1. O documento discute as origens históricas dos sistemas acusatório e inquisitivo no direito romano e canônico.
2. O sistema acusatório romano surgiu com as quaestiones perpetuae para julgar certos crimes, notadamente a concussão, por comissões compostas por jurados sob a presidência do pretor.
3. O sistema inquisitivo canônico teve início na Idade Média e se caracterizava por dar amplos poderes investigativos ao juiz, como a utilização da tortura
1. O documento discute as origens históricas dos sistemas acusatório e inquisitivo no direito romano e canônico.
2. O sistema acusatório romano surgiu com as quaestiones perpetuae para julgar certos crimes, notadamente a concussão, por comissões compostas por jurados sob a presidência do pretor.
3. O sistema inquisitivo canônico teve início na Idade Média e se caracterizava por dar amplos poderes investigativos ao juiz, como a utilização da tortura
1. O documento discute as origens históricas dos sistemas acusatório e inquisitivo no direito romano e canônico.
2. O sistema acusatório romano surgiu com as quaestiones perpetuae para julgar certos crimes, notadamente a concussão, por comissões compostas por jurados sob a presidência do pretor.
3. O sistema inquisitivo canônico teve início na Idade Média e se caracterizava por dar amplos poderes investigativos ao juiz, como a utilização da tortura
1. O documento discute as origens históricas dos sistemas acusatório e inquisitivo no direito romano e canônico.
2. O sistema acusatório romano surgiu com as quaestiones perpetuae para julgar certos crimes, notadamente a concussão, por comissões compostas por jurados sob a presidência do pretor.
3. O sistema inquisitivo canônico teve início na Idade Média e se caracterizava por dar amplos poderes investigativos ao juiz, como a utilização da tortura
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Origens histricas dos sistemas acusatrio e inquisitivo
Diogo Malan e Marta Saad
SUMRIO: 1. Introduo 2. Processo penal romano acusatrio: 2.1 Origens histricas; 2.2 Principais caractersticas; 2.3 Composio e atribuies; 2.4 Procedimento; 2.5 Decadncia das quaestiones perpetuae; 2.6 Influncia no processo penal brasileiro 3. Processo penal cannico inquisitivo: 3.1 Espcies de procedimento; 3.2 Competncia e composio do tribunal inquisidor; 3.3 Procedimento inquisitivo: 3.3.1 Incio do procedimento; 3.3.2 Prova testemunhal; 3.3.3 Tortura; 3.3.4 Fase de julgamento; 3.3.5. Priso no curso do processo e aplicao da pena; 3.3.6 Execuo e reviso da pena; 3.4 Principais caractersticas do processo penal cannico inquisitivo 4. Concluso 5. Referncias bibliogrficas
1. INTRODUO
H quem afirme que os sistemas processuais penais seriam conceitos do passado, sem qualquer valor, e que hodiernamente s serviriam para obscurecer a clareza conceitual no mbito do Direito Processual Penal 1 . Fundamenta-se tal opinio no fato de os sistemas processuais penais puros, ou seja, tal qual surgiram historicamente, no mais existirem em nenhum ordenamento jurdico, subsistindo to-somente sistemas hbridos, com proeminncia das caractersticas de um ou outro sistema. No obstante, acreditamos que o estudo das origens dos sobreditos sistemas extremamente proveitoso, qui imprescindvel, na medida em que eles so teis no s como objeto de estudo histrico, mas igualmente como modelos de organicidade, do ponto de vista lgico; parmetros de valorao em sede positiva e critrios de poltica criminal, no mbito legislativo 2 . A escolha de um modelo processual penal, todavia, nem sempre clara e coerente 3 . Isso porque a doutrina
1 MONTERO AROCA, Juan. Principios del proceso penal: Una explicacin basada en la razn, p. 29. 2 CONSO, Giovanni. Accusa e sistema accusatorio: Atti processuali penali e capacit processuale penale, p. 8. 3 La scelta di un modello processuale evidentemente una scelta politica, nella quale la posta in gioco la garanzia del singolo limputato a seconda del limite que lo Stato si pone nella repressione del reato e nel controllo sociale. (...) Esiste dunque un nesso tra la forma di Stato e forma del processo. Laddove prevalga lidea dello Stato di Diritto, ove il cittadino apunto tale, munito di diritti soggetivi inviolabili, il processo tende allampiamento delle garanzie difensive e quindi al rito accusatorio. Laddove il rapporto Stato-cittadino squilibrato a favore esclusivo del primo le garanzie difensive vengono indebolite o eliminate ed il processo tende
2 contempornea demonstra expressivas divergncias no que tange exata conceituao dos sistemas em apreo, por meio da delimitao dos seus respectivos traos unificadores e secundrios. Por conseguinte, a nosso ver indispensvel previamente investigar-se as origens histricas dos dois sistemas processuais penais (acusatrio e inquisitivo), o que constitui o objetivo do presente trabalho. Nesse diapaso, analisar-se- o contexto histrico-poltico em que tais sistemas surgiram 4 , as principais caractersticas da sua configurao pura e os motivos que levaram sua derrocada.
2. PROCESSO PENAL ROMANO ACUSATRIO
O objetivo do presente tpico analisar a segunda fase evolutiva do processo penal romano, a acusatria. Para tanto, guisa de intrito analisaremos as origens histricas das cognominadas quaestiones perpetuae, aps o que sero analisadas, ainda, todas as principais caractersticas de seu procedimento. Ao contrrio do que pode parecer primeira vista, este estudo no representa to-somente interesse histrico, na medida em que o processo penal acusatrio romano exerceu enorme influncia sobre o processo penal (em geral) e sobre o Tribunal do Jri brasileiro (em particular), conforme ser demonstrado no item 2.6, infra.
2.1 Origens histricas:
O fator histrico que deu azo s quaestiones foi a expanso do Estado romano verificada no final do perodo republicano, a qual acarretou a necessidade de instituio de mecanismos mais eficientes de investigao de certos crimes, notadamente a concusso praticada por magistrado provincial (crimen repetundarum ou pecuniae repetundae). Pela especial condio tanto do autor do fato criminoso quanto dos lesados, tal crime no podia ser submetido ao
quindi ad essere inquisitorio (BETTIOL, Giuseppe, BETTIOL, Rodolfo, Istituzioni di diritto e procedura penale, p. 128). 4 No obstante o processo penal romano tambm ter trazido momentos marcados por traos inquisitivos nas suas primeira e terceira fases evolutivas (inquisitio e cognitio extra ordinem), reputamos que a origem histrica do modelo inquisitivo de processo penal localiza-se no processo cannico, onde os poderes inquisitivos do juiz na conduo do processo atingiram o pice.
3 julgamento de quem usualmente prestava a jurisdio privada (o Pretor) e tampouco coercitio do Cnsul ou do Pretor 5 . Joo Mendes de Almeida Jnior aponta como fator histrico que ensejou a instituio das quaestiones o crescimento do nmero de causas e a dificuldade de process-las perante as grandes assemblias, tudo a exigir a delegao das funes jurisdicionais por parte do Senado ou do Povo para tribunais ou juzes em comisso 6 . Assim, a primeira quaestio foi instituda pela Lex Calpurnia de 149 a.C. para julgar a referida concusso, por meio de procedimento denominado iudicium publicum, devido ao rgo instituidor da comisso e ao fato de que a matria afeta cognio dela se situava fora dos limites do direito privado 7 . Inicialmente, tal procedimento era assemelhado ao procedimento privado relativo ao dano patrimonial 8 . Segundo Bernardo Santalucia, a finalidade inicial desse processo era mais a restituio do dano infligido vtima do que a persecuo de um crime 9 . Seguiram-na diversas outras quaestiones, com variegadas competncias: a maiestatis, que julgava os delitos de alta traio e desobedincia aos rgos estatais; a de peculatu et sacrilegio, competente para julgar os crimes de dano propriedade pblica, sacra ou religiosa; a ambitus, que apreciava os casos de corrupo eleitoral; a de sicariis et veneficiis, qual estava afeto o julgamento de homicdios, magia, falso testemunho e atentado segurana pblica; a de parricidiis (homicdio de parente prximo); a de falsis (falsificao de testamento ou de moeda); a de iniuriis (injria grave); a de adulteriis (adultrio e seduo); de vi (crimes cometidos com o emprego de violncia) etc. De origem eminentemente poltica, as quaestiones foram inicialmente concebidas como rgos jurisdicionais temporrios. No obstante, com o decorrer do tempo tornaram-se definitivas, da a denominao quaestiones perpetuae.
5 GIOFFREDI, Carlo. I principi del diritto penale romano, p. 17. Explica Gioffredi que, diante desse quadro, o Senado comeou a nomear colgio de juzes (recuperatores) para o processamento de tais crimes, mas depois, dada a freqncia dos fatos, houve a necessidade de instituio de comisso para tal fim (quaestio). 6 ALMEIDA JNIOR, Joo Mendes de. O processo criminal brasileiro, v. 1, p. 30. 7 GIORDANI, Mrio Curtis. Direito penal romano, p. 08. 8 TUCCI, Rogrio Lauria. Lineamentos do processo penal romano, p. 69-71. 9 SANTALUCIA, Bernardo. Diritto e processo penale nellantica Roma, p. 109. No obstante, havia previso de imposio de incapacidades, como perda de direitos polticos, remoo do Senado e ineligibilidade (ROMEIRO, Jorge Alberto. O processo como fonte do direito penal romano).
4 A sua importncia histrica se deve ao fato de que elas substituram as assemblias populares no julgamento dos casos penais, por conseguinte evitando influncias polticas e dando jurisdio um carter mais tcnico e autnomo 10 .
2.2 Principais caractersticas
A quaestio foi rgo jurisdicional criado no segundo perodo evolutivo do processo penal romano, o indigitado acusatrio 11 , constitudo por cidados representantes do povo romano (iudices iurati) e presidido pelo pretor (quaesitor). As regras acerca da constituio e competncia da quaestio, do procedimento cabvel, dos crimes e suas respectivas penas eram todas previstas em lei prvia, da a origem histrica da garantia da legalidade penal 12 . Trata-se do primeiro modelo romano de jurisdio penal propriamente dita, eis que substituiu a jurisdio dos cnsules e comcios, que era de natureza preponderantemente administrativa ou poltica 13 . Uma das principais caractersticas das quaestiones era a sua natureza publicstica 14 , pois a fixao da sua competncia independia de quaisquer convenes prvias entre as partes processuais, ao contrrio do que ocorria no processo civil romano daquela poca (por meio do instituto da litis contestatio). Alm disso, a escolha das listas de jurados que integravam as quaestiones era feita diretamente pelo pretor, sem qualquer ingerncia das partes interessadas. Releva destacar que no havia um nico procedimento para todas as quaestiones, e sim um fascio de procedure
10 GIORDANI, Mrio Curtis. Direito ..., p. 08. 11 O primeiro perodo foi o cognominado comicial, no qual preponderavam os matizes inquisitivos, havendo a investigao de ofcio sem balizas legais, inicialmente por parte de agente estatal (inquisitio), posteriormente por parte dos prprios cidados romanos (anquisitio). O terceiro perodo, por sua vez, foi o da cognitio extra ordinem, caracterizado pelo retorno da inquisitividade atravs de rgos jurisdicionais constitudos pelo Prncipe que atuavam de ofcio (TUCCI, Rogrio Lauria. Lineamentos ..., p. 103-105). 12 A ciascuna quaestio fu attribuita la cognizione di un singolo reato o di un gruppo di reati, riuniti per sotto un medesimo titolo. La legge istrutiva indicava cod precisione i termini del crimen (o dei crimina) di cui la corte era competente a conoscere, la procedura da seguire per laccertamento della responsabilit e la pena che doveva essere inflitta al colpevole (SANTALUCIA, Bernardo. Diritto cit., p. 139). 13 TUCCI, Rogrio Lauria. Lineamentos ..., p. 72-73. 14 Il processo, anzich per sacramentum, cio con applicazione di un modus agendi proprio dei processi privati, fu organizzato secondo un rito del tutto nuovo, de impronta schiettamente pubblicistica. In luogo della restituzione del maltolto, fu sancita a carico dei concussionari una pena criminale, comisurata al doppio del valore delle cose estorte, che doveva essere versata al quaestore e per suo tramite allerario (SANTALUCIA, Bernardo. Diritto ..., p. 116).
5 paralele 15 , embora nos seus aspectos principais os procedimentos fossem homogneos 16 .
2.3 Composio e atribuies
A composio do conselho de jurados das quaestiones era feita pela indicao e, posteriormente, pelo sorteio de 100 (cem) nomes, dentre aqueles que constavam de uma lista oficial (album iudicum) de cerca de 1.000 (mil) cidados romanos (correspondentes s decrias), selecionados pelo pretor no incio de cada ano. Malgrado inicialmente somente Senadores integrassem tais listas, posteriormente tambm cavaleiros (Lex Sempronia de 122 a.C.) e tribunos do Errio (Lex Aurelia de 70 a.C.) passaram a faz-lo, em igual proporo 17 . Ao acusado era facultada a recusa (reiectio) de at 50 (cinqenta) dos jurados indicados pelo acusador e, posteriormente, dos sorteados. Cumpria aos jurados selecionados acompanhar todo o procedimento e, ao final, decidir pela condenao, absolvio ou alargamento da instruo processual. Ao pretor, por sua vez, cabia: (i) analisar liminarmente a acusao; (ii) decidir acerca da competncia; (iii) colher o juramento das partes; (iv) escolher e convocar os jurados; (v) presidir os debates; (vi) executar a sentena. O pretor no inquiria as testemunhas 18 e tampouco individualizava a pena a ser aplicada, pois esta ltima era fixa e prevista na prpria lei instituidora da quaestio, repita-se. Dessa forma, o pretor no podia rejeitar liminarmente a acusao, sob pena de subtrair o fato do julgamento soberano do povo 19 , pois o mximo que lhe era azado era declinar da competncia em favor de uma outra quaestio.
15 SANTALUCIA, Bernardo. Idem, p. 140. 16 Il processo accusatorio era giuridicamente regolato da una serie di leggi speciali, riguardanti le varie giurisdizioni popolari istitute per le diverse categorie de reati, legge informate al comune principio, per il quale la riparazione del torto recato alla collettivit doveva promuoversi da um volontario rappresentante della colletivit medesima (MANZINI, Vicenzo. Trattato di diritto processuale penale italiano, p. 6). 17 Esses cidados, no menores de 30 (trinta) anos, representavam o povo soberano (ROMEIRO, Jorge Alberto. O processo ...). 18 MOMMSEN, Theodor. Derecho penal romano, p. 271. 19 (...) el pretor de las quaestiones no poda rechazar sin fundamento jurdico las acciones penales que se entablaran ante l (...) pues una vez que se cumplieran los requisitos legales, estaba obligado a admitir tales acciones, cuando no por declaracin expressa del edicto, que es probablemente lo que acontecia con respecto a las mentadas acciones penales, a los menos por razn del mero ejercicio de su cargo (MOMMSEN, Theodor. Idem, p. 229).
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2.4 Procedimento
O procedimento das quaestiones perpetuae pode ser caracterizado como acusatrio puro, pois consubstanciava autntico actum trium personarum pblico, contraditrio e oral. A ao penal era de iniciativa popular: o seu ato inaugural era a accusatio, que podia ser formulada por qualquer cidado romano 20 , por meio da apresentao da postulatio, que descrevia o fato imputado ao acusado e a norma por ele violada. Uma vez apresentada a sobredita postulatio, tal acusador popular assumia todos os direitos e deveres inerentes qualidade de parte em sentido processual, notadamente o dever de comparecer pessoalmente a todos os atos processuais. Vigorava o princpio da indisponibilidade da ao penal. O acusador atuava em nome da coletividade e no da vtima 21 , exercendo uma espcie de mnus pblico 22 , e se encontrava sujeito aos seguintes crimes: (i) calumnia, que era o ajuizamento de ao penal com conhecimento do fato de ser ela infundada; (ii) tergiversatio, caracterizada pelo abandono injustificado da ao penal aps seu ajuizamento; (iii) praevaricatio, consubstanciada na conduo da acusao com vistas a beneficiar o acusado sabidamente culpado 23 . Por outro lado, a funo de acusador tinha alguns atrativos: (i) servia ao aprimoramento da prtica do Direito e da oratria; (ii) dava visibilidade popular queles cidados que acalentavam pretenses polticas; (iii) permitia a assuno do cargo pblico porventura ocupado pelo acusado condenado; (iv) propiciava prmios de cariz econmico, na hiptese de aplicao
20 Exceto aqueles considerados no-cidados ou incapazes, como as mulheres (que s podiam acusar caso a vtima fosse seu parente prximo), os filiifamilias (que precisavam de autorizao dos seus representantes legais, os paterfamilias), os escravos libertos e os considerados indignos (TUCCI, Rogrio Lauria. Lineamentos ..., p. 151). Joo Mendes de Almeida Jnior ressalta, porm, que se esses excetuados fossem vtimas no estavam excludos do direito de acusar (O processo ..., p. 28). Segundo MOMMSEN, o escravo liberto s podia acusar caso tivesse filho ou um patrimnio de 30.000 (trinta mil) sestrcios; mesmo nesse caso, ele no podia acusar o seu patro, a no ser de adultrio, injria grave ou crime de lesa-majestade. Alm disso, quem era acusado no podia acusar; quem j havia ajuizado duas acusaes no podia ajuizar uma terceira, a no ser que o crime tivesse vitimado o prprio acusador ou seus parentes (MOMMSEN, Theodor. Derecho ..., p. 243-244). 21 Em regra, o autor da acusao no representava interesses particulares (GIORDANI, Mrio Curtis. Direito..., p. 103). Qualquer cidado, de boa reputao, poderia intentar acusao, como representante da comunidade (SANTALUCIA, Bernardo. Diritto ..., p. 165). 22 Ravvisata unoffesa di carattere sociale nel reato anzi, dapprima, soltanto in certi reati, con conseguente coesistenza di delitti privati e di delitti pubblici il cittadino si trovava legittimato a proporre laccusa quale membro della compagine sociale offesa (CONSO, Giovanni. Accusa..., p. 7-8). 23 MOMMSEN, Theodor. Derecho..., p. 310.
7 de pena pecuniria grave ao acusado ou confisco do seu patrimnio 24 . O acusador apresentava ento proposta de acusao (postulatio, petitio). Se vrios os acusadores, o presidente escolhia o mais idneo ou interessado, e os demais permaneciam como subscriptores. Deferido o pedido de acusao, o acusador prestava juramento de sustentar a acusao at a sentena. Uma vez adquirida a condio de acusado, o nome deste ltimo era publicado em uma tbua (esse in reatu), espcie de rol dos culpados, o que gerava uma srie de gravames temporrios para ele: obrigao de comparecer perante a quaestio com cabelo e barba incultos, destituio da insgnia de classe e proibio de praticar atos da vida civil (v.g. alienar e doar bens, manumitir escravos etc.) 25 . A regra era a liberdade do acusado durante o processo, havendo priso provisria somente em situaes graves. Nesta ltima hiptese, cabia a liberdade caso pessoas idneas abonassem a conduta do acusado. Segundo Theodor Mommsen, no procedimento das quaestiones perpetuae no era azado ao acusador particular e tampouco ao pretor submeter coercitivamente o acusado ao interrogatrio 26 . O acusado era citado para interrogatrio e, caso no comparecesse seus bens eram confiscados aps um ano (adnotatio). Caso o acusado confessasse, era condenado e o procedimento se encerrava. Se no houvesse confisso, o pretor designava data para julgamento (diei dictio), com tempo hbil para a colheita de provas por parte do acusador particular, prazo esse que normalmente era de 30 (trinta) dias. Como explica Hlio Tornaghi, para a realizao dessas investigaes o pretor concedia ao acusador particular um quase- mandato, consubstanciado na delegao dos poderes de investigar 27 . O acusado tinha direito a fiscalizar essas investigaes, seja pessoalmente seja atravs de prepostos (comites).
24 GOMES FILHO, Antonio Magalhes. Acusao popular, p. 12. 25 BRASIELLO, Ugo. verbete Processo penale (diritto romano). 26 En el procedimiento acusatorio, al actor, no obstante considerrsele como cuasi-magistrado, no se le reconoca semejante derecho, y tampoco el magistrado que dirigia el asunto poda intervenir en las discusiones, preguntando al acusado; as como en el procedimiento privado no se permita la indagatoria del demandado, tampoco se permita en el procedimiento acusatorio (MOMMSEN, Theodor. Derecho ..., p. 264). 27 TORNAGHI, Hlio. Instituies de processo penal, v. 2, p. 4.
8 No dia do julgamento, era feita a seleo dos jurados na forma j examinada supra, aps a qual havia os debates entre os prprios interessados (acusador popular e acusado) ou, com o passar do tempo, por oradores por eles escolhidos (oratores ou adocati). Falava primeiro o acusador e depois o acusado, admitindo-se tanto a rplica (duplicatio) quanto a comperendinatio, instituda pela Lex Servilia de 100 a.C., que ensejava um adiamento dos debates, a fim de que se fizesse uma instruo probatria suplementar 28 . O patronus, ou procurador do agente, apareceu no processo penal e no processo civil de maneira idntica. Essa assistncia dependia da livre escolha e vontade da parte. Ao fim da Repblica, a defesa desenvolveu-se desmesuradamente, acabando por intervirem diversos defensores em favor de um mesmo acusado. Os patronos manifestavam-se no perodo das provas, por meio de duelos verbais 29 , utilizando-se da retrica e se valendo mais dos ideais de eqidade e justia do que da aplicao rigorosa do direito posto 30 . Alm dos patronos, intervinham no processo os avocati que, sem tomar participao nas sustentaes ou discusso do assunto levado a julgamento, ajudavam a defesa por meio de conselhos, principalmente sobre questes de direito 31 . As provas admitidas eram de trs espcies: (i) per tabulas (documentais): a lei facultava ao acusador popular ingressar na morada do acusado, de terceiros ou em reparties pblicas, para consultar e, eventualmente, apreender documentos; (ii) per testes (testemunhais): as testemunhas prestavam juramento de dizer a verdade e eram inquiridas direta e sucessivamente pela parte que as havia arrolado e pela outra (altercatio, procedimento esse que muito se assemelha cross- examination do processo penal anglo-saxnico hodierno); (iii) per quaestiones: todos os demais meios de prova, notadamente a confisso do acusado, que caracterizava prova plena para a condenao.
28 TUCCI, Rogrio Lauria. Lineamentos ..., p. 153, nota 267. 29 MADEIRA, Hlcio Maciel Frana. Histria da advocacia: Origens da profisso de advogado no direito romano, p. 33. Ccero o maior representante desse perodo, conhecido como o sculo do patronato judicirio. 30 MADEIRA, Hlcio Maciel Frana. Idem, p. 34. 31 MOMMSEN, Derecho ..., p. 246-247.
9 Era extremamente raro o uso da tortura, a qual s foi formalmente introduzida na fase seguinte do processo penal romano, a da cognio extraordinria 32 . Aps os debates e a apresentao das provas, os jurados votavam sem qualquer interferncia do pretor, no incio oralmente e com o passar do tempo apresentando placas com as letras A (absolvo), C (condemno) ou NL (non liquet). Esta ltima ensejava o alargamento da instruo processual (amplius cognoscendum). A deciso era tomada por maioria de votos 33 e o pretor apenas proclamava o resultado. Se houvesse empate, o acusado era favorecido, por meio da absolvio 34 . Em caso de condenao, a pena j vinha fixada na lei definidora do crimen e instituidora daquela quaestio. Normalmente a pena era de morte, de natureza pecuniria ou de exlio, com perda da cidadania romana 35 . Ainda no havia o conceito de dolo, o qual s surgiu na fase subseqente (da extraordinaria cognitio). Assim, a existncia do elemento subjetivo era presumida a partir da conduta do acusado. Aps a condenao havia ainda fase procedimental de natureza cvel, destinada a precisar a soma que deveria ser paga pelo acusado a ttulo de indenizao (litis aestimatio) 36 . Como a deciso dos jurados refletia a soberania do povo romano, em regra no havia a instituio de duplo grau de jurisdio. A exceo a essa regra era o instituto da restitutio in integrum, que era um decreto proferido por magistrado superior (quaesitor) que anulava o julgamento proferido pela quaestio em casos excepcionais, como os de acusao caluniosa (calumnia), corrupo de jurados (corruptio), incompetncia da quaestio ou de vulnerao das garantias do acusado 37 . possvel que a restitutio em apreo ensejasse novo julgamento por parte da quaestio, desde que substitudas as pessoas que tivessem contribudo para a injustia da deciso (v.g. acusador ou jurados) 38 .
32 GOMES FILHO, Antonio Magalhes. Acusao ..., p. 13. 33 SANTALUCIA, Bernardo. Diritto ..., p. 119. 34 Segundo o art. 664, pargrafo nico, do CPP brasileiro, o empate no julgamento de ordem de habeas corpus beneficia o paciente. 35 SANTALUCIA, Bernardo. Diritto ..., p. 181-183. 36 SANTALUCIA, Bernardo. Idem, p. 120 e 179. 37 TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Contribuio ao estudo histrico do direito processual penal, p. 13. 38 TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Idem, p. 16.
10 Jos Rogrio Cruz e Tucci aponta a inegvel importncia desse instituto da restitutio in integrum, eis que ele caracterizava importante garantia do acusado, fundada na eqidade e em motivos de ordem poltica, servindo como contrapeso aos critrios elitistas de escolha dos jurados integrantes da quaestio, que inexoravelmente recaa sobre senadores e cavaleiros 39 .
2.5 Decadncia das quaestiones perpetuae
Com o advento do Imprio, o procedimento acusatrio entrou em decadncia por uma srie de motivos. A uma, por incutir no acusado o desejo de vingana contra o acusador popular, e, em ambos, o nimo litigioso. A indisponibilidade da ao penal, por outro lado, prejudicava os afazeres do acusador popular, tornando tal mnus excessivamente oneroso. A duas, a influncia do Cristianismo no processo penal romano acarretou a necessidade de adoo da inquisitividade no processo. A trs, o fato de leis que restringiam cada vez mais o direito de acusar (v.g. proibio de intentar duas acusaes simultneas; impedimento do testemunho de parentes e afins; deteno preventiva do acusador temerrio etc.) terem reduzido drasticamente a quantidade de acusaes populares, forando o Imperador e o Senado a designarem acusadores; isso abriu caminho para a acusao ex officio por parte dos procnsules e outras autoridades. Por fim, o fato de o Senado ter ampliado a sua jurisdio, chamando para si a atribuio de julgar uma srie de crimes, tais como os de lesa-majestade, concusso e at mesmo crimes como o adultrio e o envenenamento 40 . Assim, passaram a ser punidos, via extraordinaria cognitio, (i) os fatos merecedores de punio que no eram assim considerados por lei; (ii) os ilcitos penais cometidos por escravos; (iii) os crimes cuja pena, capital ou patrimonial, fosse muito severa ou muito tnue; (iv) os delitos cujas circunstncias atenuantes ou agravantes no podiam ser valoradas, em razo do teor das leges publicae; (v) os fatos ocorridos nas provncias onde no se podia instituir um ordo iudiciorum assemelhado ao de
39 TUCCI, Jos Rogrio. Idem, ibidem. 40 ALMEIDA JNIOR, Joo Mendes de. Processo ..., p. 37-39.
11 Roma, ou no qual toda a jurisdio fosse atribuda a funcionrios imperiais 41 . Ademais disso, a competncia das quaestiones passou a ser progressivamente limitada, tanto territorialmente, pois foi estabelecido que todos os crimes praticados fora de Roma deviam ser julgados pelos rgos do Imperador, quanto em razo da matria, porquanto a interpretao das leis instituidoras das quaestiones passou a ser feita cada vez mais restritivamente 42 .
2.6 Influncia no processo penal brasileiro
Como bem se v, localiza-se nas quaestiones perpetuae o embrio da instituio do Tribunal do Jri brasileiro 43 . At hoje, no procedimento do sobredito Tribunal, adota-se procedimento extremamente similar quele das quaestiones perpetuae, notadamente quanto : (i) forma de recrutamento dos jurados: cidados de notria idoneidade, cujos nomes constam de lista anualmente confeccionada pelo juiz- presidente (CPP, arts. 436, 439, 440 e 441); (ii) denominao dos componentes do rgo judicante popular: jurados (CPP, art. 433); (iii) formao do rgo judicante mediante sorteio (CPP, arts. 427, 428 e 429); (iv) recusa de certo nmero de sorteados, sem necessidade de motivao (CPP, art. 459, 2.); (v) prestao de juramento por parte dos jurados (CPP, art. 464); (vi) metodologia de votao, mediante repostas simples e objetivas: sim ou no (CPP, art. 485); (vii) deciso tomada por maioria de votos (CPP, art. 488); (viii) soberania dos veredictos (CR/88, art. 5., XXXVIII, c); (ix) atribuio do juiz-presidente (CPP, art. 497); (x) indispensabilidade de comparecimento do acusado para realizao do julgamento (CPP, art. 449) 44 .
3. PROCESSO PENAL CANNICO INQUISITIVO
No papado de Inocncio III (1198-1216), iniciam-se as primeiras investidas contra os hereges. Para fazer frente a movimentos contra o clero, que enfrentava perodo de vida considerado desregrado, e a escndalos que contestavam os
41 TUCCI, Rogrio Lauria. Lineamentos ...., p. 161-162. 42 TUCCI, Rogrio Lauria. Idem, p. 162. 43 TUCCI, Rogrio Lauria. Tribunal do jri: origem, evoluo, caractersticas e perspectivas, p. 23. 44 Diante da nova redao dada ao art. 367, do CPP, pela Lei 9.271/96, Rogrio Lauria Tucci entende que o processo tem seguimento na hiptese de o acusado comparecer, mas, por qualquer motivo, se ausentar do processo (Tribunal ..., p. 24).
12 textos oficiais da Igreja, a Igreja conseguiu que o Estado estabelecesse como um de seus deveres primordiais permitir a inquisio, para manter a pureza da f e ser implacvel contra aqueles que pudessem amea-la ou alter-la. Surge ento no papado de Inocncio III um modo de persecuo mais enrgico, visando ao combate dos herticos: o processo inquisitivo. Depois de se dirigir a combater movimentos herticos, a inquisio passou por perodo decadente, muito porque desacreditada por seus excessos e pela submisso aos prncipes locais. Mas voltou a ter relevncia extraordinria principalmente na Pennsula Ibrica, como brao do Estado monrquico centralizado e absoluto 45 . Por isso, a primeira inquisio cannica, a medieval, no idntica, do ponto de vista de matria e tambm dos interesses polticos, segunda inquisio, chamada inquisio moderna, especialmente a ibrica e a romana do sculo XVI 46 . Em 1542, o Papa Paulo III estatuiu a Sagrada Congregao da Inquisio Romana e Universal, ou Santo Ofcio, como corte suprema de resoluo de todas as questes ligadas f e moral. A luta contra mouros e judeus deu fora jurisdio eclesistica 47 . No sculo XVI, o Conclio de Trento tornou as formalidades da inquisitio ainda mais sumrias.
3.1 Espcies de procedimento
Quanto inquisio medieval, como j dito, foi Inocncio III quem declarou que o procedimento criminal poderia ser iniciado de trs formas: per accusationem, per denuntiationem e per inquisitionem 48 . No obstante as trs formas fossem teoricamente possveis, na prtica esta ltima foi a que se propagou. A inquisitio (que significa pesquisa que se cumpre por escrito e secretamente, ao trmino da qual se prolata a sentena) inicialmente vigorou apenas para a heresia, a usura e a simonia 49 .
45 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito na histria: lies introdutrias, p. 108. 46 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Idem, p. 106. Manzini salienta que a inquisio ordinria, que at ento se praticava na Itlia e em outros Estados, no pode ser confundida com a inquisio espanhola, que teve um rigor exorbitante e serviu mais ao Rei do que preservao da f catlica (Tratatto ..., v. 1, p. 27). 47 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo ... p. 84. 48 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo ..., p. 76. 49 VLEZ MARICONDE, Alfredo. El proceso penal inquisitivo.
13 O principal passo dessa involuo foi o abandono do princpio bsico de que no h processo sem uma acusao formal. Em um primeiro momento excepcionalmente, depois em relao a todos os casos, se autoriza a denncia annima como ato idneo a iniciar a persecuo penal. Essa denncia mais propriamente uma delao, porquanto o nome do informante sempre secreto, como forma de no exp-lo vingana do denunciado 50 . A partir de ento, o que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, dotados de iguais poderes, torna-se uma luta desigual entre inquisidor e denunciado, pois este ltimo perde a sua condio de sujeito processual e se converte em objeto da persecuo penal 51 . O Conclio de Latro, de 1215, fixou o limite da jurisdio espiritual, estabelecendo os regramentos do procedimento inquisitivo, no cnon Qualiter, inserido no L. V, T. I, das Decretais. Jos Reinaldo de Lima Lopes lembra que a vida medieval se dava dentro de corporaes definidas e que, por isso, o cristo deveria viver como tal; assim, a heresia 52 no era apenas um problema espiritual, mas tambm poltico, podendo ser considerado uma subverso contra as autoridades religiosas e tambm contra o prprio brao secular, ou seja, o Rei, os prncipes, que eram senhores cristos 53 . A inquisitio ex officio tinha lugar quando nullo accusante, vel judicialiter nullo denuntiante 54 . Devia ser precedida de insinuao clamosa, isto , da fama 55 e do clamor pblico. Alm dessa inquisio especial, instituda quando, com base em procura antecedente ou pela descoberta em flagrante,
50 El nuevo sistema se preocupa as, exclusivamente, de castigar el pecado a causa de una concepcin unilateral del proceso; basado en el inters superior de defender la f, se fomenta la indignidad y la cobardia. Desaparece la garanta que ofrece una acusacin formal(VLEZ MARICONDE, Alfredo. Idem). 51 Si inaugura, cos, nella storia della civilit giuridica, alimentata dal sospetto, la nuova era del processo. La scena perde il su antico spettacolo animato da contendenti capaci di fronteggiarsi con le armi della dialettica. Al suo posto, rinserrato nella tetraggine di cupe strutture, subentra lartificio di un gioco manipolato; una tecnica che risponde ormai a criteri di inquisizione distante dagli antichi principi accusatori ed alla inziativa di parti private capaci di muovere precise contestazioni perch agiscono per la tutela di un ben individuato interesse (SORRENTINO, Tomasso. Storia del processo penale: Dallordalia allinquizione, p. 171-172). 52 Entendida aqui em sentido amplo, pois h quem aparte a heresia, enquanto doutrina antagnica aos preceitos da Igreja, da apostasia, que seria a renegao da f (CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito e inquisio: o processo funcional do Tribunal do Santo Ofcio, p. 49). 53 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito ..., p. 107. 54 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo ..., p. 82. 55 ALESSI, Giorgia. Processo penale (diritto intermedio), p. 372. O boato era suficiente para o incio do procedimento inquisitivo: ainda em relao s denncias, interessante observar que ouvir dizer, saber, ou seja, tomar conhecimento por outrem acerca de um comportamento inadequado praticado por determinada(s) pessoa(s) j bastava para a instaurao de um processo (CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito ..., p. 17 e 37).
14 uma determinada pessoa era processada 56 , havia ainda a inquisio geral e a inquisio mista. A inquisio geral ocorria para verificao genrica das infraes praticadas em uma determinada provncia 57 . E a inquisio mista tinha lugar quando o juiz, encontrando um cadver, inquiria sobre a autoria do fato, ou inquiria de modo geral sobre determinada pessoa, a fim de apurar se praticara algum crime, nos casos, por exemplo, em que ela se encontrava prestes a tomar posse de cargo ou a deix-lo 58 . Segundo Girolamo Bellavista, havia, ainda, um procedimento inquisitivo sumrio, que era aplicvel aos casos em que aps a inquisio geral a culpabilidade do acusado j estava suficientemente comprovada, dispensando-se o interrogatrio do acusado e a sua defesa. Tal processo se aplicava igualmente aos crimes de lesa-majestade, pela sua especial gravidade 59 , pois a heresia era, poca, tida como crime de lesa-majestade divina (crimen laesa majestatis divinae). O soberano, ou a Igreja, eram havidos como vtima 60 . Nos casos de priso em flagrante, o procedimento era ainda mais sumrio e clere, intitulando-se ex abrupto, no havendo sequer necessidade de se interrogar o acusado, que era condenado ex informata conscientia 61 .
3.2 Competncia e composio do tribunal inquisidor
Bonifcio VIII (1235-1303) deu maior extenso ao processo eclesistico, mas ainda assim o limitou aos crimes de heresia. Foi Clemente V (1264-1314) quem estendeu a inquisitio aos crimes comuns, tais como a usura e a simonia, prescrevendo inclusive o modo sumrio para o processamento de tais delitos. Joo XXII ampliou ainda mais o uso da inquisitio, acabando, por fim, o procedimento inquisitivo por ser adotado de forma geral pela jurisdio eclesistica 62 . Havia dificuldade na distino entre crimes eclesisticos e crimes comuns. A Igreja, a princpio, cuidava do
56 MANZINI, Vincenzo. Tratatto ..., p. 43. 57 Todo bispo era um inquisidor ordinrio em sua diocese: visitava as comunidades e localidades e perguntava sobre o que havia ocorrido de grave na sua ausncia, realizando o que se chamava inquisitio generalis. Descoberta alguma coisa, passava a uma inquisitio specialis, na qual se determinava quem tinha feito o que (LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito ..., p. 106). 58 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo ..., p. 81. 59 BELLAVISTA, Girolamo. Lezioni di diritto processuale penale, p. 16. 60 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito ..., p. 106. 61 BELLAVISTA, Girolamo. Lezioni ..., p. 16. 62 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes O processo ..., p. 84.
15 julgamento (i) de todos os delitos imputados aos clrigos; (ii) dos delitos que direta ou indiretamente poderiam afetar a f religiosa. Nos casos de crimes graves, o clrigo, depois de apresentado ao seu prelado e degredado, deveria ser entregue justia secular. Alm da condio do acusado como critrio para fixao da competncia, as causas puramente espirituais e os delitos eclesisticos tambm se sujeitavam jurisdio da Igreja: crimes de heresia, blasfmia, sacrilgio, simonia, usura, perjrio, rapto, concubinato, adultrio, sortilgio, incesto, bigamia e tabolagem 63 , eram todos de competncia da justia eclesistica 64 . No incio, a represso da heresia foi confiada aos bispos. Depois de 1230, as inquisies passaram a ser feitas por comissrios especialmente nomeados pelo Papa para tal fim 65 , conforme determinado por Gregrio IX na bula Excommunicabus, que prescrevia que haveria no tribunal inquisitorial dois juzes locais nomeados pelo Papa. Gregrio IX confiou as tarefas inquisitoriais aos mendicantes (em especial aos dominicanos) 66 , pois tais ordens eram diretamente vinculadas a Roma e os dominicanos haviam nascido do propsito de Domingos de Gusmo de combater o erro pela verdade e pela pobreza de vida 67 . Segundo o Manual dos Inquisidores de Eymerich, de 1376 68 , o inquisidor deveria ser homem honesto, prudente, firme, virtuoso e ter erudio catlica. Ao ser nomeado, deveria contar ao menos 40 anos de idade. Sua autoridade lhe era conferida pelo Papa, por meio de uma Bula, ou ento por delegao de poderes do Papa a um cardeal representante ou a superiores e padres provinciais dominicanos, e destes ao inquisidor. Competia ao inquisidor a escolha e a nomeao de um comissrio, a quem poderia delegar seus poderes de forma a auxili-lo em suas atividades 69 . O inquisidor podia processar religiosos e padres, bem como qualquer leigo. Poderiam ser processados os blasfemadores, lanadores da sorte, necromantes, excomungados, apstatas,
63 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo ..., p. 91. 64 Os crimes cujo processamento era da competncia do Santo Ofcio poderiam ser de duas ordens: crimes contra a ordem, considerados aqueles que ofendiam os dogmas religiosos; e crimes contra a moral imposta pela Igreja, como desobedincia s regras do casamento e desvios sexuais (CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito ..., p. 19). 65 ESMEIN, A. Histoire de la procdure criminelle en France et spcialemente de la procdure inquisitoire depuis le XII e sicle jusqu nos jours, p. 77. 66 ALESSI, Giorgia. Processo penale (diritto intermedio), p. 372. 67 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito ..., p. 107. 68 Depois revisto por Francisco de La Pea em 1578. 69 EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores, p. 185-189.
16 cismticos, nefitos que retornassem s heresias anteriores, judeus, infiis, invocadores do Diabo. Ademais deles, todos os suspeitos de heresia, difamados de heresia, hereges e seus seguidores, aqueles que lhes dava guarida ou ajuda e aqueles que dificultavam o trabalho do Santo Ofcio 70 poderiam ser processados. A competncia do Santo Ofcio escapava jurisdio ordinria do bispo local, sendo conduzida por legados do Papa 71 . Alm dos inquisidores, compunham o Tribunal do Santo Ofcio, ente outros, os notrios responsveis por reduzir a escrito todo o procedimento, anotando as perguntas e as respostas das audincias os meirinhos responsveis pelo bom funcionamento dos trabalhos inquisitoriais e o alcaide, que zelava pelos crceres da Inquisio 72 .
3.3 Procedimento inquisitivo
3.3.1 Incio do procedimento
Para a inquisio especial, era necessrio que houvesse infamatio contra aquele que seria processado: inquisitionem debee clamosa insinuatio praevenire. Inocncio III fixou solenemente os caracteres do mecanismo inquisitrio. Ao prprio juiz era permitido, ainda que no houvesse acusador, iniciar processo contra a pessoa difamada e tambm ouvir testemunhas e pronunciar condenao. Para tanto, o juiz comeava por fazer um inqurito secreto, inquisitio famae, que abarcava investigao racional e ordenada do delito sujeito sua competncia 73 . To logo soubesse de delito ocorrido nos limites de sua competncia, o inquisidor iniciava a informao secreta, ouvindo testemunhas. Havia dever imposto a todos de funcionarem como denunciantes, entregando hereges e blasfemos, sob pena de excomunho. Todos os catlicos estavam obrigados, sob pena de
70 EYMERICH, Nicolau. Idem, p. 200. 71 Quando chegava o visitador, ou inquisidor, vinha com um mandado especial de Roma e na sua presena cessava a jurisdio ordinria do bispo. Mas no cessava totalmente: apenas para aquelas matrias consideradas sujeitas inquisio, muito especificamente a heresia, e durante a presena do inquisidor papal. Em geral, o inquisidor no teria jurisdio sobre no-cristos (judeus, mouros, pagos). Dentro do quadro medieval, a inquisio rompia com os princpios da autonomia local e corporativa. Por isso a inquisio serviu de instrumento de centralizao monrquica na Igreja e, no sculo XVI, aos Estados nacionais da Pennsula Ibrica (LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito ..., p. 106). 72 CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito ..., p. 22-27. 73 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas, p. 71-72.
17 heresia e excomunho, a denunciar um pecado 74 , ainda quando o pecador fosse irmo, esposa, pai ou filho do denunciante. A ao penal era imprescritvel e nem os mortos estavam livres dela. Quando o delito cometido por determinada pessoa era considerado leve e se ela fosse processada apenas depois de morta, seus ossos eram desenterrados para deix-los sem sepultura; se o delito era grave, os restos eram queimados solenemente e os herdeiros do condenado sofriam a pena de confisco. At os menores eram submetidos aos rigores do Santo Ofcio. Os Conclios de Tolosa, Albi e Bzier, por exemplo, fixaram a idade mnima para ser processado pela Inquisio: catorze anos para os meninos e doze anos para as meninas.
3.3.2 Prova testemunhal
O Canon Quoniam Contra, inserido no L. II, T. XIX, das Decretais, estabelecia a adoo exclusiva da forma escrita 75 . Por isso, logo depois de ouvir as testemunhas, o inquisidor autenticava por escrito essas declaraes. Em regra, havia um sistema de valorao legal das provas, pois as leis disciplinavam minuciosamente e em abstrato os requisitos para a condenao, classificando as provas em plenas ou semiplenas 76 . Inocncio III, no Cnon Cum Causam das Decretais, Cap. 37, determinou as cautelas para exame das testemunhas e recomendava que no houvesse excesso de testemunhas, fixando ento o nmero mximo de 40 (quarenta). No Cnon Veniens ad Apostolicum, determinou que os depoimentos do sumrio no fizessem f no plenrio, se o acusado os contestasse e se no fossem reiterados. Tal Cnon fixou, ainda, que o acusado podia oferecer no plenrio fase procedimental subseqente testemunhas diferentes daquelas inquiridas no sumrio 77 . Essa primeira fase (instrutria ou informativa) era confiada ao magistrado inquisidor, que iniciava o processo, desenvolvia a investigao e pronunciava a sentena. Fazia tudo isso em segredo, caracterstica marcante desse procedimento, com base na denncia, na fama, e em elementos indicirios
74 PALLARES, Eduardo. El procedimiento inquisitorial, p. 33. 75 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo ..., p. 80. 76 MAIER, Julio. Derecho procesal penal, t. 1, p. 298. 77 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo cit..., p. 79. [m1] Comentrio: A fonte constante na nota, no confere c/a bibliografia. Favor verificar.
18 colhidos pelo oficial menor, acumulando ento elementos de prova contra o suspeito. O acusado, contra quem declaravam algumas pessoas que ele desconhecia e com quem, por tal razo, no poderia ser acareado, era considerado impenitente e digno de morrer na fogueira. Tambm pelo fato de no confessar, poderia ter o mesmo destino. As testemunhas prestavam juramento de dizer a verdade. A recusa em faz-lo poderia ser interpretada como ajuda ao herege e, assim, constitua, por si s, indcio de heresia. Ainda, a eventual negativa em depor era vencida com tortura, para declarao da verdade. Se as testemunhas faltassem verdade, podiam ser punidas por falso testemunho 78 . As testemunhas podiam, inclusive, ser interrogadas diversas vezes. Os hereges sofriam capis diminutio maxima e estavam sujeitos a incontveis incapacidades e proibies. Segundo o direito comum, estas pessoas no mereceriam crdito algum, mas para a inquisio, tratando-se de processos para apurao de delitos de heresia e blasfmias, eram consideradas boas testemunhas. Tambm menores de idade podiam ser testemunhas 79 . Destarte, podiam prestar testemunho vlido os excomungados e os cmplices do acusado, os perjuros, os difamados, criminosos e at mesmo os servos contra o seu prprio senhor. O testemunho do inimigo mortal do acusado, todavia, devia ser recusado 80 . Curioso notar que os hereges eram considerados testemunhas idneas para incriminar outro herege mas no para exculp-lo , assim como os parentes do acusado de heresia 81 . O Santo Ofcio usou e abusou de espies 82 . Eram numerosos e enviados s prises para que lograssem captar a confiana dos investigados e obter deles informaes relevantes. Hereges convertidos serviam freqentemente para esta tarefa. Tambm se ocultavam testemunhas nas prises, de forma a que elas escutassem a confisso que os acusados faziam aos espies e, assim, se pudesse obter prova plena para a condenao. Bonifcio VIII, em 1298, estabeleceu definitivamente o processo secreto e sumrio, dando maior desenvolvimento aos
78 EYMERICH, Nicolau. Manual ..., p. 221-222. 79 PALLARES, Eduardo. El procedimiento ..., p. 27. 80 KRAMER, Henrich e SPRENGER, James. Malleus Maleficarum, p. 424. 81 EYMERICH, Nicolau. Manual ..., p. 214-219. 82 PALLARES, Eduardo. El procedimiento ... p. 30.
19 juzos e tribunais eclesisticos e tambm ao prprio processo inquisitivo. No princpio, os bispos serviam-se da inquisitio nas pesquisas dirigidas ao clero, nos casos que pediam segredo de instruo, publicando, porm, depois, os nomes e os depoimentos das testemunhas. Assim, os nomes das testemunhas deveriam ser tornados pblicos, salvo, como estabeleceu Bonifcio VIII, no caso de grave perigo para as testemunhas em razo de tal divulgao 83 . Com a transferncia da competncia dos bispos para os comissrios especiais, houve tambm alteraes no procedimento: os depoimentos das testemunhas continuaram a ser comunicados ao acusado, mas sem o fornecimento dos nomes dos depoentes, por se achar tal forma procedimental mais cmoda e rpida 84 . Assim, com o desenvolvimento do procedimento inquisitivo, nunca se revelavam os nomes das testemunhas 85 , as quais, por isso, no eram acareadas, no havendo, portanto, maneira de se demonstrar diretamente a falsidade de suas declaraes. Justificava-se tal restrio pelo perigo de as testemunhas serem mortas ou prejudicadas de alguma outra maneira pelos acusados ou seus parentes 86 . Para a condenao deveriam ser obtidos os depoimentos, colhidos sob juramento, uniformes e concordes, de pelo menos duas testemunhas, resguardadas pelo anonimato. Essas duas testemunhas diretas e concordes que no eram contraditadas porque annimas podiam, no pice da hierarquia das provas legais, constituir prova plena da culpa 87 , permitindo a condenao do acusado. O Papa era a nica pessoa cujo depoimento era considerado idneo, por si s, para justificar a condenao. No nvel mais baixo de suficincia, o indcio inidneo tambm era considerado prova para a condenao. Podia ser considerada como prova do crime de heresia a manifestao do acusado, por qualquer sinal ou palavra, no sentido de que ele tinha confiana em hereges ou os considerava bons homens.
3.3.3 Tortura
83 KRAMER, Henrich e SPRENGER, James. Malleus ..., p. 417. 84 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo ..., p. 83. 85 EYMERICH, Nicolau. Manual ..., p. 222-223. 86 PALLARES, Eduardo. El procedimiento , p. 28. 87 ALESSI, Giorgia. Processo ..., p. 376.
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O risco de insuficincia de prova para a condenao, todavia, foi sensivelmente reduzido com o uso da tortura, largamente difundida a partir da segunda metade do sculo XIII para obter confisso do acusado ou das testemunhas. O Papa Clemente V, em 1306, reconheceu e censurou esta irregularidade 88 , mas a prtica se estendeu, at de forma mais brutal, pelos sculos seguintes. Por isso, Joo Mendes de Almeida Jr. afirma que a inquisitio, conforme era indicada por Inocncio III, no teria a extenso e no produziria os abusos depois ocorridos, se os Papas posteriores e os Reis, na luta contra os mouros, judeus e outros hereges, se contivessem nos limites dos cnones daquele grande pontfice 89 . Foi Inocncio IV, em 1252, quem permitiu o seu uso (tormento) para obteno da confisso do suspeito, que era presumido culpado. A tortura passou a ser um ato formal do processo e podia ser aplicada quando houvesse indcios de autoria. Conservava algo de irracional, pois se acreditava que a pessoa justa seria capaz de resistir tortura sem confessar 90 . A tortura era objeto de especial regulamentao: havia limitaes quanto a (i) quem podia ser torturado; (ii) quando podia ser aplicada; (iii) como podia ser praticada. Inicialmente, pessoas que detinham certo status social no podiam ser torturadas (v.g. pessoas consideradas honestas, de boa fama e nobres). Eram exigidas formas rgidas no momento de se praticar a tortura: era necessria a presena tanto do inquisidor quanto de outras pessoas que pudessem atestar a legitimidade do ato; proibiam-se certos tipos de tormento (v.g. fogo); prescrevia-se a necessidade de preservao da vida do acusado, que no devia correr risco. Antes de ser torturado, o acusado era examinado por um mdico que aferia qual a intensidade do tormento que o examinando conseguiria suportar. O acusado era obrigado a assinar um documento declarando que caso ele ficasse com seqelas por fora da tortura, a culpa era dele prprio por ter-se
88 PALLARES, Eduardo. El procedimiento ..., p. 25. 89 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo ..., p. 83. 90 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito ..., p. 107.
21 mostrado obstinado na ocultao de seus atos e no do inquisidor 91 . Um notrio registrava em ata todas as perguntas e respostas 92 . A tortura devia cessar imediatamente quando o acusado manifestasse desejo de confessar; se o acusado confessava durante os tormentos, para que a confisso fosse considerada vlida devia ser confirmada no dia seguinte, sem tortura 93 . A repetio da tortura dependia de recomendao do inquisidor que a havia originalmente determinado e da autorizao dos demais membros do Tribunal. Se o acusado fosse enfermo ou idoso, o suplcio era substitudo pelo seu simulacro, com a preparao do tormento e a colocao da pessoa em frente aos instrumentos de tortura 94 . Curioso notar que quando o sujeito resistia tortura, caso viesse a ser condenado por fora de outras provas, fazia jus a uma pena mais branda (multa ou corporal de pequena severidade) 95 .
3.3.4 Fase de julgamento
Exaurida essa primeira fase do procedimento, dava-se incio fase do plenrio 96 . O investigado era ento citado e deveria estar presente 97 . O fato de o acusado no comparecer ou de se ausentar do lugar do juzo era valorado como confisso de culpa e constitua base suficiente no s para process-lo como tambm para conden-lo, o que equivalia a sentenciar sem ouvir o acusado 98 . No caso de comparecimento, dava-se cincia ao acusado sobre os fatos objeto da inquisitio. O acusado prestava ento juramento de denunciar todos os hereges dele conhecidos e de submeter-se penitncia que lhe fosse imposta. Assim, os acusados estavam obrigados no s a declarar as prprias culpas, mas tambm as de outras pessoas.
91 NOVINSKY, Anita Weingort. A inquisio, p. 61. 92 MAIER, Julio. Derecho ..., p. 298. 93 VLEZ MARICONDE, Alfredo. El proceso .... 94 MAIER, Julio. Derecho ..., p. 298. 95 MAIER, Julio. Idem, ibidem. 96 As fontes, todavia, no so claras quanto ao ato que caracterizava a transio entre a fase antecedente e esta fase, do plenrio. 97 ESMEIN, A. Histoire ..., p. 75. 98 PALLARES, Eduardo. El procedimiento ..., p. 25; Invitato a comparire per tre volte davanti al vescovo, se non si presenta, dichiarato contumace. Posizione gravissima poich il rigore del giudizio desume dalla contumacia una prova di responsabilit ed attraverso la finzione legale giunge a considerare lincolpato confessus (SORRENTINO, Tomasso. Storia ..., p. 171).
22 Na hiptese de o acusado negar as acusaes nessa fase, o juiz inquisidor deveria ento lhe nomear advogado. A partir da, e somente a, o acusado poderia contar com a presena de defensor. Assegurava-se, todavia, que o acusado pudesse apresentar, em manifestao por escrito, as excees e defesas que julgava teis produzir. A audincia de testemunhas constitua o momento central dessa fase do procedimento. As declaraes eram reduzidas a termo, que por sua vez era cientificado ao acusado (com o tempo, como visto, ocultando-se o nome das testemunhas). Em seguida o acusado apresentava memoriais de defesa, tambm tomados por escrito 99 . No obstante esta possibilidade de defesa, o processo perdia seu carter contraditrio em razo de ser instaurado de ofcio, tendo, ainda, contornos rigorosos: a forma escrita era preponderante e o debate oral desapareceu; o acusado (inquisitus) deveria prometer sob juramento dizer a verdade enquanto fosse interrogado sobre os capitula e era forado a se auto-acusar.
3.3.5 Priso no curso do processo e aplicao da pena
O herege no poderia ser libertado sob fiana. A priso no curso do processo era a regra. Se houvesse dvida sobre a culpabilidade do acusado, deveria ser sentenciado como se esta existisse. Se no confessava, ou se confessava, mas no se considerava culpado, o acusado era considerado impenitente e entregue ao brao secular para ser executado 100 . Exigia-se a morte do herege para que a justia fosse satisfeita e para que ela servisse de aviso aos pouco fervorosos e reticentes 101 . As penas aplicadas eram infamantes e transcendentais. A infmia de uma sentena pronunciada pela Inquisio acompanhava o acusado durante anos, muitas vezes at por toda a vida, e se transmitia aos seus herdeiros 102 . J no Conclio de Latro, imps-se ao poder secular o dever de exterminar os hereges sob pena de incorrer em
99 ESMEIN, A. Histoire , p. 76. 100 Durante o auto-de-f, o acusado ouvia sua sentena e, caso condenado pena de morte, era transportado ao local onde seria queimado. Todavia, a Inquisio entregava o condenado justia secular, aos funcionrios da Coroa, para a realizao da execuo (CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito ... p. 29-30 e 61). 101 PALLARES, Eduardo. El procedimiento , p. 42. 102 PALLARES, Eduardo. Idem, p. 39.
23 prevaricao. Bonifcio VIII incorporou ao direito cannico prescries que obrigavam as autoridades civis a executar sem demora os condenados, sob pena de excomunho; e os inquisidores processavam os funcionrios que se mostrassem remissos no cumprimento dessas obrigaes 103 . Se o acusado se confessava culpado, era considerado herege penitente e condenado ento priso perptua 104 . Aos acusados que confessavam seu delito e se reconciliavam com a Igreja, aplicava-se tambm o confisco de bens, a inabilitao perptua para cargos e empregos, o uso compulsrio do degradante sambenito (traje que identificava o condenado pela Inquisio) e o crcere perptuo 105 . Assim, mesmo quando o acusado se reconciliava com a Igreja porque confessara sua culpa e demonstrara seu sincero arrependimento, nem por isso escapava de uma humilhao pblica e desumana 106 . As penas impostas aos acusados considerados culpados tambm foram novas: se antes o clrigo somente poderia ser forado a se desculpar por juramento, passou a receber como sano penitncia na priso, no convento, na sede episcopal, acorrentado 107 . O inquisidor tambm poderia aplicar penas pecunirias ao condenado, em benefcio da Inquisio. Eram consideradas penalidades leves as peregrinaes a lugares santos, ou santurios clebres, feitas a p, com dificuldades e privaes e com toda sorte de perigos em tempos de total insegurana 108 . Tambm poderiam ser aplicadas penas de oraes ou de pagamento de esmolas 109 . A pena de confisco era usual, sendo de gravidade evidente e de transcendncia a pessoas inocentes. Veio prevista inicialmente em uma Decretal de Inocncio III 110 . Os reconciliados tambm no escapavam do confisco: eram confiscados os bens de quem s se arrependia depois da condenao. Se o condenado abjurasse, no perdia seus bens. De acordo com as Instrues de Torquemada, o confisco era conseqncia necessria da condenao dos hereges e s a ttulo de esmola se dava aos filhos menores do condenado o
103 PALLARES, Eduardo. Idem, p. 43. 104 EYMERICH, Nicolau. Manual , p. 229. 105 PALLARES, Eduardo. El procedimiento , p. 34. 106 PALLARES, Eduardo. Idem, p. 40. 107 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O direito ..., p. 107. 108 PALLARES, Eduardo. El procedimiento , p. 41. 109 EYMERICH, Nicolau. Manual , p. 234. 110 PALLARES, Eduardo. El procedimiento , p. 49.
24 necessrio para que no morressem de fome 111 . Aplicava-se tambm aos hereges j mortos, de sorte que os filhos dele que a sofriam 112 . Por fim, tambm se aplicava ao acusado ausente 113 . Gregrio IX, em 1237, ordenou que os dotes das esposas catlicas no deviam ser confiscados. Inocncio IV, em 1247, e So Lus, em 1258, ratificaram essa medida, mas as mulheres perdiam o dote se, ao casar, tivessem tido conhecimento de que seu esposo era herege, ou se durante o matrimnio no o denunciassem autoridade eclesistica ou ao Santo Ofcio 114 . No havia regra fixa sobre o destino dos bens: em algumas naes os entregavam ao Rei, outras ao bispo ou ao inquisidor, ou ainda s comunas, ou conjuntamente ao monarca, autoridade eclesistica e ao Santo Ofcio, o que gerava naturalmente disputas e conflitos polticos 115 .
3.3.6 Execuo e reviso da pena
No obstante o uso amplamente difundido do sigilo no procedimento, a inquisio fazia exibies pblicas de seu imenso poder, atravs do uso de forte aparato simblico nas cerimnias pblicas denominadas autos-de-f. Estes eram grandes festas populares de execuo das penas aplicadas, que ficava a cargo da Justia secular. Geralmente realizados uma vez por ano, os autos-de-f se iniciavam com uma procisso dos condenados, os quais eram vestidos com trajes indicativos da sua condio (sambenitos). Aps a procisso havia uma missa, sucedida pela leitura das sentenas prolatadas e a execuo propriamente dita 116 : nos autos eram exibidos os desvios da norma (proclamados atravs dos exaustivos sermes e da emblemtica na roupa dos condenados) e os castigos exemplares a eles cabveis (que variavam da execrao pblica pena capital): uma demonstrao cabal do poder e da fora inquisitoriais, um espetculo de massa com uma grande funo pedaggica a
111 PALLARES, Eduardo. Idem, ibidem. 112 PALLARES, Eduardo. Idem, p. 50. 113 CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito ..., p. 90-91. 114 PALLARES, Eduardo. El procedimiento ..., p. 51. 115 PALLARES, Eduardo. El procedimiento ..., p. 50-51. 116 NOVINSKY, Anita Waingort. A inquisio, p. 66-68.
25 difuso da ortodoxia, atravs da exibio dos erros contra a norma e da exortao conduta e procedimentos retos. 117
Releva destacar que como o processo cannico inquisitivo tinha cariz teolgico-religioso, visando represso da heresia e salvao das almas dos hereges, no se aplicava o instituto da coisa julgada. Os juzes e tribunais eclesisticos podiam sempre se retratar das suas sentenas criminais 118 . Assim, a sentena nunca era definitiva, podendo a causa ser reaberta caso surgissem novas provas e anulada a deciso caso se comprovasse que a condenao se baseou em provas falsas. Da mesma forma, mesmo aps a aplicao da sano o tribunal inquisidor podia a qualquer momento agravar ou abrandar a pena, conforme o comportamento do acusado durante a fase de execuo 119 . Pelo fato de a justia cannica ser uma instituio altamente hierarquizada cujos funcionrios julgavam por delegao, a apelao era uma das caractersticas principais do procedimento. Sua funo poltica era a de assegurar a centralizao do poder e a organizao hierrquica, e no a de servir como garantia do acusado. Da a necessidade de o procedimento ser escrito e adotar o sistema da valorao legal da prova: esses institutos, conjugados com a apelao, visavam a permitir o controle sobre o exerccio do poder delegado ao inquisidor 120 . Outro mecanismo de reviso dos processos em curso e daqueles j sentenciados existente na inquisio espanhola do sculo XVI era o instituto da visita, pelo qual o inquisidor-geral delegava poderes a um visitador para se deslocar aos diversos Tribunais Inquisidores e fiscalizar (i) o comportamento pblico e privado dos integrantes do Tribunal visitado; (ii) a forma pela qual os processos estavam sendo julgados naquele Tribunal 121 . O visitador fazia um minucioso relatrio processual da sua visita, apontando as falhas processuais verificadas e encaminhando-o ao Conselho da Suprema. Os integrantes deste ltimo, aps consulta ao inquisidor-geral, revisavam as decises proferidas nos procedimentos relatados por maioria de votos. Tais
117 CAMPOS, Pedro Marcelo Pasche de. A violncia oculta: Uma anlise da importncia do segredo no processo inquisitorial. 118 ALMEIDA JUNIOR, Joo Mendes. O processo ..., p. 83-84. 119 LUZ ALONSO, Maria. Vias de revisin de la sentencia en el proceso inquisitorial. 120 MAIER, Julio. Derecho ..., p. 298-230. 121 LUZ ALONSO, Maria. Vias de revisin .... De se assinalar que o Brasil no dispunha de um Tribunal de Inquisio, sendo sujeito ao Tribunal de Lisboa. Por isso, em certos perodos recebia visitadores, para inspecionarem as conscincias coloniais (CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito ... p. 22).
26 decises podiam ser revistas em razo de (i) incompetncia do Tribunal visitado; (ii) vcios graves de forma ou substncia no processo; (iii) inidoneidade da prova testemunhal acusatria, por falsidade, contradio ou inimizade manifesta com o acusado; (iv) desproporcionalidade da pena imposta 122 . Caso o Conselho da Suprema revogasse a sentena, reabilitava-se a pessoa condenada na sua honra e fama (mesmo no caso de falecimento), devolviam-se os bens confiscados, retiravam-se os trajes infamantes (sambenitos) e exclua-se o nome da pessoa do rol dos livros do Santo Ofcio 123 . O julgamento dos integrantes dos tribunais inquisidores (ministros e oficiais) por parte do Conselho da Suprema no era muito rigoroso. No obstante para a ocupao desses cargos houvesse uma srie de requisitos, seus ocupantes freqentemente tinham condutas comprovadamente imorais ou imprprias. As sanes aplicadas, todavia, eram quase que invariavelmente brandas, normalmente circunscrevendo-se a suspenso por determinado perodo ou a transferncia de tribunal 124 .
3.4 Principais caractersticas do processo penal cannico inquisitivo
Em linhas gerais, o procedimento da Santa Inquisio se caracterizava pelos seguintes pontos 125 : Primordialmente, o procedimento inquisitivo era secreto, se iniciava por denncia que poderia ser annima e tambm de ofcio. Os nomes das testemunhas eram ocultados do acusado e se fazia todo o possvel para que no pudesse averiguar quem eram as testemunhas. O fiscal fazia parte do Tribunal da Inquisio, mas o acusado no sabia o nome dele nem o delito cuja prtica lhe era imputada. O acusado tinha direito a defensor, mas este era escolhido dentre aqueles que figuravam como tais no Tribunal. Por isso, a defesa do acusado era praticamente inexistente, pois os defensores: (i) eram nomeados pela Inquisio; (ii) tinham o
122 LUZ ALONSO, Maria. Vias de revisin .... 123 LUZ ALONSO, Maria. Idem, ibidem. 124 LUZ ALONSO, Maria. Vias de revisin ... . 125 PALLARES, Eduardo. El procedimiento , p. 16-17.
27 mesmo esprito dela; (iii) se associavam a ela na persecuo do crime de heresia; (iv) aconselhavam ao acusado para que confessasse sua falta, no obstante as conseqncias que resultavam da confisso; (vi) abandonavam o acusado ao rigor do Tribunal, uma vez obtida a confisso 126 . A defesa, portanto, era um simulacro. A priso preventiva era decretada at para os delitos que no mereciam pena corporal, de tal forma que o acusado podia permanecer no crcere durante muito tempo para depois acabar sentenciado a penas consideradas leves, comparadas priso processual. Alm disso, a priso preventiva poderia se prolongar indefinidamente, at por anos, sem que fosse necessrio justific-la com um auto formal de priso. Podia ocorrer de, em um mesmo processo, se ventilarem delitos diferentes, at aqueles que no se submetiam jurisdio do Santo Ofcio. Curiosamente, as Instrues proibiam que se submetesse o acusado a maus tratos. Todavia, a prova por meio de tortura, admitida ento, fazia cair por terra toda e qualquer prescrio humanitria. Com vistas confisso, todas as classes de meios de prova, inclusive a tortura, podiam ser utilizadas. Alm disso, podiam ser utilizadas para obter-se do acusado declaraes relativas a delitos cometidos por terceiros. O acusado tinha direito a trazer ao processo provas de sua inocncia, mas no se recebia toda classe de testemunhas. O julgamento se dava em audincia secreta e no se facultava acesso aos autos para o acusado. A este somente se forneciam traslados da acusao do fiscal e das declaraes das testemunhas, mas de forma que no se pudesse averiguar a identidade destas ltimas. Os juzos se prolongavam indefinidamente, duravam at anos inteiros, ainda que as Instrues recomendassem que ele no se demorasse. O acusado no tinha direito de abreviar os trmites, porque o Tribunal gozava de faculdades soberanas na ordenao do procedimento. Com o tempo de durao do processo excessivo, o acusado sofria no crcere com incomunicabilidade, muitas vezes l morrendo. Estavam autorizadas as penas de infmia, aoites, tortura, confisco, desterro e outras de carter transcendental.
4. CONCLUSO
126 PALLARES, Eduardo. Idem, p. 34.
28 Ante todo o exposto, pode-se constatar que as principais caractersticas do processo penal romano acusatrio eram as seguintes: (i) direito popular de acusao; (ii) dever de prosseguir no processo at a sentena; (iii) encargo das diligncias da instruo comissionado ao acusador popular; (iv) restrio da priso provisria; (v) ampliao da liberdade provisria sob cauo fidejussria; (vi) publicidade dos atos processuais; (vii) direito popular de julgamento 127 . As caractersticas principais do processo penal cannico inquisitivo, por sua vez, eram a forma escrita e o segredo 128 . Este ltimo permeava todo o procedimento: (i) as averiguaes do Santo Ofcio se iniciavam sem que o acusado soubesse; (ii) as declaraes das testemunhas eram feitas com o maior segredo e sob o juramento das pessoas que estavam presentes na diligncia de no revelar a ningum o resultado destas; (iii) o acusado era torturado e questionado sem a assistncia de seu defensor; os executores da tortura cobriam seus rostos com uma touca para evitar serem reconhecidos pelo acusado; (iv) os sentenciados eram obrigados a prestar juramento de no revelar nada do que ocorrera ao tempo da priso; se no cumprissem esse juramento, respondiam a outro processo 129 . lcito concluir que o processo penal cannico inquisitivo carecia de alguns traos indispensveis para se caracterizar um autntico processo judicial: a existncia de partes processuais titulares de direitos e deveres recprocos e um julgador imparcial e situado acima das partes 130 . Logo, como nesse sistema a investigao unilateral da verdade um fim que justifica quaisquer meios empregados para descobri-la, no h que se falar propriamente em processo inquisitivo, pois esse sistema se assemelha muito mais a uma forma autodefensiva de tutela do interesse punitivo estatal do que a um genuno processo judicial. Por conseguinte, no legtima a mitigao de um sistema processual penal acusatrio por meio da insero de
127 ALMEIDA JNIOR, Joo Mendes de. O processo ..., p. 36. 128 MANZINI, Vincenzo. Tratatto ..., p. 42. 129 PALLARES, Eduardo. El procedimiento , p. 23-24. 130 El denominado proceso inquisitivo no fue y, obviamente, no puede ser, un verdadero proceso. Si ste se identifica como actus trium personarum, en el que ante un tercero imparcial comparecen dos partes parciales, situadas en pie de igualdad y con plena contradiccin, y plantean un conflicto para que aqul lo solucione actuando el Derecho objetivo, algunos de los caracteres que hemos indicado como proprios del sistema inquisitivo llevan ineludiblemente a la conclusin de que ese sistema no puede permitir la existencia de un verdadero proceso. Proceso inquisitivo se resuleve as en una contradictio in terminis (MONTERO AROCA, Juan. Principios , p. 28-29).
29 institutos processuais de cariz inquisitivo, eis que tal expediente compromete a prpria garantia da nulla poena sine judicio, por acarretar a imposio de pena sem um autntico processo judicial. A figura do magistrado inquisidor restringe a participao do acusado no processo, acarretando cerceamento de defesa e violao dimenso substancial do devido processo legal: resulta irrefutable la afirmacin de que el modelo inquisitivo es inconstitucional, no ya porque provoque la figura de un Juez parcial, lo que tambin es cierto, sino porque, principalmente, su implantacin conlleva un proceso penal en el que el acusado no tiene la suficiente participacin. De ah que la exigencia del derecho de defensa produzca, correlativamente, la necesidad de construir un modelo de proceso penal como proceso de partes. 131
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