Casamento - Prof Menezes Cordeiro

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DIVRCIO E CASAMENTO NA

I REPBLICA: QUESTES FRATURANTES


COMO ARMA DE CONQUISTA E DE
MANUTENO DO PODER PESSOAL?(*)
Pelo Prof. Doutor Antnio Menezes Cordeiro
SuMRiO:
1. Introduo. I O casamento na histria: 2. Direito romano;
3. O pensamento cristo; 4. A evoluo no Direito Portugus.
II O estado civil e o registo: 5. Os estados civis; 6. Os registos
paroquiais; 7. Os cdigos de registo civil. III A situao jurdica
da mulher: 8. Distines bsicas; 9. A discriminao histrica da
mulher; 10. Superao gradual e discriminaes tardias. IV O
Decreto de 3 de novembro de 1910 (Lei do Divrcio): 11. Sistema
geral e occasio; 12. As causas do divrcio e a tramitao; 13. Ponderao dos fundamentos do divrcio; 14. Apreciao geral da Lei de
1910. V O casamento nas Leis da Repblica: 15. O Cdigo Civil
de Seabra (1867); 16. O Decreto n. 1, de 25 de dezembro de 1910; o
sistema geral; 17. A secundarizao do casamento catlico; 18. Aspetos tcnico-jurdicos; a Lei de proteo dos filhos; 19. Apreciao
geral. VI A primazia do calendrio poltico: 20. Um ms de
Repblica; 21. A Repblica, at ao fim do ano; 22. Vetores gerais;
23. A Lei da Separao. VII Questes fraturantes, condicionalismo e estratgia de poder: 24. A estratgia do Prof. Affonso Costa;
25. As consequncias; 26. E hoje?

(*) O presente texto serviu de apoio a parte de uma comunicao, feita, no


dia 10 de maro de 2011, na Academia das Cincias de Lisboa, sob a presidncia do
Prof. Doutor Adriano Moreira.

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1.

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Introduo

I. A histria tem um sentido? Pensadores ocidentais ilustres, como Karl Marx e Francis Fukuyama respondem sim; o fim
de grandes civilizaes e os retrocessos scio-culturais que se lhe
seguiram inculcam o no. Fica a dvida. Mas alguns padres de
evoluo parecem repetir-se, num fenmeno a que as Cincias
humansticas devem dedicar a sua ateno.
Ponto particularmente controverso, no estudo e na explicao
das sociedades humanas e da sua evoluo, o do papel do irracionalismo. Condutas errticas, inexplicveis luz da racionalidade,
podem ser fatores decisivos na evoluo humana? Aparentemente:
sim. A Europa no seria a mesma sem Napoleo ou sem Adolf
hitler. E todavia: ambas essas personagens to diferentes e em
pocas to distintas, tomaram decises erradas idnticas, com
resultados compaginveis: a invaso da Rssia e as derrocadas, da
resultantes, dos invasores.
II. A irracionalidade das condutas no impede, verificadas as
circunstncias, resultados previsveis. certo que a sua previsibilidade s constatvel, muitas vezes, a posteriori. Mas ao menos
nesse plano, recupera-se a racionalidade que faltou partida.
Isto dito: a conduta irracional deixa de o ser quando, com ela,
se procurem certos efeitos pretendidos. Nova questo clssica: os
efeitos (lgicos) de opes ilgicas no podem, eles prprios, ser
contaminados pelo irracionalismo de raiz, acabando por desencadear processos que ultrapassem os decisores de incio?
III. Na presente pesquisa, vamos procurar testar estas questes luz da histria recente do Pas. Para tanto, escolhemos um
tema clssico: o do divrcio e do casamento na I Repblica.
O tema do divrcio est, hoje, pacificado. Mau grado leis
recentes, de discutvel justia, terem vindo agudizar algumas das
suas consequncias, considera-se assente a sua admissibilidade
civil, mesmo por parte de quem o considere religiosamente condenvel. No princpio do sculo XX e em Portugal, no era assim.
O divrcio no era praticado, no Pas, desde a reconquista crist do

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

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Algarve (1249). O tema no foi discutido aquando da consagrao


do casamento civil, em 1867, e no integrava sequer o Programa
do Partido Republicano. A sua introduo, em moldes (na poca),
de extrema largueza, pelo Governo Provisrio e isso menos de um
ms depois da proclamao da Repblica, veio provocar, na mdia
da populao, um choque scio-cultural. Podemos, em linguagem
atual, falar num tema fraturante: capaz de separar as pessoas, independentemente da sua posio poltica. partida, no h qualquer
conexo entre o modo de designao do chefe de Estado e a cessao do casamento.
IV. A Assembleia Constituinte, que legitimaria formalmente
a I Repblica, foi eleita em 28-mai.-1911(1). A Constituio de
1911 foi debatida e aprovada entre 15-jun. e 21-ago.-1911. Note-se
que a Inglaterra e a Frana s reconheceram o novo regime depois
de aprovada a Constituio e depois de eleito o primeiro Presidente
da Repblica (Manuel de Arriaga, 1840-1917). Todavia, leis civis
de fundo, como a do divrcio (3-nov.-1910), a do casamento
(25-dez.-1910) e a da separao das Igrejas(2) (20-abr.-1911),
foram aprovadas antes de qualquer legitimao jurdica. E entre
elas temos, cabea, precisamente a Lei do Divrcio.
Os historiadores que se debruaram, ulteriormente, sobre o
tema consideram que, em 1910, no havia, em Portugal, nenhum
problema social ligado ao divrcio(3). To-pouco existiam, na
poca, estudos de campo que afianassem o contrrio. Qual o sentido poltico e jurdico de medida to apressada? Qual foi a ideia do
Prof. Affonso Costa?
V. A oportunidade da pergunta assenta em consideraes
mltiplas. Passam cem anos sobre todos esses acontecimentos:
pode-se meditar sobre eles j com um certo distanciamento histrico. O sucedido tem paralelos e dissonncias com certas medidas
legislativas tomadas em 1974/1975 e, descontando a ilegitimidade
(1) Composta por 234 deputados: 229 do Partido Republicano, 3 independentes
e 2 socialistas.
(2) Designao eufemstica j que se tratou da separao da Igreja Catlica.
(3) RUI RAMOS, na Histria de Portugal, dir. JOS MATTOSO, VI (1994), 410.

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ANTNIO MENEzES CORDEIRO

jurdico-constitucional, com leis fraturantes adotadas em


2007/2011: aborto por convenincia, casamentos homossexuais e
transexualidade por averbamento ao registo.
O papel do voluntarismo na histria , mais do que nunca,
uma das grandes questes da humanidade.
VI. No visamos nem uma pesquisa histrica sobre o casamento e o divrcio, nem uma ponderao da denominada questo
religiosa, provocada pelo Prof. Affonso Costa, nem uma anlise
poltico-social da I Repblica: trata-se, alis, de matrias muito
estudadas, sobre as quais existe uma bibliografia inabarcvel. No
obstante, no poderemos deixar de enquadrar ou de referir brevemente todos esses aspetos. Isso feito, as reflexes subsequentes
visam, to-s, um ensaio sobre os pontos seguintes:
as Leis do Divrcio de 3-nov.-1910 e do Casamento, de
25-dez.-1910 com o seu enquadramento normativo subsequente;
a utilizao de leis fraturantes como armas de conquista e
de manuteno do poder pessoal.
Para tanto, vamos recordar a evoluo do casamento e do
divrcio, no Ocidente europeu. Faremos apontamentos especiais
sobre o estado civil e o registo e sobre a situao jurdica da
mulher, na histria ocidental. Passaremos, ento, Lei do Divrcio (3-nov.-1910), e Lei do Casamento (25-dez.-1910). Verificaremos como as medidas civis do incio da I Repblica obedeceram
ao calendrio poltico do Prof. Affonso Costa, culminando na Lei
de Separao das Igrejas (20-abr.-1911). Chegaremos, com isso, ao
tema fulcral: as questes fraturantes como estratgia de poder pessoal e as suas consequncias.
As concluses mostraro, por si, a atualidade que mantenham.

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I O casamento na Histria
2.

Direito romano

I. O casamento romano clssico tem sido apontado como


muito diverso daquele que perduraria no Ocidente, merc do pensamento cristo(4). Importa ter presente que, no prprio Direito
romano, se processou uma evoluo que poderamos considerar,
em linguagem atual, como acompanhando a emancipao da
mulher. Neste particular, o casamento comeou por ser dito cum
manu: a mulher passava do poder do pater para o do marido. Aps
os finais do sculo II, o casamento passou a sine manu: a mulher
mantinha-se na famlia de origem, conservando a sua autonomia
patrimonial e pessoal(5).
II. O prprio casamento em si era visto mais como um
estado do que como um ato a ele conducente. Na conhecida definio de Modestino(6):
Nuptiae sunt coniunctio maris et feminae et consortium omnis
vitae, divini et humani iuris comunicatio(7).

No faltam acusaes de interpelao, relativamente a esse


fragmento, que pressuporia j um pensamento cristo. Parece til
atentar nos pressupostos do casamento(8):
o conubium ou ius conubii, que poderamos apresentar como
a capacidade matrimonial, jurdica e socialmente determinada; equivaleria grega, que existia apenas entre

(4) MAX KASER/ROLF KNTEL, Rmisches Privatrecht / Ein Studienbuch, 19. ed.
(2008), 58, I (306).
(5) EDOARDO VOLTERRA, Matrimonio (diritto romano), NssDI X (1964), 330-335
(332/II).
(6) D. 23.2.1 = Corpus iuris civilis ed. bil. ROLF KNTEL e outros, IV (2005), 140.
(7) Portanto: o casamento a relao do marido e da mulher e a unio para toda a
vida, numa comunho de Direito divino e humano.
(8) EDOARDO VOLTERRA, Matrimonio (diritto romano) cit., 333/II; do mesmo
Autor, Matrimonio (diritto romano), ED XXV (1975), 726-807 (732/I ss.).

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ANTNIO MENEzES CORDEIRO

membros de uma mesma plis, sendo alargada, por Tratados,


a nubentes de cidades distintas(9);
a pubertas ou idade nbil, correspondente aos doze anos para
a mulher e aos catorze para o homem, segundo os proculianos; os sabinianos requeriam um exame, caso a caso;
a affectio, contnua e efetiva, traduzida num consensus prolongado.
O consensus era fundamental: nuptias non concubitus sed
consensus facit(10). Admitiam-se provas da affectio maritalis:
o convnio entre o homem e a mulher com ius conubii;
a conventio in manu, liberorum quaerendorum causa;
o dote;
certas cerimnias como a deductio in domum mariti ou a
sollemnis benedictio, mais tarde crist.
III. Do casamento emergiam diversas consequncias: relativas legitimidade dos filhos, ao regime sucessrio, s relaes de
afinidade e ao dote(11).
Em compensao, o vnculo matrimonial no era estvel.
O casamento dependia da affectio. Cessando esta, terminava o
estado conjugal. No Baixo Imprio, veio a distinguir(12):
o repudium, quando a cessao era unilateral;
o divortium, sendo bilateral.

O divrcio proliferou nos finais da Repblica: Csar


Augusto teve de tomar medidas contra ele. Em termos sociolgicos, afigura-se que o divrcio seria prtica em classes elevadas; quando generalizado, ele causaria graves perturbaes
sociais, designadamente pelo desamparo da mulher.
(9)1 EDOARDO VOLTERRA, Conubium, NssDI IV (1959), 786-787 (787/II).
(10) ULPIANO, D. 50.17.30.
(11) EDOARDO VOLTERRA, Matrimonio (diritto romano) cit., 333/II.
(12) EDOARDO VOLTERRA, Divorzio (diritto romano), NssDI VI (1960), 62-64
(62/II).

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3.

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O pensamento cristo

I. Com o Cristianismo, iniciou-se um combate ao divrcio(13). Logo o Imperador Constantino, em 331, veio punir um cnjuge que repudiasse o outro fora de iusta causa. Para a mulher,
quando o marido fosse homicida, violador de sepulcros ou envenenador; para o marido, quando a mulher fosse adltera, envenenadora ou alcoviteira. O divrcio bilateral mantinha-se livre.
Teodoro II e Valentiano III foram apertando as hipteses de
iustae causae. Justiniano, nas suas conhecidas novelas, proibiu o
divrcio fora de estritas justificaes, sendo os repudiantes
(marido ou mulher), fora delas, encarcerados perpetuamente num
mosteiro. O mesmo sucedia na hiptese de divrcio por mtuo
consentimento, salvo voto de castidade.
II. O Antigo Testamento admitia o repdio. Mas no Novo
Testamento, o repdio condenado por Jesus. Segundo o Evangelho de S. Marcos, o matrimnio indissolvel(14). J em S. Mateus,
Jesus teria deixado a porta aberta ao divrcio, no caso de adultrio
da mulher. Designadamente(15):
Todo aquele que repudiar a sua mulher, a no ser por causa de fornicao, a faz ser adltera; e o que desposar a (mulher) repudiada,
comete adultrio.

Este troo veio, mais tarde, a ser interpretado pelos protestantes como adimitindo o divrcio por adultrio da mulher e, pelos
catlicos, como facultando a separao, mas no um novo casamento.

(13) Sobre esta matria, ANTONIO MARONGIU, Divorzio (storia), ED XIII (1964),
482-504 (484/II ss.).
(14) S. Marcos, 10, 2-12, designadamente 9, (...) no separe o homem o que Deus
juntou e 11-12, qualquer que repudiar sua mulher, e se casar com outra, comete adultrio
contra a primeira. E se a mulher repudiar seu marido e se casar com outro, comete adultrio.
(15) S. Mateus 5, 32.

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ANTNIO MENEzES CORDEIRO

III. No Direito germnico, o casamento tinha uma feio


contratual: entre o pai da mulher e o marido. A mulher passou do
Munt do primeiro para o do segundo, o qual pagava um dote(16).
Na falta de acordo, admitia-se o casamento por rapto. A evoluo
subsequente, ditada pelo pensamento da Igreja, operou no sentido
da valorizao do consenso da mulher.
IV. O divrcio veio a ser definitivamente vedado pela Igreja
Catlica no Conclio de Trento (1563), tendo sido reafirmado o
princpio da indissolubilidade do casamento.

4.

A evoluo no Direito portugus

I. No Direito portugus, o casamento teve uma evoluo


bastante estudada(17). Antes do Conclio de Trento haveria,
segundo Alexandre herculano, trs tipos de casamento: de bno,
de pblica fama e de juras. Cabral de Moncada pe em causa esta
ideia, que equivaleria a reconhecer-se, na Idade Mdia, um casamento civil: o casamento seria unitrio, de bno ou de juras; o
casamento por fama seria, apenas, um meio de prova.
II. A evoluo seguiu certas linhas de fora: garantir a liberdade dos cnjuges; assegurar a bno da Igreja, ainda que o
sacramentum adviesse do acordo nupcial; evitar os casamentos
clandestinos; facilitar a prova. O divrcio no era conhecido.
Tudo teria eficcia depois de D. Sebastio ter recebido as
regras do Conclio de Trento.

(16) PIETRO VACCARI, Matrimonio (diritto intermedio), NssDI X (1964), 335-339


(336/I).
(17) Recordamos: ALEXANDRE hERCULANO, Estudos sobre o casamento civil (1863);
CABRAL DE MONCADA, O casamento em Portugal na idade Mdia, BFD VII (1921-1923) =
Estudos de Histria do Direito 1 (1948), 33-82; ARAJO E GAMA, O casamento civil estudado em face da doutrina catlica, da filosofia social e da legislao portuguesa (1881);
NUNO ESPINOSA GOMES DA SILVA, Histria do Direito portugus, II O casamento em Portugal (1969, polic.), 479 ss..

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III. Um esquema funcional de casamento pressupe um


registo conduzido, naturalmente, por pessoas letradas. V-se, da, o
relevo dos registos paroquiais, criados depois de Trento e que
abaixo sero referidos. O casamento ficou a reger-se pelo Direito
cannico.
IV. Aquando da preparao do Cdigo Civil de 1867, ou
Cdigo de Seabra, houve uma intensa discusso sobre a introduo, no Direito portugus, de um casamento civil(18). Acabou por
prevalecer a soluo prtica, mas apenas para os no-catlicos,
como abaixo ser apontado.
O tema do divrcio nem foi discutido.

II O estado civil e o registo


5.

Os estados civis

I. As pessoas singulares podem estar investidas nas mais


diversas posies jurdicas. Pode tratar-se de posies terminais
p. ex., a posio que derive da qualidade de comprador ou de
posies com apetncia para gerar novos efeitos jurdicos p. ex.,
a que emerja da qualidade de comerciante.
A nvel de linguagem, seria invivel transmitir, a propsito de
cada pessoa, todas as posies jurdicas que ela encabece ou possa
encabear. Por isso, o Direito recorre noo de estados das pessoas, a entender como qualidades ou prerrogativas que impliquem
ou que condicionem uma massa predeterminada de situaes jurdicas.

(18) Exposio bibliogrfica dos trabalhos relativos ao Cdigo Civil de 1867 e


preparatrios du futuro Cdigo Civil portugus (1959), 13-20, com muitas indicaes.
Vide, ainda, VIRGLIO LOPES, Divrcio em Portugal (1974), 56 ss.., com diversas referncias.

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A ideia de estado ou status era j usada, no Direito


romano, com um alcance prximo do atual. A concreta posio de cada um advinha da conjuno de trs estados(19): o
status libertatis, o status civitatis e o status familiae. O primeiro distinguia a pessoa livre do escravo; o segundo contrapunha o cidado ao peregrinus; o terceiro definia a posio do
sujeito no seio da famlia(20).
A tcnica dos estados foi acolhida pelos direitos de base
romnica. Na pr-codificao portuguesa, por exemplo, dizia
Coelho da Rocha(21):
() nos homens os direitos variam conforme as differentes
qualidades, posio ou circunstncias, em que elles se
acham; ou, para nos servirmos da phrase dos JCtos Romanos,
conforme seu differente estado.

II. O estado das pessoas pode ser entendido com um alcance


triplo(22):
o estado-qualidade que traduz uma determinada posio
da pessoa;
o estado como complexo de situaes jurdicas correspondentes a essa qualidade ou por ela potenciadas ou condicionadas;
o estado enquanto conjunto de normas jurdicas reguladoras dessa massa de situaes.
No h incompatibilidade entre estas noes. De facto, o
ponto de partida constitudo pelo estado-qualidade, sendo as
outras duas acepes simples facetas dele decorrentes.

(19) MAX KASER, Das rmische Privatrecht , I Das altrmische, das vorklassische und klassische Recht, 2. ed. (1971), 271, explica que esses trs estados no tm base
nas fontes, sendo uma formulao ps-romana.
(20) idem, 283 ss., 279 ss. e 277, respetivamente.
(21) M. A. COELhO DA ROChA, instituies de Direito Civil Portuguez, I, 2. ed.
(1843, reimp., 1917), 30-31.
(22) PAULO CUNhA, Teoria Geral de Direito Civil (1972), 17; este Autor fixava-se
na primeira aceo, que considerava a correta; a segunda e a terceira teriam, respetivamente, a ver com o estatudo e com o estatuto.

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III. Os estados das pessoas podem ser globais ou parcelares.


Globais quando condicionem uma generalidade de posies de
uma pessoa p. ex., o estado civil; parcelares se se reportarem a
determinada faceta da pessoa em causa p. ex., o estado profissional ou profisso. Quando se fala em estados das pessoas ou,
simplesmente, em estados, tm-se em vista estados globais. A ideia
de estado pode ser bastante fecunda, uma vez que permite transmitir, em termos sintticos e precisos, toda uma srie de informaes
sobre vetores jurdicos importantes. Em compensao, difcil
fixar os diversos estados eventualmente relevantes. Torna-se til
proceder a classificaes.
Na tradio de Paulo Cunha, que remonta ao Cdigo de
Registo Civil de 1932, podemos distinguir entre estado das pessoas
e estado civil(23): estados civis so os estados publicitados pelo
registo civil; estados das pessoas equivalem aos estados civis e,
ainda, aos estados apurados por via doutrinria.
Os estados das pessoas podem subdividir-se em estados relacionados com a nacionalidade ou cidadania, com a famlia, com a
posio sucessria, com o sexo, com a idade, com deficincias ou
com a situao patrimonial. Teremos, assim, os estados seguintes:
quanto nacionalidade: nacional, estrangeiro, aptrida e
plurinacional; o nacional, por seu turno, poder ser originrio, superveniente ou por reaquisio;
quanto famlia: parente ou estranho; solteiro, casado,
vivo ou divorciado; pai, me, filho ou adoptado;
quanto posio sucessria: herdeiro ou legatrio; o herdeiro poder ser legitimrio, legtimo ou testamentrio;
quanto ao sexo: masculino ou feminino;
quanto idade: nascido ou nascituro e menor ou maior;
quanto deficincia: comum, interdito ou inabilitado;
quanto situao patrimonial: comum ou falido.
(23) PAULO CUNhA, Teoria Geral do Direito Civil / Apontamentos inditos 1971/72,
7. lio terica de 16-nov.-1971. A contraposio foi retomada, p. ex., por CASTRO MENDES, Direito civil (Teoria Geral), 1 (1968), 86 ss. e por J. DE SEABRA LOPES, Direito dos
Registos e do Notariado (2002), 19 ss..

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ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Os diversos estados so tratados pelas disciplinas privadas de


acordo com critrios legislativos e histrico-culturais. A matria da
nacionalidade era, tradicionalmente, vista na parte geral do Direito
civil, o mesmo sucedendo com o sexo, a idade e as deficincias; a
nacionalidade passaria, porm, para o Direito internacional privado.
A famlia e a posio sucessria correspondem s respectivas disciplinas civis: Direito da famlia e Direito das sucesses. A falncia
compete ao Direito comercial.
IV. Os estados parcelares correspondem a diversas reas
jurdico-normativas. Significativos so determinados estados profissionais, com relevo para o de comerciante e o de trabalhador, a
precisar pelo Direito comercial e pelo Direito do trabalho. No
domnio funcional regido pelo Direito pblico, encontramos os
estados de funcionrio pblico, com mltiplas subdivises (militar,
magistrado, diplomata ou docente do ensino pblico), de poltico,
de profissional liberal ou de reformado.
Ao utilizar-se qualquer uma dessas designaes, estamos a
enunciar um pressuposto de aplicao das mais diversas normas
jurdicas. Uma enumerao exaustiva das normas em jogo seria
puramente impensvel: donde a vantagem em ter, disponvel, o
conceito geral de estado.

6.

Os registos paroquiais

I. Os estados das pessoas, particularmente os globais, tm


todo o interesse prtico. Compreende-se, desta forma, a vantagem
de dispor de um servio pblico que contenha os elementos relativos identidade das pessoas e que, a propsito de cada uma delas,
permita conhecer e comprovar os estados em que se encontrem.
Esse o papel do registo civil.
Todavia e como sempre sucede no Direito privado o
caminho que a ele conduziu foi longo e complexo. Cumpre, dele,
dar uma ideia geral.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

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II. A necessidade de manter um esquema susceptvel de


reter e de comunicar a identidade das pessoas e o seu estado foi primeiro sentida pela Igreja(24). Tal necessidade decorria das incompatibilidades matrimoniais: s podiam casar os no-casados e isso
desde que, entre eles, no houvesse determinadas relaes de
parentesco. Assim surgiram os registos paroquiais.
As regras atinentes aos registos paroquiais no foram, durante
muitos sculos, unitrias(25). A matria variava de bispado para bispado, mesmo dentro do nosso Pas: era regida pelas Constituies Diocesanas, da competncia de cada bispo(26).
Uma meno especial deve ser feita Constituio Diocesana de
Lisboa, de 25-ago.-1536(27), promulgada pelo Infante D. Affonso, cardeal-arcebispo de Lisboa(28) e que obrigava ao registo dos baptismos,
na rea da Diocese(29).
O Conclio de Trento (1545-1563), na sua XXIV sesso, de
11-nov.-1563, veio determinar(30):

(24) h registos anteriores, designadamente de comerciantes e de contribuintes.


Alm disso, desde os tempos antigos se relata a prtica de recenseamentos: recorde-se o
ordenado por TIBRIO e que coincidiu com o nascimento de CRISTO. No se tratava, porm,
de servios permanentes, dirigidos diretamente s pessoas, enquanto pessoas.
(25) Quanto evoluo em Frana de resto, bastante paralela nossa cf. GILLES GOUBEAUX, Droit civil / Les personnes (1989), 198.
(26) Sobre a matria vide MANOEL LUIz COELhO DA SILVA, Manual de Direito parochial, 3. ed. (1904), 205 ss.; as edies anteriores so de 1897 e de 1898. Elementos histricos importantes podem, ainda, ser confrontados no prembulo do Decreto de 19-ago.-1859,
DG n. 212, de 9-set.-1859, 1173/I e II.
(27) Quanto a outras constituies de bispados vide diversas indicaes em RLJ 20
(1888), 567-568 (567, nota 1).
(28) D. Affonso era filho de D. Manuel I, tendo sido cardeal-arcebispo de Lisboa
desde 1523.
(29) Segundo notcia de JOO BAUTISTA DE CASTRO, Mappa de Portugal Antigo e
Moderno, tomo 3., 2. ed. (1763), 137, com referncia s medidas de D. AFFONSO:
(...) e impondo aos Parocos, aos quaes em Synodo, que fez celebrar na S em o anno
de 1536 a 25 de Agosto, tambem ordenou tivessem livros para assentar os nomes
das pessoas bautizadas, e dos Padrinhos, cousa que antes do seu governo se no praticava, e a cujo exemplo o fez estabelecer em toda a Igreja Catholica o sagrado Concilio Tridentino.
(30) Conciliorum Oecumenicorum Decreta, org. GIUSEPPE ALBERICO, ed. bilingue
latim/alemo trad. al. JOSEF WOLhLMUTh, 3. vol. (2002), sessio xxiv canones super reformatione circa matrimonium, I, 756, 35.

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ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Habeat parochus librum, in quo coniugum et testium


nomina, diemque et locum contracti matrimonii describat, quem
diligenter apud se custodiat(31).
O Ritual romano de Paulo V, de 17-jun.-1614, veio desenvolver o
registo dos baptismos e dos casamentos e estabelecer, ainda, o registo
dos bitos(32). Os registos paroquiais iam, assim, ampliando o seu
objeto.

III. Com o liberalismo, o Estado assumiu a preocupao


de organizar e de pr em funcionamento um servio de registo
civil(33). No era fcil: isso pressuporia, para alm de adequada
cobertura normativa, todo um corpo especializado de funcionrios
e agentes, com mbito nacional. E assim, durante cerca de 80 anos,
multiplicaram-se as declaraes de inteno.
Um Decreto de 16 de maio de 1832(34), relativo organizao administrativa, previa a figura do provedor do concelho.
Segundo o seu artigo 68., 2., incumbe ao provedor a redaco e
a conservao do Registo Civil. Passamos a transcrever os artigos 69. e 70. do referido Decreto: marcam o surgimento do
registo civil, em Portugal(35):
Art. 69. O Registo Civil a Matrcula geral de todos os Cidados, pela qual a Authoridade Publica attesta, e legitima as pocas principaes da vida civil dos individuos: a saber, os Nascimentos, Casamentos, e Obitos:
1. A redaco deste Registo pertence ao Provedor, a qual ser
feita em Livro especial por elle rubricado.

(31) Ou seja: O proco tem um livro especial no qual inscreve os nomes dos nubentes e as testemunhas, assim como o dia e o local do casamento, guardando-o diligentemente consigo.
(32) Vide uma smula em R. D. MAURUS DE SChENKL, Theologiae pastoralis systema (1815), ed. org. e ampl. JOA. GEORGIUS WESSELAK (ed. Porto, 1861), quanto s inscries de batismos (311), de casamentos (377-378) e de bitos (389), respetivamente.
(33) Alm da apregoada necessidade de emancipar o sistema das estruturas eclesisticas pesou, naturalmente, o modelo francs.
(34) Trata-se de um diploma elaborado por MOUzINhO DA SILVEIRA, no mbito da
legislao liberal promulgada na Ilha Terceira.
(35) Colleco de Decretos e Regulamentos publicados durante o Governo da
Regncia do Reino estabelecida na ilha Terceira, 1829/1832, 2. ed. (1836), 98.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

59

2. Qualquer rasura, ou entrelinha na escripturao do Registo


Civil da responsabilidade do Escrivo. Mas todos os actos lanados nelle, e todas as Certides delle extrahidas, sero assignadas pelo Provedor; sem o que no tero f.
3. Em todos os Actos Publicos, em que de futuro se requeiram Certides de Casamentos, Nascimentos, ou Obitos, s tero
f as extrahidas do Registo Civil.
4. Todos os Assentos lanados neste Livro tero, alm da
Assignatura do Provedor, a das Partes, que fazem a Declarao, a
do Escrivo dante elle, e de duas testemunhas.
5. Em todas as difficuldades e questes, que possam suscitar-se sobre o Registo Civil, o Procurador Regio far decidir o
negocio contenciosamente.
Art. 70. Nos Concelhos, cujos Termos forem mui dilatados, e
comprehenderem parochias ruraes a grande distancia da Cabea do
Concelho, se podero instituir um ou mais Delegados do Provedor,
cujo principal officio ser o de terem um Livro subsidiario do Registo
Civil, e aos quaes, alm disso, o Provedor poder, segundo as circunstancias o exigirem, incumbir as diligencias, que julgar convenientes.

()

Seguiu-se um Decreto de 18 de julho de 1835 (Rodrigo da


Fonseca), relativo Diviso Administrativa do Reino; este
diploma, nos seus artigos 65., 72. e 73.(36), retomava as regras
enunciadas em 1832. de notar o artigo 65., 5.:
Um Regimento Especial estabelecer as solemnidades, que tem
de se observar na redaco do Registo Civil, e subministrar as regras
prticas, e os modellos, segundo os quaes nelle sero uniformemente
lanados os diversos assentos.

O tema do registo civil passaria, depois, a ser referido nos


sucessivos cdigos administrativos. No de 31 de dezembro de
1836 (Passos Manuel), artigos 131. e 132.(37), no de 18 de maro
de 1842 (Costa Cabral), artigo 255.(38), segundo o qual o adminis(36)
(37)
(38)

Colleco de Leis 1834/1835 cit., 194-222 (208-209).


DG n. 6, de 1837.
Colleco de Leis 1841/1843, 1842, 108-143 (131).

60

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

trador do Concelho tambm Official do Registo Civil(39) e no


de 6 de maio de 1878 (Rodrigues Sampaio), artigo 206., n. 4(40),
que dispe competir ao administrador do Concelho Fazer o registo
civil(41).
IV. Enquanto se multiplicavam as referncias programticas
ao registo civil, o Estado foi aproveitando as estruturas existentes.
Os registos paroquiais passaram a ser usados pelo Estado sendo,
para o efeito, os procos assimilados a funcionrios pblicos.
Alguns exemplos: a Portaria de 16-out.-1835 determinou que os
livros existentes nas freguesias nelas se conservassem at que se estabelea o Regulamento geral sobre o Registo Civil(42), numa posio
reiterada pela Portaria de 10-jan.-1837(43); a Portaria de 12-nov.-1838
determinou que os procos passassem gratuitamente certides de bito
a pessoas pobres(44); o Decreto de 8-jun.-1844 fixava os emolumentos
paroquiais em todas as freguesias de Lisboa(45).

A soluo finalmente encontrada foi a de, por diploma do


Estado, aprovar um regime geral de registo paroquial. Tal o papel
do Decreto de 19 de agosto de 1859(46).
No se tratava, ainda, de um registo civil: como resulta da sua
prpria designao, este diploma assentava na organizao eclesistica
e nos deveres civis que incumbiam aos procos.

(39) JOS MXIMO DE CASTRO MELO LEITE DE VASCONCELOS, O Cdigo Administrativo de 18 de Maro de 1842 annotado (1849), 141, dando conta das regras ento
vigentes.
(40) Colleco Official 1878 (1879), 73-103 (90).
(41) ANTNIO RIBEIRO DA COSTA E ALMEIDA, Codigo Administrativo aprovado por
Decreto de 17 de Julho de 1886 (1887); cf., a, 59 e 75, quanto a despesas relacionadas
com o registo civil e o registo paroquial.
(42) Colleco de Leis e Outros Documentos Officiais, 4. srie (1837), 365.
(43) Colleco cit., 7. srie, I parte (1837), 37-38.
(44) JOO M. PAChECO TEIXEIRA REBELLO, Colleco completa de Legislao
Ecclesiastico-Civil desde 1832 at ao presente, 1. vol. (1896), 106.
(45) idem, 157.
(46) Referendado por MARTENS FERRO; DG n. 212, de 9-set.-1859, 1173-1175 =
Colleco Official de Legislao Portugueza / 1859 (1860), 465-468; cf. TEIXEIRA
REBELLO, Colleco 1. vol. cit., 366-371.
Anteriormente, os diversos assentos faziam-se de acordo com as constituies dos
bispados e as regras cannicas em vigor; cf. RLJ 20 cit., 568/I.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

61

O regulamento em causa era um diploma simples, em 27 artigos.


O registo continuaria a ser feito pelo respectivo parocho ou pelo
ecclesiastico que para este fim legitimamente o substituir artigo 1..
O registo compreendia 4. os nascimentos, os casamentos, os bitos e o reconhecimento ou legitimao dos filhos. havia, depois, vrias
regras tendentes normalizao das inscries. Previa-se uma fiscalizao pelos vigrios de vara ou arciprestes, a aprovao e o arquivamento dos registos e documentos anexos(47). Para efeitos de registo,
como se disse, os procos eram considerados funcionrios pblicos.
Veio, depois, o Decreto de 2-abr.-1862 prescrever a forma de
escripturar o registo parochial, regulando de novo a matria, em moldes no muito diversos(48). Pela Portaria de 16-jul.-1866, o bom ou
mau servio dos parochos com relao ao registo parochial passaria a ser tomado em conta nos concursos(49).

V. O Cdigo de Seabra, no seu artigo 2441., voltava a referir um registo pblico destinado a provar os factos do nascimento,
do casamento e do bito(50). Manteve-se, todavia, a situao anterior.
Por fim, o Decreto de 28-nov.-1878 (Toms Ribeiro) veio
regular o registo civil para os no-catlicos(51). Era, todavia, ainda
um diploma muito elementar.
A partir desse momento passou a existir, no Pas, uma dualidade de registos relativos ao estado das pessoas: registo paroquial
para os catlicos e registo civil para os no-catlicos. Tratava-se de
uma situao transitria, destinada a cessar assim que se mostrassem reunidas as condies para um verdadeiro e prprio registo
civil. Seriam necessrios, para tanto, mais de trinta anos.

(47) O Regulamento foi complementado pela Portaria de 8-out.-1859, que mandou


distribuir aos procos modelos dos assentos de batismo, casamento e bito DG n. 239,
de 11-out.-1859, 1285-1296.
(48) DG 79, de 8-abr.-1862 = Colleco Official 1862, 69-75 = TEIXEIRA REBELLO,
Colleco, 2. vol. (1897), 39-50.
(49) DLx 158 de 17-jul.-1866 = Colleco Official 1866, 296 = TEIXEIRA REBELLO,
Colleco, 2. vol. cit., 79-80, assinado por BARJONA DE FREITAS.
(50) JOS DIAS FERREIRA, Codigo Civil Annotado cit., 4, 2. ed., 341 ss..
(51) Colleco Official de Legislao Portugueza, Anno de 1878, 394-400; este
diploma antecedido por um prembulo com relevo histrico, retomando elementos inseridos no prembulo do Decreto de 19-ago.-1859.

62

7.

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Os cdigos de registo civil

I. O primeiro Cdigo de Registo Civil foi obra da I Repblica, sendo aprovado pelo Decreto de 18 de fevereiro de
1911(52/53). A ideia bsica do novo diploma resultava logo dos seus
primeiros dois artigos:
Artigo 1. O registo civil, que o Estado institui por este Decreto
com fora de lei, destina-se a fixar autenticamente a individualidade
jurdica de cada cidado e a servir de base aos seus direitos civis.
Artigo 2. obrigatria a inscrio no registo civil dos factos
essenciais relativos ao indivduo e famlia, e composio da sociedade, nomeadamente dos nascimentos, casamentos e bitos.

II. A plenitude da prova feita pelo registo resultava do


artigo 4.. O Cdigo de Registo Civil veio pr termo dualidade
entre catlicos e no-catlicos. Segundo o seu artigo 8., no dia da
entrada em vigor do Cdigo, os livros de registo paroquial em
poder dos procos seriam por estes encerrados no estado em que se
encontrassem. Todos os livros transitariam para as reparties do
Estado.
O Cdigo de Registo Civil de 1911 era um diploma extenso,
com 365 artigos, repartidos por doze captulos:
I Dos fins do registo civil, sua obrigatoriedade e fixao;
II Dos funcionrios e reparties do registo civil;
III Da competncia, atribuio e remunerao dos funcionrios
do registo civil;
IV Dos livros do registo civil e sua reforma;
V Dos servios do registo civil em geral;
VI Dos registos de nascimento;
VII Dos registos de casamento;
VIII Dos registos de bito;
IX Dos registos de reconhecimento e de legitimao;
X Das certides e boletins e das estatsticas;

(52) PEDRO ChAVES, Comentrio ao Cdigo de Registo Civil, 2. ed. (1923).


(53) Na feitura deste Cdigo, teve ainda influncia o cdigo de registo civil brasileiro, aprovado pelo Decreto n. 9.886, de 7-mar.-1888; vide JOS TAVARES BASTOS,
O registo Civil na Repblica (1909).

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

63

XI Da inspeco dos servios de registo civil e dos recursos;


XII Disposies gerais, finais e transitrias.

O Cdigo de Registo Civil de 1911 ficou marcado pela introduo do princpio da obrigatoriedade, pela entrega do registo a
funcionrios civis do Estado e pelo esforo de substituir aspectos
religiosos por esquemas jurdicos civis. Adiante veremos o seu
papel no casamento.
III. Aps diversas alteraes, seguiu-se o novo Cdigo de
Registo Civil: o aprovado pelo Decreto n. 22.018, de 22 de
dezembro de 1932(54). um diploma de 462 artigos, extenso e bastante regulamentar. Veio melhorar a orientao do Cdigo de 1911,
correspondendo j a um perodo de maturao do registo civil.
Ao seu abrigo desenvolveram-se prticas registais e alguma
doutrina.
Volvidos 26 anos, surge o terceiro Cdigo de Registo Civil
portugus: aprovado pelo Decreto-Lei n. 41.967, de 22 de novembro de 1958(55).
A matria passou a apresentar uma melhor arrumao,
ficando formalmente reduzida a 378 artigos. Teve em conta o
regime concordatrio de 1940. A sistematizao foi mais eficaz e o
tema do registo obteve um alargamento. A prova adquiriu contornos mais claros.
IV. O Cdigo de 1958 no chegou a vigorar dez anos: foi
substitudo por um novo Cdigo, aprovado pelo Decreto-Lei
n. 47.678, de 5 de maio de 1967. O grande escopo deste novo
diploma foi o de adequar o registo civil ao Cdigo Civil de 1966.
Todavia, as vicissitudes civis levaram, pouco depois, ao aparecimento do quinto Cdigo de Registo Civil: o Decreto-Lei
n. 51/78, de 30 de maro, aprovou novo diploma(56), procurando
(54) PEDRO ChAVES, Comentrio ao Cdigo do Registo Civil de 22 de Dezembro de
1932, 3. ed. (1937).
(55) MANUEL FLAMNIO DOS SANTOS MARTINS, Cdigo de Registo Civil (Decreto-Lei n. 41.967, de 22-11-1958) (s/d).
(56) JOS ANTNIO DE FRANA PITO/MANUEL ANTNIO MACEDO DOS SANTOS/RUI
CRISSTOMO DOS SANTOS, Cdigo do Registo Civil Anotado (1978) e, com meno a legis-

64

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

uma certa simplificao da matria. Tratou-se de adaptar a matria


reforma do Cdigo Civil de 1977, essencialmente destinada a
adequ-lo Constituio.
O registo civil passou a assumir uma feio algo instvel,
multiplicando-se as intervenes legislativas(57).

III A situao jurdica da mulher


8.

Distines bsicas

I. O ser humano uma espcie sexuada. Os indivduos de


cada um dos sexos distinguem-se, fcil e imediatamente, pelo
aspecto geral, pela postura e por cada um dos gestos. Desde a
infncia, o modo de agir especfico, em funo do sexo, constitui
um facto fcil de referenciar. A diferenciao dos sexos origina um
dos grandes sortilgios da humanidade, estando permanentemente
presente em todas as situaes.
II. O sexo fica determinado no momento da concepo.
Todo o ser humano recebe um cromossoma X, da me. Quem
herde um cromossoma X do pai, mulher (XX); quem herde um Y,
homem (XY)(58). Trata-se de uma situao irreversvel(59), a que
tambm se chama o sexo cromossomtico.
Podemos, depois, apontar outros sexos, derivados do primeiro: o sexo anatmico, que se assume na stima semana da gra-

lao subsequente, que alterou o Decreto-Lei n. 51/78, J. ROBALO POMBO, Cdigo do


Registo Civil / Anotado e Comentado (1991).
(57) Quanto ao Direito vigente, remete-se para o nosso Tratado de Direito civil IV,
3. ed. (2011), 385 ss.. Vigora o Cdigo de Registo Civil de 1995, com numerosas alteraes.
(58) MATT RIDLEY, Genome / The Autobiography of a Species in 23 Chapters
(2000), 108.
(59) Esto em curso pesquisas tendentes a determinar eventuais fundamentos genticos para a homossexualidade; no tm, todavia, a ver com a determinao do sexo em si
e so consideradas politicamente incorretas.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

65

videz; o sexo hormonal, que floresce na puberdade; o sexo social,


que ocorre com a socializao da criana; o sexo psicolgico, que
equivale interiorizao da fenomenologia sexual, levando a que
cada um se saiba e sinta homem ou mulher.

9.

A discriminao histrica da mulher

I. Ao longo da histria, a mulher foi vtima de uma discriminao caracterstica, que teve diversas consequncias no
Direito(60).
Nas sociedades sedentrias que permitiram a acumulao de
riqueza, os homens, pela sua fora fsica em regra superior, ocuparam-se do gado e das tarefas agrcolas, vindo a control-las.
A guerra era feita tendencialmente por homens, permitindo o seu
adestramento e o seu acesso a funes pblicas de ndole militar.
Porventura mais grave, num crculo que se quebraria apenas no
sculo XX: a cultura era disponibilizada, em primeira linha, aos
homens, com um relevo particular para o ensino e o estudo do
Direito. Ficava a mulher remetida para lides domsticas e para a
educao dos filhos de mais tenra idade: desempenho, de resto,
prejudicado justamente pelo problema cultural. A inferioridade
fsica, econmica e, depois, cultural, da mulher, teve reflexos jurdicos at, praticamente, segunda metade do sculo XX. Ela mantm-se, de resto, noutras culturas, vindo mesmo a agravar-se, nos
ltimos anos.
II. No Direito romano, a mulher estava submetida ao pater
familias. Trata-se de uma situao que penalizava homens e
mulheres, apenas com a particularidade de o pater ser, naturalmente, um homem. As funes pblicas e o exerccio militar estavam reservados aos homens. Casando, a mulher passava para o
poder do marido, nos casamentos iniciais, ditos cum manu. A partir

(60) Sobre toda a matria, TERESA PIzARRO BELEzA, Mulheres, direito, crime ou a
perplexidade de Cassandra (1990), onde podem ser confrontadas inmeras indicaes.

66

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

dos finais da Repblica, os casamentos vieram a ser celebrados


sine manu, o que redundou na concesso de maior autonomia s
mulheres. Mantendo-se a incapacidade de Direito pblico, foi-se
assistindo a uma progressiva equiparao no tocante aos direitos
privados: fala-se, a tal propsito numa conceo mais humanitria
das sociedades civilizadas, que produziu os seus frutos(61), embora
ainda muito longe de princpios de no-discriminao, difceis de
entender em sociedades esclavagistas. Surgiram mesmo, nessa
altura, institutos de privilgio para as mulheres, com relevo para o
senatus-consultum vellaeanum, que permitia mulher fiadora, por
meio de uma exceptio, evitar responder por uma fiana que tivesse
outorgado(62). A doutrina da exceptio vellaeana seria ampliada, sob
o Direito comum, deixando ainda rastos no nosso Cdigo de Seabra, cujo artigo 819. dispunha:
Podem afianar todos os que podem contractar, excepto as
mulheres, no sendo commerciantes.

No perodo justinianeu, a discriminao civil, agora sob


influncia crist, manteve uma linha do abrandamento e de superao(63).
III. A situao veio a piorar, no Ocidente, aps as grandes
invases. O Direito germnico no era, in abstracto, discriminador
da mulher; tinha, todavia, um forte sentido de famlia, que conduzia a entregar ao pai a generalidade dos poderes. As mulheres transitavam do poder do pai para o do marido, numa situao algo
semelhante ao do primitivo Direito romano.
Mau grado o retrocesso, particularmente sensvel no Direito
pblico, o Direito privado manteve o teor mais equilibrado das
compilaes. De notar um papel importante da Igreja que, durante
sculos, se bateu pela liberdade do casamento. Todavia, ficou por
resolver o problema da inferioridade cultural da mulher, causada
pelas deficincias da educao feminina. Localizamos, a, o cerne
da discriminao.
(61)
(62)
(63)

KASER, Das rmische Privatrecht cit., I, 2. ed., 277.


idem, 667.
KASER, Das rmische Privatrecht cit., II, 2. ed., 119.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

67

IV. Em termos puramente civis, pelos antecedentes apontados, a posio da mulher estava j prxima da do homem, aquando
da pr-codificao.
Explicava Borges Carneiro:
A excluso das mulheres de algumas faculdades polticas se
funda em leis do pudor ou em costume meramente civil; no na
incapacidade ou inhabilidade do sexo: antes nelle se desinvolve
mais cedo o juizo e a puberdade(64).

A regra geral era, assim, a da igualdade com os homens,


perante o Direito(65); designadamente: as mulheres sucediam no
Reino, em bens da Coroa, morgado e prazo; no esto em tutoria
ou curadoria; podem, sem diferena dos homens, fazer testamento,
contratos ou obrigar-se a receber depsito(66). A mulher apenas no
poderia ser fiadora, estando-lhe ao alcance invocar o benefcio do
Senatusconsulto Veleiano(67). Seguiam-se, depois, diferenas no
campo pblico e no das penas.
Contra a igualdade das mulheres jogariam, depois, as codificaes: na nsia sistematizadora, foram acolhidos e ampliados traos de diferenciao, particularmente no Cdigo Napoleo(68).
Deste diploma seriam retiradas, ainda no tempo da pr-codificao, novas desigualdades: a mulher casada no pode fazer contracto algum sem authoridade do marido(69), nem contrair dvidas,
salvo em casos muito peculiares(70), nem comparecer em juzo(71).
V. O Cdigo de Seabra partia de uma aparente posio de
igualdade entre os sexos, consagrada no seu artigo 7.. A mulher
apenas padecia de algumas limitaes tradicionais.
(64) MANUEL BORGES CARNEIRO, Direito Civil de Portugal, vol. 3. (1828), 3-4.
(65) idem, 5.
(66) idem, 6-7.
(67) idem, 7 ss..
(68) Assim, o seu clssico artigo 213. (verso original): Le mari doit protection
sa femme, la femme obissance son mari; seguiam-se vrias incapacidades relativas
mulher casada.
(69) CORRA TELLES, Digesto Portuguez, 1., 3. ed. cit., artigo 232 (33).
(70) idem, 2., 3. ed. cit., artigo 240 (36).
(71) idem, 2., 3. ed. cit., artigo 383 (56); nos artigos 420 e seguintes (60), retomam-se, ainda, diversos actos.

68

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Mais precisamente: as mulheres no podiam ser testemunhas em


testamento artigo 1966.(72) e em atos entre vivos tanto autnticos
como particulares artigo 2492.(73); no podiam prestar fiana, salvo
sendo comerciantes 819. , bem como em certos casos especiais
820.(74); no podiam ser tutores, protutores nem vogais do conselho
de famlia, salvo quando ascendentes artigo 234.(75).

Com o casamento, porm, a situao da mulher piorava decisivamente. Desde logo, ficava sob o poder marital por fora do
artigo 1185., correspondente ao artigo 213. do Cdigo Napoleo:
Ao marido incumbe, especialmente, a obrigao de proteger e
defender a pessoa e os bens da mulher; e a esta a de prestar obedincia
ao marido(76).

Alm disso, no podia estar em juzo sem autorizao do


marido, salvo circunstncias especiais 1192.(77) , tal como no
podia adquirir, ou alienar bens, nem contrahir obrigaes
artigo 1193.(78) ou publicar os seus escriptos
1187.(79).

(72) Tal como no podiam os estrangeiros, os que no estiverem em seu juzo, os


menores no emancipados, os surdos, os mudos e os cegos, bem como os que no entenderem a lngua do testamento, os filhos e os amanuenses do tabelio e os declarados incapazes de serem testemunhas, por sentena; vide JOS DIAS FERREIRA, Codigo Annotado, 3,
2. ed. (1898), 477.
(73) Preceito que remetia para o artigo 1966..
(74) DIAS FERREIRA, Codigo Annotado, 2, 2. ed. (1895), 113.
(75) DIAS FERREIRA, Codigo Annotado, 1, 2. ed. (1894), 184, referindo a falta de
autoridade que as mulheres teriam, quando o jovem alcanasse certa idade.
(76) DIAS FERREIRA, Codigo Annotado cit., 2, 2. ed., 417, amenizava deste modo o
preceito: Pela sua parte a mulher deve obediencia ao marido, mas s no que for licito, e
conforme moral e aos bons costumes, como desnecessariamente declarava o projecto primitivo.
(77) idem, 422.
(78) idem, 424.
(79) idem, 418, onde, com algum distanciamento, se refere que ... a ordem e a
moralidade domestica poderiam nalguns casos correr grave perigo, se a mulher tivesse
completa liberdade de dedicar-se vida litteraria, scientifica ou artistica, com prejuizo dos
deveres que lhe impem as suas qualidades de esposa e de me.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

69

10. Superao gradual e discriminaes tardias


I. A doutrina civilstica tradicional no aprovava as incapacidades legais da mulher casada(80), apressando-se todavia a
explic-las apenas pela convenincia em manter a unidade da
famlia(81). Guilherme Moreira rematava a matria com uma afirmao que demoraria 70 anos a colher frutos:
A desigualdade juridica entre os sexos no representa, na sua evoluo histrica e na maioria dos casos, a ida de proteger a mulher em
razo de uma supposta inexperiencia ou fraqueza, ou uma satisfao s
exigencias da unidade da familia, e, reduzida, como est no nosso
codigo, algumas disposies ha todavia que se nos afiguram de difficil
justificao, designadamente no que respeita s segundas nupcias(82).

O grande bice igualdade dos sexos residia na falta de cultura e de instruo da mulher. Desde que se foi estabelecendo a
escolaridade obrigatria para homens e mulheres e que se consumou, ao longo da primeira metade do sculo XX, o acesso das
mulheres ao ensino secundrio e ao superior, a igualdade imps-se,
pela base.
A desigualdade da mulher foi sendo minorada por diversas
reformas legislativas(83), sendo curioso, a esse propsito, ponderar
a teoria e a prtica da I Repblica.
II. A discriminao da mulher manteve, no Direito portugus, algumas manifestaes tardias; estas coincidiam com uma
referncia de princpio igualdade dos sexos(84).
No Direito pblico estavam vedados, mulher, algumas profisses jurdicas, como o acesso magistratura judicial e ao minis-

(80) GUILhERME MOREIRA, instituies de Direito Civil Portuguez 1 (1907), 187:


A palavra obediencia, de que o legislador, com tanta infelicidade, se serviu ....
(81) idem, loc. cit..
(82) idem, 194. Em compensao, CUNhA GONALVES, Tratado de Direito Civil 1
(1929), 227-228, verberava os progressos igualitaristas do sculo XX, congratulando-se
com os costumes, o bom senso e a prtica da vida que corrigiriam os desatinos legislativos.
(83) PAULO CUNhA, Teoria Geral, cit., 39.
(84) PAULO CUNhA, Teoria Geral, cit., 40.

70

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

trio pblico(85), o acesso a outras carreiras e desempenhos, como


a carreira diplomtica e consular(86) e outros papis que envolvessem funes de autoridade(87).

(85) Artigo 365. do Estatuto Judicirio, aprovado pelo Decreto-Lei n. 44 278,


de 14 de abril de 1962:
1. Os requerimentos, escritos e assinados por cada concorrente, alm de conterem
a declarao da naturalidade e do domiclio, sero acompanhados de documentos comprovativos dos seguintes requisitos:
a) Ser cidado portugus do sexo masculino com idade no inferior a 21 nem superior a 35 anos;
b) Possuir as habilitaes literrias exigidas por lei;
c) No estar pronunciado nem ter sido condenado por crimes infamantes e estar no
gozo pleno dos direitos civis e polticos;
d) Ter cumprido os preceitos legais relativos ao recrutamento militar;
e) Ter feito as declaraes a que se referem o artigo 3. da Lei n. 1901, de 21 de
maio de 1935, e o artigo 1. do Decreto-Lei n. 27 003, de 14 de Setembro de
1936;
f) Ter efectuado o depsito a que se refere o artigo seguinte.
2. Os concorrentes podem juntar ainda quaisquer outros documentos comprovativos de habilitaes que possuam e de servios pblicos que tenham prestado e aproveitar
para o concurso os documentos que anteriormente tenham dado entrada no Ministrio da
Justia, desde que sejam expressamente designados no requerimento de admisso, com a
declarao do ano e do fim para que tenham sido apresentados.
(86) Artigo 25. do Decreto-Lei n. 47 331, de 23 de novembro de 1966:
A admisso no servio diplomtico depende da aprovao em provas pblicas, a que
s podero ser candidatos os cidados portugueses originrios, de sexo masculino, licenciados em Direito, histria, Filosofia, Economia, Finanas ou pelo Instituto Superior de
Cincias Sociais e Poltica Ultramarina, ou ainda diplomados em cursos de escolas superiores estrangeiras que sejam declarados pelo Ministrio da Educao Nacional equivalentes a qualquer das referidas licenciaturas.
(87) Por exemplo, o artigo 488. do Cdigo Administrativo, aprovado pelo
Decreto-Lei n. 31 095, de 31 de dezembro de 1940:
Os requerimentos, escritos e assinados por cada concorrente [a cargos judicirios],
alm de conterem a declarao da naturalidade e do domiclio, sero acompanhados de
documentos comprovativos dos seguintes requisitos:
a) Ser cidado portugus do sexo masculino com idade no inferior a 21 anos nem
superior a 35 anos;
A Constituio de 1933, no seu artigo 5., nico, ressalvava, igualdade de direitos, o seguinte: salvas, quanto mulher, as diferenas resultantes da sua natureza, e do
bem da famlia; na reviso de 1971, esse preceito foi substitudo por um 2., assim concebido: salvas, quanto ao sexo, as diferenas de tratamento justificadas pela natureza.
A presso igualitarista parece evidente; todavia, a doutrina entendia que essa modificao
no afecta as diferenas de condio jurdica entre marido e mulher ...; vide PAULO
CUNhA, Teoria Geral, cit., 37.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

71

Mas tambm no Direito privado, particularmente no Cdigo


Civil, surgiam discriminaes. Quanto mulher em geral, eram
escassas: artigos 1601., a) (idade nbil, de 16 anos para homens e
de 14, para mulheres), 1720./1, b) (regime imperativo de separao de bens, de 60 anos para homens e de 50, para mulheres) e
1828. (idade mnima para perfilhar, de 16 anos para homens e de
14, para mulheres). O panorama era diverso em relao mulher
casada: isso ao ponto de haver toda uma dogmtica quanto s
incapacidades da mulher casada.
Anotem-se alguns aspectos relativos ao estatuto da mulher
casada, segundo a verso original do Cdigo Civil de 1966:
1672./1: a mulher deve adoptar a residncia do marido;
1674.: o marido o chefe da famlia, competindo-lhe represent-la e decidir em todos os casos da vida conjugal comum;
1675./1: a mulher tem o direito de usar o nome do marido, no
se referindo o inverso;
1676./2: o marido pode denunciar, a todo o tempo, os contratos lucrativos que a mulher celebre com terceiros; ficava
includo o contrato de trabalho;
1677./1: pertence mulher o governo domstico;
1678./1: a administrao dos bens do casal, incluindo os prprios da mulher, pertence ao marido;
1686./1: a mulher no pode exercer o comrcio sem o consentimento do marido, salvo certas circunstncias.
Particularmente gravosa era a possibilidade de o marido, que j
tinha a administrao dos bens, poder denunciar o contrato de trabalho
da mulher, deixando-a em total dependncia econmica.

Tais discriminaes no tinham justificao. Alm disso, no


correspondiam ao estado cultural do Pas, no momento em que se
pretendeu a sua imposio: eram, mesmo, caricatas, manchando,
sem glria, o Cdigo Civil de 1966.
III. Torna-se curioso sublinhar que s aps sessenta e sete
anos de Repblica (portanto: em 1977), foi inserida, na lei civil
fundamental, a preocupao de igualdade defendida, em 1907,
pelo Prof. Guilherme Moreira.

72

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Entre as proclamaes solenes e a verdade prtica vai, por


vezes, ento como hoje, uma grande distncia.

IV O Decreto de 3 de novembro de 1910 (Lei do


Divrcio)
11. Sistema geral e occasio
I. Com os elementos j obtidos, passamos a apreciar o tema
do casamento na I Repblica. Curiosamente, o novo regime entrou,
no assunto, pela porta do divrcio.
O divrcio foi introduzido pelo Decreto de 3-nov.-1910, do
Governo Provisrio da Repblica, sendo assinado por Joaquim
Tephilo Braga, Antnio Jos de Almeida, Affonso Costa, Jos
Relvas, Antnio Xavier Correia Barreto, Amaro de Azevedo
Gomes, Bernardino Machado e Antnio Luiz Gomes(88). Trata-se
de um diploma em 70 artigos, assim ordenados:
Captulo I Da dissoluo do casamento (1. a 3.);
Captulo II Do divrcio litigioso:
Seco III Das causas e processo do divrcio litigioso
(4. a 20.);
Seco II Dos filhos (21. a 25.);
Seco III Dos bens (26. a 28.);
Seco IV Dos alimentos definitivos (29. a 33.);
Seco V Dos efeitos da no autorizao do divrcio
(34.).
Captulo III Do divrcio por mtuo consentimento (35. a 42.).
Captulo IV Da separao de pessoas e bens (43. a 49.).
Captulo V Disposies gerais (50. a 63.).
Captulo VI Disposies transitrias (64. a 70.).

(88)

Vide A Legislao, 1910, 361-369.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

73

II. O Captulo I fixava as categorias gerais do diploma.


Anunciava que o casamento se dissolvia pela morte de um dos cnjuges ou pelo divrcio (1.). Explicitava, solenemente (2.):
O divrcio autorizado por sentena passada em julgado, tem juridicamente os mesmos effeitos da dissoluo por morte, quer pelo que
respeita s pessoas e aos bens dos conjuges, quer pelo que respeita
faculdade de contrahirem novo e legitimo casamento.

Trata-se de um preceito encomestico, que visou anunciar


solenemente o novo princpio. De acordo com o Direito at ento
vigente, mais precisamente o Cdigo Civil de 1867 ou Cdigo de
Seabra, o casamento era apresentado (1051.) como:
() um contracto perpetuo feito entre duas pessoas de sexo diferente,
com o fim de constituirem legitimamente a familia.

III. Como foi referido, o divrcio nem constava do programa inicial do Partido Republicano. Ele comeou a ser referido
em meios universitrios sensveis evoluo francesa(89):
recorde-se que, em Frana, o divrcio surge abolido, em 1816,
sendo restabelecido, apenas, em 1884(90). No Parlamento Monrquico, ele foi objeto de um primeiro projeto, em 1900, que no
chegou a ser discutido(91). Idntico destino teve um segundo projeto, de 1906. No perodo imediatamente anterior Repblica, surgiram trs obras a defend-lo: de Roboredo Sampaio e Mello(92),
de Alberto Bramo(93) e de Lus de Mesquita(94).
Sampaio e Mello explica os diversos tipos de famlia(95); examina a justificao para o divrcio(96); remonta ao Cristianismo
(89) ABEL DE ANDRADE, Commentario ao Codigo Civil Portuguez (1895), 203.
(90) Quanto evoluo em Frana, vide MARCEL PLANIOL, Trait lmentaire de
Droit civil, 2. ed., 3 (1903), n. 482 ss. (155 ss.).
(91) Justamente do ento deputado progressista Duarte Caetano Reboredo de Sampaio e Melo, autor do livro abaixo referido. Apenas o Dr. Santos Viegas, abade de S. Tiago
das Antas, se lhe ops.
(92) ROBOREDO DE SAMPAIO E MELLO, Famlia e Divrcio (1906), 414 pp..
(93) ALBERTO BRAMO, Casamento e Divrcio (1908), 388 pp.; este Autor foi colaborador direto de hintze Ribeiro.
(94) LUS DE MESQUITA, Projecto de Lei do Divrcio em Portugal (1910).
(95) ROBOREDO DE SAMPAIO E MELLO, Famlia e Divrcio, cit., 49 ss..
(96) idem, 243 ss..

74

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

antigo e aos Padres de Igreja(97); percorre as reformas modernas,


designadamente as francesas, de 20-set.-1792 e de 27-jul.-1884(98).
Apenas o Catolicismo a rejeitaria, aps o sculo XVI(99). Examina
o caso portugus, explicitando que a separao de corpos, nica
hiptese admitida por lei que no dissolvia o casamento, , em
geral, pedida pela mulher(100) havendo no Pas, em 1-dez.-1900,
2.482 indivduos separados judicialmente(101).
Alberto Bramo tem um discurso mais radical, atacando diretamente a Igreja Catlica. Diz, logo a abrir(102):
O divorcio, apresentado pelo fanatismo catholico como um mal,
produziu, ao cabo de quatro seculos e meio dessa propaganda, uma
especie de crsta no espirito do nosso paiz, offerecendo incrivel resistencia penetrao do raciocinio.

Recorda que ele admitido em toda a Europa, exceto na Itlia, em Espanha e em Portugal(103); rebate os falsos argumentos
contra o divrcio(104); examina os fundamentos de divrcio consagrados em vrias leis(105); expe que, afinal, a Igreja admite o
divrcio, atravs da anulao do casamento(106); recorda pontos
como o das origens do pensamento cristo(107), o da relao da criminalidade com o divrcio(108) e o dogma da indissolubilidade
adotado no Conclio de Trento(109).
Luiz de Mesquita, j em 1910, publicava um projeto de lei do
divrcio(110), antecedido por breve justificao, onde atacava, de

(97)0 idem, 263 ss..


(98)0 idem, 265 ss.; esta ltima lei mereceu-lhe uma especial ateno: idem, 303 ss..
(99)0 idem, 328 ss..
(100) idem, 383 ss..
(101) idem, 407 ss..
(102) ALBERTO BRAMO, Casamento e Divrcio cit., 1.
(103) idem, 2.
(104) idem, 27 ss..
(105) idem, 42 ss..
(106) idem, 71 ss..
(107) idem, 102 ss..
(108) idem, 123 ss..
(109) idem, 337 ss..
(110) LUIz DE MESQUITA, Projecto de Lei do Divrcio em Portugal (1910), 62 pp.
(143 ss.).

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

75

resto, a Igreja(111). Esse projeto, tecnicamente bem feito, foi aproveitado pelo legislador republicano.
IV. Estas iniciativas, conquanto que interessantes, nada
tinham de um movimento de massas ou, sequer, de uma corrente
significativa, a favor do divrcio. Apenas aps o 5 de outubro, no
segundo Congresso Nacional do Livre Pensamento, decorrido em
Lisboa, a 14 e 15 desse mesmo ms, Alberto Bramo apresentou
uma proposta de telegrama a enviar ao Ministro da Justia,
pedindo a promulgao urgente da lei do divrcio(112). A campanha
foi rematada com artigos do jornal O Sculo(113).
Em suma: neste como noutros assuntos, o papel liderante era
o do Governo, guiando-se, naturalmente, por critrios polticos.

12. As causas do divrcio e a tramitao


I. O Decreto de 3-nov.-1910 admitia, como foi dito, o divrcio por mtuo consentimento e o divrcio litigioso.
O divrcio por mtuo consentimento s podia ser obtido por
cnjuges casados h mais de dois anos e que houvessem completado, pelo menos, vinte e cinco anos de idade (35.). Seguiriam
certa tramitao (36. a 38.), que inclua o acordo quanto aos
filhos; o juiz homologava esse acordo e autorizava um divrcio
provisrio por um ano (39.) findo o qual, a pedido de um ou de
ambos, no havendo reconciliao, seria pronunciado o divrcio
definitivo (40.).
II. Quanto ao divrcio litigioso, apenas eram admitidas as
causas seguintes (4.)(114):
(111) idem, 17.
(112) LUS BIGOTTE ChORO, Poltica e Justia na i Repblica, vol. 1: 1910-1915
(2011), 64.
(113) idem, loc. cit.. Disse-se, a, que haveria, na Capital, 600 casais separados:
1200 pessoas ligadas por casamento apenas por imposio da lei.
(114) O modo por que estas causas eram entendidas e aplicadas pode ser conferido
em ABEL PEREIRA DELGADO, Lei do divrcio / Anotada e Actualizada (1961), 11 ss..

76

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

01. O adultrio da mulher;


02. O adultrio do marido;
03. A condenao definitiva de um dos cnjuges a qualquer das penas
maiores fixas dos artigos 55. e 57. do Cdigo Penal;
04. As sevcias ou as injrias graves;
05. O abandono completo do domiclio conjugal por tempo no inferior a trs anos;
06. A ausncia, sem que do ausente haja notcias, por tempo no inferior a quatro anos;
07. A loucura incurvel quando decorridos, pelo menos, trs anos
sobre a sua verificao por sentena passada em julgado, nos termos dos artigos 419. e seguintes do Cdigo de Processo Civil;
08. A separao de facto, livremente consentida, por dez annos consecutivos, qualquer que seja o motivo dessa separao;
09. O vcio inveterado do jogo de fortuna ou de azar;
10. A doena contagiosa reconhecida como incurvel ou uma doena
incurvel que importe aberrao sexual.

III. O Decreto de 3-nov.-1910 ocupou-se, longamente, de


aspetos processuais. Na verdade, tratando-se de um instituto inteiramente novo, nada havia, nas leis de processo, a seu respeito.
Assim e no caso de divrcio litigioso:
a ao seria proposta no tribunal do domicilio ou da residncia do autor ou na comarca de Lisboa, se ele residisse
em pas estrangeiro (5.);
o requerimento inicial indicaria precisamente o fundamento e seria instrudo com a certido de casamento e,
quando ao abrigo dos factos constantes dos nmeros 3 e 7
do artigo 4., com a respetiva sentena; tambm indicaria
o que entendesse sobre o destino e os alimentos a filhos
comuns (6., e 6., nico);
a falta de elementos implicaria indeferimento, com possibilidade de agravo, a subir nos prprios autos (7.);
seguir-se-ia o processo ordinrio, com determinadas adaptaes, procurando-se acordo quanto aos filhos (8.);
havendo acordo, ele seria homologado (9.);
da sentena que autorizasse ou recusasse o divrcio, cabia
apelao, em ambos os efeitos (10.): suspensivo e devo-

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

77

lutivo; quanto ao acordo, a eficcia do recurso seria meramente devolutivo (11.);


outros aspetos dos recursos eram versados nos artigos 12.
(prazos) e 13. (eficcia do recurso para o Supremo),
ficando claro que os recursos do mbito do divrcio iriam,
sempre, at ao Supremo (14.);
a reconveno era admitida (15.), podendo o Ministrio
Pblico representar, apenas, o ru (16.);
as aes de divrcio no podiam ser confessadas; mas era
vivel a desistncia e a reconciliao (18.);
a sentena que autorizasse o divrcio era publicitada no
Dirio do Governo, em dois peridicos da comarca e no
registo (19.);
a mulher casada podia requerer o depsito judicial, quer
como preparatrio, quer como consequncia da propositura da ao de divrcio, podendo pedir alimentos provisrios (20.).

Tambm a tramitao do divrcio por mtuo consentimento


era versada, na lei (36. a 42.).
IV.

Os filhos eram objeto da seco II (21. a 25.). Temos:

de preferncia, os filhos seriam entregues e confiados ao


cnjuge a favor de quem tivesse sido proferido o divrcio
(21.);
ambos os pais conservavam o ptrio poder, tendo o direito
de vigiar e de superintender na educao dos seus filhos
(22.); o ptrio poder era irrenuncivel, mesmo a favor do
outro cnjuge (23.);
ambos os pais deviam concorrer para os alimentos dos
seus filhos, na proporo dos seus proventos (24.);
o divrcio no retirava quaisquer vantagens aos filhos
(25.).
V. O divrcio implicava sempre a diviso dos bens entre os
cnjuges (26.). O cnjuge que desse causa ao divrcio perdia
todos os benefcios que houvesse recebido (27.). Perante terceiros,

78

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

o divrcio s produzia efeitos depois de autorizado, no prejudicando os direitos anteriormente adquiridos pelos credores do casal
(28.).
VI. Qualquer dos cnjuges podia pedir alimentos ao outro,
se deles carecesse; o seu montante era fixado de acordo com as circunstncias, mas no podia ultrapassar 1/3 dos rendimentos do obrigado (29.). Os alimentos podiam ser pedidos cumulativamente
com o divrcio ou em momento posterior (30.). A prestao de alimentos pode ser reduzida a pedido do obrigado, provando que se
alteraram as circunstncias (31.). E cessava se o cnjuge credor
casasse de novo, se se tornasse indigno ou se o obrigado no mais
pudesse prest-los (32.). Em compensao, o novo casamento do
obrigado no o eximia da obrigao para com o alimentado (33.).
VII. O diploma continha, ainda, diversas regras sobre a
separao de pessoas e bens, como alternativa ao divrcio (43.
a 49.): o cnjuge inocente poderia escolher (44.).
Surgiam vrios preceitos instrumentais e transitrios, com
relevo para o artigo 64., que permitia aos cnjuges judicialmente
separados, data da promulgao do Decreto, transformar a separao em divrcio definitivo.

13. Ponderao dos fundamentos do divrcio


I. O Decreto de 3-nov.-1910 surgiu, pelas j relatadas circunstncias scio-culturais, como uma grande e arrojada inovao.
Todavia, importa reconduzir a matria s suas propores tcnicas.
Para tanto, vamos comparar brevemente as causas do divrcio
ento estabelecidas com as que, na vigncia da redao inicial do
Cdigo Civil de 1867, permitiram a separao de pessoas e bens e
com as que, mais tarde, facultariam o divrcio.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

79

II. O Cdigo Civil de Seabra (1867), a propsito da separao de pessoas e bens, admitia como causas (1204.):
1. O adultrio da mulher;
2. O adultrio do marido com escndalo pblico ou completo desamparo da mulher, ou com concubina teda e manteda no domiclio
conjugal;
3. A condenao do cnjuge a pena perptua;
4. As sevcias e injrias graves.

Como se v, o Decreto de 3-nov.-1910 veio alargar as causas


convolando-as, agora, para o divrcio. As suas quatro primeiras
causas correspondem s do Cdigo Civil, embora igualizando os
adultrios da mulher e do marido(115); as seis restantes passam a
admitir, como causas, o abandono, a ausncia, as doenas fsicas e
mentais, incluindo o vcio do jogo e a separao de facto prolongada.
III. A Concordata de 1940 vedou o divrcio s pessoas que,
aps essa data, casassem canonicamente(116). Para alm disso, o
Decreto de 3-nov.-1910 manteve-se em vigor at ao Cdigo Civil
de 1966. Este diploma seguiu o sistema seguinte:
admitiu a simples separao judicial de bens, a pedido da
mulher, quando o marido tivesse a sua administrao e ela
estivesse em risco de os perder por m gesto e vice-versa
(1767.);
admitiu a separao judicial de pessoas e bens: litigiosa ou
por mtuo consentimento (1773.) e isso ainda que o casamento fosse catlico (1777.);
fixava os fundamentos para a separao litigiosa (1778.);
admitia o divrcio, exceto para os casamentos cannicos
posteriores a 1-ago.-1940 (1790.), por uma de duas vias:
ou pela converso da separao em divrcio (1793.) ou
(115) Os diversos autores vieram depois explicar que, embora face da lei ambos
os adultrios fossem iguais, o da mulher seria, de facto, mais grave.
(116) A Concordata de 7-mai.-1940; o Decreto-Lei n. 30 615, de 25 de julho
de 1940, que executou diversos aspetos da Concordata, acolheu esta, no seu artigo 61.,
como Direito interno.

80

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

com algum dos fundamentos que permitam a separao


litigiosa (1792.).
Tem pois todo o interesse comparar os fundamentos da separao/divrcio de 1966 com os de 1910. Os de 1966 so os seguintes:
a) Adultrio do outro cnjuge;
b) Prticas anticoncepcionais ou de aberrao sexual exercidas contra
a vontade do requerente;
c) Condenao definitiva do outro cnjuge, por crime doloso, em
pena de priso superior a dois anos, seja qual for a natureza desta;
d) Condenao definitiva pelo crime de lenocnio praticado contra
descendente ou irm do requerente, ou por homicdio doloso, ainda
que no consumado, contra o requerente ou qualquer parente deste
na linha recta ou at ao terceiro grau da linha colateral;
e) Vida e costumes desonrosos do outro cnjuge;
f) Abandono completo do lar conjugal por parte do outro cnjuge,
por tempo superior a trs anos;
g) Qualquer outro facto que ofenda gravemente a integridade fsica
ou moral do requerente.

A Lei de 1910, interpretada com largueza, mormente no que toca


s sevcias e injrias graves, que no entendimento prevalecente
podiam ser morais, permitia o divrcio por qualquer razo ponderosa.
O Cdigo Civil de 1966, ao permiti-lo por qualquer outro facto que
ofenda gravemente a integridade fsica ou moral do requerente, ia
ainda mais longe. A essa luz, a Lei de 1910 at seria conservadora.
Quanto ao divrcio por mtuo consentimento: alm da possibilidade que os cnjuges sempre teriam de l chegar, atravs da
simulao de qualquer um dos fundamentos, o Cdigo de 1966
permitia-o atravs da separao por mtuo consentimento, possvel
para os casados h mais de trs anos e que houvessem completado
os vinte e cinco anos de idade (1786.). haveria, depois, um ano de
separao provisria, at ser definitivamente homologada (1788.).
Decorridos mais trs anos sem reconciliao, a separao podia ser
convertida em divrcio (1793.).

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

81

IV. Tem interesse fazer o balano dessa matria, na legislao subsequente. Em sntese:
o Decreto-Lei n. 261/75, de 27 de maio (Salgado zenha),
depois de alterada a Concordata, em 15-fev.-1975, por
acordo com a Santa S, veio permitir o divrcio nos termos gerais, mesmo aos casados canonicamente; acrescentou mais dois fundamentos ao divrcio, introduzindo-os
no artigo 1778./1: o decaimento em ao de divrcio em
que tivessem sido feitas imputaes ofensivas da honra e
dignidade do outro cnjuge e a separao de facto livremente consentida por cinco anos consecutivos; veio ainda
permitir o divrcio direto, por mtuo consentimento;
o Decreto-Lei n. 561/76, de 17 de julho, visando solucionar aspetos prticos, veio retomar a lista dos fundamentos
de separao/divrcio, elevando, todavia, de cinco para
seis anos a separao de facto requerida como fundamento, na alnea h) do artigo 1778.(117);
o Decreto-Lei n. 446/76, de 24 de julho, veio baixar para
dois anos a durao necessria do casamento para os cnjuges poderem requerer a separao judicial por mtuo
consentimento e para trs meses a separao provisria
exigvel para a deciso definitiva;
o Decreto-Lei n. 496/77, de 25 de novembro, que veio
adequar o Cdigo Civil Constituio, reordenou a matria: anteps, designadamente, o divrcio separao; e
quanto ao divrcio litigioso, limitou-se, como fundamento
nico, a dizer (1779./1):
Qualquer dos cnjuges pode requerer o divrcio se o outro
violar culposamente os deveres conjugais, quando a violao,
pela sua gravidade ou reiterao, comprometa a possibilidade de
vida em comum.

Alm disso, a nova redao do artigo 1781., relativo ruptura da vida em comum, permite o divrcio litigioso: (a) pela separao de facto por seis anos consecutivos; (b) pela ausncia sem
(117)

No encontramos fundamento para esse facto.

82

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

notcias, por quatro anos; (c) pela alterao das faculdades mentais
por mais de seis anos que, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum.
A Lei n. 47/98, de 10 de agosto, veio alterar esse mesmo
artigo 1781.; agora, so tambm fundamentos do divrcio litigioso, por ruptura da vida em comum: (a) a separao de facto por trs anos; (b) a separao por um ano,
se o divrcio for requerido por um dos cnjuges sem
oposio do outro; (c) a alterao das faculdades mentais
por mais de trs anos; (d) a ausncia sem notcias por
dois anos; tambm o artigo 1775. foi alterado, permitindo aos cnjuges requerer o divrcio por mtuo consentimento independentemente de qualquer prazo
mnimo: teoricamente, podem faz-lo no prprio dia do
casamento;
O Decreto-Lei n. 272/2001, de 13 de outubro (Antnio
Guterres), veio conduzir a que a separao judicial de pessoas e bens 5./1, e) e a separao e divrcio por
mtuo consentimento 12./1, b) corram perante o
conservador do registo civil;
A Lei n. 61/2008, de 31 de outubro, substituiu a ideia de
ruptura da vida em comum pela de ruptura do casamento, atravs da nova redao do artigo 1781., que dispe agora:
So fundamento do divrcio sem consentimento de um dos cnjuges:
a) A separao de facto por um ano consecutivo;
b) A alterao das faculdades mentais do outro cnjuge, quando dure
h mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;
c) A ausncia, sem que do ausente haja notcias, por tempo no inferior a um ano;
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cnjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.

Alm disso, desaparece a ideia de cnjuge culpado e, como


tal, obrigado a certas reparaes; o artigo 1792./1 agora adotado,

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

83

remete a matria para as regras gerais da responsabilidade civil e


para os tribunais comuns.
V. A Lei n. 61/2008, de 31 de outubro, fixou um esquema
que se aproxima do antigo repdio romano. Na verdade, um dos
cnjuges pode, faltando qualquer justificao objetiva, provocar
um divrcio, sem o consentimento do outro cnjuge. Alm disso,
a remisso para as regras gerais da responsabilidade civil e para os
tribunais comuns retira substncia a qualquer compensao
indemnizatria(118). Curiosamente, as estatsticas disponveis no
indiciam um aumento de divrcios, aps 2008. A explicao
simples: fora j atingido o chamado ponto de saturao. No Pas,
no havia divrcio por pronunciar, por razes jurdicas: j ningum estava casado contra a sua prpria vontade. A partir, provavelmente, da reforma de 2001, por mais que se facilite o divrcio,
a taxa no aumenta: depende de fatores pessoais, religiosos, culturais e econmicos.

14. Apreciao geral da Lei de 1910


I. Aplaudida nos meios republicanos(119), a Lei foi considerada injusta, nalguns pontos: designadamente ao permitir o divrcio por priso ou doena do cnjuge, ou seja, precisamente na
altura em que ele mais precisaria do apoio e do carinho do consorte(120). Alm disso, ela foi criticada, na sua globalidade, por
civilistas como Jos Tavares(121), Cunha Gonalves(122) e Manuel
(118) O que deixa desamparado o cnjuge economicamente mais dbil: em regra, a
mulher. Este diploma, que no se apoiou em nenhum estudo conhecido, foi vetado pelo
Presidente da Repblica. A maioria existente no teve dvidas em reaprov-lo, sem alteraes.
(119) Vide as declaraes do advogado Cunha e Costa, em LUS BIGOTTE ChORO,
Poltica e Justia cit., 1, 62.
(120) MRIO DE GUSMO MADEIRA, Notas Lei do Divrcio (1926), 36, retomado
por VIRGLIO LOPES, Divrcio em Portugal cit., 106.
(121) JOS TAVARES, Os Princpios Fundamentais do Direito Civil, I, 2. ed. (1929),
771.
(122) LUS DA CUNhA GONALVES, Tratado de Direito Civil 7 (1933), 11 ss..

84

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Gomes da Silva(123), particularmente por facultar o divrcio por


mtuo consentimento, o que nem a Lei francesa de 19-jul.-1884
admitia. Outra crtica esta, irrefutvel liga-se rapidez com
que tudo foi feito. A Lei francesa de 1884, mais restritiva, foi discutida durante oito anos e isso depois de a Frana ter conhecido o
divrcio, em 1792 e em 1804.
II. Irrefutvel tambm foi o facto de a Lei de 1910 ter sido
adotada sem discusso pblica e sem que tivesse sido includa
num programa submetido a sufrgio. Na verdade, a I Repblica,
ao sabor da poca, era um movimento de elites. Basta ver que o
voto foi negado s mulheres e aos analfabetos: no teriam nem
conhecimentos nem vontade prpria, para poderem tomar decises, segundo os ilustres dirigentes posteriores a 5 de outubro
de 1910.
III. Do ponto de vista tcnico, o Decreto de 3-nov.-1910
apresenta-se bem redigido. O prprio Prof. Affonso Costa era um
excelente jurista: lente catedrtico da Faculdade de Direito de
Coimbra e, mais tarde, da de Lisboa. Alm disso, ele disps do projeto de Lus de Mesquita, o que explica como foi possvel, menos
de um ms aps a proclamao da Repblica e numa altura de permanentes solicitaes, aprontar tal diploma.
IV. A aplicao prtica do diploma foi escassa. Nos finais de
1911, havia 2658 divorciados: quase tantos quanto os separados,
luz da Lei anterior. Foram, pois, pessoas de classe mdia, cujos
casamentos j no subsistiam, no plano dos factos, que aproveitaram o novo regime(124).
V. O enquadramento do Decreto de 3-nov.-1910, feito num
horizonte de cem anos e tendo em conta a evoluo das sociedades
ocidentais, redu-lo s suas dimenses.

(123) MANUEL GOMES DA SILVA, Curso de Direito da Famlia / Parte II, Do Casamento, tomo 2 (1972, polic.), 253 e 254, criticando o divrcio em geral.
(124) RUI RAMOS, na Histria de Portugal, dir. JOS MATTOSO, cit., VI, 410.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

85

Perante o regime de 2008, ele parece restritivo. Em face do


Cdigo Civil de 1966, afigura-se avanado. luz do Cdigo Civil
de 1867, apresenta-se demolidor. Todavia, ele no correspondeu a
efetivas medidas de emancipao da mulher, qual se continuou a
negar o voto.
Para os propsitos do presente estudo, o Decreto afigura-se
revolucionrio: traduziu um ato de um Governo no legitimado
pelo sufrgio, numa rea no considerada necessitada de medidas e
que visou um projeto de poder pessoal.
VI. Para fazer juzos de valor sobre factos passados, temos
de assumir os valores e as realidades da poca em que eles ocorreram. A indissolubilidade do casamento resultou do pensamento
cristo. Mas operaram, ainda, razes humanas, sociais e econmicas. Nas pocas histricas em que a riqueza e a sua administrao
estavam nas mos dos homens, a manuteno da faculdade de
repdio jogava fortemente contra as mulheres. Estas, perante o
divrcio decidido ou provocado pelos maridos, ficavam em total
desamparo. A solidez do casamento operava como reequilbrio da
desigualdade da mulher: era o melhor penhor da proteo desta,
tanto mais que implicava, em regra, a comunho geral de bens.
E pelas mesmas razes, as leis do divrcio no tiveram, no
incio, aplicao prtica, a no ser nas franjas superiores da sociedade. Um divrcio exige dinheiro; alm disso, requer, em regra,
mulheres profissionalmente ativas, com meios de fortuna e com
poucos filhos.
Em Portugal, apenas nos finais do sculo XX foram reunidas
condies scio-econmicas que permitiram a generalizao dos
divrcios. Em 1910, elas no existiam. Nem houve qualquer inteno de as criar.

86

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

V O casamento nas Leis da Repblica


15. O Cdigo Civil de Seabra (1867)
I. O divrcio antecedeu as mexidas no casamento. Quanto a
este, na sequncias dos debates acima relatados, o Cdigo Civil de
1867 ou Cdigo de Seabra, viera admitir dois tipos de casamento.
Logo partida, o artigo 1056. dava uma definio profana de
casamento, como:
() um contrato perpetuo feito entre duas pessoas de sexo differente, com o fim de constituirem legitimamente a familia.

Os comentadores explicavam que tal definio s se podia


aplicar verdadeiramente ao casamento entre no catlicos; para os
catlicos, essncia o sacramento(125).
II.

A perpetuidade era acentuada. Segundo Dias Ferreira:

A perpetuidade do vnculo, o consortium omnis vitae, como dizia


Modestino, elemento essencial do casamento; porque a destruio da
indissolubilidade do vinculo, deixando o matrimnio confundido com a
prostituio legal, e tendo em perigo constante a moralidade no lar
domestico, importaria a destruio da sociedade familiar, que a base
da sociedade civil.

E prossegue:
As nossas leis, longe de reconhecerem o divorcio, impem penas
gravissimas aos que contrahirem ulterior matrimonio, sem estar legitimamente dissolvido o anterior ()(126).

III. As grandes novidades do Cdigo Civil foram:


a admissibilidade de um casamento puramente civil, para
os no catlicos, no se prevendo uma especial indagao
sobre a religio (ou falta dela) dos nubentes;

(125)

JOS DIAS FERREIRA, Codigo Civil Portuguez Annotado, II, 2. ed. (1895),

(126)

idem, loc. cit..

290.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

87

um processo especial para a separao de pessoas e para a


simples separao judicial de bens; anteriormente, a separao quoad thorum et cohabitationem era admitida pelo
Direito cannico apenas havendo adultrio da mulher e no
caso de sevcias(127).
IV. O Cdigo fixava impedimentos gerais para ambas as
espcies de casamento (1058.): menos de 21 anos e maiores inibidos, enquanto no obtiverem autorizao; tutor com pessoa tutelada; cnjuge adltero com o cmplice condenado como tal; cnjuge condenado por homicdio, consumado ou tentado e cmplice;
impedidos por ordem por voto solene reconhecido na lei. Regulava
o consentimento necessrio para o casamento de menores.
Os casamentos catlicos eram remetidos para a lei cannica,
produzindo efeitos civis quando conformes com essa lei (1069. e
1070.). Os civis eram objeto de regras pormenorizadas: 1072. a
1082.. A prova do casamento era remetida para certido extrada
do registo, salvo provando-se a perda deste (1083.).
A anulao do casamento, quando catlico, cabia ao juzo
eclesistico () e nos casos previstos nas leis da egreja, recebidas
neste reino (1086.). Todavia, a matria que pressupusesse indagao de factos era reservada autoridade judicial civil (1087.).
E tambm autoridade civil competiria executar o que os tribunais
cannicos tivessem resolvido (1088.). Ficavam ressalvados os
casamentos putativos (1091. a 1094.), enquanto a anulao produz, quanto aos bens dos cnjuges, os mesmos efeitos que tem a
dissoluo por morte (1095.).
V. O Cdigo dava a maior ateno aos efeitos do casamento.
As convenes antenupciais e os regimes de bens tinham lato tratamento, absorvendo a seco V, assim repartida:
Subseco I Disposies gerais (1096. a 1107.);
Subseco II Do casamento segundo o costume do reino(128) (1108. a
1124.);
(127) M. A. COELhO DA ROChA, instituies de Direito Civil Portuguez, 2. ed.
(1846), 237 (I, 140-141). Antigamente, tambm se admitia por heresia.
(128) Era o da comunho geral.

88

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Subseco III Da separao de bens ou da simples comunho de adquiridos (1125. a 1133.);


Subseco IV Do regime dotal (1134. a 1165.);
Subseco V Das doaes entre esposados (1166. a 1174.).

As doaes feitas aos esposados (seco VI, 1175.


a 1177.) e entre casados (seco VII, 1178. a 1183.) preenchiam
as seces seguintes.
VI. Os direitos e as obrigaes gerais dos cnjuges tinham o
teor geral dos deveres de fidelidade, de coabitao e de socorro e
ajuda (1184.).
A sociedade conjugal no era igualitria. Segundo o artigo
1185.:
Ao marido incumbe, especialmente, a obrigao de proteger e
defender a pessoa e os bens da mulher; e a esta a de prestar obedincia
ao marido.

Quanto mulher, registava-se, ainda:


devia acompanhar seu marido, excepto para pas estrangeiro (1186.);
no podia publicar escritos sem autorizao do marido,
salvo suprimento judicial (1187.);
gozava das honras do marido, salvo as exclusivamente
inerentes ao cargo e conserva-as, enquanto no passasse a
segundas npcias (1188.);
no podia, salvo excees, estar em juzo sem autorizao
do marido (1192.);
idem, adquirir ou alienar bens ou contrair obrigaes
(1193., com diversas especificaes: 1194. a 1196.);
o marido podia revogar as autorizaes, ainda que,
havendo comeo de execuo, indemnizando os terceiros
(1197.).
VII. O Cdigo de 1867, como especial novidade, regulava a
interrupo da sociedade conjugal (seco IX, 1203. a 1231.).
A matria, pelo seu interesse no tocante ao confronto com o divrcio, foi acima considerada.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

89

16. O Decreto n. 1, de 25 de dezembro de 1910; o sistema


geral
I. O Decreto n. 1, de 25-dez.-1910, intitulado Lei do casamento como contrato civil preenche 71 artigos, ordenados em
nove captulos. Eram substitudos e revogados os artigos 1056. a
1074., 1083. a 1095. e 1184. a 1188. e 1192. do Cdigo Civil e
demais legislao em contrrio. O sistema dele resultante era o
seguinte:
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX

Do casamento civil e sua celebrao (1. a 3.);


Dos impedimentos do casamento (4. a 10.);
Do casamento nulo e do anulvel (11. a 29.);
Dos efeitos da anulao, especialmente quanto ao destino dos filhos menores (30. a 37.);
Da sociedade conjugal quanto s pessoas (38. a 44.);
Das provas do casamento (45. a 50.);
Disposies gerais (51. a 57.);
Dos casamentos de portugueses no estrangeiro ou de
estrangeiros em Portugal (58. a 62.);
Disposies gerais e transitrias (63. a 72.).

II. O essencial da nova Lei reside nos seus trs primeiros


artigos, que dispem:
1. O casamento um contracto celebrado entre duas pessoas de
sexo differente, com o fim de constituirem legitimamente a familia.
2. Este contracto puramente civil e presume-se perpetuo, sem
prejuizo da sua dissoluo por divorcio, nos termos do decreto com
fora de lei de 3 de novembro de 1910.
3. Todos os portugueses celebraro o casamento perante o respectivo official do registo civil, com as condies e pela forma estabelecidas na lei civil, e s esse valido.

III. O novo regime procedeu a algumas adaptaes, relativamente ao esquema do Cdigo Civil.
No tocante aos impedimentos, ele juntou, em preceitos nicos, os anteriormente previstos, em separado, para os casamen-

90

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

tos em geral e para os casamentos civis um passo lgico, uma vez


que s admite os civis.
A nova Lei aperfeioou o regime dos casamentos nulos e anulveis, distinguindo as duas possibilidades e versando os efeitos
da resultantes.
IV. Alterado foi o estatuto da mulher casada. Dispe o
artigo 39.:
A sociedade conjugal baseia-se na liberdade e na igualdade,
incumbindo ao marido, especialmente, a obrigao de defender a pessoa da mulher e dos filhos, e mulher, principalmente, o governo
domstico e uma assistencia moral tendente a fortalecer e a aperfeioar
a unidade familiar.

Como se v, h um distanciamento formal relativamente ao


dever de obedincia ao marido, fixado no artigo 1185.(129). Passou
a dispensar-se a autorizao do marido para a mulher poder publicar as suas obras (42.) e para estar em juzo (44.).
A entrega judicial da mulher ao marido foi suprimida,
fixando-se, pelo inverso, a regra de a mulher poder requerer que o
marido a receba em casa (41.).

17. A secundarizao do casamento catlico


I. Diversas disposies transitrias acentuavam a natureza
civil do casamento e a sua sujeio s leis do Estado.
A matria ficava dependente da criao do registo civil: tarefa
levada a cabo pelo Decreto de 18-fev.-1911, que aprovou o Cdigo
de Registo Civil e que acima foi referido.
II. Justamente no Cdigo de Registo Civil de 1911 se compreende a disposio essencial, neste domnio. Segundo o seu
(129) J ao tempo da feitura do Cdigo de Seabra se havia ponderado a hiptese de,
em nome da igualdade, atribuir mulher os negcios internos da famlia e, ao marido, os
externos DIAS FERREIRA, Cdigo Annotado cit., 2, 2. ed., 417.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

91

artigo 312., com referncia aos estados do registo civil, previa-se


a sua prova por boletins e certides. Posto o que dispunham os seus
artigos 312. e 313.:
Artigo 312. Os boletins indicados nos artigos anteriores ou as
certides dos respectivos registos, so essencialmente necessarios,
salvo os casos dos artigos 202. e 317., para que se possa celebrar
qualquer cerimonia ou sacramento religioso, em que intervenha como
parte principal um cidado portugus, nacional ou naturalizado, ou
ainda um portugus naturalizado estrangeiro, e, especialmente, os de
nascimentos e casamentos, para se celebrar qualquer baptismo ou
matrimnio religioso, e os de obito, para se poder realizar o enterramento e qualquer solemnidade religiosa que porventura o acompanhe.
Artigo 313. Cada um dos individuos, que realizarem ou cooperarem conscientemente na realizao de um acto de baptismo, matrimnio ou enterro religioso, em que seja parte principal um cidado portugus, nacional ou nacionalizado, ou ainda um portugus naturalizado
estrangeiro, sem que seja apresentada a certido ou boletim comprovativo de se haver effectuado previamente o competente registo civil de
nascimento, casamento ou obito, incorrer na perda de todas as vantagens materiaes, que estiver recebendo ou puder vir a receber do Estado,
e alem disso na multa de 10$000 ris, que ser applicada em processo
criminal e reverter para a obra de assistencia publica designada no
artigo 350..

18. Aspetos tcnico-jurdicos; a Lei de proteo dos filhos


I. O Decreto n. 1, de 25-dez.-1910 apresenta-se, tecnicamente, bem redigido. Como antecipmos, ele insere formalmente,
na ordem jurdica portuguesa, a contraposio entre casamentos
nulos e anulveis. Na poca, ia-se distinguindo, com dificuldade,
entre nulidades absolutas e relativas(130). Coube a Guilherme
Moreira sedimentar essas noes, introduzindo nulidade e anulabilidade(131). A primeira traduz um vcio intrnseco do ato, o
(130) Vide o nosso Da confirmao no Direito Civil (2008), 59 ss. e passim.
(131) GUILhERME ALVES DE MOREIRA, instituies do Direito Civil Portugus, I
Parte Geral (1907), 42 (508 ss., 510).

92

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

qual no pode subsistir; a segunda implica um direito potestativo


na esfera de um interessado de pr cobro ao ato. O Decreto fez corresponder a nulidade aos impedimentos previstos no artigo 4.
(consanguinidade; falta de idade nbil; interdio; condenao por
crime de homicdio por sua tentativa ou por cumplicidade em tais
crimes, contra a pessoa do consorte; ligao por outro casamento
no dissolvido). A anulabilidade caberia pelos vcios menos graves
dos artigos 5. a 7. e, ainda, nas hipteses de erro ou de coao
(18.). A nulidade podia ser invocada por qualquer interessado ou
pelo Ministrio Pblico, enquanto a anulabilidade s competia ao
cnjuge interessado e em certos prazos (12., 14., 22. e 23.).
II. As causas de nulidade e anulao passavam a caber, apenas, ao foro civil. A situao jurdica da mulher era corrigida,
pondo-se cobro sua sujeio ao marido. Previa-se que a matria
do Decreto fosse apreciao da prxima Assembleia Constituinte
e que se procedesse incorporao na futura reviso do Cdigo
Civil (71.)(132).
III. No mesmo dia 25-dez.-1910, o Decreto n. 2 veio aprovar a Lei de proteo dos filhos(133). Este diploma complementa a
Lei do casamento. Comporta 59 artigos, assim arrumados:
Captulo I Dos filhos legtimos (1. a 16.);
Captulo II Da prova de filiao legtima (17. a 20.);
Captulo III Dos filhos perfilhados (21. a 33.);
Captulo IV Da investigao da paternidade ou da maternidade ilegtima (34. a 46.);
Captulo V Dos alimentos e socorros s mes dos filhos ilegtimos
(47. a 49.);
Captulo VI Dos direitos dos filhos no perfilhveis (50. a 52.);
Captulo VII Disposies gerais e transitrias (53. a 59.).

Percorrendo as regras do Decreto n. 2, em confronto com os


artigos 101. a 136. do Cdigo Civil de 1867, verifica-se que as
mudanas de fundo residem, no essencial:
(132)
(133)

Idntica regra constava do artigo 69. da Lei do Divrcio.


A Legislao, 1910, 464-469.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

93

na possibilidade de perfilhar os filhos ilegtimos adulterinos (22.), antes negada pelo artigo 122., 2., do Cdigo
Civil;
no alargamento da investigao da paternidade ilegtima
aos casos de seduo da me ou de convvio notrio (34.,
4. e 5.);
na consagrao expressa de alimentos e de socorro s
mes dos filhos ilegtimos (47. a 49.);
na supresso de filhos esprios, a favor dos no perfilhveis (50. a 52.).

19. Apreciao geral


I. Ao contrrio do que sucedeu com o divrcio, no podemos afirmar que as leis da famlia e da filiao, de 25-dez.-1910,
viessem provocar grande convulso na ordem jurdica ento existente.
certo que o decreto sobre o casamento civil veio secularizar
o matrimnio, no reconhecendo o casamento cannico antes inserido no Cdigo de Seabra. Tambm verdade que toda a competncia jurisdicional nessa matria, antes cometida aos tribunais
eclesisticos, passou para o foro civil. Tais medidas, tomadas sem
negociao com a Igreja, operavam j como potencialmente conflituosas. Mas tecnicamente, eram inatacveis.
II. Mas com essa ressalva, no temos informao de que as
medidas mais generosas dos diplomas, designadamente quanto
condio da mulher e dos filhos ilegtimos, tivessem, na poca,
causado qualquer sobressalto(134).
Quem ter sido o autor material dos diplomas? No temos
conhecimento, nem achmos rastos que permitam investig-lo.
Pelo estilo cuidado e pelo alto nvel tcnico, arriscamos uma hip(134) Compreende-se, por isso, que estes diplomas no tenham suscitado o interesse de LUS BIGOTTE ChORO, Poltica e Justia na i Repblica cit., 65-67: uma obra, de
resto, exaustiva e, a todos os ttulos, excelente.

94

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

tese: ter sido o Prof. Guilherme Moreira, o melhor civilista portugus, republicano moderado e que exerceria as funes de Ministro
da Justia, sob Pimenta de Castro. Cumpre recordar que Guilherme
Moreira foi o grande transformador do civilismo portugus, aproximando-o do sistema alemo.
III. A natureza conflitual da nova Lei do Casamento
pr-se-ia por via do Cdigo do Registo Civil de 18-fev.-1911(135):
este diploma, como foi visto, proibiu e puniu os casamentos catlicos no precedidos de casamentos civis. Disposio estranha:
como na poca foi notado, uma vez que a Repblica laica ignorava
o fenmeno religioso, no lhe bastaria no reconhecer os casamentos catlicos?
Temos, aqui, de reintroduzir o fator poltico.

VI A primazia do calendrio poltico


20. Um ms de Repblica
I. A Repblica foi proclamada no dia 5 de outubro de 1910.
Segundo a declarao inserida no Dirio do Governo do dia
seguinte(136):
hoje, 5 de Outubro de 1910, s onze horas da manh, foi proclamada a Repblica de Portugal na sala nobre dos Paos do Municpio de
Lisboa, depois de terminado o movimento da Revoluo Nacional.

O Governo Provisrio, de imediato constitudo, obteve a


seguinte composio(137):
Presidncia: Dr. Joaquim Teophilo Braga;
Interior: Dr. Antnio Jos de Almeida;
Justia: Dr. Affonso Costa;

(135) LUS BIGOTTE ChORO, ob. cit., 67-69.


(136) CLP 1910, 188.
(137) Um Decreto de 8 de outubro mudou a designao de dois Ministrios: o da
Marinha passou a Marinha e Colnias e o das Obras Pblicas a Fomento.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

Fazenda:
Guerra:
Marinha:
Estrangeiro:
Obras Pblicas:

95

Baslio Telles(138);
Antnio Xavier Correia Barreto;
Amaro Justiniano de Azevedo Gomes;
Dr. Bernardino Machado;
Dr. Antnio Luiz Gomes.

O novo regime no aguardou pela Assembleia Constituinte a


eleger, para decidir reformas de fundo. Pelo contrrio: para alm
da alterao do sistema poltico, o Governo Provisrio encetou,
de imediato, mudanas que pretendeu profundas, na sociedade
portuguesa. Vamos centrar a ateno nas medidas tomadas no primeiro ms de Repblica, isto , de 5 de outubro a 6 de novembro
de 1910.
II. No dia 8 de outubro, foram adotadas medidas emblemticas. Assim:
Decreto do Ministro do Interior: manda manter as cmaras republicanas: onde no as houvesse, manda-as substituir pelas comisses
municipais eletivas republicanas; e no as havendo, manda que as
cmaras sejam indicadas pelo povo, por eleio ou aclamao.
Decreto do Ministro da Justia: estabelece a Procuradoria-Geral
da Repblica.
Decreto da Presidncia: extingue a Casa Militar do Rei.

Mas alm disso, foi assumida uma medida estruturante, que


prenunciaria uma dimenso importante da futura legislao republicana:
O Decreto com Fora de Lei: manda que continuem em vigor as
leis de 3 de setembro de 1759, de 28 de agosto de 1767 e de 28 de maio
de 1834, sobre a expulso dos jesutas e o encerramento dos conventos
e anula o Decreto de 18 de abril de 1901, que autorizou a constituio
de congregaes religosas.

(138)

Substitudo, em 12 de outubro, por motivo de doena, por Jos Relvas.

96

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

III.

No dia 12 de outubro, temos:


Decreto do Governo: cria a Guarda Nacional Republicana(139).

Decreto do Governo: manda considerar como feriados nacionais


(apenas) os dias 1 de janeiro (fraternidade universal), 31 de janeiro
(mrtires da Repblica), 1 de dezembro (autonomia da Ptria) e 25 de
dezembro (famlia)(140); desapareceram, pois, os feriados religiosos.

No dia 13 de outubro, Decretos do Governo vieram criar os juzos de instruo criminal e revogar as leis de exceo de Joo Franco.
No dia 15 de outubro, salientamos, ambos do Governo:
Decreto que declara proscrita a famlia de Bragana, incluindo os
ascendentes, os descendentes e os colaterais at ao quarto grau do
ex-chefe de Estado.
Decreto que declara abolidos todos os ttulos nobilirquicos, distines honorficas ou direito de nobreza, com exceo da ordem da
Torre e Espada(141).

No dia 17 de outubro, so abolidos, por Decreto, o Conselho


de Estado e a Cmara dos Pares.
No dia 18 de outubro, suprimido, nos atos civis, o juramento
com carter religioso, sendo estabelecidas as frmulas que o
devem substituir(142).
IV. Seguiram-se diversos diplomas de tipo tcnico. No
dia 21 de outubro, temos duas Portarias significativas, do Ministrio da Justia:
suspende o Bispo de Beja de todas as temporalidades, at
nova resoluo do Estado: havia-se ausentado para Sevilha sem autorizao;
manda arrolar os bens das congregaes religiosas.
(139) O seu Regulamento foi aprovado por Decreto de 29 de outubro.
(140) As municipalidades poderiam ainda, na rea dos respetivos concelhos, considerar feriado um dia por ano () escolhendo-o de entre os que representem as festas tradicionais e caractersticas do municpio.
(141) O seu artigo 4. foi alterado pelo Decreto de 2 de dezembro de 1910.
(142) Ficou consagrada a frmula Declaro pela minha honra que desempenharei
fielmente as funes que me so confiadas, praticamente ainda em vigor.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

97

No dia seguinte, 22 de outubro, temos, entre outras, as medidas seguintes, tomadas por outros tantos Decretos:
probe a exposio ou venda de () quaesquer publicaes pornographicas ou redigidas em linguagem despejada e provocadora;
determina a observncia rigorosa do artigo 137., do
Cdigo Penal, relativo ao abuso de funes religiosas;
extingue, nas escolas primrias e normais primrias, o
ensino da doutrina crist.
O juramento do reitor e mais funcionrios e alunos da Universidade de Coimbra abolido a 23, sendo, do mesmo passo, anuladas as matrculas efetuadas no 1. ano da Faculdade de Teologia.
Foram tomadas outras medidas tcnicas.
A Relao dos Aores extinta a 24, formalizando-se outras
medidas de tipo corrente.
No dia 26 de outubro, so considerados dias teis os dias santificados, exceto o Domingo.
A Lei da Imprensa adotada em 28 de outubro: com 36 artigos, trata-se do primeiro diploma de flego da Repblica.
V. No dia 31 de outubro, um Decreto importante veio regular as sucesses por morte, no sentido de melhorar a posio dos
filhos ilegtimos. De notar que o seu artigo 6. dispunha:
Na falta de descendentes e ascendentes defere-se a sucesso ab
intestato ao conjuge sobrevivo, se ao tempo da morte do outro no estavam divorciados ou separados de pessoas e bens por sentena passada
em julgado.

A referncia a divorciados, tecnicamente incorreta, uma vez


que havendo-os, no h cnjuge sobrevivo, surge numa altura em
que no existia, ainda, divrcio em Portugal: faltavam trs dias.
Seguiram-se portarias tcnicas, com medidas, por exemplo,
relativas Caixa Geral de Depsitos e s munies e paiis.

98

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

VII. Chegamos ao dia 3 de novembro: um Decreto do


Governo aprova a Lei do Divrcio.
O primeiro ms da Repblica concluiria com o Decreto de
4 de novembro, que aprovou uma ampla amnistia relativa a crimes
contra a religio catlica, contra a segurana interior do Estado,
contra reunies criminosas, contra atos de perturbao, contra o
exerccio de direitos polticos, contra as leis sobre inumaes e
falta de respeito e outras(143).

21. A Repblica, at ao fim do ano


I. O primeiro ms da Repblica foi decisivo. Mas tem ainda
interesse verificar a sua produo legislativa at ao fim do ano
de 1910. Salientamos os seguintes diplomas:
Decreto com Fora de Lei de 12 de novembro: regula o inquilinato
(41 artigos); um novo diploma sobre inquilinato surge a 18 de novembro;
Decreto de 18 de novembro: modifica o diploma relativo aos tribunais
criminais e aos juzos de investigao criminal;
Decreto com Fora de Lei de 19 de novembro: procura evitar a deteriorao e a sada para o estrangeiro de objetos de valor artstico e histrico;
Decreto com Fora de Lei de 2 de dezembro: regula as cartas de naturalizao;
Decreto com Fora de Lei de 6 de dezembro: regula o direito greve;
Decreto com Fora de Lei de 12 de dezembro: providencia para que
deem entrada no Tesouro as receitas e mais bens que eram desfrutados
pela extinta monarquia;
Decreto de 20 de dezembro: prev uma comisso para codificar as disposies vigentes sobre inquilinato;
Decreto com Fora de Lei de 21 de dezembro: regula o artigo 4./7 da
Lei do Divrcio (loucura incurvel);
(143) O Decreto com Fora de Lei de 14 de novembro veio esclarecer dvidas
sobre este diploma.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

99

Decreto com Fora de Lei de 21 de dezembro: coloca na Relao de


Goa os quatro juzes da Relao de Lisboa, que intervieram em determinados recursos, desconsiderando a responsabilizao de polticos
afetos monarquia.

II. O ano prosseguiu com as clebres Leis da Famlia, precisamente datadas de 25 de dezembro:
Decreto n. 1, que aprovou a Lei do casamento como contrato civil;
Decreto n. 2, que aprovou a Lei de proteo dos filhos.

III.

Temos ainda:

Decreto com Fora de Lei de 28 de dezembro, que estabelece as penalidades e a forma do processo a aplicar aos crimes de atentado e de
ofensas contra a Presidente do Governo Provisrio ou da Repblica e
contra a forma de Governo e integridade da Repblica Portuguesa;
Decreto com Fora de Lei de 31 de dezembro, que regula a posse, pelo
Estado, dos bens das extintas corporaes religiosas.

22. Vetores gerais


I. Centrando a nossa ateno no primeiro ms da Repblica,
temos os seguintes vetores legislativos:
1. Desmantelamento das instituies monrquicas: extino
da Casa Militar do Rei; proscrio da Casa de Bragana;
abolio dos ttulos nobilirquicos; supresso do Conselho de Estado e da Cmara dos Pares;
2. Montagem das instituies republicanas: o Governo Provisrio; republicanizao das Cmaras Municipais; instituio da Procuradoria-Geral da Repblica e da Guarda
Nacional Republicana;
3. Laicizao e medidas anticatlicas: expulso dos jesutas,
encerramento dos conventos e abolio das ordens religiosas; supresso dos feriados; suspenso do Bispo de Beja;
arrolamento dos bens das congregaes religiosas; extino do ensino da doutrina crist nas escolas;

100

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

4. Regulao das liberdades cvicas: proibio de venda de


publicaes pornogrficas ou redigidas em linguagem
despejada e provocadora(144); lei da imprensa; amnistia;
5. Diversos diplomas tcnicos, atinentes gesto corrente do
Estado;
6. Diplomas civis: sucesses por morte e divrcio.
II. O desmantelamento das instituies monrquicas e as
medidas destinadas a introduzir um regime republicano
afiguram-se consequentes com a sublevao de 5 de outubro.
J a laicizao e as medidas anticatlicas, que conheceriam o
ponto alto com a denominada lei da separao, correspondem a
outro tipo de preocupao poltica.
O leitor desapaixonado, que percorra as leis ento adotadas,
no entender o especial interesse do Governo Provisrio e de
homens que, crentes ou ateus, eram civilizados, em expulsar os
jesutas e pela forma por que isso foi feito(145) e em dissolver as
congregaes, com prejuzo para a portugalidade em todo o
Mundo(146). Foram perpetradas humilhaes gratuitas e, at,
demonstraes de puro racismo. Ora nada de consistente mostra
que a Repblica estivesse em perigo, por tais vias.
III. Tambm a legislao civil, mormente no caso do divrcio, parece no corresponder realidade efetiva. O Cdigo do
Registo Civil foi mais longe: inicia uma luta clara contra o catolicismo o qual convenhamos no tinha dimenso poltica, nem
vontade efetiva de se opor Repblica. O artigo 8. do Cdigo do
Registo Civil dispunha:
No dia em que entrar em vigor o presente codigo os livros do
registo parochial existentes em poder dos parochos sero por estes
encerrados no estado em que se encontrarem ()

Previam-se, depois, mltiplas penas no caso de incumprimento.


(144) Parece evidente que se tratava de um instrumento destinado a censurar a
imprensa desfavorvel ao novo regime.
(145) Vide LUS SALGADO DE MATOS, A Separao do Estado e da igreja, cit., 45 ss..
(146) idem, 77 ss. e passim; vide.

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

101

IV. O Cdigo do Registo Civil implicou, para ser aplicado,


uma rede de conservatrias, devidamente apetrechadas, que iriam
cobrir todo o territrio. havia centenas de lugares a preencher, o
que foi feito com correlegionrios do Prof. Affonso Costa e do seu
(mais tarde) Partido Democrtico(147). Quadros jovens, cultos,
ambiciosos e altamente motivados, em termos polticos, vo
enquadrar populaes analfabetas, exploradas e menos atentas a
procos politicamente inexperientes, exaustos e perseguidos.
A batalha do registo civil teve, pois, vrios tabuleiros: o da realizao de um efetivo ponto programtico da Repblica (alis: ponto
liberal; como vimos, ele vem j de Passos Manuel!); o do recrutamento e colocao de serventurios capazes e eficazes; o do reforo
da posio do Prof. Affonso Costa, dentro do Partido Republicano,
prenunciando o culto da personalidade que, ento, se iniciava(148).
A rapidez do processo poltico no permitiu qualquer oposio organizada. Tudo operava num ambiente de aparente liberdade. Aparente, porquanto a permanente agitao de rua e os ataques a pessoas conotadas com a monarquia ou com instituies da
Igreja corroam quaisquer veleidades(149).

23. A Lei da Separao


I. A inimizade anticlerical do primeiro ms da Repblica,
transformou-se num aprofundado movimento de perseguio
Igreja Catlica, aps a denominada Lei da Separao do Estado
das Igrejas, de 20 de abril de 1911. Trata-se de matria complexa,
cujo estudo transcende a presente interveno(150).
(147) LUS BIGOTTE ChORO, Poltica e Justia na i Repblica, cit., 1, 68.
(148) Veja-se a homenagem prestada a 2-abr.-1911, no Coliseu de Lisboa, presidida
por Magalhes Lima e na qual o homenageado nem participou; cf. LUS BIGOTTE ChORO,
Poltica e Justia, cit., 1, 68-69.
(149) Sobre toda essa matria, ANTNIO JOS TELO, Primeira Repblica I / Do
Sonho Realidade (2010), 148 ss. e passim.
(150) Remetemos para os dois monumentais estudos de MARIA LCIA DE BRITO
MOURA, A Guerra Religiosa na i Repblica, 2. ed. (2010), 635 pp. e de LUS SALGADO DE
MATOS, A Separao do Estado e da igreja (2011), 719 pp..

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ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Em traos muito largos, podemos sintetizar os pontos seguintes, todos relativos Lei em causa:
proclamava solenemente o fim do catolicismo como religio do Estado (2.) e afastava qualquer funo ou encargo
religiosos da Repblica (6.);
impunha que os custos religiosos fossem assumidos, apenas, por corporaes especficas (entidades cultuais)
(16.) fiscalizadas por juntas de parquias (24.), sendo os
procos totalmente inelegveis (26.) e sujeitando-se a
mltiplas limitaes (29. a 42.);
o culto era visionado, devendo as cerimnias religiosas ter
um representante da autoridade a fiscalizar (46. e 47.);
os ministros da religio no podiam atacar atos do
Governo (48.), sob penas severas;
o uso de insgnias eclesisticas (53., 58. e 176.), as procisses (57.) e os sinos (58.) eram proibidos ou limitados;
todos os bens da Igreja eram nacionalizados (62. ss.)
podendo (apenas) ser emprestados para atos de culto, em
certas circunstncias;
os seminrios eram reduzidos a cinco e o ensino da teologia fiscalizado;
previam-se penses para os padres colaborantes (113.
ss.), as quais se mantinham se casassem (150.); idem,
para as vivas e filhos dos padres (152.);
todos os documentos da Igreja s podiam ser publicados
depois de aprovados pelo Governo (181.).
II. A Lei da Separao traduz, de facto, uma forte ingerncia
do Estado na religio catlica. Esta diretamente visada, seja de
um modo explcito, seja implicitamente. Nenhum estudioso da
matria tem, hoje, a mnima dvida em afirmar que a Lei visou
uma assumida perseguio Igreja.
III. Num prisma tcnico-jurdico, a Lei da Separao no
tem nada a ver com a clareza e com o bom nvel tcnico da Lei do
Divrcio ou das Leis da Famlia. Traduz uma amlgama de regras

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

103

civis, contabilsticas, administrativas e penais, de leitura complexa.


Os conceitos utilizados j estavam superados: mantm-se referncias a pessoas moraes (27.) ou a individualidade jurdica
(62.) quando, na poca, Guilherme Moreira j havia imposto pessoa coletiva; surge o termo indivduos particulares (80.). No
h um corpo de princpios gerais: aps algumas regras (1. a 10.),
so logo inseridas disposies penais (11. a 15.) e isso numa
poca em que a sistematizao por matrias j era regra. Os verbos
ora surgem no presente, ora no futuro. Proliferam frmulas enfticas, de escasso contedo normativo.
IV. A Lei ter sido elaborada pelo punho do prprio
Prof. Affonso Costa(151). O que fez correr o ilustre estadista? Na
vasta literatura existente, vrias hipteses tm sido aventadas.
Assim:
o Partido Republicano Portugus, fortemente tomado pela
maonaria, desenvolveu, desde sempre, uma forte campanha anticatlica(152); verdade: todavia, ilustres maons
recomendaram uma atuao mais apoiada e progressista,
respeitando os direitos envolvidos(153);
a Igreja Catlica era um potentado que pretendia a restaurao monrquica: no verdade: a Monarquia caiu por
desistncia(154) e no teve qualquer apoio, nem popular,
nem da Igreja; as incurses monrquicas no assumiram
significado militar nem apoio popular; apenas foram enfatizadas pelo novo regime como esquema de autoconfiana
e de pretexto para a propaganda e a represso;
Affonso Costa reagiria ressentido pela leitura (muito parcial), nas Igrejas, de uma pastoral crtica relativamente
(151) Vide LUS BIGOTTE ChORO, Poltica e Justia na i Repblica, cit., 1, 69.
(152) A. h. DE OLIVEIRA MARQUES, A Primeira Repblica Portuguesa (2010), 53 ss..
(153) Veja-se o episdio que ops Affonso Costa a Eduardo Abreu, reconhecido
republicano, na Assembleia Constituinte, em LUS SALGADO DE MATOS, A Separao do
Estado e da igreja cit., 205 ss. (209).
(154) Vide LUS SALGADO DE MATOS, A Separao do Estado e da igreja cit., 41 ss..
Nas palavras de TEIXEIRA DE SOUSA, Para a Histria da Revoluo, 1 (1911), 7: A Monarchia
cau porque, salvas raras excepes, no teve quem a defendesse () certamente porque contra ella tinha a paixo de muitos e a indifferena da maior parte, sem excluir a fora pblica.

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ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Repblica, nos finais de fevereiro de 1911 e que fora proibida pelo Governo; no parece: a carta era inofensiva, em
termos de ao; no parece lgico que o Governo receasse
a sua leitura e avanasse com uma lei severssima.
As verdadeiras razes so de ordem puramente poltica, como
vamos ver.

VII Questes fraturantes, radicalismo e estratgia


de poder
24. A estratgia do Prof. Affonso Costa
I. A Lei da Separao contm frmulas e medidas puramente afrontosas (as vivas dos padres; a presena de delatores
oficiais nas cerimnias litrgicas; o esquema das penses), que
nenhum homem feito, para mais estadista j experiente e lente
catedrtico iria empregar, com sentido de Estado.
Temos de concluir: a Lei da Separao, num crescendo iniciado com a expulso dos jesutas e das ordens religiosas e prosseguido com a Lei do Divrcio, visou uma forte confrontao exterior, com o nico inimigo possvel, na altura: a Igreja Catlica,
na poca enfraquecida e exangue(155).
Os catlicos praticantes eram, na poca, muito poucos: quase
s mulheres que, na poca, no tinham nem voto nem ao poltica; a elite era agnstica; os bispos eram pessoas de idade, ultrapassados pelos acontecimentos; o nmero de oficiais maons era
equivalente ao dos padres: mas estes estavam desorganizados e
desmotivados; a presso popular, bem montada, era permanente
e perigosa, como resulta de inmeros episdios documentados;
finalmente, a Igreja portuguesa perdera a fora econmica, com as
nacionalizaes do liberalismo e estava enfraquecida por sculos
(155)

LUS SALGADO

DE

MATOS, A Separao do Estado e da igreja, cit., 63 ss..

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

105

de regalismo. Foi, pois, contra uma entidade humana e materialmente decrpita que o Prof. Affonso Costa investiu a energia que
deveria ter ficado para o Pas, para o ensino e para as colnias.
II. O radicalismo, em pocas de instabilidade, d poder. Os
companheiros do radical ou acompanham ou so desautorizados:
ridicularizados, mesmo. Todas as revolues o documentam.
No credvel que o Prof. Affonso Costa, pessoa inteligente e
com fino sentido poltico, se tivesse empolgado nas suas medidas,
ao ponto de perder a compostura na feitura das leis. A Igreja Catlica no representava nenhum inimigo que pusesse em perigo o
poder pessoal de Costa: inimigos seriam os seus correlegionrios
de Partido e da Maonaria. Foram eles os ltimos visados com as
medidas radicais ento tomadas.
III. A estratgia surtiu efeito. O Prof. Affonso Costa, custa
de perturbaes mltiplas que nunca o incomodaram verdadeiramente, conseguiu isolar os evolucionistas e os unionistas,
mantendo o seu Partido Democrtico quase invencvel, nas
urnas. S cedeu perante ditaduras espordicas e, por fim, perante
o 28 de maio de 1926.

25. As consequncias
I. A fuga em frente levada a cabo pelo Prof. Affonso Costa,
logo nos primeiros meses da I Repblica, condicionou todo o
sculo XX portugus: pelo menos at que a adeso Unio Europeia ps termo a uma aventura de oito sculos.
Desde logo, foram bloqueadas as hostes republicanas. Por
via disso, no foi possvel formar, na poca, um grande partido
republicano conservador, que alternasse no poder com o partido
radical de Costa(156). Fora esse o caso e Portugal teria atravessado

(156)
reflexes.

Vide ANTNIO JOS TELO, Primeira Repblica, cit., 171 ss., com importantes

106

ANTNIO MENEzES CORDEIRO

o sculo XX em democracia, com um grande partido de esquerda


o Partido Democrtico do Prof. Affonso Costa que, a no ser
intolerante, se teria aproximado dos sindicalistas, evoluindo para a
social democracia e um grande partido de direita de Antnio
Jos de Almeida e de Brito Camacho que teria evoludo para o
liberalismo e para a democracia crist. As experincias da II e da
III Repblicas poderiam ter sido poupadas: teramos, agora, a mais
antiga Constituio republicana da Europa!
II. Curiosamente, o radicalismo do Prof. Affonso Costa deixaria na sombra as medidas mais avanadas da I Repblica, designadamente as constantes dos Decretos de 25 de dezembro de 1910.
E, num paradoxo em que as humansticas so ricas, ele veio, a
mdio e longo prazo, fortalecer a Igreja Catlica em Portugal. As
perseguies de 1911, depois retomadas noutros governos de
Affonso Costa, levaram ao despertar dos procos e dos fiis. Aos
poucos, foi-se formando uma conscincia crist, quer culta quer
popular, capaz de contracenar com a Maonaria. Ambas as correntes aprenderam a conviver e a respeitar-se: fizeram-no, designadamente, no quadro do Estado Novo! Alm disso, surge um catolicismo militante de massas, de que o fenmeno de Ftima a mais
clara comprovao.
III. Os efeitos, na cultura portuguesa, do radicalismo da
I Repblica foram menos felizes. A perda dos colgios dos jesutas,
dos seminrios e das escolas das congregaes no foi compensada
pela criao de escolas laicas. Durante a I Repblica, s foi criado
um liceu, enquanto o analfabetismo apenas baixou de 75,1%, em
1911, para 67,8%, em 1930. houve algum progresso nas escolas
tcnicas e na Universidade: esta ltima, a mais fcil, j que se tratava de criar centros universitrios em Lisboa e no Porto. Somente
por tradio se conservava, no incio do sculo XX, apenas o plo
de Coimbra(157).
No Ultramar portugus, as novas expulses das ordens
(a somar dos jesutas, pelo Marqus de Pombal, no sculo XVIII
(157)

A. h. DE OLIVEIRA MARQUES, A Primeira Repblica Portuguesa, cit., 79 ss..

DIVRCIO E CASAMENTO NA I REPBLICA

107

e s dos liberais, em 1832) provocaram uma regresso da lusofonia. Pela brecha aberta entraram os colonialismos francs e ingls,
reduzindo a rea onde, hoje, se fala portugus.

26. E hoje?
I. A proporo de casamentos catlicos em Portugal, que era
de 68,8% em 1995, baixou, em 2009, para 43,1%: a barreira dos
50% foi ultrapassada em 2007. Quanto aos divrcios: houve
19.104 em 2000 e 26.176 em 2009: um nmero que baixou ligeiramente, desde 2008. A taxa bruta de divrcio passou de 0,1 por mil,
em 1970, para 2,5 por mil, em 2009, num crescimento de vinte e
cinco vezes, quase contnuo, que estabilizou em 2007.
Fica a pergunta: desde o momento em que mais de metade dos
casamentos anuais no seja cannica, Portugal ainda um Pas
catlico?
II. No dia 21-mar.-1911, num discurso feito no Grmio
Lusitano, o Prof. Affonso Costa, a propsito da Lei da Separao
que pretendia portuguesa (por oposio s leis brasileira e francesa), ter dito(158):
() a ao da medida ser to salutar que em duas geraes Portugal
ter completamente eliminado o catolicismo que foi a maior causa da
desgraada situao em que caiu.

De facto, enganou-se. Do ponto de vista anti-catlico, as


medidas que tomou acabaram por ser contraproducentes.
III. No decurso do processo originado pelo 25 de abril de
1974, o Partido Comunista Portugus, muito bem liderado pelo

(158) LUS SALGADO DE MATOS, A Separao do Estado e da igreja, cit., 136 e


outros Autores, todos indicando as fontes. A afirmao foi desmentida: ainda hoje existe
um blogue, na net, onde se apresentam provas de que nunca ter sido proferida. Todavia,
com os elementos histricos disponveis, ela no s se confirma como parece lgica, face
ao teor da lei e aos propsitos do seu ilustre Autor.

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ANTNIO MENEzES CORDEIRO

Dr. lvaro Cunhal, fino conhecedor da histria e da natureza


humana, num ambiente de radicalismo acentuado, teve o cuidado
de no afrontar a Igreja Catlica. O divrcio s foi mexido depois
de revista a Concordata e no se tocou no tema do aborto, at 1984.
Apesar de convulses scio-econmicas bem mais pronunciadas do que em 1911, com repercusses em todo o Pas, no houve,
praticamente, incidentes com a Igreja. No foram expulsos os
jesutas, nem incomodadas as ordens. Passada uma gerao, 43,1%
dos casamentos so religiosos
Mau grado a complexidade causal inabarcvel, impe-se uma
concluso: o radicalismo fraturante d, no imediato, poder pessoal
a quem o use; mas a prazo, compromete os valores que ele diz
subscrever.

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