblica.
O tema do divrcio est, hoje, pacificado. Mau grado leis
recentes, de discutvel justia, terem vindo agudizar algumas das
suas consequncias, considera-se assente a sua admissibilidade
civil, mesmo por parte de quem o considere religiosamente condenvel. No princpio do sculo XX e em Portugal, no era assim.
O divrcio no era praticado, no Pas, desde a reconquista crist do
47
48
49
I O casamento na Histria
2.
Direito romano
(4) MAX KASER/ROLF KNTEL, Rmisches Privatrecht / Ein Studienbuch, 19. ed.
(2008), 58, I (306).
(5) EDOARDO VOLTERRA, Matrimonio (diritto romano), NssDI X (1964), 330-335
(332/II).
(6) D. 23.2.1 = Corpus iuris civilis ed. bil. ROLF KNTEL e outros, IV (2005), 140.
(7) Portanto: o casamento a relao do marido e da mulher e a unio para toda a
vida, numa comunho de Direito divino e humano.
(8) EDOARDO VOLTERRA, Matrimonio (diritto romano) cit., 333/II; do mesmo
Autor, Matrimonio (diritto romano), ED XXV (1975), 726-807 (732/I ss.).
50
3.
51
O pensamento cristo
I. Com o Cristianismo, iniciou-se um combate ao divrcio(13). Logo o Imperador Constantino, em 331, veio punir um cnjuge que repudiasse o outro fora de iusta causa. Para a mulher,
quando o marido fosse homicida, violador de sepulcros ou envenenador; para o marido, quando a mulher fosse adltera, envenenadora ou alcoviteira. O divrcio bilateral mantinha-se livre.
Teodoro II e Valentiano III foram apertando as hipteses de
iustae causae. Justiniano, nas suas conhecidas novelas, proibiu o
divrcio fora de estritas justificaes, sendo os repudiantes
(marido ou mulher), fora delas, encarcerados perpetuamente num
mosteiro. O mesmo sucedia na hiptese de divrcio por mtuo
consentimento, salvo voto de castidade.
II. O Antigo Testamento admitia o repdio. Mas no Novo
Testamento, o repdio condenado por Jesus. Segundo o Evangelho de S. Marcos, o matrimnio indissolvel(14). J em S. Mateus,
Jesus teria deixado a porta aberta ao divrcio, no caso de adultrio
da mulher. Designadamente(15):
Todo aquele que repudiar a sua mulher, a no ser por causa de fornicao, a faz ser adltera; e o que desposar a (mulher) repudiada,
comete adultrio.
Este troo veio, mais tarde, a ser interpretado pelos protestantes como adimitindo o divrcio por adultrio da mulher e, pelos
catlicos, como facultando a separao, mas no um novo casamento.
(13) Sobre esta matria, ANTONIO MARONGIU, Divorzio (storia), ED XIII (1964),
482-504 (484/II ss.).
(14) S. Marcos, 10, 2-12, designadamente 9, (...) no separe o homem o que Deus
juntou e 11-12, qualquer que repudiar sua mulher, e se casar com outra, comete adultrio
contra a primeira. E se a mulher repudiar seu marido e se casar com outro, comete adultrio.
(15) S. Mateus 5, 32.
52
4.
53
Os estados civis
54
(19) MAX KASER, Das rmische Privatrecht , I Das altrmische, das vorklassische und klassische Recht, 2. ed. (1971), 271, explica que esses trs estados no tm base
nas fontes, sendo uma formulao ps-romana.
(20) idem, 283 ss., 279 ss. e 277, respetivamente.
(21) M. A. COELhO DA ROChA, instituies de Direito Civil Portuguez, I, 2. ed.
(1843, reimp., 1917), 30-31.
(22) PAULO CUNhA, Teoria Geral de Direito Civil (1972), 17; este Autor fixava-se
na primeira aceo, que considerava a correta; a segunda e a terceira teriam, respetivamente, a ver com o estatudo e com o estatuto.
55
56
6.
Os registos paroquiais
57
58
(31) Ou seja: O proco tem um livro especial no qual inscreve os nomes dos nubentes e as testemunhas, assim como o dia e o local do casamento, guardando-o diligentemente consigo.
(32) Vide uma smula em R. D. MAURUS DE SChENKL, Theologiae pastoralis systema (1815), ed. org. e ampl. JOA. GEORGIUS WESSELAK (ed. Porto, 1861), quanto s inscries de batismos (311), de casamentos (377-378) e de bitos (389), respetivamente.
(33) Alm da apregoada necessidade de emancipar o sistema das estruturas eclesisticas pesou, naturalmente, o modelo francs.
(34) Trata-se de um diploma elaborado por MOUzINhO DA SILVEIRA, no mbito da
legislao liberal promulgada na Ilha Terceira.
(35) Colleco de Decretos e Regulamentos publicados durante o Governo da
Regncia do Reino estabelecida na ilha Terceira, 1829/1832, 2. ed. (1836), 98.
59
()
60
(39) JOS MXIMO DE CASTRO MELO LEITE DE VASCONCELOS, O Cdigo Administrativo de 18 de Maro de 1842 annotado (1849), 141, dando conta das regras ento
vigentes.
(40) Colleco Official 1878 (1879), 73-103 (90).
(41) ANTNIO RIBEIRO DA COSTA E ALMEIDA, Codigo Administrativo aprovado por
Decreto de 17 de Julho de 1886 (1887); cf., a, 59 e 75, quanto a despesas relacionadas
com o registo civil e o registo paroquial.
(42) Colleco de Leis e Outros Documentos Officiais, 4. srie (1837), 365.
(43) Colleco cit., 7. srie, I parte (1837), 37-38.
(44) JOO M. PAChECO TEIXEIRA REBELLO, Colleco completa de Legislao
Ecclesiastico-Civil desde 1832 at ao presente, 1. vol. (1896), 106.
(45) idem, 157.
(46) Referendado por MARTENS FERRO; DG n. 212, de 9-set.-1859, 1173-1175 =
Colleco Official de Legislao Portugueza / 1859 (1860), 465-468; cf. TEIXEIRA
REBELLO, Colleco 1. vol. cit., 366-371.
Anteriormente, os diversos assentos faziam-se de acordo com as constituies dos
bispados e as regras cannicas em vigor; cf. RLJ 20 cit., 568/I.
61
V. O Cdigo de Seabra, no seu artigo 2441., voltava a referir um registo pblico destinado a provar os factos do nascimento,
do casamento e do bito(50). Manteve-se, todavia, a situao anterior.
Por fim, o Decreto de 28-nov.-1878 (Toms Ribeiro) veio
regular o registo civil para os no-catlicos(51). Era, todavia, ainda
um diploma muito elementar.
A partir desse momento passou a existir, no Pas, uma dualidade de registos relativos ao estado das pessoas: registo paroquial
para os catlicos e registo civil para os no-catlicos. Tratava-se de
uma situao transitria, destinada a cessar assim que se mostrassem reunidas as condies para um verdadeiro e prprio registo
civil. Seriam necessrios, para tanto, mais de trinta anos.
62
7.
I. O primeiro Cdigo de Registo Civil foi obra da I Repblica, sendo aprovado pelo Decreto de 18 de fevereiro de
1911(52/53). A ideia bsica do novo diploma resultava logo dos seus
primeiros dois artigos:
Artigo 1. O registo civil, que o Estado institui por este Decreto
com fora de lei, destina-se a fixar autenticamente a individualidade
jurdica de cada cidado e a servir de base aos seus direitos civis.
Artigo 2. obrigatria a inscrio no registo civil dos factos
essenciais relativos ao indivduo e famlia, e composio da sociedade, nomeadamente dos nascimentos, casamentos e bitos.
63
O Cdigo de Registo Civil de 1911 ficou marcado pela introduo do princpio da obrigatoriedade, pela entrega do registo a
funcionrios civis do Estado e pelo esforo de substituir aspectos
religiosos por esquemas jurdicos civis. Adiante veremos o seu
papel no casamento.
III. Aps diversas alteraes, seguiu-se o novo Cdigo de
Registo Civil: o aprovado pelo Decreto n. 22.018, de 22 de
dezembro de 1932(54). um diploma de 462 artigos, extenso e bastante regulamentar. Veio melhorar a orientao do Cdigo de 1911,
correspondendo j a um perodo de maturao do registo civil.
Ao seu abrigo desenvolveram-se prticas registais e alguma
doutrina.
Volvidos 26 anos, surge o terceiro Cdigo de Registo Civil
portugus: aprovado pelo Decreto-Lei n. 41.967, de 22 de novembro de 1958(55).
A matria passou a apresentar uma melhor arrumao,
ficando formalmente reduzida a 378 artigos. Teve em conta o
regime concordatrio de 1940. A sistematizao foi mais eficaz e o
tema do registo obteve um alargamento. A prova adquiriu contornos mais claros.
IV. O Cdigo de 1958 no chegou a vigorar dez anos: foi
substitudo por um novo Cdigo, aprovado pelo Decreto-Lei
n. 47.678, de 5 de maio de 1967. O grande escopo deste novo
diploma foi o de adequar o registo civil ao Cdigo Civil de 1966.
Todavia, as vicissitudes civis levaram, pouco depois, ao aparecimento do quinto Cdigo de Registo Civil: o Decreto-Lei
n. 51/78, de 30 de maro, aprovou novo diploma(56), procurando
(54) PEDRO ChAVES, Comentrio ao Cdigo do Registo Civil de 22 de Dezembro de
1932, 3. ed. (1937).
(55) MANUEL FLAMNIO DOS SANTOS MARTINS, Cdigo de Registo Civil (Decreto-Lei n. 41.967, de 22-11-1958) (s/d).
(56) JOS ANTNIO DE FRANA PITO/MANUEL ANTNIO MACEDO DOS SANTOS/RUI
CRISSTOMO DOS SANTOS, Cdigo do Registo Civil Anotado (1978) e, com meno a legis-
64
Distines bsicas
65
9.
I. Ao longo da histria, a mulher foi vtima de uma discriminao caracterstica, que teve diversas consequncias no
Direito(60).
Nas sociedades sedentrias que permitiram a acumulao de
riqueza, os homens, pela sua fora fsica em regra superior, ocuparam-se do gado e das tarefas agrcolas, vindo a control-las.
A guerra era feita tendencialmente por homens, permitindo o seu
adestramento e o seu acesso a funes pblicas de ndole militar.
Porventura mais grave, num crculo que se quebraria apenas no
sculo XX: a cultura era disponibilizada, em primeira linha, aos
homens, com um relevo particular para o ensino e o estudo do
Direito. Ficava a mulher remetida para lides domsticas e para a
educao dos filhos de mais tenra idade: desempenho, de resto,
prejudicado justamente pelo problema cultural. A inferioridade
fsica, econmica e, depois, cultural, da mulher, teve reflexos jurdicos at, praticamente, segunda metade do sculo XX. Ela mantm-se, de resto, noutras culturas, vindo mesmo a agravar-se, nos
ltimos anos.
II. No Direito romano, a mulher estava submetida ao pater
familias. Trata-se de uma situao que penalizava homens e
mulheres, apenas com a particularidade de o pater ser, naturalmente, um homem. As funes pblicas e o exerccio militar estavam reservados aos homens. Casando, a mulher passava para o
poder do marido, nos casamentos iniciais, ditos cum manu. A partir
(60) Sobre toda a matria, TERESA PIzARRO BELEzA, Mulheres, direito, crime ou a
perplexidade de Cassandra (1990), onde podem ser confrontadas inmeras indicaes.
66
67
IV. Em termos puramente civis, pelos antecedentes apontados, a posio da mulher estava j prxima da do homem, aquando
da pr-codificao.
Explicava Borges Carneiro:
A excluso das mulheres de algumas faculdades polticas se
funda em leis do pudor ou em costume meramente civil; no na
incapacidade ou inhabilidade do sexo: antes nelle se desinvolve
mais cedo o juizo e a puberdade(64).
68
Com o casamento, porm, a situao da mulher piorava decisivamente. Desde logo, ficava sob o poder marital por fora do
artigo 1185., correspondente ao artigo 213. do Cdigo Napoleo:
Ao marido incumbe, especialmente, a obrigao de proteger e
defender a pessoa e os bens da mulher; e a esta a de prestar obedincia
ao marido(76).
69
O grande bice igualdade dos sexos residia na falta de cultura e de instruo da mulher. Desde que se foi estabelecendo a
escolaridade obrigatria para homens e mulheres e que se consumou, ao longo da primeira metade do sculo XX, o acesso das
mulheres ao ensino secundrio e ao superior, a igualdade imps-se,
pela base.
A desigualdade da mulher foi sendo minorada por diversas
reformas legislativas(83), sendo curioso, a esse propsito, ponderar
a teoria e a prtica da I Repblica.
II. A discriminao da mulher manteve, no Direito portugus, algumas manifestaes tardias; estas coincidiam com uma
referncia de princpio igualdade dos sexos(84).
No Direito pblico estavam vedados, mulher, algumas profisses jurdicas, como o acesso magistratura judicial e ao minis-
70
71
72
(88)
73
III. Como foi referido, o divrcio nem constava do programa inicial do Partido Republicano. Ele comeou a ser referido
em meios universitrios sensveis evoluo francesa(89):
recorde-se que, em Frana, o divrcio surge abolido, em 1816,
sendo restabelecido, apenas, em 1884(90). No Parlamento Monrquico, ele foi objeto de um primeiro projeto, em 1900, que no
chegou a ser discutido(91). Idntico destino teve um segundo projeto, de 1906. No perodo imediatamente anterior Repblica, surgiram trs obras a defend-lo: de Roboredo Sampaio e Mello(92),
de Alberto Bramo(93) e de Lus de Mesquita(94).
Sampaio e Mello explica os diversos tipos de famlia(95); examina a justificao para o divrcio(96); remonta ao Cristianismo
(89) ABEL DE ANDRADE, Commentario ao Codigo Civil Portuguez (1895), 203.
(90) Quanto evoluo em Frana, vide MARCEL PLANIOL, Trait lmentaire de
Droit civil, 2. ed., 3 (1903), n. 482 ss. (155 ss.).
(91) Justamente do ento deputado progressista Duarte Caetano Reboredo de Sampaio e Melo, autor do livro abaixo referido. Apenas o Dr. Santos Viegas, abade de S. Tiago
das Antas, se lhe ops.
(92) ROBOREDO DE SAMPAIO E MELLO, Famlia e Divrcio (1906), 414 pp..
(93) ALBERTO BRAMO, Casamento e Divrcio (1908), 388 pp.; este Autor foi colaborador direto de hintze Ribeiro.
(94) LUS DE MESQUITA, Projecto de Lei do Divrcio em Portugal (1910).
(95) ROBOREDO DE SAMPAIO E MELLO, Famlia e Divrcio, cit., 49 ss..
(96) idem, 243 ss..
74
Recorda que ele admitido em toda a Europa, exceto na Itlia, em Espanha e em Portugal(103); rebate os falsos argumentos
contra o divrcio(104); examina os fundamentos de divrcio consagrados em vrias leis(105); expe que, afinal, a Igreja admite o
divrcio, atravs da anulao do casamento(106); recorda pontos
como o das origens do pensamento cristo(107), o da relao da criminalidade com o divrcio(108) e o dogma da indissolubilidade
adotado no Conclio de Trento(109).
Luiz de Mesquita, j em 1910, publicava um projeto de lei do
divrcio(110), antecedido por breve justificao, onde atacava, de
75
resto, a Igreja(111). Esse projeto, tecnicamente bem feito, foi aproveitado pelo legislador republicano.
IV. Estas iniciativas, conquanto que interessantes, nada
tinham de um movimento de massas ou, sequer, de uma corrente
significativa, a favor do divrcio. Apenas aps o 5 de outubro, no
segundo Congresso Nacional do Livre Pensamento, decorrido em
Lisboa, a 14 e 15 desse mesmo ms, Alberto Bramo apresentou
uma proposta de telegrama a enviar ao Ministro da Justia,
pedindo a promulgao urgente da lei do divrcio(112). A campanha
foi rematada com artigos do jornal O Sculo(113).
Em suma: neste como noutros assuntos, o papel liderante era
o do Governo, guiando-se, naturalmente, por critrios polticos.
76
77
78
o divrcio s produzia efeitos depois de autorizado, no prejudicando os direitos anteriormente adquiridos pelos credores do casal
(28.).
VI. Qualquer dos cnjuges podia pedir alimentos ao outro,
se deles carecesse; o seu montante era fixado de acordo com as circunstncias, mas no podia ultrapassar 1/3 dos rendimentos do obrigado (29.). Os alimentos podiam ser pedidos cumulativamente
com o divrcio ou em momento posterior (30.). A prestao de alimentos pode ser reduzida a pedido do obrigado, provando que se
alteraram as circunstncias (31.). E cessava se o cnjuge credor
casasse de novo, se se tornasse indigno ou se o obrigado no mais
pudesse prest-los (32.). Em compensao, o novo casamento do
obrigado no o eximia da obrigao para com o alimentado (33.).
VII. O diploma continha, ainda, diversas regras sobre a
separao de pessoas e bens, como alternativa ao divrcio (43.
a 49.): o cnjuge inocente poderia escolher (44.).
Surgiam vrios preceitos instrumentais e transitrios, com
relevo para o artigo 64., que permitia aos cnjuges judicialmente
separados, data da promulgao do Decreto, transformar a separao em divrcio definitivo.
79
II. O Cdigo Civil de Seabra (1867), a propsito da separao de pessoas e bens, admitia como causas (1204.):
1. O adultrio da mulher;
2. O adultrio do marido com escndalo pblico ou completo desamparo da mulher, ou com concubina teda e manteda no domiclio
conjugal;
3. A condenao do cnjuge a pena perptua;
4. As sevcias e injrias graves.
80
81
IV. Tem interesse fazer o balano dessa matria, na legislao subsequente. Em sntese:
o Decreto-Lei n. 261/75, de 27 de maio (Salgado zenha),
depois de alterada a Concordata, em 15-fev.-1975, por
acordo com a Santa S, veio permitir o divrcio nos termos gerais, mesmo aos casados canonicamente; acrescentou mais dois fundamentos ao divrcio, introduzindo-os
no artigo 1778./1: o decaimento em ao de divrcio em
que tivessem sido feitas imputaes ofensivas da honra e
dignidade do outro cnjuge e a separao de facto livremente consentida por cinco anos consecutivos; veio ainda
permitir o divrcio direto, por mtuo consentimento;
o Decreto-Lei n. 561/76, de 17 de julho, visando solucionar aspetos prticos, veio retomar a lista dos fundamentos
de separao/divrcio, elevando, todavia, de cinco para
seis anos a separao de facto requerida como fundamento, na alnea h) do artigo 1778.(117);
o Decreto-Lei n. 446/76, de 24 de julho, veio baixar para
dois anos a durao necessria do casamento para os cnjuges poderem requerer a separao judicial por mtuo
consentimento e para trs meses a separao provisria
exigvel para a deciso definitiva;
o Decreto-Lei n. 496/77, de 25 de novembro, que veio
adequar o Cdigo Civil Constituio, reordenou a matria: anteps, designadamente, o divrcio separao; e
quanto ao divrcio litigioso, limitou-se, como fundamento
nico, a dizer (1779./1):
Qualquer dos cnjuges pode requerer o divrcio se o outro
violar culposamente os deveres conjugais, quando a violao,
pela sua gravidade ou reiterao, comprometa a possibilidade de
vida em comum.
Alm disso, a nova redao do artigo 1781., relativo ruptura da vida em comum, permite o divrcio litigioso: (a) pela separao de facto por seis anos consecutivos; (b) pela ausncia sem
(117)
82
notcias, por quatro anos; (c) pela alterao das faculdades mentais
por mais de seis anos que, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum.
A Lei n. 47/98, de 10 de agosto, veio alterar esse mesmo
artigo 1781.; agora, so tambm fundamentos do divrcio litigioso, por ruptura da vida em comum: (a) a separao de facto por trs anos; (b) a separao por um ano,
se o divrcio for requerido por um dos cnjuges sem
oposio do outro; (c) a alterao das faculdades mentais
por mais de trs anos; (d) a ausncia sem notcias por
dois anos; tambm o artigo 1775. foi alterado, permitindo aos cnjuges requerer o divrcio por mtuo consentimento independentemente de qualquer prazo
mnimo: teoricamente, podem faz-lo no prprio dia do
casamento;
O Decreto-Lei n. 272/2001, de 13 de outubro (Antnio
Guterres), veio conduzir a que a separao judicial de pessoas e bens 5./1, e) e a separao e divrcio por
mtuo consentimento 12./1, b) corram perante o
conservador do registo civil;
A Lei n. 61/2008, de 31 de outubro, substituiu a ideia de
ruptura da vida em comum pela de ruptura do casamento, atravs da nova redao do artigo 1781., que dispe agora:
So fundamento do divrcio sem consentimento de um dos cnjuges:
a) A separao de facto por um ano consecutivo;
b) A alterao das faculdades mentais do outro cnjuge, quando dure
h mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;
c) A ausncia, sem que do ausente haja notcias, por tempo no inferior a um ano;
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cnjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.
83
84
(123) MANUEL GOMES DA SILVA, Curso de Direito da Famlia / Parte II, Do Casamento, tomo 2 (1972, polic.), 253 e 254, criticando o divrcio em geral.
(124) RUI RAMOS, na Histria de Portugal, dir. JOS MATTOSO, cit., VI, 410.
85
86
E prossegue:
As nossas leis, longe de reconhecerem o divorcio, impem penas
gravissimas aos que contrahirem ulterior matrimonio, sem estar legitimamente dissolvido o anterior ()(126).
(125)
JOS DIAS FERREIRA, Codigo Civil Portuguez Annotado, II, 2. ed. (1895),
(126)
290.
87
88
89
III. O novo regime procedeu a algumas adaptaes, relativamente ao esquema do Cdigo Civil.
No tocante aos impedimentos, ele juntou, em preceitos nicos, os anteriormente previstos, em separado, para os casamen-
90
91
92
93
na possibilidade de perfilhar os filhos ilegtimos adulterinos (22.), antes negada pelo artigo 122., 2., do Cdigo
Civil;
no alargamento da investigao da paternidade ilegtima
aos casos de seduo da me ou de convvio notrio (34.,
4. e 5.);
na consagrao expressa de alimentos e de socorro s
mes dos filhos ilegtimos (47. a 49.);
na supresso de filhos esprios, a favor dos no perfilhveis (50. a 52.).
94
tese: ter sido o Prof. Guilherme Moreira, o melhor civilista portugus, republicano moderado e que exerceria as funes de Ministro
da Justia, sob Pimenta de Castro. Cumpre recordar que Guilherme
Moreira foi o grande transformador do civilismo portugus, aproximando-o do sistema alemo.
III. A natureza conflitual da nova Lei do Casamento
pr-se-ia por via do Cdigo do Registo Civil de 18-fev.-1911(135):
este diploma, como foi visto, proibiu e puniu os casamentos catlicos no precedidos de casamentos civis. Disposio estranha:
como na poca foi notado, uma vez que a Repblica laica ignorava
o fenmeno religioso, no lhe bastaria no reconhecer os casamentos catlicos?
Temos, aqui, de reintroduzir o fator poltico.
Fazenda:
Guerra:
Marinha:
Estrangeiro:
Obras Pblicas:
95
Baslio Telles(138);
Antnio Xavier Correia Barreto;
Amaro Justiniano de Azevedo Gomes;
Dr. Bernardino Machado;
Dr. Antnio Luiz Gomes.
(138)
96
III.
No dia 13 de outubro, Decretos do Governo vieram criar os juzos de instruo criminal e revogar as leis de exceo de Joo Franco.
No dia 15 de outubro, salientamos, ambos do Governo:
Decreto que declara proscrita a famlia de Bragana, incluindo os
ascendentes, os descendentes e os colaterais at ao quarto grau do
ex-chefe de Estado.
Decreto que declara abolidos todos os ttulos nobilirquicos, distines honorficas ou direito de nobreza, com exceo da ordem da
Torre e Espada(141).
97
No dia seguinte, 22 de outubro, temos, entre outras, as medidas seguintes, tomadas por outros tantos Decretos:
probe a exposio ou venda de () quaesquer publicaes pornographicas ou redigidas em linguagem despejada e provocadora;
determina a observncia rigorosa do artigo 137., do
Cdigo Penal, relativo ao abuso de funes religiosas;
extingue, nas escolas primrias e normais primrias, o
ensino da doutrina crist.
O juramento do reitor e mais funcionrios e alunos da Universidade de Coimbra abolido a 23, sendo, do mesmo passo, anuladas as matrculas efetuadas no 1. ano da Faculdade de Teologia.
Foram tomadas outras medidas tcnicas.
A Relao dos Aores extinta a 24, formalizando-se outras
medidas de tipo corrente.
No dia 26 de outubro, so considerados dias teis os dias santificados, exceto o Domingo.
A Lei da Imprensa adotada em 28 de outubro: com 36 artigos, trata-se do primeiro diploma de flego da Repblica.
V. No dia 31 de outubro, um Decreto importante veio regular as sucesses por morte, no sentido de melhorar a posio dos
filhos ilegtimos. De notar que o seu artigo 6. dispunha:
Na falta de descendentes e ascendentes defere-se a sucesso ab
intestato ao conjuge sobrevivo, se ao tempo da morte do outro no estavam divorciados ou separados de pessoas e bens por sentena passada
em julgado.
98
99
II. O ano prosseguiu com as clebres Leis da Famlia, precisamente datadas de 25 de dezembro:
Decreto n. 1, que aprovou a Lei do casamento como contrato civil;
Decreto n. 2, que aprovou a Lei de proteo dos filhos.
III.
Temos ainda:
Decreto com Fora de Lei de 28 de dezembro, que estabelece as penalidades e a forma do processo a aplicar aos crimes de atentado e de
ofensas contra a Presidente do Governo Provisrio ou da Repblica e
contra a forma de Governo e integridade da Repblica Portuguesa;
Decreto com Fora de Lei de 31 de dezembro, que regula a posse, pelo
Estado, dos bens das extintas corporaes religiosas.
100
101
102
Em traos muito largos, podemos sintetizar os pontos seguintes, todos relativos Lei em causa:
proclamava solenemente o fim do catolicismo como religio do Estado (2.) e afastava qualquer funo ou encargo
religiosos da Repblica (6.);
impunha que os custos religiosos fossem assumidos, apenas, por corporaes especficas (entidades cultuais)
(16.) fiscalizadas por juntas de parquias (24.), sendo os
procos totalmente inelegveis (26.) e sujeitando-se a
mltiplas limitaes (29. a 42.);
o culto era visionado, devendo as cerimnias religiosas ter
um representante da autoridade a fiscalizar (46. e 47.);
os ministros da religio no podiam atacar atos do
Governo (48.), sob penas severas;
o uso de insgnias eclesisticas (53., 58. e 176.), as procisses (57.) e os sinos (58.) eram proibidos ou limitados;
todos os bens da Igreja eram nacionalizados (62. ss.)
podendo (apenas) ser emprestados para atos de culto, em
certas circunstncias;
os seminrios eram reduzidos a cinco e o ensino da teologia fiscalizado;
previam-se penses para os padres colaborantes (113.
ss.), as quais se mantinham se casassem (150.); idem,
para as vivas e filhos dos padres (152.);
todos os documentos da Igreja s podiam ser publicados
depois de aprovados pelo Governo (181.).
II. A Lei da Separao traduz, de facto, uma forte ingerncia
do Estado na religio catlica. Esta diretamente visada, seja de
um modo explcito, seja implicitamente. Nenhum estudioso da
matria tem, hoje, a mnima dvida em afirmar que a Lei visou
uma assumida perseguio Igreja.
III. Num prisma tcnico-jurdico, a Lei da Separao no
tem nada a ver com a clareza e com o bom nvel tcnico da Lei do
Divrcio ou das Leis da Famlia. Traduz uma amlgama de regras
103
104
Repblica, nos finais de fevereiro de 1911 e que fora proibida pelo Governo; no parece: a carta era inofensiva, em
termos de ao; no parece lgico que o Governo receasse
a sua leitura e avanasse com uma lei severssima.
As verdadeiras razes so de ordem puramente poltica, como
vamos ver.
LUS SALGADO
DE
105
de regalismo. Foi, pois, contra uma entidade humana e materialmente decrpita que o Prof. Affonso Costa investiu a energia que
deveria ter ficado para o Pas, para o ensino e para as colnias.
II. O radicalismo, em pocas de instabilidade, d poder. Os
companheiros do radical ou acompanham ou so desautorizados:
ridicularizados, mesmo. Todas as revolues o documentam.
No credvel que o Prof. Affonso Costa, pessoa inteligente e
com fino sentido poltico, se tivesse empolgado nas suas medidas,
ao ponto de perder a compostura na feitura das leis. A Igreja Catlica no representava nenhum inimigo que pusesse em perigo o
poder pessoal de Costa: inimigos seriam os seus correlegionrios
de Partido e da Maonaria. Foram eles os ltimos visados com as
medidas radicais ento tomadas.
III. A estratgia surtiu efeito. O Prof. Affonso Costa, custa
de perturbaes mltiplas que nunca o incomodaram verdadeiramente, conseguiu isolar os evolucionistas e os unionistas,
mantendo o seu Partido Democrtico quase invencvel, nas
urnas. S cedeu perante ditaduras espordicas e, por fim, perante
o 28 de maio de 1926.
25. As consequncias
I. A fuga em frente levada a cabo pelo Prof. Affonso Costa,
logo nos primeiros meses da I Repblica, condicionou todo o
sculo XX portugus: pelo menos at que a adeso Unio Europeia ps termo a uma aventura de oito sculos.
Desde logo, foram bloqueadas as hostes republicanas. Por
via disso, no foi possvel formar, na poca, um grande partido
republicano conservador, que alternasse no poder com o partido
radical de Costa(156). Fora esse o caso e Portugal teria atravessado
(156)
reflexes.
Vide ANTNIO JOS TELO, Primeira Repblica, cit., 171 ss., com importantes
106
107
e s dos liberais, em 1832) provocaram uma regresso da lusofonia. Pela brecha aberta entraram os colonialismos francs e ingls,
reduzindo a rea onde, hoje, se fala portugus.
26. E hoje?
I. A proporo de casamentos catlicos em Portugal, que era
de 68,8% em 1995, baixou, em 2009, para 43,1%: a barreira dos
50% foi ultrapassada em 2007. Quanto aos divrcios: houve
19.104 em 2000 e 26.176 em 2009: um nmero que baixou ligeiramente, desde 2008. A taxa bruta de divrcio passou de 0,1 por mil,
em 1970, para 2,5 por mil, em 2009, num crescimento de vinte e
cinco vezes, quase contnuo, que estabilizou em 2007.
Fica a pergunta: desde o momento em que mais de metade dos
casamentos anuais no seja cannica, Portugal ainda um Pas
catlico?
II. No dia 21-mar.-1911, num discurso feito no Grmio
Lusitano, o Prof. Affonso Costa, a propsito da Lei da Separao
que pretendia portuguesa (por oposio s leis brasileira e francesa), ter dito(158):
() a ao da medida ser to salutar que em duas geraes Portugal
ter completamente eliminado o catolicismo que foi a maior causa da
desgraada situao em que caiu.
108