Este documento descreve experiências de um mestrando em psicologia clínica com moradores de rua em São Paulo. O texto aborda intervenções artísticas espontâneas de moradores de rua que questionam os limites entre arte, vida e realidade, assim como reflexões sobre como esses indivíduos revelam contradições da sociedade e são vistos como "despachos públicos" do progresso urbano. O autor também discute coletivos artísticos que trabalham com moradores de rua e ocupações urbanas.
Este documento descreve experiências de um mestrando em psicologia clínica com moradores de rua em São Paulo. O texto aborda intervenções artísticas espontâneas de moradores de rua que questionam os limites entre arte, vida e realidade, assim como reflexões sobre como esses indivíduos revelam contradições da sociedade e são vistos como "despachos públicos" do progresso urbano. O autor também discute coletivos artísticos que trabalham com moradores de rua e ocupações urbanas.
Este documento descreve experiências de um mestrando em psicologia clínica com moradores de rua em São Paulo. O texto aborda intervenções artísticas espontâneas de moradores de rua que questionam os limites entre arte, vida e realidade, assim como reflexões sobre como esses indivíduos revelam contradições da sociedade e são vistos como "despachos públicos" do progresso urbano. O autor também discute coletivos artísticos que trabalham com moradores de rua e ocupações urbanas.
Este documento descreve experiências de um mestrando em psicologia clínica com moradores de rua em São Paulo. O texto aborda intervenções artísticas espontâneas de moradores de rua que questionam os limites entre arte, vida e realidade, assim como reflexões sobre como esses indivíduos revelam contradições da sociedade e são vistos como "despachos públicos" do progresso urbano. O autor também discute coletivos artísticos que trabalham com moradores de rua e ocupações urbanas.
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Fabiane Moraes Borges
DOMNIOS DO DEMASIADO
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de MESTRE em Psicologia Clnica, sob a orientao do Professor Doutor Peter Pl Pelbart.
Psicologia Clnica PUC. SP So Paulo - 2006 2 PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA CLNICA NCLEO DE ESTUDOS DA SUBJETIVIDADE
Dissertao intitulada Domnios do Demasiado, de autoria da mestranda Fabiane Moraes Borges, aprovada pela banca examinadora constituda pelos seguintes professores:
Prof. Doutor. Peter Pl Pelbart - PUC. SP - Orientador
Prof. Doutora Suely Belinha Rolnik Coordenadora do Ncleo de Estudos da Subjetividade Programa de Ps- Graduao em Psicologia Clnica PUC. SP.
So Paulo, 31 de julho de 2006
Rua Ministro Gody 969, Perdizes So Paulo. SP. Brasil. Cep: 05015-911. Tel. (0XX011) 36708400 3
DEDICATRIA...
A Renato Cohen In memorian 4
AGRADECIMENTOS...
A Peter Pl Pelbart, que ouviu meu tom Rafael Adaime, parceiro nas encruzilhadas Mariah Leick e Adriana Verssimo pelas aventuras notvagas Aos sem tetos e Moradores das ruas Aos coletivos de arte, Interventores Pblicos e Performers perdidos Colegas e professores do ncleo da subjetividade E a todos freqentadores dos domnios do demasiado 5 RESUMO
Esse trabalho sobre minhas andanas aventurosas em meio s matilhas paulistanas e as transformaes subjetivas delas advindas.
6 ABSTRACT
This work is on mine adventurous walk whit paulistanas pack and the subjective transformations of happened them.
2. Reverncias e Andrajos / Redes e Liminaridades........................................................... 22
Pensando performances e eventos conectivos transfaceados - Viver e morrer na cidade de So Paulo: O massacre no centro / Vdeo-Carta / Processos Imersivos
Encontrando os coletivos/ACMSTC ou MSTCCC ou MSTCAC Arte Contempornea no Movimento dos Sem Teto do Centro / Trabalhos de Cassandra / A boca de Cassandra/Interveno de Luciana Costa no ACMSTC / Experincia n. 2 de Olga Maria Fernandes / Caminhos - Mapa da amrica do sul. Rodrigo do Esqueleto Coletivo / Sobre a no-ocupao do Grupo Los Valderramas / Construo de mapas em grande escala por Cristiana Moraes / O que o MSTC? Manifesto dos Movimentos de Moradia / Trabalhos desenvolvidos por artistas na Ocupao Prestes Maia
4. CUT- UPS de arte interferncias urbanas .............................................................................61
Parachute. A urgncia do real. Dilogos paraquedas / Ocupaes imateriais - 1 comunas da terra MST/Brs / Ocupaes imateriais - 2 MST/ I festa culutral comunas da terra / Comunas Urbanas / Performances in focus / Arte contempornea na favela do moinho
5. Integrao sem posse ............................................................................................................86
Flyers das festas resistncias ocupao Prestes Maia / Fala moa : Desocupaes como Performances pblicas e ontolgicas / Instalao corporal e sgnica em frente ao prdio murado / 7 Dia de Morte da Ocupao Plnio Ramos / Festa noise lona preta / Escracho / Cortejo Plnio Ramos / Descaminhos / Resistncias in arte... / Zumbi somos ns / Territrio So Paulo / Exposio territrio SP / Baile dos espantalhos
Sei que no atentaram na mulher; nem fosse possvel. Vive-se perto demais (...) A gente no rev os que no valem a pena. Acham ainda que no valia a pena? Se, pois, se. No que nem pensaram; e no se indagou, a muita coisa. Para que? A mulher malandraja, a malacafar, suja de si, misericordiada, to em velha e feia, feita tonta, no crime no arrependida e guia de um cego. Vocs todos nunca suspeitaram que ela pudesse arcar-se no mais fechado extremo, nos domnios do demasiado?
Joo Guimares Rosa 1
1- Escndalos Pblicos Ontolgicos
Uma estranha famlia de trs homens instalou-se diagonal da minha janela. Escarificando-me a alma com sua rude presena. Eles me trancafiam no meu prprio quarto, desafiando-me em minha fala sobre eles. Da sacada espio suas cpulas invisveis com cyborgues. Se vou rua, tropeo-lhes...
Os homens da rua se vociferam entre si; amaldioam as ruas com seu mijo, sua merda, seus restos de comida doada. Catam nossos lixos com carroas por eles puxadas. Depois relaxam horizontalizados, agitando suas cachaas puras num misto de zombaria e desespero.
Os homens Instalados nas ruas parecem fazer parte de um sistemtico escoamento de despachos pblicos perpetrados em nome do progresso. Que entidades monstruosas compactuariam com tais oferendas? Talvez no seja essa a questo. A megamquina atingiu o estatuto da autoprogresso e realiza automaticamente suas tarefas sacrificiais, afim de que se des-tranquem os caminhos do desenvolvimento. O mundo vive de seus matadouros.
A imagem dos homens-despachos tatuada nas encruzilhadas 2 de concreto da urbe revela-nos contradies de uma cultura fundamentada no ideal de evoluo. Seus corpos em runas e
1 Cfe. Joo Guimares Rosa. Primeiras Estrias. Texto: A benfazeja. Ed. Nova Fronteira. 18 Edio. RJ. 1985. P. 113 2 Na concepo filosfica de muitas culturas africanas, assim cono nas religies afro-brasileiras, a encruzilhada o lugar sagrado das intermediaes entre sistemas e instncias de conhecimentos diversos, sendo frequentemente traduzida por um cosmograma que aponta para o movimento circular do cosmos e do esprito humano que gravitam na circunferncia de suas linhas de interseo. Operadora de linguagens e de discurso, a encruzilhada, como lugar terceiro, geratriz de produo sgnica diversificada e, portanto, de sentidos plurais. Nessa concepo de encruzilhada discursiva destaca-se, ainda, a natureza cintica e deslizante dessa instncia enunciativa e dos saberes ali institudos. No mbito da encruzilhada, a prpria noo de centro se dissemina, na medida em que se desloca, ou melhor, deslocada pela improvisao. Cfe. Leda Martins. Performances do Tempo e da Memria: os congados . Revista: O percevejo; Estudos da Performance.Revista de Teatro, Crtica e Esttica. ISSN 0104-7671. Ano 11. n12. 2003. Departamento de Teoria do Teatro. Programa de Ps-graduao em Teatro. UNIRIO. P. 68. 9 trapos se encravam no corpo sedimentado das cidades, feito piercing, mistura de carne e metal, que funciona como foco de resistncia e sacrifcio, concomitantemente.
A miserabilidade se encrava no horizonte da cultura como signo de ameaa. como se em vista dos corpos-despachos instalados publicamente, o resto da humanidade inclusa conivente com a lgica ascendente civilizatria, percebesse a condio existencial que seria submetida, caso interrompesse sua produo para o sistema de trocas da megamquina megalmana.
Um homem de rua se espreguiou do fundo dos amontoados dos sacos pretos de lixo; parecia estar emergindo das fissuras dos paraleleppedos. Ele se espichava vagarosamente, as cascas de batata despencavam dos seus braos, pedaos de panos rasgados esfarrapavam-lhe o peito, um berro se enunciava.
Se no soubesse que era um morador de rua, pensaria tratar-se de uma eletrizante interveno performtica, produzida por algum performer inconformado com os espaos comuns de atuao de sua arte, resolvido a assumir a rua como lugar legtimo de experincia e produo.
O timbre do berro do homem-despacho era similar aos berros advindos das runas das Alemanhas neubautenianas 3 . Aquele berro de rua emergido dos sacos de lixo mostrava um desespero ainda no suplantado.
A manifestao transitria das imagens, a narrativa fragmentada, o uso descontextualizado dos elementos disponveis naquele espao, os gestuais minimalistas, as fuses de imagens e sons em meio a via pblica, tudo isso sugeria que eu estava diante de uma obra inaudita cuja criao era abstrata, pulsativa, primria, que por influxos germinativos conectados incorporava incrveis intensidades. O mendigo alheio sua condio de artista-criador produziu uma performance pblica, alterando naquele momento a realidade espao-temporal comum, confundindo imagens e hipertextualizando os sentidos da rua.
Fui ter com os corredores de sacos-pretos-de-lixo e seres-humanos-despachados por estar sofrendo de excesso de afetao, para me aproximar do que me causava terror, para experimentar o que me ameaava, e tambm confesso: por um gosto ntimo pela decadncia. Nessas derivas uma sensao se avolumava: meu corpo estava sendo perfurado por densos ganchos subjetivos lanados pelas hordas habitantes das ruas. Esse atravessamento foi tornando-me partcipe de estranhos ritos-espetculos que estendiam meu estado de existncia cotidiano para zonas dilatadas de percepo.
No se tratavam de ritos institudos, eram de outra ordem s manifestaes: os homens- despachos criando fora, entrando em devires, erguendo-se de seus lugares previstos em meio a migalhas e cachaas, produzindo estticas inusitadas: verdadeiros happenings, performances, intervenes urbanas, cenas dramticas inteiras, cuja intensidade e inconscincia me arrebatava.
Esses eventos iam tornando-se cada vez mais freqentes. Eu estava sendo atrada para zonas abissais de ftido odor onde estranhos fenmenos aconteciam. Um ambiente abarrotado de
3 Einsturzende Neubauten Banda punk alem. Muitos dos seus shows e clips foram feitos em prdios destrudos ou abandonados, e caracterizam-se por musicas que misturam barulhos de metais, grunhidos, berros, instrumentos musicais, danas butonianas, etc. 10 retalhos, tiras, farrapos, fragmentos de tecidos podres recortados da cidade e submersos em covis de decomposio.
A mulher batia em si mesma violentamente com um pedao de borracha; roupas em frangalhos - amaldioava a humanidade! Debatia-se contra o trfego paralisado diante da sinaleira- encruzilhada: Augusta com a Paulista 4 . O rudo produzido pelo choque do seu corpo contra as carcaas dos automveis superava os rudos dos motores. No era humano o grito nem solitrio. A dor de uma multido inteira esguichava de sua boca. Seu grito aturdia a tarde. A cena entorpecia o tempo. Como uma Diamanda Gallas 5 possuda e desvairada, a mulher realizava uma terrvel performance em via pblica.
Estava tornando-me cada dia mais conivente com essas aparies performticas no anunciadas, e passei a ver nessas convulses corporais citadinas, potncias que s foram possveis de serem contempladas depois de uma certa iniciao, depois de certos ritos de passagem. Foi preciso abandonar as interpretaes comuns que s conseguem ver no morador de rua problemas relativos explorao, mais valia e injustias tnicas. Apesar de serem estas as linhas segmentrias mais insistentes no contexto das ruas, foi necessrio embrenhar-me em outras aventuras perceptivas. Nessa iniciao que consistia em abandonar conceitos, alterar a conscincia, produzir novas metforas, avizinhar-me da aura bria dos miserveis, tive sofrimento e asfixia perdida nessas zonas de indiscernibilidade meio mticas, s vezes alucingenas; onricas; em tudo real...
Gradativamente experimentava sensaes de desequilbrio, inaptido, efemeridade, inconstncia, que me deslocavam do territrio racional remetendo-me a uma espcie de atualizao da dimensionalidade e ambivalncia do mythos; mito como vivificador de sentidos reais e imaginrios 6 .
Fui acometida por signos ancestrofuturistas 7 : sqitos de assassinos; bandos delinqentes; figuras de seres emergidos dos esgotos; coletivos sarnosos; seres infectos cheios de pus;
4 Nome de duas ruas famosas em So Paulo: Av. Paulista jogo do banco imobilirio; rua Augusta Av. das putas. 5 Diamanda Gallas Cantora americana de origem grega, conhecida como amante do demnio, bruxa contempornea e outros apelidos. Trabalha com tcnicas vocais, gritos, urros, repeties, dessincronidades, etc. 6 Mito como narrativa, mito como rememorao, mito como aluso, mito como celebrao, mito como locus da hierofania, mito como pr-logos, mito como derivao parbola, metfora mito como impostura; (...) enquanto narrativa, a fala do mito, verbalizada, ou na via da escritura, implica signagens derivativas (...) A cena mtica, momento de permeao ou de re-apresentao do fenmeno primeiro, investe-se pelo seu carter direto com a experincia, plena de visibilidade e sensao, de uma potncia superior s narrativas e relatos (...) Pensando-se o mito, ou o estado mtico enquanto nvel de ruptura ontolgica, espao de manifestao da epifania (estado que os msticos chamam de transe ou xtase), tempo de permeao. Cfe. Renato Cohen . Work in progress na cena contempornea. Ed. Perspectiva. S.A So Paulo SP.1998. P. 65 (nota de rodap). 7 Os signos emitem signos uns para os outros. No se trata ainda de saber o que tal signo significa, mas a que outros signos remete, que outros signos a ele se acrescentam, para formar uma rede sem comeo nem fim que projeta sua sombra sobre um continuum amorfo atmosfrico. esse continuum amorfo que representa, por enquanto, o papel de significado, mas ele no para de deslizar sob o significante para o qual serve apenas de meio ou de muro: todos os contedos vm dissolver nele suas formas prprias. Atmosferizao ou mundanizao dos contedos. (...) Mesmo quando abstramos o contedo em uma perspectiva estritamente semitica, em benefcio de um pluralismo ou de uma polivocidade das formas de expresso, que conjuram qualquer tomada de poder pelo significante, e que conservam formas expressivas prprias ao prprio contedo: assim, formas de corporeidade, de gestualidade, de ritmo, de dana, de rito, coexistem no heterogneo com a forma vocal. Vrias formas e vrias substncias de expresso se entrecortam e se alternam,. uma semitica segmentar, mas plurilinear, multidimensional, que combate antecipadamente qualquer circularidade significante.(...) De forma que o signo deve aqui seu grau de desterritorializao relativa no mais a uma remisso perptua ao signo, mas ao confronto de territorialidades e segmentos comparados dos quais cada signo extrado (o campo, a savana, a mudana de campo). Cfe. Gilles Deleuze & Flix Guattari in Mil Plats- capitalismo e esquizofrenia. So Paulo: Editora 34, 11 bandos nmades de armas letais nas mos; diabretes; delinqentes desenfreados; stiros com ps de bode; loucos zombeteiros; pndegos perpetuamente excitados; perambulantes das noites; selvagens de cabelos desgrenhados; freqentadores de cemitrios; envenenadores; alcoviteiros; drogados com corpos trincados de agulhas; piratas empesteados; duendes incendirios; tribos de clowns negros carniceiros; crazy dogs; butonianos enterrados; corpos suspensos por ganchos; trancadores de caminhos; coribantes cretenses; corriganos clticos; ganas; curetos; silenos; bhaktas; bacantes; kaplikas; vrtyas; lupercos; participantes dos cultos de Shiva, Dioniso e Exu; cyborgues. Uma multido plurisgnica atacava-me de todos os lados, decididos a inscreverem-se, pelo menos em meu imaginrio, como hordas correspondentes aos homens-despachos que habitavam as ruas, em funo de suas marginalidades paralelas, suas prodigalidades iconoclastas e suas epifanias antiantropocntricas.
Performances pblicas no anunciadas dos homens-despachos entrecruzavam-se a paralelos mticos-literrios, e esse amlgama entre acontecimentos reais e imaginrios renovava sentidos e narrativas sobre os moradores de rua. Essa iconografia instalada geograficamente nas ruas de todas as grandes cidades do mundo era fonte de emanao e atualizao de uma memria genealgica-mito-realistica, de todo amaldioada e esquecida, pensava.
Nas escadarias das igrejas, nas caladas das secretarias de justias, em frente aos Bancos eletrnicos, os moribundos se Instalam, e afrontam com suas peles e tecidos podres os imponentes edifcios, como se fossem pragas urbanas carcomendo os pilares dos templos religiosos, econmicos e ministeriais. Com suas poses mrbidas, seus fedores, mijanas e caganas em frente aos edifcios, ousam alterar os projetos urbanistas da cidade, construdos com fins bem diferentes do que suportar suas guerrilhas escatolgicas.
Procedimentos semelhantes aos praticados por alguns dos mais radicais seguidores de Shiva e Dioniso que, conforme relatos em textos sagrados, largavam tudo o que tinham de bens terrestres, perambulavam nas noites nus ou em trapos, com os cabelos desgrenhados, agredindo transeuntes, praticando roubos, embriagando-se e atirando suas excrees contra os templos. No so todos os participantes dos cultos de Dioniso e Shiva que chegam a esse grau de revolta contra a cidade, porm muitos dos relatos informam-nos que sempre houve e ainda h grupos cujo comportamento desmedido funciona como manifestao da sua rejeio sociedade antropocntrica. Os ganas (ou diabretes) zombam das regras morais e da ordem social. (...) ope-se ambio destruidora da cidade e ao moralismo enganador que a dissimula e a exprime. (...) Encarnam tudo o que desagrada e causa medo sociedade, que contrrio aos bons costumes de uma cidade bem policiada e a suas concepes lenientes. (...) Ao cair da noite..., em enxames, ameaam com suas agresses o viajante retardatrio 8 .
Uma linha diferencial importante a ser evidenciada entre procedimentos radicais shiva- dionisacos e moradores de rua, que os primeiros agridem a cidade em funo de sua devoo as divindades que representam os poderes da natureza nas mitologias indiana e grega; a luta contra a cidade simboliza a luta contra destruio que a civilizao imprime sobre a natureza e a prpria vida, nesse sentido so antiantropocntricos por negarem ao homem a soberania sobre a natureza, investindo contra a cidade atiam-se no signo mximo do pensamento antropocntrico: a cidade, que outrora contraiu o sentido das ambies civilizatrias, mas que hoje escancara os significantes da sua impotncia em bem acolher os
1995, Vol. 2, tr. br. de Ana Lcia de Oliveira e Lcia Cludia Leo, pp. 62, 69. Mille plateaux, Paris: Minuit, 1980, pp. 141, 147. . . 8 Cfe. Alain Danilou. Shiva e Dioniso - A Religio da Natureza e do Eros Ed. Martins fontes, SP.1989 P:85-96 12 que a procuram ou nela chafurdam como escala derradeira de suas vidas. Por sua vez os moradores de rua no contam com a superioridade redentora de nenhuma entidade; a agresso cidade se d como modo de vida independente das crenas individuais. Suas posturas antiantropocntricas se do, na maioria das vezes, como fenmenos inconscientes, silenciosos, irrefletidos, evidenciados em suas apropriaes carrapticas dos espaos urbanos e tambm no incmodo que provocam sociedade inclusa. Apesar dessas diferenas, o que interessa nesse percurso compreender que tanto os sqitos radicais quanto os moribundos- de-rua utilizam os territrios pblicos da cidade como espaos para sua escandalosa manifestao.
Reminiscncias... Manifestao da misria como ao interventora no cenrio citadino. Escndalo revelador que denuncia e desvenda, ao mesmo tempo, o anacronismo civilizatrio. Misria como escndalo ontolgico, pblico e performtico.
Zonas indiscernveis entre real e imaginrio; vida e literatura; denncia poltica e escndalo ontolgico; zonas arbitrrias entre-as-coisas; misturas de lugares quaisquer e nenhum lugar, densidades intangveis e inominveis momentaneamente instaladas pelos terrenos cotidianizados - feito portais. Provavelmente dessas fissuras-do-ordinrio que Beckett faz emergir seus estranhos personagens. Que surgem as performances no anunciadas da misria, os escndalos ontolgicos dos homens despachos, que florejam as atuaes escabrosas da lazarenta Mula Marmela do conto de Guimares Rosa guia do cego cujo pai ela mesma assassinou fazendo rudo pela cidadela que a observa e julga a ponto de faz-la travestir-se em estilo detestvel e abjeto...
Tomo liberdade de usar o nome cunhado por Guimares Rosa ao tentar produzir um certo deslocamento perceptivo da sociedade em geral com relao a aparncia da misria, com relao a sua personagem, colocando-a nessa zona indicernvel-indecifrvel que ele chama de Domnios do Demasiado: A mulher malandraja, a malacafar, suja de si, misericordiada, to em velha e feia, feita tonta, no crime no arrependida e guia de um cego. Vocs todos nunca suspeitaram que ela pudesse arcar-se no mais fechado extremo, nos domnios do demasiado 9 ?
Domnios do demasiado...
E vocs, loucos lcidos, sifilticos, cancerosos, meningticos crnicos, vocs so incompreendidos. H um ponto em vocs que mdico algum jamais entender (...) vocs esto alm da vida, seus males so desconhecidos pelo homem comum, vocs ultrapassaram o plano da normalidade e da a severidade demonstrada pelos homens, vocs envenenam sua tranqilidade, corroem sua estabilidade. Suas dores repetidas e fugidias, dores insolveis, dores fora do pensamento, dores que no esto no corpo nem na alma, mas que tem a ver com ambos. E eu, que participo dessas dores, pergunto: quem ousaria dosar nosso calmante 10 .
Domnios do demasiado...
Em vo amordaadas por vossas leis sociais, dormem entre vs energias destruidoras que poderiam fazer voar o mundo pelos ares. Por seus olhares
9 Cfe. Joo Guimares Rosa. Primeiras Estrias. Texto: A benfazeja. Ed. Nova Fronteira. 18 Edio. RJ. 1985. P. 113
10 Antonin Artaud A liquidao do pio 13 incendirios, reconheo, nos terrenos desertos, tila, Gengis-Khan, Tamerlo. A embriaguez do lcool , para os operrios, o mais nobre protesto contra a vida srdida que os fazem levar. A espera da morte, enfim, do pensamento do Ocidente, espera do cataclismo futuro aureolado de revolues, eu, Morfeu, moldo as hordas vindouras de acordo com minha rude higiene. Enquanto espero a hora, sobre si mesmos que exijo que eles exeram sua fora de destruio. E as mutilaes voluntrias, os envenenamentos terrveis dos lcoois que fazem o ser ofegante rolar nas margens da morte, os golpes de cabea nas paredes, todos os sofrimentos que me foram infligidos so os nicos critrios que me asseguram a existncia de homens fisicamente desesperados, suficientemente mortos em sua prpria individualidade para demonstrar na face o sarcasmo impassvel do desinteresse perante a vida, nico penhor de todos os atos sobre-humanos 11 .
Mula Marmela; sqitos de diabretes; moradores de rua; envenenadores pblicos; Molloys e Malones beckttinianos; energias destruidoras; nmades e trogloditas cujas dores no esto nem no corpo nem na alma; os que exercem a fora de destruio sobre si mesmos enquanto esperam o cataclisma; os fisicamente desesperados; alcoolizados ofegantes que rolam nas margens da morte... Esses todos multido? ... Loucos como Neal Cassady que inspirou on the road de kerouac, cujo pai vagabundo de rua perdera-se nas cachaas-baratas da cidade qualquer; essa dinamite vagabunda, ladra e narcotizada que em um momento do livro inspira essa descrio: Atrs dele, fumegavam runas calcinadas. Precipitava-se para o Oeste outra vez (...) alguns preparativos deveriam ser feitos, tais como alargar as sarjetas de Denver e refazer determinadas leis para comportar sua carga sofrida e seus xtases ardentes 12 .
As ruas segredam potncias de revide e de inveno de porvir! - Estava to convencida disso que passei a nutrir uma esperana ntima de estar prestes a assistir um desmoronamento colossal e vociferava com Morfeu: Com meus ps aleijados no posso deixar de estar, de corao, entre as hordas subterrneas das lvidas crianas da noite que brevemente pisotearo sua imunda civilizao (...) vou roendo lentamente como um milho de ratos, o ocidente que me renega e no tomarei parte no desmoronamento desse colosso de ps de manteiga, cabea de veado 13 .
Sentia-me vivendo uma espcie de iniciao aos estados liminares da existncia; reconhecia os domnios do demasiado quando percebia um certo adensamento do ar, uma concentrao inusual, um diferencial na postura. Era como se fosse engolfada por portais-fissuras instalados nas vias pblicas da cidade.
A liminaridade arriscada porque se situa em zonas fronteirias, que para alm da sonoridade alegre que essa conjuno de palavras depreendem (zonas + fronteiras), em funo da vontade de miscigenao to cara para alguns de ns, so espaos onde predominam tambm contradies, medos, intolerncias, exploraes, preconceitos de todos os lados. So terrenos onde os circuitos relacionais diferenciam-se dos da cidade comum: muda a linguagem, o modo
11 Cfe. Roger Gilbert-Lecomte. Texto: Sr. Morfeu, envenenador pblico; em A experincia alucingena Antologia; civilizao Brasileira. RJ.
12 Cfe. Jack Kerouac. On the road P na Estrada. Ed. L&PM POCKET. Porto Alegre. RS. 2004. Introduo e posfcio de Eduardo Bueno. P. 314. 13 Cfe. Roger Gilbert-Lecomte. Texto: Sr. Morfeu, envenenador pblico; em A experincia alucingena Antologia; civilizao Brasileira. RJ. 14 de inscrio comunitrio e mudam tambm os valores em relao a cidade antiga, que a mesma cidade, mas j outra, cidade-fronteira.
Presenciei um assalto realizado por dois meninos de rua contra um velho-mais-miservel-que- eles. Chegaram pelas costas do velho, canivete nas mos, exigindo que esse lhes desse tudo o que tinha. O velho-de-rua deu carteira e leno e tudo. A cena foi de uma crueldade implacvel. Esses ganas-diabretes fizeram o que estavam acostumados a fazer, o velho morador de rua era s uma casualidade, um corpo qualquer largado num espao geogrfico arriscado. Eu no sabia o que fazer - paralisia. Depois de todas minhas andanas por entre as bolhas invisveis da cidade ainda me surpreendia com os atos mais cotidianos de sobrevivncia. O que faria para alm de ficar parada como fiquei pensando se era capaz de amar a vida com amor fati 14 ? O mundo fora dos portais-fissuras da misria me parecia ainda mais terrvel. A cidade real tornava-se cada vez mais fictcia e j no me era possvel compactuar com seus mtodos. Porm, como sustentar esse no-lugar, essa no-ao, essa paralisia que me invadia?
Me aproximei de algumas crianas que se deitavam na calada s gargalhadas. Mal respirei seu cheiro-forte-de-cola-que-exala e j sabia do que riam tanto: o quarteiro, prximo rua Santa Ifignia, estava cheio de trabalhadores fardados. Alguns de laranja, outros de marrom; em cada loja, posto de gasolina ou casas de peas automobilsticas os operrios usavam algum tipo de uniforme estapafrdio. Cada qual com sua cor. Parecia uma rua especialmente produzida para divertir a tarde das lvidas crianas da noite. Eu em passagem interrompi o dia. A cena era cmica e terrvel. A misria do mundo fora das bolhas se explicitava: as crianas zombavam, sarcsticas, chamando os homens de bonecos-de-brinquedo.
Interrupes do dia, paralisias em meio cidade, perdas constantes de referencias, asfixias, tornaram-se sensaes comuns tanto na rua quanto nos sonhos. Em sonhos eu perdia os dentes, mendigava, rastejava pelas ruas comendo restos, dormia em baixo de cobertores que no me protegiam de surpreendentes pauladas. Acordava com pancadas-pesadelos nas costas, no rosto. Medo-maqunico. A misria um vrus 15 .
Da alegria ontolgica anterior passei a ter uma sensao insustentvel de estar, aos poucos, me transformando numa decrpita miservel. Parecia um caminho inevitvel tornar-me esse duplo da humanidade funcional: - moradora de rua - aquela que no tem funcionalidade social, que atrapalha, que atravanca os canais internos da corpo citadino colossal como se fosse merda trancada no reto, para depois ser escoada nos canos subterrneos. Um contra-corpo fedorento e poluente. O negativo do corpo includo. Sem nenhuma iluso de mrtir ou bode sacrificial, sofria a plausibilidade de transformar-me nesse signo defecado destinado a percorrer corredores ftidos. Existia no entanto uma sensao ainda mais periclitante: o pavor dos sistemas de controle e doma sobre a merda. Moldadura-da-merda.
14 Minha frmula para a grandeza no homem amor fati: nada querer diferente, seja para trs, seja para frente, seja em toda a eternidade. No apenas suportar o necessrio, menos ainda ocult-lo todo idealismo mendacidade ante o necessrio mas am-lo... Cfe. Friedrich Nietzsche. Ecce Homo. Ed. Companhia das Letras. So Paulo. SP. 1995. P.51 15 Nietzsche atribui a essa capacidade inoculatria da degenerao, uma perspectiva diferenciada da historicamente ressaltada: no mais degenerao como doena contraposta a sade, mas a sua essencialidade para o progresso espiritual da coletividade, afirmando que esse progresso depende dos sujeitos mais independentes, mais inseguros e moralmente fracos, que experimentam o novo e, sobretudo o diverso. Nietzsche atribui valor, ou melhor transvalor aos espritos degenerados. Cfe. Friedrich Nietzsche. Humano, Demasiado Humano, Ed. Companhia das letras.P.155 15 Nesses tempos de mergulhos e agonias quando olhava para minhas prprias mos se merdificando e dormir j no era consolo, quando a decadncia foi tatuando-me de coceira e sarna, eu precisei parar... Parar para mudar meu ponto de aglutinao, como diria D. Juan a Castaeda. Parar a queda. Parar com a interpretao viciada da filosofia clssica que em mim insistia, de pensar a experincia fronteiria como queda abismal num terreno de trevas incognoscveis. Mesmo que eu tentasse negar minha queda por quedas profundas, no havia como negar as quedas abismais estavam encravadas em minha percepo das coisas, e eu caia nelas como quem enlouquece ao lidar com foras maiores que si.
Nessa poca decidi trabalhar como psicloga institucional em uma casa de acolhida a mulheres de rua, na expectativa de poder atuar de forma mais eficaz com esse pblico ao invs de ficar vagueando por entre sacos de lixo. Foi um trabalho muito esquisito porque a instituio parecia ser a caricatura dos sistemas de doma que eu tanto temia. Rapidamente fui demitida como se tivesse trazido alguma praga para a instituio. Me despejaram sob o pretexto de que acabaria por produzir uma rebelio dentro da casa, como se aquilo fosse mesmo uma priso e as mulheres, condenadas. E no era?
Apesar da experincia ter sido aparentemente desastrosa tanto no sentido de atrapalhamento (senso comum) quanto no sentido de perda do astro (etimologia e filosofia), variei pontos de vistas e percebi que o usual abismo misterioso onde habitavam as mulas marmelas eram como terrenos superficiosos formados por justaposies e superposies de restos de cidades e humanidades. Um espaamento emaranhado de tramaturas intermediando mundos que se reivindica (virtual) e mundos que se rejeita (atual-obsoleto). Os gestos corpreos que nele se alojam insinuam um possvel qualquer que opera num precrio defasado e inconstante, imensamente inferior a constituio de um projeto de comunidade alternativa, por exemplo, mas talvez exatamente por causa dessa suposta inferioridade, dessa inconstncia movedia, dessa obscuridade esquisita e esquiva se torne to incisiva sua manifestao. Esterco profcuo para o qual eu retornava hongos mgicos. .
Os locais secretos, as resistncias escatolgicas, as reverncias iconoclastas, os cotidianos de quem vive em estados de exceo, as greves humanas, as vidas nuas, as instalaes corpreas nas vias pblicas todas essas superposies de restos despertavam-me agora vontade de testar linguagens diferenciadas que colocassem em trnsito esses repertrios corporais inconclusos cheios de contedos ocultos, temporalidades difusas, narrativas entrecortadas e automatismos (...) este saco este lodo o ar ameno o escuro negro as imagens coloridas a fora para rastejar todas essas estranhezas 16
No comeo essas testagens configuravam-se como tentativas de produzir no meu prprio corpo imagens que expressassem afetos da rua. A composio dos elementos misturava precariedade e excentricidade: coroa de espinho com nariz de clown; decote excessivo e quadril acorrentado; corda no pescoo e garrafa de cachaa na mo; falava em lnguas inventadas e dividia seus cobertores cinzas-de-sujos; improvisava sonoridades a partir de elementos de uso comum na rua como o toque da mo em diversificadas texturas, audio dos barulhos produzidos pelos saquinhos de cola quando aspirados e manipulados; pinturas dos seus corpos e o meu prprio nas caladas-dormitrios; construo de imagens performatizadas para fotografia e cmera de vdeo, pequenos rituais com tambor em volta de suas fogueiras noturnas; entre outras coisas 17 . Eu detectava um certo princpio cerimonioso nessas minhas performances
16 Cfe. Samuel beckett. como . Ed. Iluminuras LTDa. So Paulo. SP. 2003. P.28 17 Essas experimentaes eram feitas com o coletivo catadores de histrias, composto por Rafael Adaime, Ademilton Nego, Csar Rosa , eu e parceiros como: Cheli Urban, Juny Kraiczyk, Mila goudet, Rodrigo Falcon, etc. 16 experimentais que comungava respeito aos locais secretos que adentrava (reverncia) e impulsos profanos derivados de suas resistncias escatolgicas e iconoclastas (andrajos).
Talvez ao olhar de alguns moradores de rua eu estivesse processualmente me tornando uma louca-de-rua. Mais uma daquelas tantas aparies noturnas que freqentam as bolhas invisibilizadas; do nada aparecem freiras e padres travestidos e cerimoniosos; borrachos voltando para casa cheios de valentia; travestis ensandecidos procurando namorados; putas montadas para a caa comprando saquinhos de cola; policiais bbados roubando saquinhos de cola... Aparies - desaparies... Em uma espcie de deriva alucinada eu me enlaava s brumas desaceleradas das bolhas-fissuras da cidade, distendendo, alongando, esticando os fibrosos rasgos da cotidianidade. Provocaes polifnicas dos sentidos demasiados comuns para a nvoa espessa e bria das ruas.
Essas derivas me faziam lembrar a moa do Claro de Glauber Rocha, que atravessa o filme como uma vidente louca, cheia de panos e lenos, lanando profecias ininterruptamente seja em forma de palavras, seja em movimentos corpreos alucinados engendrados, seja somente vendo e ouvindo tudo que se passa 18 ... A moa, nessa belssima performance cinematogrfica singular testemunha da histria do ocidente: suas quedas, suas passagens, suas artificiosas mortes e ressurreies. Ela vai arriscando sua loucura por onde quer que passe, trazendo a tona fatos imemorveis, signos atemporais, imagens de criao e destruio a um s tempo, propondo um discurso autnomo aparentemente desligado dos fatos que, no entanto atualiza virtualidades relacionadas ao mo(nu)mento histrico que presencia: as catedrais romanas, os imponentes templos do Vaticano, a insurreio-68 na Frana, a vitria dos vietnamitas, os levantes e desmoronamentos dessa poca.
Em uma das cenas do filme, depois de uma demorada panormica sobre Roma onde aparece Glauber falando sobre revolues, desintegraes do imperialismo, rupturas tanto do nazismo quanto das revolues comunistas dos paises do terceiro mundo e das condies miserveis de existncia a que todos se submetem, surge a moa no interior de uma casa como que em transe pronunciando: Nesta floresta, nesta floresta que parece nunca terminar, havia tantos outros, tantas rvores que subiam... Era como o horizonte em cima, na vertical, como se a gente estivesse de cabea pra baixo. Lembro-me bem daquele espao infinito e verde no meio do fogo, atrs de voc, de voc que trouxe de volta a natureza silenciosa, muda, a que est comigo. Voc que o olhar verde atravs do espao transfigurado e eu a voz que fala, a voz que fala sem parar que diz no importa o qu. Atravs das coisas, atravs do tempo, atravs dos espaos para ouvir msica... 19 . Os discursos e movimentos incongruentes da moa rompem com significaes pr-determinadas e ampliam as interpretaes viciadas sobre um mesmo smbolo, seja ele relacionado ao papado, revoluo comunista, morte do pai, misria e marginalizao. Multiplicao atemporal e infinita dos signos e dos seus sentidos; a moa testemunha e cmplice da terra e da humanidade na terra; ela acompanha seus movimentos, deslocamentos, renascimentos; testemunha dos encontros, por isso no pode prometer, no tem imagens fixas do futuro nem utopias, nem
cheli Urban, Juny Kraitzsc e eu em parceria com Frei Lcio da Ong Cheiro de Capim - franciscano maluco, italiano - que passou cinco anos curando e cuidando moradores de ruas enfermos no centro de So Paulo, at 2005. 18 A concluso se impe por si: no h contradio entre labirinto e minotauro, Apolo e Dionisio, palavra e desrazo, pensamento e excesso, sabedoria e delrio, logos e mania. O que no significa que entre eles haja, ao revs, simples identidade ou mesmo continuidade. (...) Da desrazo razo h passagem e vai-e-vem, no excluso. Cfe. Peter Pl Pelbart. Da clausura do fora ao fora da clausura. Ed. Brasiliense. 1989. So Paulo. SP. Pags. 31-32. 19 Cfe roteiro do filme Claro 1975, de Glauber Rocha. Fragmento retirado do livro: Glauber Rocha- Roteiros do Terceiro Mundo.. Editorial Alhambra/ Tipo Editor Ltda. RJ. 1985. Organizado por Orlando Senna. P.430 17 objetivos - somente expressa a infinitude que a rodeia, criando estticas novas no corpo atravessado, como se inventasse seu prprio rito a cada novo acontecimento. Seu corpo atravessa o mundo e o significa... de novo... E diferente - sempre!
Metempsicoses... Aquele corvo de Allan Pe instalado na janela do mundo repetindo a desesperadora frase: Nunca mais, como que afirmando a morte existente em cada acontecimento... A cada encontro um esprito transmigrado... 20
Sentia em minha boca o devir errante dessa fala moa:
A ausncia desta cor que procurava entre o negro e o branco. O movimento esquecido, decomposto na geometria do espao. Do espao explodido como uma msica ausente, os urros destes grandes ces magros que ladravam no deserto no existem mais. E sua ressonncia dispersou-se na aridez da areia que se pulverizou no nada de uma memria minguada. E depois a profundidade deste mar abismal onde afoguei minhas lembranas, onde desapareceram as coisas que havia... Ento, naquele passado, naquele passado ultrapassado e que era reduzido a nada, que nos reduziu a nada, nos reduziu a zero, aridez selvagem e onde a minha boca arde como o infinito. Naquele deserto onde a pirmide assume uma forma que no tem mais nada de pirmide e algo que se torna monstruoso. Eu no sei mais... O ter no existe mais. H alguma outra coisa na profundeza do nada que agora somente movimento, movimento sem princpio nem fim, movimento de horizonte, movimento de alguma coisa unilateral onde a cor, o som, todas as formas se misturam no caos cosmodemonaco, em que esquecemos aquela que ento era chamada lucidez... Por isso eu erro, eu erro como uma coisa cristalina e nova junto a novos sons em que o perfume que poderia brotar no brota. Eu cortei a cabea mas ei-la aqui j se agitando de novo, uma sombra desbotada e ridcula. normal. O que est escrito, est escrito. Est ainda quente o ventre que concebeu a besta imunda 21 .
Besta imunda do homem, do ocidente, do vaticano, do primeiro trao inscrito na pele como sinal de pertencimento - a primeira escarificao. Por isso eu erro, erro, e o ter no existe mais... Mas a gurizada de rua cheira algo-como-ter pra caralho! E esse algo-que-alucina a sustentao da vida e da morte ao mesmo tempo. Talvez os ces magros ainda ladrem em um deserto urbano que se faz pblico e hermtico ao mesmo tempo; repleto de acasos, simultaneidades, narrativas transversas e dessincronias; desertos de terrenos movedios... Sempre cinzas... Que tudo se torne negro, que tudo se torne claro, que tudo permanea cinzento, o cinza que se impe, para comear, sendo o que , podendo o que pode, feito do claro e do escuro, podendo esvaziar-se deste ou daquele, para ser apenas o outro. Mas eu talvez me faa iluses sobre o cinza, no cinza 22 . Ces magros hermticos e desrticos que carregam as marcas corpreas da peleja no realizada, e no entanto perdida. Por acaso a imagem de um batalho de guerreiros derrotados no avizinham-se aos corpos alquebrados
20 Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo; e mergulhando no veludo; da poltrona que eu mesmo ali trouxera; achar procuro a lgubre quimera; a alma, o sentido, o pvido segredo daquelas slabas fatais, entender o que quis dizer a ave do medo, grasnando a frase: Nunca mais. Cfe. Edgar Allan Pe; Histrias Extraordinrias. Ed. Clube do livro LTDA. So Paulo. SP 1972. O corvo. Traduo achado de Assis. P. 233-237 21 Cfe roteiro do filme Claro 1975, de Glauber Rocha. Fragmento retirado do livro: Glauber Rocha - Roteiros do Terceiro Mundo.. Editorial Alhambra/ Tipo Editor Ltda. RJ. 1985. Organizado por Orlando Senna. P. 424-425. 22 Cfe. Samuel Beckett. O inominvel. Ed. Nova fronteira S/A Rio de Janeiro, RJ. 1989. P. 16 18 atirados nas ruas? Os enforcados instalados nas ruas das cidades tomadas pelos inimigos-de- guerra: o cinema, a nusea, as instalaes, os sgnos.
Reminiscncias... Corpos alquebrados modificados pelas foras matricas do mundo... Imagens-mutiladas... Revides derrotados atravessados por metal e cidade. Corpos-que-circulam e circuns-ferem-nos. Ciborgues e moradores de rua em processo de modificao corporal instalando-se pelas urbanidades... Um pouco de cpula seno eu sufoco!!!! Suruba e gesto.
Fluxos intensivos de foras invisveis atualizadas pelos gestos: corpo incorporado. Corpo-que- revela-e-expressa-intrincados-jogos-virtuais. Gestos que se manifestam num coletivo social por pura gratuidade ou necessidade, no importa, no isso que determina a sua funo. Seja qual for a causa de sua emergncia so capazes de intervir no sistema de significao do scius de modo a ativar multiplicidades de sentidos inovando espirais associativos, potencias sensrio- perceptivas e processos criativos como tambm so capazes de gerar rgidos sistemas de valores representativos devido a circularidade redundante do seu simbolismo no imaginrio cultural. As vezes acontece de no terem funo alguma, simplesmente no se inscreverem por no serem pertinentes s prticas discursivas historicamente determinadas, seja por serem associados a signos supostamente j conhecidos e consumados ou ainda por no serem capazes de produzir nenhum sentido coletivo. Para mim era evidente que os moradores de rua emitiam signos incessantes, assim como despertavam incessantes narrativas nos que o assistiam, mas de alguma forma essas narrativas externas pareciam-me to precrias quanto sua condio de existncia, pelo menos as narrativas viciadas ,repetidas pelos servios pblicos que deles se ocupavam.
Da meu desejo de cpula entre body modificators 23 e moradores de rua. No analogia. cpula gsmica e gozoza repletas de secrees secretas e sofridas. Suor e lngua. Viagens vulvnicas ou falo-aquosas do-outro-dentro-e-entre; aconchavos de tatuagens. Fino fio de corrimento e baba pingando da articulao entre dois corpos semiticos heterognos que por sua indecncia copular lubrificam maquinrios enferrujados do pensamento.
No se trata aqui de assinalar as semelhanas dos processos de alteraes corpreas dos moradores de rua e dos body modificators com o fim de identific-los, serializ-los, desloc-los de seus territrios prprios para forar-lhes um pertencimento descabido mesma comunidade corporal e sgnica... Mas notrio que algo se produz entre esses corpos-territrios... Um algo de gesto... Gestos que sustentam cenas de futuro e passado a um s tempo; que configuram planos corpreos-existenciais a partir de confluncias de vicissitudes, pulses, acasos, extravasamentos... Linguagens gestuais que introduzem nos terrenos da cidade, densidades e ontologias inapreensveis e no entanto, to evidentes.
Cpulas signicas entre body modificators e moradores de rua inscrevendo-se na cidade pblica. Corpos atravessados por ganchos de aougue, balas de revlveres, quelides provocadas voluntria e/ou involuntariamente, queimaduras de brasa, ferro quente, riscos de facas na pele, sangramentos produzidos por si mesmo ou por/com outrem; escarificaes e furos epidrmicos. Uns assemelhados a animais por prticas de implantes e tatuagens, outros por abandono da posio ereta em funo de suas vidas horizontalizadas pelas caladas...
...
23 Grupos de pessoas que se dedicam interveno corporal a partir de tatuagens, prticas de peircing, implantes de objetos, escarificaes, cortes, modificaes da silueta, etc. Fala-se tambm em body art, que so pessoas (artistas) que utlizam o prprio corpo como suporte da arte. 19
Fui a um encontro de body modificators para prticas de suspenso numa antiga fbrica de temperos na zona sul de So Paulo 24 . Grupos de corpos modificados, lnguas cortadas ao meio e guampas implantadas na testa aparecem aos poucos. Se conhecem, celebram reencontros, bebem juntos, preparam-se para as suspenses que logo iniciariam. Um grupo furava com ganchos de ferro os joelhos de um, as costas do outro, os peitos de um, a silhueta do outro... Ferro-furo-sangue-pele. O outro grupo preparava as cordas, as roldanas e os demais equipamentos necessrios para o rito. As pessoas de corpos atravessados por ganchos iam uma a uma sendo suspensas at ao teto. E suas dores de perfurao eram vividas notoriamente como afetos modificados. _ O que voc tem ver com moradores de rua? Perguntei pra alguns deles, um me respondeu: _ a violncia da imagem, eu acho, a violncia.
E aquele homem, conhecido como mago da body modification - Fakir Musafar resolveu sistematizar os jogos mais utilizados pelos body modificators em sete categorias 25 :
- Jogos de contores (modificao da forma e crescimento dos ossos); - Constries (compresso do corpo, utilizao de amarras, ataduras, cintures, cordas, borrachas); - Suspenses (pendurar-se em ganchos, cruzes, atravs de mltiplos furos no corpo); - Privaes (enclausurar-se, congelar-se, jejuar, privar-se do sono, limitar os movimentos, fixar-se em gaiolas e sacos); - Impedimentos (usar adereos de ferro, pulseiras pesadas, correntes); - Penetraes (invases, flagelaes, perfuraes, ato de picar-se, espetar-se, deitar em camas de pregos, injetar agentes qumicos no corpo); - Jogos de fogo (queimaduras, choques eltricos, marcas feitas a ferro e queimaduras).
Esse xam das transcorporalidades tm investido exaustivamente em pesquisas de modificaes corporais, operando com tcnicas oriundas dos mais variados campos culturais, misturando prticas tribais, rituais religiosos, acessrios de moda, costumes comunitrios e modernssimas invenes tecnolgicas da fsica e medicina. Seus mtodos de iniciao consistem no s nas prticas de alteraes corporais, mas tambm nas alteraes subjetivas delas advindas como as variaes dos planos sensrio-perceptivos, imerses espao-temporais, constituies de coletivos de corpos modificados. Os rituais propostos por Musafar, assim como muitos praticantes da body modification tm como uma de suas evidentes funes produzir a partir das alteraes corpreas, novos modos de subjetivao e constituio de corpos- coletividades.
As dores provenientes das prticas de alteraes orgnicas so para os modern primitives 26
afetos fundamentais para a concretizao dos rituais de passagem. No so somente as modificaes dos contornos dos corpos que efetivam as transformaes, mas sim todos os
24 Refiro-me ao Evento Suspension Suscon Brasil 2005 Cutuvi/So Paulo. http://www.neoarte.net / por Filipe B. Jlio. 25 Cfe. Beatriz Ferreira Pirez; O corpo Como Suporte da Arte Piercing - Implante - escarificao Tatuagem. Ed. SENAC. SP. So Paulo. SP. 2005. P. 115,116. & Cfe. site: http://www.bmezine.com/ 26 Modern primitives; O termo surgiu em 1967 para indicar o modo de vida de indivduos que, mesmo sendo membros de uma sociedade que se desenvolve baseada na razo e na lgica, se guiam pela intuio e colocam o corpo fsico como o centro de suas experincias (...) Fakir Musafar adotou esse nome no ano de 1978, inspirado em um indivduo que, vivendo na Prsia por volta do ano de 1800, passou dezoito anos de sua vida perambulando pelas cidades com punhais e outros objetos enterrados no corpo, tentando explicar s pessoas os mistrios que lhe permitiam fazer tais coisas. 26 Cfe. Beatriz Ferreira Pirez; O corpo Como Suporte da Arte Piercing - Implante - escarificao Tatuagem. Ed. SENAC. SP. So Paulo. SP. 2005. P102- 103 20 conjuntos de conexes e (in) determinaes processuais que levam o sujeito a desejar mudar o corpo e participar dos coletivos de corpos modificados; no h interesse em anestesiar a dor porque ela tem a funo de dar a dimenso real das alteraes produzidas, funcionando como sensao subjacente criao das novas formas corporais. As inusitadas estticas criadas durante as alteraes e os cuidados necessrios durante os perodos de cicatrizaes operam como disparadores de novas concentraes, densidades e intensidades que se instalam no corpo do sujeito tanto quanto as marcas... Todo esse processo de modificaes corpreas- subjetivas vividas torna-se por fim, instalaes individuais e pblicas concomitantemente, que expem abertamente na cidade real/virtual as inscries sgnicas dos novos corpos tornados linguagens.
E os moradores de rua que corporeidades produzem? Teriam os jogos ritualsticos das prticas de modificao corporal alguma aproximao com as condies orgnicas-existenciais dos habitantes dos domnios do demasiado? Quero dizer, possvel insistir na cpula espasmdica corporal e sgnica entre os moradores de rua - homens trapos - quase vencidos de guerra e os body modificators - body art - cyborguezia?
A mulher de rua carregando seus dois filhos nos braos interpelada pela carrocinha-que- recolhe-crianas-vira-latas. Tiram-lhe os dois filhos dos braos e os levam para as gaiolas- infantis-assistenciais - luta perdida de mulher perdida - risca o peito com a unha encravada, urra na rua desvairada e delinqente mostrando aos passantes suas tetas encravadas de leite, esguicha-as na garrafa de coca-cola. J no ereta, j no tm direitos... Bebe seu prprio leite-coca-cola, cadela-tetrapdica, coando as sarnas das pernas com os dentes.
Corpo modificado. Desvario inconseqente-inconsciente de fmea-horizontalizada. Body modification antiantropocntrica performatizada. Os cacetetes da polcia legitimados por violentos cdigos jurdicos, os empregos sem consolo, as panelas sem refogo, os homens engravidantes, as letras-papis-cobranas incessantes so foras-matricas que se atravessam no corpo da mulher-cyborgue-cadela revelando percursos, processos de iniciaes, ritos de passagem, dores e estticas. Mulher instalao, perfurada por ( i ) materialidades demasiadas...
Jogos de contores, constries, suspenses, privaes, impedimentos, penetraes, flagelaes, furos epidrmicos, utilizaes de amarras de ferros parecem ser prticas tambm comuns aos coletivos de moradores de rua. Coberta no cho encima do papelo, roubam o papelo, chove no papelo, o cobertor que no tapa o p, p de frio-e-frieira; noites cheias de sarna e lua e chuva perfurao no estmago de fome e tatuagem feita a pedao de pau de coar as costas, amarras da algema policial confundidas com a grade do metr impedimentos de ir e vir - a cerca da praa; o frio do cho-ladrilho - extenso do travesseiro-de-paraleleppedo, as penetraes do escuro, do estupro, do prazer sempre negocivel... O revlver da polcia e do vizinho de calada, de cachaa e de destino... E as dores sofridas durante os processos, as vezes muito lentos, de alteraes corpreas produzidas pela rua, por acaso no constitui tambm inusitadas concentraes, intensidades e afeces encravadas na pele que subjetiva a pele e tudo-mais? Alteraes-mais-que-orgnicas... Densides-dos-dedes...
(...) Gente morando no subsolo, nos esgotos subterrneos ou mesmo em buracos no cho cavados a colher - estranhas alianas, do devir-porco para o devir-toupeira ou devir-tatu, passando pelos devires urubu, rato e caranguejo. Que tipo de bichos, que tipo de hibridizaes esto se formando com tais agenciamentos? (...) Que espcies de desmaterializaes e rematerializaes encontramos a neste bloco semitico, 21 que perceptos e afectos so mobilizados, que anti-matrias nesse agenciamento os seres liberam e que molecularizaes ambientais eles contraem? Seriam os nossos autnticos mutantes, no aqueles hollywoodianos, bonitos demais, saudveis demais, poderosos demais, mas de uma outra espcie, humanamente mais prxima, triste e real (...) Com a presena dos novos hbridos entre o homem e o animal, a quem iremos recorrer nesse impasse, Ibama ou Direitos Humanos? 27 .
Poderes matricos atravessados nos corpos-almas... Demncias animalizadas como linhas de fugas possveis... Sacrifcios e resistncias de corpos instalados num arbitrrio espetacular insistente... insistente... insistente...
a partir da, nesse espao mnimo maximamente atravessado, o louco (morador de rua) torna-se a tela de projeo intensssima do Fora total. Passam por ele todas as foras, seus combates, os diagramas de poder, os estratos, os saberes, as palavras, as coisas, os sons, as personagens da Histria, os elementos, as cores. A perda do corpo isso: tudo cravando a carne, perfurando a pele, atravessando-o, desmembrando-o, projetando sobre ele imagens materializadas, explodindo-o, incendiando-o, engolindo-o. Esse o corpo despedaado, corpo-coador, corpo-tela, cinema vivido nas vsceras, superfcie feita profundidade. Se h profundidade no louco (morador de rua), nesse sentido, do fora adentrando-o-corpo-tela. 28 .
Joelhos encolhidos costas curvas me arco aperto o saco contra minha barriga me vejo agora de lado eu o agarro o saco estamos falando do saco com uma mo por trs das costas o arrasto para baixo de minha cabea sem solt-lo nunca o solto 29 .
Que inscries possveis produziriam as corporeidades-linguagens-telas da misria instaladas na cidade? Seria possvel deflagrar a partir desses corpos marcados, uma crise amplificada que produzisse efeitos para alm das lutas de classes identitrias, algo como uma convulso corprea social? Que mecanismos empregar-se-iam para amplificar os gestos da misria de modo a faz- los vibrarem mais, dilatarem-se, deslocarem-se para alm de seus circuitos viciados a fim de constiturem-se como linguagem produtiva no socius?
27 Cfe. Marcos Guilherme Belchior de Arajo. http://oestrangeiro.net . Texto: Nossas Baias Coletivas 25/12/2005. 28 Cfe. Peter Pl Pelbrt. Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura. Loucura e Desrazo. Ed. Brasiliense. 1989. P. 171 grifos meus. 29 Cfe. Samuel beckett. Como . Ed. Iluminuras LTDa. So Paulo. SP. 2003. 22 2 REVERNCIAS E ANDRAJOS / REDES E LIMINARIDADES
Por entre saturaes odorferas e paranicas, enredos de tramas reais, acidentes mnemnicos e signos factos-ficcionais, eu arrastava minha pesquisa trpega e vadia, que respondia s tentativas de qualquer estruturao desarrazoando nos lamaais de onde emergia.
Essas situaes de arriscos e vulnerabilidades desafiavam-me a tentar criar planos de gestao das coisas, maneiras de tornar essas experincias algo-de-inscrito-no-scius e ao mesmo tempo alargar o scios at as dimenses demasiadas e alm delas. Era tempo no enanto, de recortes. Recortes e sobrevivncias...
Essa gestao foi se delineando de modo mais apreensvel a partir do meu encontro/recorte com a performance e suas teorias ligadas poltica, antropologia e semitica; sua genealogia porosa, multifacetada, ritualstica, processual, estruturada numa collage expandida, intrinsecamente comprometida com a manipulao e liberao de cdigos culturais foi o agenciamento necessrio para a fruio das experincias. Interessante a crtica semi-especializada em performance, quando atravs da percepo do ato performtico cria significaes e sentidos inusitados.
Tais agenciamentos conduziam-me a nomadismos criativos em meio a variadas matilhas. Experimentaes e travestimentos permeados por brincadeiras sonoras, pinturas corpreas, intervenes espaciais nas ruas com moradores de rua e tambm atuaes um pouco mais elaboradas como produo de pequenos eventos autnomos e anrquicos em determinados locais quase-secretos, onde ajuntava pessoas que manipulavam diferentes linguagens advindas dos campos da psicologia de grupos, da arte contempornea e da tecnologia digital. Precria reverncia - Excntricos andrajos: exotismo hipersgnico em meio s instalaes escatolgicas, ou ao contrrio disso, ao contrrio de qualquer coisa na verdade esses acontecimentos teciam seus prprios sentidos na medida em que se efetuavam.
Se por um lado eu cedia a um intransigente desejo de criar pequenos happenings plurilingusticos com os moradores de rua, trazendo para seus espaos uma aura criativa e sofisticada de comunicao que implicava corpos, matrias e tecnologias incomuns ao seu cotidiano, por outro lado eu desejava promover dentro dos meus outros circuitos de convvio, modos de acessibilidades a condies existenciais de rua com todas nuances e densidades que eu percebia.
Arranhando um resumo ousado eu diria que a vida-de-rua impelia-me a produzir eventos de arte (conectivos-interventivos-pblicos), que aconteciam como happenings-rituais tanto nos mocs quanto nas galerias de arte e universidades, que se caracterizavam como uma pequena baguna em funo da falta de ordenao dos acontecimentos e abertura irrestrita ao acaso impondervel; mas tambm se caracterizavam como rara possibilidade de ampliar modos de comunicabilidade, amplificar realidades scio-individuais-subjetivas, intensificar cdigos e signos, promover imerses de sentidos atravs de manuseio de tecnologias fossem elas corpreas, matricas ou mediticas. Tratava-se do no medido, daquilo que no se inscreve enquanto instncia nos cdigos scio/jurdicos, mas que de qualquer forma se expressa. Aleatoriedades de rua desconhecidas inclusive dos seus prprios protagonistas.
23 Reminicncias: Esses portadores da cidade... Cidade-porta-porto convite-e-proibio. Sem sada Sem entrada. Um-entre-mundo-que--mundo. Entre a cidade murada, o fora protegido pelo IBAMA e as fazendas cercadas de arames e fios de eletro-choque h o mundo habitado pelo moribundo. Que mundo esse que o moribundo habita e que gestos esse mundo promove?
A busca por esse incomensurvel tornara-se o elemento mais importante na proposio dos eventos: procurar nas fissuras do cotidiano e da linguagem suas constelaes inenarrveis. Poderiam as tecnologias performticas e multimiditicas atravessar os vus endurecidos da falta, sobrepostos experincia trgica do morador de rua? Os vus culturalmente criados a partir de valores ascendentes e ascpticos que costumam reduzir a expresso vital do-que-vive-na-rua pura incapacidade de adaptao ao sistema econmico, inabilidade de articular o discurso da linguagem lgica e patologia crnica seriam fatores impeditivos na busca de outras variabilidades?
A essas questes somavam-se inquietaes relativas s materialidades utilizadas pelos inumerveis mulas-marmelas ao produzirem suas transitrias moradias nos espaos pblicos... Esses materiais se transpostos para outros espaos aleatoriamente escolhidos carregariam consigo algo-da-rua? Quero dizer, atravs das transposies espaciais das lonas pretas, arames, caixas de papelo, cobertores cinzas, sacos-de-cola, sacos-pretos-de-lixo - signos amplamente difundidos nas instncias miditicas e imaginrias da populao em geral - poder- se-ia acionar sensaes e corporeidades que se avizinhassem ontologicamente da rua? Devires- de-rua-matricos, sistemas gestuais, rudos sonoros deslocados de ambientes impulsionando variaes afetivas e perceptivas da-e-sobre-a-rua... Talvez Alex Kazuo, o alfaiate 1 , compreenda isso quando recolhe buclico - peas de vesturio abandonadas por moradores de rua e as transforma em indumentrias da realeza.
Falando em inspirao secular, Diotima in Scrates alucinando a lgica:
Socrates: _ Que dizes, Diotima? feio ento o Amor, e mau?
E ela: _ No vais te calar? Acaso pensas que o que no for belo, foroso ser feio? _ Exatamente. _ E tambm se no for sbio ignorante? Ou no percebeste que existe algo entre sabedoria e ignorncia? _ Que ? _ O opinar certo, mesmo sem poder dar razo, no sabes, dizia-me ela, que nem saber - pois o que sem razo, como seria cincia? - nem ignorncia - pois o que atinge o ser, como seria ignorncia? - e que sem dvida alguma coisa desse tipo a opinio certa, um intermedirio entre entendimento e ignorncia. _ verdade o que dizes, tornei-lhe. _ No fiques, portanto, forando o que no belo a ser feio, nem o que no bom a ser mau. Assim tambm o Amor, porque tu mesmo admites que no bom nem belo, nem por isso vs imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que est, dizia ela, entre esses dois extremos 2 .
1 Alex Kazuo alfaiate paulista que desenvolve pesquisa esttica com roupas de moradores de rua. Atualmente tem coletado roupas deixadas nas ruas por moradores de rua criando com elas algo que lembra vestidos de rainhas da idade mdia. 2 Cfe. Plato. O Banquete. Coleo Os Pensadores. Ed. Abril Cultural . So Paulo. SP. 1983. 24 Cpula sgnica entre o tetrapodismo do morador de rua e a dana; DANA DAS TREVAS de Hijikata. Buto-dana-de-morte 3 - mais um dos efeitos da bomba lanada sobre Hiroshima e Nagazaki! Dana que se torna ela prpria exploso de corpos e cdigos. As imerses dos corpos vivos nos regimes espao-temporais dos corpos em putrefao iam aos poucos subsidiando novas corporeidades: insetos e larvas jogados em linhas de ancestralidades... Hijikata e seu parceiro Kazuo Ono construam a partir de suas experimentaes necrotricas uma espcie de cartografia dos movimentos da morte, que somadas s produes imagticas, poticas e sonoras configurava-se como inovao na linguagem da dana 4 . O Buto entendia as aes das leis fsicas sobre o corpo morto e seus processos naturais de decomposio como modo de afirmao da vida em seu sentido ampliado: replicao e continuidade - a vida jaz no movimento!
Reminiscncias: Hecceidades avolumadas em meu imaginrio andarilho: corporeidades... materialidades... Imersibilidades... O tetrapodismo do homem despacho insinuando danas de sombras e trevas; suspenses e tecnologias instaladas nas fissuras ordinrias... Quase-danas- nos-portes. Portadores-de-ladrilhos. Ladres. Tremulao de bandos humanidicos descavernados... Intolerveis vira-latas imemorveis! Desistentes do progresso. Insistentes no inominvel. Princpio e resto.
Eu estava testando essas transposies matricas, corpreas e imersivas assimiladas junto aos moradores de rua em vrios outros contextos da cidade. Os movimentos existentes nos estados de putrefao que Hijikata to bem compreendera avizinhavam-se da minha busca. No meu caso no era dana - era quase dana. Sombra de buto-de-rua tatuando gestos nos cotidianos murados. Eu chafurdava nessa tepidez de lama-e-sombra arremedando corpos e cheiros, transladando plsticas. No se tratava de transformar pessoas da sociedade contribuinte em moradores de rua, mas de abrir buracos no seu/meu umbigo ordinrio. Era preciso repensar a rua! Reviver o espao e o tempo pblico! Ampliar os sentidos dessa vida-de-rua to facilmente associada morte, como se esse estado de existncia fosse o ponto final da experincia. No possvel que se note o movimento que essa morte produz? Os movimentos que Hijikata putrefava-em-si no remexia nada no olho que o assistia? O que se d entre a calada e o alquebrado? O que vibra no tetrapodismo caladificado? Depressa a cabea no saco onde com o perdo da palavra tenho todo o sofrimento de todos os tempos no rogo uma praga por isso e uivos de gargalhadas em cada clula as latas tinem como castanholas e debaixo de mim convulsionada a lama gorgoleja peido e mijo num s flego 5 .
Gestos e materialidades tatuados nos espaos pblicos da cidade. O fato de residirem nas caladas e praas, criarem inumerveis estticas matricas para proteo corprea, furarem o pacto social relativo a trabalho + moradia + salrio = sobrevivncia, se drogarem incisivamente, parecia-me algo que ia muito alm da cansativa esttica da misria ou a crtica a essa esttica; parecia mais um aceno... Um sacrifcio... Um resto explcito... Precrio... Um movimento nfimo e infinito. Gesto. Gestos.
Estava ficando cada vez mais difcil criar esses eventos transconectivos, pois os elementos iam crescendo em quantidade e intensidade. J no podia pensar na body modification, por exemplo, s como uma analogia copular-signica ao corpo moribundo entregue aos atravessamentos
3 Ankoku but dana das trevas, criada em 1959 por Tatsumi Hijikata, em Tquio, Japo. Cfe. Christine Greiner. But em evoluo. Ed. Escrituras. 1998. So Paulo. SP. P. 97 e Cfe. Christine Greiner. O teatro N e o Ocidente. Ed. Annablume Fapesp. 2000. P. 94-95. 4 Fukan-zu: uma espcie de mapa do buto. Cfe. Christine Greiner. O teatro N e o Ocidente. Ed. Annablume Fapesp. 2000. P. 94-95. 5 Cfe. Samuel Beckett. como . Ed. Iluminuras LTDa. So Paulo. SP. 2003. P.46 25 matricos da rua; to pouco conseguia pensar o artista ou o manipulador de programas eletrnicos como expositor de um aparato-obra em busca de interlocuo com novos pblicos. Queria junt-los-nos todos num espao/tempo imersivo-experimental a fim de deflagrar processos.
Mistura heterognea de condies existenciais cronificadas: moradores de rua, virtuoses musicais, modificadores corporais, programadores de softwares, instaladores transmdicos, interventores pblicos; todos se encontrando juntos nuns experimentos coletivos, como se fossem um aglomeradinho de traos em amassadura do tecido/scius, que seria abarrotado, cortado, picado, espichado, encolhido, ampliado; de modo que ao scius caberia uma remexedura tramtica para reincorporar seu tecido-partido, re-acoplado agora como tecido- prtese. Uma pequena taz (zona autnoma temporria), um micro carnaval, um ritualzinho de celebrao, uma ao de interferncia, um happening, uma performance em passagem deflagraes de sinais fracos?
Pensando performances e eventos conectivos transfaceados:
Performance: vrus artstico deformativo congnito transmitido atravs de promiscuidades miditicas-geracionais, de linhagem ancestro-futurista-dadasta-surrealista-underground- avantgard-contracultura-beat-hippie-wave-punk-raves-festivais-e-experimentalismos-seculares. Performance-corta-e-cola! Cut up de modas e ataduras. Drogadio impudica de roqueiros plsticos. Collages e ontologias.
Renato Cohen era assim como encenador: ousado-desordenado. Revidava sua irritao com a burocracia caotizando as coisas da arte. Juntava grupos de diferentes especializaes como cantores lricos e web designers, performers e programadores. Misturava msicos, loucos e terapeutas ocupacionais (me refiro a companhia teatral Ueinzz 6 , composta por usurios de servios de sade mental, coordenada por Peter Pl Pelbart e dirigida por Srgio Pena). Tambm flertava com a morte de um jeito medroso e proftico: um aviso prvio de sua morte prvia.
O conheci em 2001 num curso em Porto Alegre na Terreira da Tribo, uma companhia de teatro que existe desde os anos 70. Foi levado por Julio York, um dos mestres da intensificao do corpo perceptivo. Renato distribuiu seus textos dadastas pelo grupo e impregnou o salo de rudos loucos, vozes desconectadas, barulhinhos e estalidos. Brincvamos de criar sentidos a todos e quaisquer atos - quaisquer sentidos. Depois, as provocaes polifnicas improvisadas. Sem representaes, s conexes de intensidades estticas. O grupo falando em lnguas estranhas e testando contatos, quase-transe. Pentecostes!
Quando cheguei em So Paulo o procurei. Estava atrs de sua esquisitice to-lcida. Li seus livros e artigos. Assisti suas aulas na ps-graduao da Semitica da Puc, tambm seus espetculos espalhafatosos e seus ensaios com a turma-usuria. Fui morar com Daniel Sda, um dos seus assduos colaboradores desde o tempo de graduao em artes plsticas na Unicamp. Aos poucos fui conhecendo grupos com quem Renato trabalhava, artistas com quem contava para sua empreitada artstica/conceitual: Guto Lacaz, Otavio Donasci, Samira Brando, Rogrio Borovick, Gisele Freyberger, Felipe Spndola, Mirco Zanini, Lucio Agra, Maura Baiocchi, entre muitos outros. Fui assim pelas beiradas compreendendo certas composies do mundo criativo desse encantador encenador brasileiro.
6 http://ueinzz.sites.uol.com.br 26 No prefcio do primeiro livro de Renato Cohen - Performance como Linguagem 7 - Arthur Matuck fala da grande importncia da pesquisa do autor no cenrio da arte brasileira, que segundo ele serviu tanto para aprofundar esttica e conceitualmente o gnero artstico da Performance, quanto para incentivar a incluso de performances em eventos do circuito cultural, pois apesar dessa linguagem existir enquanto prtica artstica desde os anos 70, no Brasil em plenos anos 90 e 2000 ela ainda no tinha conquistado um slido territrio de inscrio nas instituies de arte e no imaginrio social. A partir dos anos 70 inmeros artistas brasileiros oriundos das artes plsticas e do teatro dedicaram-se, quase que exclusivamente a essa forma de atuao, mas devido a ampla abertura proposta por essa nova linguagem, somada ao fato de ter sido construda na esteira das artes de vanguarda europia e americana e com a grande valorizao da mdia brasileira aos novos estilos produzidos no cenrio internacional, muitos trabalhos foram feitos de modo a copiar mal e parcamente as criaes estrangeiras, refletindo segundo Matuck, um tpico processo de colonizao cultural 8 ; desse modo, a pesquisa de Renato Cohen teria representado um esforo de mudar essa situao.
Logo no incio desse livro Renato fala das motivaes que o levaram a escolha desse tema - performance - ressaltando dois pontos: um, a identificao com a cultura underground (avisando que j no equivale ao que anteriormente conhecia-se como cultura subterrnea), e o outro, a busca da cena teatral como expresso, mais do que representao: expresso da vida mesma.
Reclama de um vcuo existente em nossas produes que investe muito pouco no imagtico, no no-verbal, em construes mais irracionais; salienta o fato de que livros como o Teatro e o seu Duplo de Antonin Artaud e escritos beats s foram traduzidos no Brasil vinte anos depois de serem publicados. Segundo ele essa carncia promoveu um efeito exagerado nas produes locais, de modo a desgastar a performance rapidamente diante do pblico, em funo de grandes quantidades de espetculos oportunistas e de mau gosto. Qualquer coisa era performance. Para Renato essa orgia criativa e retardatria era happening e no performance.
Quase no fim do livro ele introduz uma prancha comparativa entre a linguagem do Happening e da Performance onde traa diferenas entre as duas linguagens, apesar de consider-las como duas verses de um mesmo movimento. As diferenas bsicas residiriam no fato do Happening ser uma linguagem estabelecida nos anos 60 e ter como influncias tericas e prticas o universo da contracultura e do movimento hippie; a Performance por sua vez vai se configurar como linguagem nos anos 70, sofrendo de um zeitgeist punk-niilista que nutria um descrdito crescente para com as ideologias libertrias e alternativas. Nelson Aguilar endossa esse ponto de vista dizendo que o happening era uma situao social criada para manifestar contestao e esse tipo de arte s se justificava pelas discusses polticas que se produziam nos anos 60, pois nos anos 70 elas no importavam mais. Happening para ele era a arte de criar situaes e ambientes de descontextualizao onde as pessoas vivenciavam outras possibilidades de vida que soava como uma provocao vida poltica e social da poca, enquanto performance nada mais que uma linguagem tal como a pintura, tal como a msica onde o artista desenvolve a sua idia atravs de toda esta vibrao energtica que ele pe 9 . Para Cohen o que vai diferenciar efetivamente a atuao de um e outro a preocupao individualista, esttica e conceitual que a Performance retoma, abrindo mo de um certo experimentalismo espontanesta
7 Cfe. Renato Cohen. Performance como Linguagem. Prefcio. Ed. Perspectiva.S.A. So Paulo. SP. 2002 8 No Brasil, no entanto, a absoro da performance refletiu um tpico processo de colonizao cultural, no qual os mais recentes avanos da cultura americana ou europia so excessivamente valorizados pela mdia e assumidos de maneira rpida e superficial, gerando eventos, obras e publicaes equivocadas, e um pblico despreparado. Cfe. Renato Cohen. Performance como Linguagem. Prefcio. Ed. Perspectiva.S.A. So Paulo. SP. 2002 9 Arte em Revista. Ano 6. n8. Independentes. Ed. CEAC. So Paulo. SP. 1984. P.40 27 que o happening cultiva 10 . O que as manteria conectadas seria a estrutura de ambas as linguagens, que para ambos pesquisadores a collage.
A Collage atravessa o sculo XX em constante processo de variao, propagando-se, estendendo-se, entrecruzando foras sensrio-matricas, alternando-se em diferentes composies, esgarando contornos obsoletos, justapondo linguagens, acumulando vizinhanas e estratos para logo desdobrar-se em novas excentricidades. A Collage foi o princpio ativo de obras como as Mers-Baus de Kurt Schwitters, concertos-intermiditicos de John Cage, hipertextualidades de William Burroughs, deslocamentos ambientais de Arthur Barrio e Kaprow, aktions de Joseph Beuys e Fluxus, edies mixadas dos vdeos-artes, imerses multimdicas, sons experimentais eletrnicos em cena, cut ups do rosto de Orlan, hologramas interativos, intracorporeidades virtualizadas e outras.
Independentemente dos consensos histricos relativos aos envolvimentos sociais e polticos propostos pelo Happening dos anos 60 e sua influncia na construo da linguagem da performance arte nos 70, cujo carter era mais esttico e especular, para mim o que Renato Cohen propunha abarcava isso tudo e muito mais: um movimento scio-esttico: collage- contempornea.
Ao pensar a performance como collage de matrias, tessituras, corpos, atualidades e virtualidades culturais, as produes artsticas de carter mais espetacular se tornam s-mais- uma das infinitas composies de expressibilidade 11 . Ao meu ver a Performance proposta por Renato emerge dessas profusas conectagens matricas imerso/subjetivas - Collage-expandida libertinagem tica-esttica. Putaria entre corpos, emissores, receptores e tecnologia.
A impresso que tive em alguns espetculos de Cohen que eu estava habitando uma zona avizinhada do que eu desejava que fosse a prpria vida: um tempo-espao de sade coletiva e inveno onde a compreenso das coisas ziguezagueiam por entre mquinas, corpos e barulhos, sem impedimentos a imprescindveis solides e pequenas doses de violncia. Esses eventos no me reportavam noo de hiperblicos-ecletismos-massificados-contemporneos, mas a uma desordem pungente, uma ambientao imersiva, um extraordinrio singular.
O pblico carne-osso no entanto, ainda ocupava o lugar daquele-que-assiste-a-obra. Evidentemente que era impelido a movimentar-se de um lado a outro, assistir trabalhos sob
10 Jorge Glusberg diz que a razo dessa distino mantida por crticos e performers existente entre happening e performance de fcil compreenso se tivermos em mente as seguintes oposies: a) desconstruo em contraste com a reconstruo; b) ausncia de reflexo especular em contraste com a utilizao do reflexo especular, c) ausncia de envolvimento massivo em contraste com envolvimento massivo; d) confuso em contraste com discriminao. Cfe. Jorge Glusberg. A Arte da Performance. Ed. Perspectiva. 2002. 11 Para muitos tericos como Victor Turner, Richard Schechner, Diana Taylor a essncia da linguagem da performance pensada como fenmeno de expressibilidade encontrado nas mais variadas formas de dramatizaes coletivas: o estudo da performance tem sido definido por vrios autores como uma combinao de antropologia, artes, e estudos culturais no exame de um determinado conjunto de atos sociais, tais como rituais, festivais, teatro, dana, esportes e outros eventos, permitindo a discusso e o entendimento intercultural. Assim, no estudo da performance, os valores e os objetivos da cultura so vistos e percebidos em ao, oferecendo a possibilidade de questionamentos crticos na compreenso de prticas sociais, como os aspectos da vida cotidiana e at mesmo a complexa rede de movimento social da ps-modernidade. Portanto, podemos concluir que a performance um modo de comportamento, uma forma de agir e de pensar sobre as prprias atividades humanas. Cfe. Claudio Guilarduci.Revista: O percevejo; Estudos da Performance.Revista de Teatro, Crtica e Esttica. Ano 11. n12. 2003. ISSN 0104-7671. Departamento de Teoria do Teatro. Programa de Ps-graduao em Teatro. UNIRIO . Performance nesse sentido, adquire um carter antropolgico e se revela enquanto manifestao e elocubrao do scius. O prprio Cohen ao tentar defini-la fala em: arte de fronteira, arte no intencional, interveno e blefe. Cfe. Renato Cohen. Performance como Linguagem. Prefcio. Ed. Perspectiva.S.A. So Paulo. SP. 2002. P. 49 28 vrios ngulos por causa das propostas de deslocamentos dos corpos e das instalaes espaciais, era surpreendido por ataques artsticos-sbitos de grupos jovens com pesquisas pouco conhecidas, mas a grosso modo ele estava l: - o pblico; para quem no final das contas o produto-obra era apresentado.
Com seus performers e colaboradores Cohen ia mais fundo do que ia com seu pblico. Saiam juntos em busca de viver experincias coletivas nos contextos mais diversos, tanto no campo quanto na cidade a partir dos rituais prprios a cada espao. Essas vivncias serviam como disparadores de processos criativos e investigativos: - contagem de sonhos, experincias xamnicas, usos de plantas de poder, exerccios de concentrao e tcnicas de respirao - ; o universo subjetivo de cada um servia como material fundamental para construo da obra. Ao se referir ao projeto teatral do grupo Orlando Furioso onde dirigiu a pea: Sturm Und Drang / Tempestade e mpeto (1990-1993), Cohen fala que a criao da cena teve como sustentao noes como arte/vida, arte no-naturalista e cena sem representao que valoriza o cotidiano com sua face de repetio e imprevisibilidade. Nessa pea foi (...) desenvolvida uma encenao sem submisso palavra e narrativa aristotlica utilizando toda fonte de criao imagens, memrias, frases, movimentos, (...) uma relao viva com o processo criativo e a exacerbao do caminho sensvel, intuitivo, sensrio, prprio do domnio das artes 12 .
Eu sentia um pouco de falta da participao efetiva do pblico nos espetculos de Renato, e cobrava em baixo tom, uma dose a mais de crueldade 13 . Criava alternativas cmicas como quando devaneava com Lygia Clark enredando seu pblico em redes, linhas e babas; metendo- os em tneis plsticos claustrofbicos quase os asfixiando. Por traz de sua sublime arte teraputica e seus cuidados quase-zen eu a imaginava impondo cruis desafios ao seu pblico trazendo-lhe para experimentos radicais de solitude e nusea, depois lhe soprando os ouvidos com delicadeza dando-lhe barulhinhos de conchas tropicais. Ela os fazia parir e androgenizar; perder o sexo e a identidade, depois comungava-os em canibalismos de frutas-orgos. Comensalismos tribais. Os objetos eram em suas mos suportes-dispositivos para alterao perceptiva. Alterao dolorida, suponho. Sempre . Esse era seu concomitante espetculo e revide. Revide contra a paralisia dos corpos e percepes. Ela foi a fundo na mexedura estrutural das afetividades do pblico. Dizia Marquesa-Lygia-de-Sade que estava acostumada a enfrentar crises, surtos e desmaios em seus settings psicanrtsticos 14 . Enquanto isso o bobo- Oiticica-da-corte baixava a favela no museu, e seu pblico tinha que tirar os sapatos para pisar nas britas de sua favela santa. Precisava levar o pblico a transes olfticos e intensidades suprasensoriais, dar uma tropicaliada em seus sentidos. Parangoleava-os trazendo para a galeria seus comparsas de favela - passistas da Mangueira que muitas vezes no entrariam na galeria - no possuam gravata nem convite -, ningum se convencia que a ocupao da favela no MAM na exposio Opinio 65, por exemplo, era a prpria arte; o pblico atnito foi obrigado a assistir a cena da excluso-obra 15 . Ahahahahahaha!
No incio do seu trabalho Renato operava com dois topos estruturais para pensar a relao emissor/receptor ou performance/pblico: um seria o modelo esttico e o outro mtico. O esttico seria o teatro convencional que funcionaria de modo a delimitar estrategicamente os lugares
12 Cfe. Renato /Cohen. Work in Progress na cena contempornea. Ed. Perspectiva. S.S. So Paulo. SP. 1998. P. 33 13 O que crueldade? Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor csmico e de necessidade implacvel, no sentido gnstico de turbilho de vida que devora as trevas, no sentido da dor, fora de cuja necessidade ilutvel a vida no consegue se manter. Cfe, Antonin Artaud. O teatro e seu duplo. Ed.Martins Fontes. Pg 118-119 14 Ref. Ricardo Nascimento Fabrini. O Espao de Lgia Clark. Ed. ATLAS S.A. 1994. 15 Ref. Waly Salomo. Hlio Oiticica. Qual o Parangol e outros escritos. Ed. Rocco LTDA. Rio de Janeiro. RJ. 2003 29 onde o pblico e os apresentadores se fixariam. Ele aponta variaes dessas espacialidades arquitetnicas construdas para apresentaes teatrais no decorrer da histria do teatro: coliseu, teatro elisabetano, teatro de arena, teatros-edifcio, modelos que diferenciavam-se entre si mas que eram solidrios no confinamento espetacular da obra. No teatro mtico essa separao entre pblico e obra no se daria de forma to distinguvel porque o espectador essencialmente parte da obra, ele deixa de ser pblico para ser participante do acontecimento ritualstico: cultos xamnicos, dionisacos, ritos pentecostais, epifanias, orgias canibalsticas, sexuais, etc.
Em seu segundo livro no captulo denominado Do Estranho ao Numinoso, Renato Cohen aprofunda a discusso sobre o teatro mtico afirmando seu sentido extraordinrio e irruptivo que tem capacidade de atualizar e manifestar potncias no utilizadas no cotidiano; cotidiano promotor do definhamento de afetos, sensaes e percepes, ordinariedade que anestesia o contato direto da vida com a experincia de estar vivo; nesse sentido o papel do performer seria o de atualizar potncias do corpo coletivo, tarefa comumente executada somente pelas religies:
A cena do numinoso remete busca da epifania, da cifra, do mistrio. (...) epifania enquanto manifestao de essencialidade, liminiscncia, alma das coisas, incorporando desde aluses platnicas clssicas quanto a imanncia romntica, a weltanschauung nietzschiana, o belo horrendo de Lautremont, representaes grotescas de Bosch, as fiscalizaes do but. (...) apesar do tema da epifania ter um vis platnico, essa questo essencialmente moderna: desde o romantismo, com a busca do encantamento e do sagrado imanente, mais remotamente, no barroco, com a multifacetao e o gongorismo testa, at as vanguardas histricas (expressionismo, cubismo, dad, surrealismo) que reiteram essa busca (...) seja por via pardica, pela ritualizao, por mmese ou pelas utopias surrealistas. (...) Ao tratarmos de temas do mythos, do estranho, do numinoso estados exacerbados de presena, topos do inslito, do singular, do novo, do perfeito, do monstruoso distintos do ordinrio cotidiano, fica clara a pertinncia da teatralidade enquanto expresso dessas manifestaes (... ) teatralidade enquanto espao do trgico da vida (fugacidade e transitoriedade). (...) A cena mtica, momento de permeao ou de re-apresentao do fenmeno primeiro, investe-se pelo seu carter direto com a experincia, plena de visibilidade e sensao, de uma potncia superior s narrativas e relatos. (...) A presena, a permeao, a iniciao, a narrativa imagtica potencializam o rito enquanto espao de manifestao do mtico: percurso paralelo ao da cena teatral, oriunda de prticas dionisacas e rituais dos mistrios de elusis (...) possvel apontar alguns dados para instaurao do campo mtico: inteireza, adensamento, exacerbao, ampliao da presena colocao do potencial psicofsico inteiramente alinhado com o trabalho presente. (...) Atravs do aumento da presena diminuem as demandas energticas para atender as vicissitudes do cotidiano e o participante passa a operar mais pleno, tendo acesso, principalmente, sua mente subliminar, no objetiva. 16 .
Sua atuao como performer, encenador e produtor cultural foi aos poucos radicalizando processos mticos, de modo que em seus ltimos trabalhos mais intermediticos essa diviso pblico-obra foi tornando-se cada vez mais amena, pois tratava-se de eventos artsticos de carter conectivo e virtualizado onde uma nova gama de contedos e conceitos vinham tona promovendo uma variao estrutural nos dois topos de cena, como aconteceu ou quase aconteceu no evento Constelao realizado no Sesc So Paulo em 2002 cuja concepo e curadoria foi feito pelo prprio Cohen. Nesse evento ele criou uma rede transmiditica que linkava em tempo real quatro centros de irradiao: Sesc-So Paulo, Caiia Center-UK, Ohio Media Center-Columbus, USA e Centro de Mdia-UNB durante 12 horas de sequncias de performances e interescrituras, com possibilidade de interveno de outros grupos autnomos
16 Cfe. Renato Cohen. Work in Progress na Cena Contempornea. Ed. Perspectiva. S.A 1998. Ps. 59 em diante. 30 conectados virtualmente ou em presena real. Nesse evento ps-teatral ele tentou construir uma cena expandida onde os modelos emissor/receptor desafiavam-se transpassantes:
A criao de novas arenas de representao com a entrada , onipresente, do duplo virtual das redes telemticas (WEB-Internet) , amplifica o espectro da performao e da investigao cnica com novas circuitaes, navegao de presenas e conscincias na rede e criao de interiscrituras e textos colaborativos. Com uma imerso em novos paradigmas de simulao e conectividade, em detrimento da representao, a nova cena das redes, dos lofts, dos espaos conectados, desconstri os axiomas da linguagem teatro: atuante, texto, pblico ao vivo, num nico espao, instaurando o campo do Ps- Teatro. (...) A relao axiomtica da cena : corpo-texto-audincia, enquanto rito, totalizao, implicando interaes ao vivo deslocada para eventos intermediticos onde a telepresena (on line) espacializa a recepo. O suporte redimensiona a presena, o texto ala-se a hipertexto, a audincia alcana a dimenso da globalidade. Gera-se o real mediatizado, elevado ao paroxismo pelas novas tecnologias onde suportes telemticos, redes de ambientes WEB (Internet), CD- Rom e hologramias que simulam outras relaes de presena, imagem, virtualidade. (...) A contaminao do teatro com as artes visuais, cinticas e eletrnicas d um novo salto, com a emergncia das redes telemticas, que permeiam uma comunicao em tempo real, e uma extenso do corpo e da presena (o corpo extenso) que eminentemente performatizada. A partir dos anos 90, os novos mdia tecnolgicos (web-art, artetelemtica, net-art) com novos recursos de mediao, virtualizao e amplificao de presena passam a impor outras direes s experincias radicais da Performance e do Teatro: Johannes Birringer 17 nomeia um novo espao mondico de performaoa sala tecnolgica, recebendo imputs em tempo realem contraposio sala instalao , remetida s Artes Plsticas. (...) Esses novos espaos de performao, intensamente alimentados por dados -- em tempo real -- colocam os performers e a audincia em espaos simulados de improviso e presentificao. (...) Essa nova cena est ancorada em alternncias de fluxos smicos e de suportes, instalando o hipersigno teatral, da mutao, da desterritorializao, da pulsao do hbrido. O contemporneo contempla o mltiplo, a fuso, a diluio de gneros: trgico, lrico, pico, dramtico; epifania, crueldade e pardia convivem na mesma cena, consubstanciando uma escritura no seqencial, corporificando o paradigma da descentralizao , formulado por Derrida, para quem o centro uma funo no uma entidade de realidade. Gesta-se nessa tessitura hipertextual, a grande memria interativa, rizomtica, em recursos de proliferao, mediao e subjetivao 18 .
Eu estava cada vez mais seduzida por esses eventos surubticos esttico-mtico-tecnolgicos e tentava concaten-los com aquilo que seria o leitmotiv do meu trabalho: a experincia do espao e tempo pblico da cidade expandida a partir do seu extremo miservel (morao de rua radicalizada). No era s de epifania e mediao que se tratava, mas do agigantamento semitico-perceptivo-sensorial da radical nudez-linguagem que a misria promove diante da avassaladora sistematizao da vida. Era quase uma militncia poltica que reivindicava a incluso-no-scius de gestos e narrativas desprovidas de organizao burocrtica e institucionalizada. Na verdade era quase uma contra-militncia: traar contornos visveis na experincia radical miservel a partir da propria misria, alargando a misria atravs de collages de signos de vida-de-rua, criaes de happenings, tcnicas de performance, ritos transmiditicos criados para pblicos-obra imersos em ambientes reais e virtualizados. As novas tecnologias
17 Em BIRRINGER, Johannes . Contemporary Performance/Technology. Theatre Journal 51, 361-381, 1999. 18 Cfe. Rito, Tecnologia, Novas Mediaes na Cena Contempornea Brasileira/ texto guia do Evento Constelao Mostra SESC Ares e Pensares 2002. http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc 31 legitimando a formao de novas inteligibilidades 19 . Estranhas inteligibilidades legitimando novas tecnologias. Qui!
Reminiscncias... Mecanismos empregados na dilatao de gestos vibrticos da misria radicalizada. Transpassagem de circuitos para inovao de sentidos no scius e seu alargamento. As misturas das artes e tecnologias digitais e performticas mediando extremos de sobrevivencialismos em estados de excesso social subsidiariam novas formas de inteligibilidade para alm do doutrinamento e assepsia geralmente propostos pelos projetos sociais? Corpo e algumas matrias. Corpo cansado, que no aguenta mais, como diz David Lapoujade. Corpo- Instalao largado no meio dos caminhos. Descaminhados. Gestos em riscos mendicantes colocando-nos em situao de arriscos e vulnerabilidades; quase mudos, imundos. Instalaes transmdicas nos albergues em conexo direta com albergues de vrias partes do mundo. Os albergados sem teto de rua do mundo em fomento multimdico-artstico-performtico criando estranhssimas redes. Novos territrios miserveis conectados em redes telemticas. Mini- cubos 20 alojados em espaos/tempos comuns promovendo abundantes interlocues de rua. Interfaces-transfaces de pblico tornado obra. Efeitos potencializadores da intimidade a partir das tecnologias de comunicao mvel (...) 21 . Instaura-se o topos da cena expandida: a cena das vertigens, das simultaneidades, dos paradoxos na avolumao do uso do suporte e da mediao nas intervenes com o real 22 . Morador de rua em mim. Meu gesto de rua no morador de rua. Eu-ele-transfaces... O distante entre ns. Sobravam tentativas e experimentaes submiditicas:
19 (...) o aporte das novas tecnologias que amplificam os mecanismos de mediao, virtualizao e refratao da percepo e, captao de cdigos sensveis que demarcam tempos, espaos, corporeidades vo legitimar uma srie de experimentos, eventos da ordem de uma cultura das bordas que passam a se inscrever no campo da cultura. A questo que se prope na arte da performance de uma mediao e interveno nos planos da realidade, superando os limites do campo do real e da ficcionalidade, entre sujeito e receptor da obra, dando complexidade e polissemia a produo do evento, que passa a ser culturalizado Cfe. Rito, Tecnologia, Novas Mediaes na Cena Contempornea Brasileira/ texto guia do Evento Constelao Mostra SESC Ares e Pensares 2002. http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc 20 Trata-se de uma caixa audiovisual de 7m X 7m X 7m que foi instalada, alternadamente, em trs pontos da cidade de So Paulo. Nas cinco faces externas do cubo, foram projetadas imagens, vdeos, filmes, interaes eletrnicas com msica e outros trabalhos. uma idia ps-moderna por excelncia, uma vez que lida com as principais questes das artes no momento: a mistura de linguagens, a relao com a cidade, a participao dos pblicos, o uso de suportes alternativos. Os coletivos, grupos de artistas e simpatizantes em torno de um projeto cultural, tambm so uma inveno contempornea que questiona a autoria e a autenticidade das obras. Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/cultura/panorama/cubo/cubo.asp 21 Cfe. Lucas Bambozzi. http://www.cubobranco.hpg.ig.com.br/texto_intimatetech.htm e Cfe. Lucas Bambozzi. http://www.canalcontemporaneo.art.br/forum/viewtopic.php?t=89&sid=e89366b26cc8e8133629f2b6e676c1bb : Diante de novos sistemas de mediao envolvendo tecnologias com penetrao em vrios ambientes e camadas sociais, torna-se pertinente falar de prticas artsticas e culturais abrangentes, que se deixem afetar pelo contexto em sua diversidade de nuances. (...) criao de mecanismos por parte de determinados projetos que produzem conexes entre artista, pblico e a suposta responsabilidade de criao de espaos compartilhveis (vida pblica), atravs do que pode ser chamado de interfaces sociais baseadas na realidade (reality-based-interfaces). Na medida em que tornam a mediao transparente, minimamente permevel, alguns trabalhos que emergem no cenrio das novas mdias nos sugerem um sentido expandido para a idia de interfaces, como sistemas viabilizadores de comunicao, experincias de potencializao do pensamento crtico e do uso de dispositivos de forma a sugerir enfrentamentos diante de novas formas de alienao que surgem embebidas nessas tecnologias. Seriam essas as faces e desafios de um ativismo atualizado s redes mveis, baseadas em sistemas locativos e imersos na trama da cidade? 22 Cfe. Rito, Tecnologia, Novas Mediaes na Cena Contempornea Brasileira/ texto guia do Evento Constelao Mostra SESC Ares e Pensares 2002. http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc
32 Tentativas e Experimentaes de Eventos Transconectivos
VIVER E MORRER NA CIDADE DE SO PAULO: O MASSACRE NO CENTRO 23
Evento/manifesto 24
Entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, vrios moradores de rua do centro de So Paulo foram atacados violentamente enquanto dormiam. Os agressores tinham, em todos os ataques, a clara inteno de assassinar cada um dos homens e mulheres atingidos num total de 15. Sete desses moradores de rua morreram e oito ficaram feridos. Por iniciativa e apoio de psicanalistas e psiclogos de So Paulo e Porto Alegre, juntamente com organizaes governamentais e no governamentais, estamos organizando um evento/manifesto que tem como objetivo grifar, assinalar e repudiar todas as prticas de extermnio que ainda perduram em nossa cidade e em nosso pas. preciso, urgentemente reconhecer esses mortos, homens e mulheres morando na rua, que foram enterrados como nmeros e, coletivamente, realizar seu luto para que sua memria perdure, entre ns, como exemplo do intolervel 25 .
23 Nome do evento realizado em 26-11-2004 na Cmara dos Vereadores de So Paulo, por ocasio dos assassinatos de moradores de rua na regio central de So Paulo.Durante o evento estava exposta essa faixa com os nomes dos moradores de rua assassinados e os nmeros do IML(Instituto Mdico Legal) para os cadveres no reconhecidos. 24 Apresentao e convite para participar do evento. http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/11/295479.shtml
25 A parte do texto de apresentao do encontro escrito pelo psicanalista Paulo Endo. Participaes na mesa: - Paulo Endo (Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento (CEBRAP) - Coordenador da mesa. - Alderon Pereira da Costa (Rede Rua-OCAS - SP) - Edson Luiz Andr de Sousa (PPG-Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/Associao Psicanaltica de Porto Alegre (APPOA)-Frei Lcio (Cheiro de Capim) -Hlio Bicudo (Comisso Municipal de Direitos Humanos - SP) - Irm Alberta ( Movimento Sem Terra (MST)- Comunas da Terra) - talo Cardoso (Comisso de Direitos Humanos da Assemblia Legislativa do Estado de So Paulo) -Janana Bechler (Alice Agncia Livre para Infncia, Cidadania e Educao/Jornal Boca de Rua Porto Alegre) - Jorge Broide (Ncleo Psicanlise e Sociedade do PPG Psicologia Social da PUC/SP)-Jos Arbex Junior (Revista Caros Amigos) - Lucila Pizani Gonalves (Comisso de Direitos Humanos e Cidadania da Cmara Municipal de So Paulo)-Maria Auxiliadora Arantes (Depto de Psicanlise do Sedes Sapientiae) -Maria Helena de Souza Patto (Instituto de Psicologia da USP) -Mariah Leick (Comunas Urbanas)-Miriam Debieux Rosa (Laboratrio Psicanlise e SociedadeUSP/PUC) -Rose Santa Rosa (Procuradoria Regional dos Direitos do Cidado Ministrio Pblico Federal). APOIOS: - Associao Brasileira de Ongs (ABONG)-Associao Psicanaltica de Porto Alegre (APPOA) - Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental -CDH (Centro de Direitos Humanos) -Centro de Referncia s Vtimas da Violncia (CNRVV) -Comisso Municipal de Direitos Humanos SP -Comisso de Direitos Humanos e Cidadania da Cmara Municipal de So Paulo -CONDEPE (Centro de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) - Conselho Municipal dos Direitos das Crianas e Adolescentes Prefeitura de Porto Alegre -Coordenao de Direitos Humanos Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurana Urbana Prefeitura de Porto Alegre - Grupo Tortura Nunca Mais/SP -Catadores de Histrias -Cheiro de Capim - Comunas da Terra (MST) - Comunas Urbanas -Departamento de Psicologia Clnica da USP -Departamento de Psicanlise do Sedes Sapientiae -Instituto de Psicologia da USP - Laboratrio de Psicanlise e Sociedade da USP -Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Ministrio Pblico Federal - PPG Psicologia Social e InstitucionaldaUFRGS - Rede-rua-Ocas. Apresentao dos vdeos e comentrios: -Carta aberta de Porto Alegre - Janana Bechler & -Catadores de histrias - Fabiane Borges, Rafael Adaime. Comisso organizadora: Beatriz-Afonso,Edson Luiz Andr de Sousa, Fabiane Borges, Janaina Bechler, Mariah Leick , Miriam Debieux Rosa e Paulo Endo. 33 Este evento de carter conectivo e interventor foi criado com a inteno de assinalar os assassinatos e fortalecer/ampliar as redes, entidades e movimentos que atuavam junto aos moradores de rua da cidade de So Paulo. Sua primeira parte foi realizada na cmara dos vereadores SP, com a participao de inmeros apoiadores das mais variadas vertentes como os sem terra, sem teto, direitos humanos, tortura nunca mais, rgos governamentais e no governamentais, representantes de organizaes de moradores de rua. (nota de rodap:25). Nessa manh de sexta feira a cmara se tornou um espao de debates, proposies e elaborao de um baixo assinado que exigia da justia e dos rgos pblicos a efetivao do processo jurdico. Esse baixo assinado foi levado promotoria pblica e ao ministrio da justia e ao que tudo indica resultou na retomada das investigaes.
Um momento muito especial desse encontro foi a participao do jornal Boca de Rua composto por moradores de rua de Porto Alegre. Janaina Bechler - psicloga e o jovem morador de rua - Jos Nedir Malta Ramires (Ceco) - apresentaram o vdeo carta de Porto Alegre que ela organizou junto com os participantes do jornal. Eles realizaram o vdeo desde a roteirizao, filmagem at a edio. O argumento consensualmente escolhido para o vdeo foi a apresentao da cidade de Porto Alegre aos moradores de rua de So Paulo. De-morador-de-rua-para-morador-de-rua. As filmagens foram feitas em diferentes locais da cidade de acordo com os afetos que os espaos despertavam nos seus realizadores. Esse moo-de-rua-dos-pampas (Ceco) veio diretamente da praa onde morava em Porto Alegre para exibir seu primeiro filme em So Paulo, quando voltou para Porto Alegre foi pra de baixo de um viaduto
Os convidados levantavam questes relativas ao assassinato, diziam das descobertas das investigaes e das propostas de cada organizao; em meio a isso Janana surpeendeu a sala com inesperada emisso de um grito tenebroso e caiu no cho num frenesi corpreo que lembrava Artaud simulando a contaminao da peste. Ela teve um ataque sbito-lptico-da-peste e paralizou o encontro com aquele gesto agonizante interferindo de modo incisivo na continuidade do debate, abrindo uma vala sensrio-perceptiva em pleno salo da Cmara dos Vereadores de So Paulo, evidenciando a gravidade do assunto, trazendo tona gestos de morte e transitoriedade. Diante do vcuo subjetivo instalado eu e Veridiana Zurita continuamos a performance ocupando o salo com trinta quilos de carne vermelha e crua no corpo amarrados com arames e sacos de lixo preto. Arrancvamos pedaos de carne do corpo uma da outra e despejvamos numa bandeija de plstico dizendo os nomes dos mortos e seus nmeros do IML. Depois disso colocamos pedaos de carne na boca e samos carregando a bandeija de carne/morte.
Essa performance foi uma tentativa de trazer para o encontro a dimenso da morte atravs da constelao sgnica que cerca o morador de rua. Era o rito de enterramento dos corpos que de fato esses assassinados no tiveram. O som ensurdecedor de Diamanda Gallas gritando como uma porca-louca interviu no ambiente acompanhando-nos em nossa cerimnia de enterramento. Ao sairmos da sala deixamos a sensao do acontecimento.
Performers: Fabiane Borges e Veridiana Zurita .Foto: Rafael Adaime
Ceco na Cmara dos Vereadores - SP Fotos: Rafael Adaime 34 O Evento/Performance continuou at a noite do mesmo dia, quando assamos 26 ao vivo a carne- morte usada no corpo junto com os moradores de rua, artistas e apoiadores, que comeram da carne como num rito antropofgico. A comilana coletiva se deu como forma de trazer vida aquilo que estava morto, e simbolicamente fortalecer os vivos que na sua maioria continuariam a viver o destino da rua.
Esse evento noturno aconteceu no Ptio do Colgio sucedendo o evento da Cmara dos Vereadores. O local foi escolhido em funo de ser um local de moradia para muitas pessoas e tambm por se situar em frente a Secretaria Estadual de Justia e em frente a primeira igreja construda em So Paulo. Os convites aos moradores de rua foram entregues um a um durante a semana que precedeu o encontro. Esquecemos de colocar endereo, dia e horrio do evento, de modo que tivemos que pr a caneta pedindo para os moradores de rua que encontrvamos nas ruas nos ajudarem a escrever o que faltava nos convites xerocados, isso aproximou a festa do pblico para a qual ela era dirigida, e muitos dos folhetos ficaram com eles para que eles mesmos distribussem. Reconhecemos na festa muitas dessas pessoas que conectamos na rua; era impressionante perceber que o mesmo povo que no se organiza nem para participar de movimentos de ocupao, no freqenta albergues e que no se mobiliza politicamente para quase nada, se dispe a ir em festas esquisitas. O evento chamou-se Ritual de Celebrao e Interveno vida 27 .
Alm dos participantes e apoiadores do evento matinal foram convidados vrios grupos de arte e coletivos de interveno urbana. A idia era criar um ritual experimental, corporal e tecnolgico que operasse como dispositivo de ampliao de comunicao e servisse como disparador de novas percepes em relao rua. Nem os artistas, nem os moradores de rua, nem a organizao do evento sabiam de fato o que aconteceria naquela praa pblica, de modo que tudo foi feito a partir do encontro entre as pessoas, a partir da imerso no universo da rua em suas conotaes dramticas e festivas. Os grupos de artistas convidados se dispuseram a viver abertamente essa experincia e se comprometeram a produzir suas aes inspirados na conexo subjetiva com os seres existentes naquela situao/ambiente. E assim, a noite aconteceu sem que ningum ficasse ordenando os fatos e suas sequncias. Os performers interagiam, as mquinas fotogrficas passavam de mo em mo, os swings foram espalhados entre as pessoas assim como as bolinhas de malabares, os tambores incentivavam cmicas saltitaes, os vdeos projetavam passado e presente que misturavam-se num telo 4 X 5 metros... O Dj atrapalhado em sonorizar aquela esquizo-noite. Pessoas de mundos muito
26 A churrasqueira performer Veridiana Zuritta iniciou o churrasco e depois passou para as mos dos moradores de rua, que desavisados, sequer suspeitavam que faziam Arte assada com os signos dos companheiros assassinados. 27 Evento ganhou 1 lugar do Prmio Milton Santos. Cmara dos Vereadores - 2005.
35 diversos danaram juntas e constituram um lugar mesmo que temporrio mesmo que efmero de aproximao conectiva. Durante todo o evento os discursos inflamados de sem tetos, artistas, jornalistas, trabalhadores de albergues e moradores de rua no microfone demonstravam o quanto insustentavel a invisibilidade. Aquele microfone era a tecnologia disponvel que tinha poder de atuar como foco de mobilizao de toda aquela coletividade de rua. Das caixas de som surgiam discursos irritados, politizados, odes de amor vida, ao filho, ao namorado... Contavam secretos rumores e diziam do improvvel. Lamentei profundamente a insuficincia tecnolgica que deveria ser mais contundente para abarcar as vozes, seus sentidos loucos e suas nuances tresloucadas.
O vdeo-carta de Porto Alegre finalmente foi apresentado para a populao de rua de so Paulo; foi um momento intenso e afetivo onde Ceco novamente tomou a palavra e discursou como lder de revide falando da vida na rua e sobre possibilidades de juntar foras. Era uma correspondncia que chegava, em plena praa pblica, vinda diretamente dos moradores de rua do sul. Isso gerou discusses, reconhecimentos recprocos e vontade de se criar respostas.
Quase no final da noite colocamos uma faixa de 40 metros no centro da praa, e numas bandejas de papelo distribumos potes de tinta. Todos participantes se ajoelharam no cho em rabiscos coletivos, desenhando na pele da praa suas marcas. Essa faixa foi pindurada no monumento que fica exatamente entre a Justia a igreja da cidade. A faixa continha nomes prprios, apelidos, declaraes amorosas, pedidos de justias, mos espalmadas, coraes, crticas ao governo e incompreensibilidades, e perdurou durante semanas at ser tirada por algum desconhecido.
Seria essa uma interveno de arte urbana? Uma interferncia nas redes sociais? Uma ao clnica expandida? No era a toa que os participantes da organizao eram, em sua maioria, psicanalistas. Sim! Tratava-se de uma ao CLNICA-ARTSTICA-URBANA-SOCIAL . Um ato poltico/festivo/epifnico. Uma espcie de happening performtico e conectivo criado num espao/tempo pblico da cidade a partir do seu extremo miservel. Talvez esse relato no d conta da infinidade de conexes e transformaes subjetivas que acontecem num evento como esse. Rpido, anrquico, sem financeamento, desprovido de qualquer possibilidade de permanncia, mas que tem potncia de afetar a vida das pessoas envolvidas, as vezes de modo definitivo. uma zona temporria que se prope interferir e celebrar ao mesmo tempo. Rito de ocupao de vias e vidas pblicas. Evento como acontecimento, como cartografia, interveno, como dispositivo de mobilizao de desejo, produo de sentidos, disparador de ao, atualizao e virtualizao de acontecimentos. Prticas de conexes entre poltica e ontologia criadas nas cidades e intervindo em suas ordinariedades... Corpo, cidade, instalao e transfaces... Tentativas e comeos. Orgia mdico-epifanica... Ps teatro onde pblico e obra se misturam... Poltica mtica. Rede viva de agenciamentos, e no entanto.... Precariamente fugaz 28 .
28 A partir desse evento foi pensado um projeto institucional que logo foi enviado para o Ministrio da Sade, Dst/Aids Unidade de Preveno, no ano 2005, que apresentava um Programa/Cronograma com uma srie de
Apresentao do vdeo carta Moradores de rua no telo ao vivo Colocao da faixa no cho Fotos: Rafael Adaime 36
PROCESSOS IMERSIVOS
_ Meu nome Cassandra, fui incumbida de levar voces aos Domnios do Demasiado. _Coloca no papel seu nome e uma situao considerada de risco para voc: _ Situao de risco em mim! Foi assim que iniciou a oficina/interferncia 29 .
Pedi ento que tirassem os sapatos e com um elstico grosso fui cantarolando incongruncias amarrando seus sapatos criando enorme rede scio-sola. Com os ps no cho, passamos todos para a outra sala, onde fizemos inocentes exerccios de respirao e relaxamento. Depois... A terceira sala... Era preciso provocar a sensao de passagem/distncia atravs de um minsculo nomadismo; a mudana de espao provocava uma certa desterritorializao, necessria para a imerso que se sucederia; funcionava como pequenssimo rito de passagem.
Na terceira sala estavam os outros oficineiros/interferentes 30 . Tratava-se de uma sala-instalao- imersiva cujas paredes foram ocupadas por 40 metros de lona preta e muitos outros elementos, utilizados por moradores de rua em suas nomdicas residncias urbanas e por Sem Tetos e Sem Terras quando acampados ou despejados: arames, sacos de lixo, recortes de tecidos, roupas encardidas, pedaos de ferro e plstico, caixas de papelo, jornais velhos, cobertores cinzas e aparatos tecnolgicos como caixas de som, microfones, projetor, mixers de imagem e som. O VJ mixava imagens das ruas com as coisas que iam acontecendo no momento; os ambientes imersivos das caladas, os ritos em volta das fogueiras de rua, as comilanas coletivas debaixo dos viadutos copulavam escandalosamente pelas paredes da sala, enquanto as situaes de risco anteriormente escritas nos papeis incendiavam em uma bacia-lato. O fogo perpassando caras de espanto e nusea, a terra largada sobre os papis queimados iam sendo perfurados por velas pretas e vermelhas de Ex - o Orix sem teto. Pontos de vista da cidade foram explorados atravs de captao prvia que arremedava gestos dos moradores de rua a fim de ver a cidade avizinhado dos seus e vice-versa. Os pneus dos caminhes agigantando-se diante do corpo concretizado de calada e fumaa. O cu cinza e as listas night shot dos carros rpidos. As pernas dos transeuntes quase pisando na cmera-olho. Quinze metros de tecido branco foram colocados nos corpos de uma parte dos participantes tornados corpos-telas, que refletiam entrevistas sobre situaes de riscos vividas por moradores de rua radicalizados. Os elementos iam sendo utilizados de modo a criar uma ambientao urbana extremamente hermtica onde liberdade e poder sustentavam-se em conflito. O programa de som operado por Giuliano Obici Orculo Sonoro, misturava arquivos de sons previamente captados junto aos moradores de rua e sons captados na hora da interveno atravs de microfones, injetando no ambiente-instalao repeties, reverberaes, sobreposies de rudos, distores de fala,
argumentos e aes referentes ao encontro de Moradores de Rua, Arte, Tecnologia, Coletivos de Ao, Preveno Dst/Aids e Exposies dos trabalhos construdos coletivamente com esse pblico em galerias, museus, espaos pblicos e albergues. Esse projeto se auto-desafiava a construir polticas a partir de narrativas fragmentadas que a narrativa comum a grupos que vivem em estados radicalizados de exceo e minorias em geral. 29 Nome da oficina/evento realizada em dezembro de 2005 convite de Angela Donini - tcnica da Unidade de Preveno s Dst/aids - Ministrio da Sade - no CTA Henfil (Centro de Testagem e Aconselhamento) situado no centro de So Paulo, por ocasio da Implantao do projeto piloto: Preveno s DST/Aids em crianas, adolescentes e jovens em situao de rua na cidade de S.Paulo em parceria com programas estaduais e municipais de DST/Aids e Sade do Adolescente, Ogs e ONGs. Essa oficina/interferncia tinha cerca de 35 participantes, entre eles: mdicos, assistentes sociais, coordenadores de equipamentos pblicos, educadores sociais.
30 Alessandra Galasso (Tzzz), Eduardo Loureiro (Bijari), Giuliano Obici (Orculo tecnolgico), Rafael Adaime (Catadores de Histrias) e Fabiane Borges (Catadores de Histrias) 37 infantilizao de vozes, ressonncias e desestruturaes de frases, criando uma imerso sonoro-climtica-em-risco, ao mesmo tempo em que gemidos de sexo e gozo entremeavam toda a morte suposta. Hipertextualidades, polifonias, dessincronias e no entanto, o leitmotiv do trabalho sobrevivendo-se: Vulnerabilidades e Virulncias de rua. A idia no era imitar a ambincia de rua, nem transformar momentaneamente as pessoas em moradores de rua, mas agigantar os sentidos da vida de rua, agigantar seus gestos, suas performances, transpr suas imagens para o prprio corpo de quem com a rua trabalha, aumentar o foco-rua, ativar imaginrios, copular signos...
Esse espao/tempo produzido artificialmente era uma bolha ambiental de total exposio onde no foi proposta comoventes harmonias, nem sequer um clima amigvel de trocas sofridas de trabalhadores impotentes que lidam com realidades tristes. Nessa poca eu estava farta de oficinas solidrias, onde todos se envolvem num clima de trocas sentimentais, e no mudam em nada suas prticas humanistas-higincias-evolucionistas. Estava muito mais atenta s potncias advindas de alguns softwares eletrnicos de som (noize) e imagens: sua ebriedade envolvente que imita sensaes drogaditas de crack, cola e pasta, sua incrvel fora de persuaso semi- lisrgica. Era um modo de colocar para os servios sociais de sade a necessidade de tratar de temas relativos incluso digital, a partir da suas possibilidades mais abrangentes. Trazer uma dimenso profunda da experincia dos softwares eletrnicos como dispositivo de aproximao a certas condies existenciais das ruas: - Domnios Demasiados.
Tratava-se de uma pesquisa ampla que aproximava realidades nuas, a saber: um incerto feminismo que reivindicava um incerto feminino atrapalhado com lgicas aristotlicas, assemelhado a um incerto discurso torporoso, nauseabundo e drogadito dos sujeitos da rua, que avizinhava-se a uma incerta prostituio sedutora e miservel que transa visibilidades mundanas, que lembram Cassandra a ininteligvel aconchavando virgindades e promiscuidades sinpticas.
Sim! Nosso pequenssimo revide. Mrbida vingancinha s paralizias perceptivas. Um devir Media singelo que no mata os filhos seno, a obviedade das lgicas trabalhadoras. Discursos em risco social. Da frase articulada, sobra a palavra solitria despregada do seu contexto repetindo-se exausto, at formar por si mesma um hermetismo imersivo. Repetio abusiva adentrando a obliquidade auditiva e transignificando-se em seus sentidos. O mesmo com as imagens, a redundncia pattica do rosto perplexo desdobrando-se em imagens de toureiros atravessados por guampas de touros sobreviventes. Berros e aberraes. Para sair da sala era preciso desamarrar uma imensa rede de sapatos atados. Cada sada, uma destruio. A confuso de Cassandra-tria-e-trolha extendida no ambiente contagiando tudo com sua pera- vidntica. Situao de risco em mim! Vulnerabilidades expandidas 31 .
31 Depois dessa Oficina/Interferncia: Processos Imersivos. Enviei um projeto Unidade de Preveno DST/Aids do Ministrio da Sade que propunha uma Parceria entre a Unidade DST/Aids e o Programa Nacional de Cultura do Ministrio da Cultura: Pontos de Cultura, para produzir uma nova mdia sobre Dsts a partir de oficinas para crianas e adolescentes em situao de vulnerabilidade, para aprenderem a criarem e manipularem programas eletrnicos em softwares livres atravs de mtodos de aprendizagens imersivas. No prelo (janeiro de 2006)
Reminiscncias I: Ativar imaginrios longnquos. Criar zonas possveis de dessufocao. Inovar espacialidades reais. Abrir buracos pela cidade.... Abrir buracos...
Pelas urbanidades paulisticas de largos horizontes globais eu vi as insunuosas juventudes coletivadas engatilhadas de tags, stickers, sprays, splacs, aparatos tecnolgicos - alguns compartilhveis. Uma classe mdia mdia-artstica com ganas de tomar a cidade e se anunciar pra alm de seus circuitos viciados. Revantes medianos. Novos terroristas: - poticos. Interventores pblicos. Programadores submiditicos.
Tambm respirava incitantes salincias esfumaadas... Elementos matricos expressivos que se erguiam dissonantes em meio a cidade operacional... Barracos invasivos. Bandeiras vermelhas. Ps de cabra abrindo portas a longo tempo trancadas. Saga dos SEM. Ajuntamentos quase indomveis. As lonas pretas brotando em meio s caladas e terrenos pblicos... Inumerveis...
Vislumbrava essas voluptuosidades remexendo-se pelos terrenos desrticos da impossibilidade de ferro. Sentia-me sendo liberada do massacre/impotncia subjetivo das ruas e respirei um fio inaudito de alegria compartilhada. Fino fio que afia o faro. O ar refinado reafirmava-me a vontade de eventos coletivados. Sentia-me seduzida pelas foras polticas e celebrativas propiciada pelos eventos. Eventos-dispositivos agenciados de forma a conectar longnquas redes. Queria juntar- me a essa rede de dessufocao de estilo interventor e celebrativo a um s tempo.
................................ Intervenes artsticas, polticas insurgiam na cena paulista-mundo; aqui, a grosso modo alinhavadas em tecidos-redes da vanguarda brasileira dos anos 60-70, nos movimentos de contracultura, tropicalismos e vias campezinas, nas aes oiticicanianas, clarcknianas; Barrios e Meirelles aconchavados com coletivos rebelados: Viajou Sem Passaporte, 3Ns3, Tupi No D, Banda Performtica, insurrectos dos anos lmbicos da ditadura brasileira dos 70/80 e das proliferaes dos movimentos sociais dos 80/90, diferenciados em novos desejos e facilidades comunicativas: www.internet.com . no meio desse interesse crescente em questionar os parmetros que regem a vida urbana, bem como em introduzir novos atos estticos nesse espao, que comeam a surgir diversas formaes coletivas. Entre outros exemplos, formaes como o Formigueiro, Los Valderramas, o misto de artistas, arquitetos e Vjs do Bijari, ou A Revoluo No Ser Televisionada, de So Paulo, Movimento Terrorista Andy Warhol, Cramen y Carmen, ou Atrocidades Maravilhosas, do Rio de Janeiro, Grupo Empreza, de Goinia, GIA, de Salvador, Transio Listrada, de Fortaleza, ou ainda o grupo Urucum, do Amap, ou mesmo espaos de reunio coletiva, mostras e debates, como o Rs-do-Cho, no Rio de Janeiro ou o Centro de Contracultura, em So Paulo. Esta, em parte levada a cabo pela artista Graziela Kunsch, englobava diversos sub-ncleos, como o urbnia ou after-ratos. A lista seria talvez interminvel, mas aqui estamos
1 Muitos dos acontecimentos narrados e trabalhados nessa dissertao foram se construindo concomitantemente. No foi feito de forma a obedecer historicamente os percursos vividos. Dedico aos acontecimentos suas prprias redes de constelaes. 39 num recorte que vai de certa forma de meados dos anos 1990 ao comeo dos 2000 2 . Encontrando os coletivos:
Foi em um encontro no ateli do artista plstico Tlio Tavares in Menossi 3 , denominado I Congresso Internacional de Ar(r)ivismo 4 , que me aproximei da rbita geracional dos assim chamados coletivos de arte. Esse encontro deu-se na tentativa de aproximar vrios grupos de aes urbanas, mdias independentes e intervenes de arte pblica para pensarem juntos sobre suas aes nos territrios urbanos. As discusses giravam em torno de assuntos relativos a arte contempornea e poltica, realidade social e mdia, mdias tticas e independentes, arte mercadolgica, criao de espaos alternativos de exposio de arte em oposio aos determinados pelos museus e galerias, cooptaes e curadorias; teve vrios nveis de discusses, conflitos, disputas referentes a dados histricos recentes, trocas de contatos, Canabis Sativa, narcticos, alcois fermentados e destilados. Os grupos trocaram informaes sobre as aes que andavam perpetrando e constataram que em sua maioria, elas diziam respeito a interferncias executadas em espaos pblicos reais e virtuais. Grupos como o Centro de Mdia Independente (CMI) e Ncleo Bartolomeu de Depoimentos falaram de suas aes junto a movimentos sociais, estudantis, movimento negro, hip-hop, reportagens em passeatas reivindicatrias, aes em espaos de excluso como albergues, jornalismo independente de despejos de sem terras e sem tetos. Outros como Revoluo No Ser Televisionada, Contra- Fil, Bijari falaram de aes pontuais em relao mdia oficial e criao de informaes falsas expostas publicamente, como foi o caso de uma faixa colocada pelo coletivo Mico na avenida Sumar em 2001, na poca de uma manifestao do PCC, que dizia: No Estamos em Rebelio Queremos Nossos Direitos, Paz, que foi entendida pela mdia oficial como uma mensagem enviada cidade pelo PCC (Primeiro Comando da Capital); outros falaram na utilizao de dispositivos deflagradores como fechar ruas com fita adesiva, soltar galinha em shopping center, abrir buracos em telas que cercam praas pblicas, produzir aes que denunciam racismo policial. Outros ainda, como o Formigueiro, falaram de suas invases lugares oficiais de arte com rdios transmitidas por microfones conectados diretamente aos talkmans distribudos entre o pblico visitante, que ficava ouvindo suas transmisses desengonadas ao vivo. E eu falava das experincias dos Catadores de Histrias 5 (histrias
2 Cfe. Ricardo Rosas. Texto: Hibridismo coletivo no Brasil: transversalidade ou cooptao? http://www.canalcontemporaneo.art.br/forum/viewtopic.php?t=57&sid=7aee01e3ab717d1fd1659495ab6dda38 3 Nome mithos que promoveu uma seita secreta mantido por alguns coletivos de arte em So Paulo. 4 Artivistas foi o nome dado pela crtica de arte Juliana Monachesi no caderno mais da Folha de So Paulo em abril de 2003, para as novas prticas artsticas que estavam se configurando no cenrio da arte contempornea Paulista. Em oposio a essa denominao, Tlio Tavares, Eduardo Verderame e Daniel Lima organizaram o congresso Arrivismo, como forma de ironizar o papel poltico/militante dado s prticas dos grupos, e tambm para afirmar uma certa vaidade, muitas vezes negadas por seus comentaristas, que sustentam uma certa utopia romntica quando pensam essas novas formas. O encontro ocorreu em So paulo, 15 de abril de 2003. Resultou na criao da revista ANAIS publicada em junho de 2003 de forma independente, onde colocamos fotos, idias, charges, textos e posicionamentos ticos e estticos.. Alguns dos coletivos que l estavam tinham participado de um evento criado pelo grupo Mdia Ttica na casa das rosas tambm em abril de 2003. Entre os demais presentes encontravam-se os grupos A Revoluo No Ser Televisionada, Nova Pasta, Alexandre Menossi, Augusto Citrangulo, Contra fil in Mico, Catadores de histrias, Fabiane borges, Centro de Mdia Independente, Daniel Seda, Formigueiro, Grace Kelly de Arajo, Eduardo Verderame, Eugnio Lima, Soul Family, Ncleo Bartolomeu de depoimentos, Rejeitados, Bijari, Julia Tavares, Luciana Costa, Pam Rosensteel, Ricardo Ramalho, Roger Barnab, Transio Listrada, Mozart Mesquita, Os Bigodistas, Borowik, Neo Tao. 5 Catadores de Histrias nessa poca era feito com parceiros como: Ademilton Nego, Cesar Rosa, Cheli Urban, Juny Kraiczyk, Mila goudet, Nego, Rafael Adaime, Rodrigo Falcon, eu, e outros. 40 catadas, performances improvisadas, brincadeiras de vdeo e foto, pequenos ritos em volta das fogueiras) com moradores de rua na regio central de So Paulo, albergues, sem terras e sem tetos 6 . Eu estava alardeada; imaginva-nos como raros brincantes expelindo vinhos profanos do ventre e enchendo barris a longo tempo esvaziados. Involucionrios da prpria vida, que nos espaos pblicos da cidade experimentavam potncias criativas desantropocntricas. Pequenos shivinhas dionisacos zaratustrianos ensaiando revides aforsticos pelas avenidas lotadas de sinaleiras e placas imobilirias. Infantes graciosos com armas poderosas nas mos resignificando tudo que havia: roubando placas, distorcendo mensagens de outdoors, pintando paredes, criando mdias e softwares, deixando de ser povo para virar multido, como dizem Hardt e Negri, no fabuloso Imprio. Parecia que a cidade grande se agigantava ainda mais: espao-mundo, mundo-corpo, corpo-casa, casa-cidade-corpo-mundo infectadas por tecnologias virais que alucinavam o sangue. Virvamos cidade abrigo de vermes, trnsito de colnias de micro-organismos intra-extra-poros... Fio-do-fora. A cidade dentro dos ossos hospedeiros desdobrando-se em signos to vivos! As aes nos desencadeavam em matilha. No precisava organizar a poltica, nem o latido; entre as cadelas de guerra de Kleist no havia consenso, somente algumas sincroniciades de fertilidades. Bebi... Chorei... Misturei exagerados goles de esperana aturdida e sorri de bbada. Os habitantes das ruas da metrpole eram agora muitos e a guerra alegre parecia possvel. Sprays, Splacs, sexos nas praas verdes de luzes verdes e plantas coloridas. Festas das luzes que Menosso queria. E as putas destilariam seu veneno sexy em pleno holofote ambiental...
Por outro lado tambm vivia os impedimentos s aes interventivas dos movimentos sociais. A crueza dos mandatos judiciais incorporados nas execues oficiais da justia, nas reintegraes de posses e nas violentas posturas policiais. Meu contato com os movimentos de ocupao paulistas deu-se diretamente numa situao de mandato de Reintegrao de Posse Ocupao Ana Cintra 7 . Fomos 8 introduzidos pelo fotgrafo e participante do movimento Anderson Barbosa, com o qual passamos noites em viglia dentro da ocupao, esperando o momento da ao policial que demorou meses para acontecer. Quando foram despejados instalaram-se na rua Frederico Steidel, continuao da rua Ana Cintra, e acompanharam incrdulos os pedreiros fecharem com tijolos todos os orifcios baixos do prdio. Em julho e agosto de 2003 acompanhamos a ocupao do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e logo o despejo dessas milhares de pessoas do terreno da Wolkswagen, em So Bernardo do Campo 9 ;
6 Me aproximava concomitantemente dos coletivos de arte e interveno urbana e dos movimentos de moradia e terra de So Paulo. 7 Em 23/05/99, 97 famlias sem-teto do MSTC (Movimento dos Sem Tetos do Centro - SP), cerca de 500 pessoas de baixa renda ocuparam o prdio da rua Ana Cintra, 123 (esquina com a avenida So Joo, centro de So Paulo). Em seguida que ocuparam o imvel este foi desapropriado e adquirido pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, do Governo Estadual). A partir da sempre foi constante a ameaa de despejo, mas desde o incio do segundo semestre de 2003 as negociaes referentes ao mandato de reintegrao de posse se intensificaram, de modo a ser efetivado dia 20 de janeiro de 2004. Durante esses sete meses a presso jurdica e subjetiva foram se tornando cada vez maiores. Sem ter para onde ir, fomos jogados na rua. No nos deixaram sequer ficar na calada do prdio. Depois de muita presso, e somente quando a gente j estava no olho da rua, a CDHU concedeu R$ 400 reais a cada famlia, para custear o aluguel de um ms apenas! cfe. site mstc: http://www.mstc.org.br/textos/alckmin-despeja.php e http://www.midiaindependente.org/eo/blue/2004/01/272986.shtml. Muitos moradores foram acolhidos pela Ocupao Prestes Maia. 8 Catadores de Histrias. 9 Em 19/07/2003, Cerca de 200 famlias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) ocuparam um terreno vazio (170 mil m2) da Volkswagen na avenida Doutor Jos Fornari, na Vila Ferrazpolis, em So Bernardo do Campo. SP. Em apoio ao movimento, em pouco tempo j haviam mais de 2000 famlias no acampamento. O despejo ocorreu em agosto de 2003 com grande repercusso na mdia. http://www.mtst.info/, devido a violncia do despejo, e ao assassinato de um fotgrafo/ jornalista. 41 passamos noites em viglia por l, pegando depoimentos, filmando as negociaes jurdicas e os agrupamentos da madrugada. Assim prosseguimos a saga de ocupaes e despejos: Helipoles, Campinas e outros lugares ligados ao Movimento dos Sem Terra. Interessava-me o movimento poltico organizado, mas principalmente os movimentos subjetivos e mltiplos subjacentes a eles. E assim foi... Tenso. Sofrido. Mas absolutamente vivo...
Em meio fruns sociais mudiais, guerras aos terroristas, moradores de rua, sem tetos, sem terras, exposies, vernissagens, performances Renato Cohenianas, arte/tecnologias, softwares livres, anti-espetculos, intervenes mdicas e plsticas procurei Tlio Tavares, na ltima semana de outubro de 2003, por ser ele um ponto de emanao e aglutinao de projetos e aes de artistas e coletivos paulistas, para pensarmos juntos um evento de arte, mdia e poltica na maior ocupao vertical de So Paulo, a Ocupao Prestes Maia 10 . Juno de circuitos prximos mesmo que abismalmente distantes. A correspondncia entre ambos eram as intervenes pblicas, as reais revitalizaes dos espaos pblicos da cidade. As desobedincias civis que criavam inusitadas estticas matricas e subjetivas. Encontro de vampiros imortalizados. Sim! Era preciso junta-los-nos em cpula sgnica e carnal.
Subimos os degraus da ocupao e no mesmo instante fomos ocupados, mobilizados, capturados por aquele prdio de 30 andares, de um lado nove do outro 21, habitados naquela poca por mais de duas mil pessoas. Tropevamos em nossas prprias pernas, exultantes com os encontros que se sucediam... As pessoas... As correrias das crianas... As texturas dos barracos de papelo, lona preta e madeirite... Os cartazes de limpeza e assemblias expostas pelos andares... Idias sobre a ocupao artstica. Os odores de mijo, merda, caf, sabo em p, comida nordestina, boliviana... As histrias de vida. A urgncia. O estado de stio. A luta... O movimento. Os movimentos dentro do movimento social. Naquela arquitetura quase modernista parecia rebolear um barroquismo atarefado lotado de rococs sonoros e imersivos. Cada casa, um trao-de-obra infinito, um engolfamento existencial. Paralisias e corredeiras de ocupao.
Em menos de dois dias j tnhamos conectado as coordenaes do MSTC, grupos de artistas, jornalistas, estudantes aliados a outros movimentos, entidades governamentais e no governamentais e foi decidido que faramos um encontro imersivo de arte-e-ocupao. Haveria dois dias de exposio pblica dos trabalhos na ocupao, para que suas portas fossem escancaradas cidade, para ser por ela lambida, ventada, envenenada, chovida, beijada, cuspida, amada. Mas aos participantes do encontro as portas-de-porteiros-e-controle ficariam abertas durante o ms inteiro para que as difusas criaes se iniciassem.
10 http://www.mstc.org.br/ - Prdio situado na Avenida Prestes Maia n 911 ocupado em novembro de 2002 por mil pessoas integrantes do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC).
Fotos: Rafael Adaime e Anderson Barbosa 42 Em pouqussimos dias o e-mail sobre o ACMSTC 11 j estava rolando pelas listas de artistas, coletivos de arte, universitrios, colaboradores, secundaristas, intelectuais e curiosos, em so Paulo:
11 Evento Ganhou Meno Honrosa do Prmio Milton Santos. Cmara dos Vereadores - 2004. ACMSTC ou MSTCCC ou MSTCAC
Arte contempornea no movimento dos sem tetos do Centro
Somos coletivos que une arte e poltica contempornea. Estamos nos dispondo a experimentar novos processos de criao a partir de nossa relao com o Movimento dos Sem Teto do centro de So Paulo.Nosso encontro com o Movimento dos Sem Tetos vivificador na medida em que tem nos propiciado experimentar invenes de novas possibilidades de atuao na realidade. Entendemos que esses movimentos vo muito alm da luta por moradia ou luta por espaos de exposies de arte, pois nesses agenciamentos experimentamos potncias de multido, com fora de interferir no rumo normal das coisas.Estamos tentando criar modos de amplificar criativamente pequenas singularidades do movimento sem teto, que ningum v: suas relaes de comunidade nos espaos de ocupao, a imprevisibilidade dos seus projetos individuais e coletivos; a instabilidade material e emocional que sofrem ao se verem sempre na iminncia do despejo, da reintegrao de posse aos antigos proprietrios; sua relao conosco; nossa relao com eles. Experimentar e fazer arte dentro dos espaos de ocupao um movimento dentro do Movimento, pois trata-se de uma juno que de alguma forma articula-se numa rede de criao onde arte e vida se misturam, gerando possibilidades de existncia que se constitui como zonas autnomas criativas ontolgicas. Objetivos Fazer durante dois dias, sbado e domingo (13 e 14 de dezembro), uma exposio de arte contempornea em 35 andares da ocupao Prestes Maia. Participao de provavelmente 40 artistas e 15 coletivos de arte. Fazer exposio de arte, exposio de artesanato, apresentao de dana e msica dos moradores da ocupao. Fazer oficinas culturais de circo, teatro, histria, pintura, argila, gravura, kungfu, dana e brinquedo. Fazer um grande encontro de movimentos: Polticos, Artsticos, Pblicos. Apresentar sociedade a fora, a importncia, a inteligncia e a organizao do MSTC. Apresentar arte contempornea em contextos culturais especficos e diversificados. Interagir moradores da ocupao, artistas, coordenadores, pblico visitante e movimentos diversos. Trazer dinheiro para o movimento dos sem teto com o comercio de comidas, bebidas, venda de objetos de fabricao prpria e estacionamento. Cronograma Sbado e domingo 29 e 30 de novembro, visitao ao espao. Domingo 30 de novembro s 18hs, reunio geral antes da exposio (segundo andar bloco B). 7 a 12 de dezembro, montagem. 13 e 14 de dezembro, exposio. 14 de dezembro s 18hs, debate sobre arte contempornea e aes polticas (segundo andar bloco B).
importante a participao da maior quantidade possvel de artistas, coletivos, oficineiros, coordenadores do movimento e coordenadores do evento. Vamos definir espaos, conversar sobre a exposio, as oficinas, as atraes, a experincia e tudo que seja pertinente. Endereo; Rua Prestes mais, 911, prximo a estao da luz. Coletivos que j confirmaram presena; Agentedupla, A Revoluo No Ser Televisionada, Bartolomeu, Bijari, Brcolis, Catadores de Histrias, Contra Fil, Coringa, Esqueleto Coletivo, Formigueiro, Nova Pasta, Mdia Ttica, Rejeitados, Piratininga, Transio Listrada.
Artistas que j confirmaram presena; Alexandre Ruger, Anabella Santos, Andr Bueno, Andr Comatsu, Augusto Citrangulo, Bruna Tavares, Csar Rosa, Cheli Urbam, Cristiana Moraes, Dlia Rosenthal, Daniela Matos, Dbora Muzskat, Dedo, Eduardo Verderame, Fabiane Borges, Flvia Vivacqua, Gabriela Inui, Gavin Adans, Gilherme, Godoy, Graziela Kunst, Iat Canabrava, Julio Kohl, Laerte Ramos, Marcelo Cidade, Paulo Harttman, Regina Silveira, Luciana Costa, Marcos Vilas Boas, Mariana Cavalcante, Maristela Cabelo, Mauro de Souza, Mnica Ndor, Mozart Mesquita, Pablo Vilar, Paulo Zeminian, Rafael Adaime, Renan Costa Lima, Ricardo Basbaum, Ricardo Ramalho, Rodrigo Arajo, Rodrigo Barbosa, Roger Barnab, Tereza Salazar, Thiago Judas, Silvia Cruz, Tlio Tavares, Vivian Kass. Vrias ONGs e Movimentos dos mais diversos foram convocados. A lista sair conforme for sendo confirmada. Articulao Fabiane Borges, tel 33341384, Tlio Tavares, tel 38648551, Emanuely, tel 33336961, Mila Goudet, 37420886, Dolores Galindo (Tina) 91210144 43
Por esses dias centenas de pessoas foram ter com os domnios demasiados da ocupao, e puderam constatar sua estranha fora murada: condensao-revide. De resto, o mergulho inescrupuloso e transfusivo na abissal trama de superfcies sobrepostas. Ocupao da vida Arte e Movimento Social Crises e Aes, sobretudo: arquitetura intensiva plena em sonhos, carnes e fofocas, redes de peles e lnguas. Prdio prenhe de mulher grvida e juventude. Cheiros e vcios. Lonas pretas e cobertores cinzas. Caf aucarado e nostalgias.
Foto: Rafael Adaime
A primeira reunio dos artistas envolvidos com a Ocupao na Ocupao foi divertida e cansativa ao mesmo tempo. Todos tinham crticas, opinies, elaboraes, propostas e foi inevitvel discorrer teros de abstratismos conceituais, paralelismos histricos, recuperaes de memrias equivalentes acontecidas no incio do sculo, semana moderna, 68 na Frana, tropicalismos, happenings, Black Blocks dos 90 nos Estados Unidos, representantes de mdias independentes, squats, okupas, trotskismos e luta armada... Teve de tudo. As pessoas queriam enquadrar aquele acontecimento em algum dado j dado a qualquer custo. As crticas eram arremessadas em ns: a baguna, a desorganizao, a falta de conceito, e por a vai... A crtica de arte funcionando como mquina subjetivadora do acontecimento. A crtica de arte na lngua do artista. Seria esse um dos componentes do Coma da arte brasilieira que Suely Rolnik fala? A lgica confundindo-se com o que eu chamaria de inteligncia e tica. Que confuso!
Enquanto isso uma das moradoras, Dona Romilda, que aparece na foto acima, dizia: Artista, artista, artista... eu no sei nem falar, no sei escrever, no sei nem o que estou fazendo aqui, mas eu pergunto, esse negcio que vocs to a falando, falando, vai funcionar 12 ?
No sabamos se ia funcionar... No sabamos de nada. Eu no sabia. Sabia talvez, que estvamos imersos em um ponto enredado das linhaduras da megalpole. Um n de tenso e luta que reivindicava sua parte no latifndio da Constituio Brasileira.
Aps essa primeira reunio com moradores, artistas e coletivos de arte os sinais esverdearam- se e as visitaes intensificaram-se diariamente: jornalistas, estilistas, vdeo-artistas, cineastas, ongs, militantes, candidatos cargos pblicos, vereadores; tudo foi sendo composto por infindveis conexes.
A harmonia uma utopia. Isso foi comprovado desde o incio; em situaes de fronteira, pra alm de riscos de travessias, sexos e promessas de casamento, as diferenas tendem a se evidenciar radicalmente, ainda mais se acreditamos na potncia da arte em amplificar sinais, ao invs de insistir na obra-para-a-beleza-contemplativa. Houve momentos de desistncias, onde vrios artistas se retiraram do encontro destilando escadaria a fora o teor de seu repdio;
12 Falas extradas de vdeos dos catadores de histrias. 44 problemas com as coordenaes no habituadas s iconoclastias que pululavam pelos corredores. Brigas de namorados. Bobagens faladas imprensa. Ideais em fracasso.
Uma maioria artstica, intelectualizada, tecnologizada, cheia de discursos e ares de mudar o mundo imersas em um prdio incendiado de fogo e stio. As mquinas fotogrficas clicando rachaduras at ento despercebidas, devido as fissuras de tudo que havia. O neto chegando na casa da av com capacetes de cor laranja trazendo a prpria foto recm sada na Coluna Social 13 ; problemas sociais com a coluna. Orgias semiticas amplificando rudos e canes nordestinas.
Estvamos todos ocupados de incertezas e cumplicidades. No sabamos direito o que fazer com a ocupao devido diversidade de experincias ali produzidas. Para muitos aquele ms foi uma experincia esttica de concentrao poltica e ativista, outros reativaram seus hbitos militantes petistas dos anos 80/90, outros se prepuseram a viver a experincia sem deter-se nas questes hierrquicas totalitaristas da organizao do movimento, alguns deram resoluo ao seu impacto existencial construindo obras inditas nas paredes do prdio, uns se colocaram a cozinhar, outros a dormir na ocupao, outros a entrar em crise e chafurdar na culpa. Teve quem fortaleceu sua idia de que os artistas plsticos deveriam criar um sindicato a partir dos paradigmas do MSTC. Confuses e sexo. Artistas transando com sem tetos e vice-versa, em meio a instalaes de arte e aos sons dessincronizados da rdio livre do stimo andar. Sem teto com lata de tinta desenhando o corredor, enquanto outra se punha a fazer bonecas, colares e comida pra vender pros artistas.
Um clima de visibilidade e replicao tomou conta do espao/tempo ACMSTC... Tudo que se fazia se redimensionava a um outro estado que no o do banal cotidianizado, massacrado pela insignificncia. As mulheres esto mais bonitas, dizia Mariah Leick, voltaram a usar seus lenos guardados. Os andares de incndio estavam sendo ocupados por arte, tintas, esculturas e vdeo-cantigas. Estranhas relaes de vizinhanas recombinavam contratos. Sorrisos e pedidos de desculpas por entre as janelas. Ebriedade da arte do vigsimo primeiro andar, outrora fechado. Discusses tabus vinham tona, como sexo, lesbianismo, alcoolismo, virgindade e tudo o mais. Os artistas pedindo passagem, trocando sua arte por uma almofada singular. Cafs e cafetinagem. ramos muitos antropfagos comendo-nos mutuamente a fim de nos fortalecer. De um lado a coragem ttica, do outro a poesia plstica. Mas tudo sendo tecido em ato, sem coordenao de fato. Ataduras por todo lado. Discursos sendo desmontados e outros crescendo em fora e forma. Uma aura de simplria insensatez pairando. Era momento de suspenso, eu pensava.
13 Reportagem feita por Mnica Bergamo, Lucrecia Zappi e Cleo Guimares. Folha Ilustrada. Domingo, 14 de dezembro de 2003.
45 Estava zonza! Zanzibar! Quem saberia o que acontecia? Eu desconfiava que a confuso criativa generalizada era o tnus de todo o processo que do contrrio, ou seja, organizadssimo como muitos desejavam, seria s mais uma exposio coletiva de arte. Meu revide ao mundo-co se sustentava dessa anarquia generalizada, desse caldo casmico recombinante e ptrido. Essas incertezas e confuses alimentavam minha mais sensvel idiotia que desejava imensamente virar sonido dissonante e espalhar-me espao a fora... O clima mgico de cpula entre o incognoscvel e a sensao pusilnime diante da iminncia de um novo incndio 14 .
Fui entrando em um clima brio e fantasioso onde acessei devires e me coloquei a servio de supostas incongruncias, ativando dezarrazoamentos e deslocando sentidos... Foi assim, em meio a latas de tintas e lonas pretas da ocupao que fui me libertando da falta de sada das ruas, e comecei a nomear-me Cassandra 15 , porque ela freqentava costumeiramente as tramas demasiadas e suas profecias ininteligveis diziam de tudo o que no era visto - no s previa tragdias - e porque ela tambm era a Moa do Claro de Glauber 16 .
A moa-do-Claro-de-Glauber delirava no filme da Itlia-mundo. No s delrios. Tambm era Moira: tecia fios, criava futuro... Em uma das cenas do filme uma famlia rica se preparava para a ceia em volta de uma mesa cheia de carnes cruas 17 . A moa tambm estava l, como que invisvel, alucinando uma dana exttica, traando riscos no ar com os braos, com os dedos, como se praticasse um rito de composio de intensidades que lhe outorgasse determinao suficiente para cumprir a terrvel tarefa da qual se incumbiu: interferir diretamente no destino daquele banquete.
14 Dois meses antes de chegarmos na ocupao Prestes Maia no dia 7 de setembro de 2003, quatro andares foram totalmente destrudos por um incndio, resultando na morte de uma menina de quatro anos: Kimberley Bessler, cujo nome pretendem dar ao prdio quando na ocasio de sua pretendida posse do prdio. Incndio de parede-vida. 15 CASSANDRA era a mais bela filha de PRAMO, o Rei de Tria. APOLO concedera-lhe o dom da profecia, em troca do seu amor; contudo, CASSANDRA no cumpriu a sua parte, no acordo. Ento APOLO, como castigo, retirou-lhe a credibilidade. Assim, CASSANDRA via as desgraas que se aproximavam, alertava para o facto, mas ningum lhe dava ouvidos. Por esta razo, CASSANDRA considerada como uma profetisa da desgraa. CASSANDRA tambm previu a queda de Tria, mas ningum reagiu aos seus avisos. O seu prprio destino era do seu conhecimento, (...). Aps a destruio de Tria, CASSANDRA foi dada a AGAMMNON, como parte dos seus despojos de guerra. O Rei de Micenas levou-a para Argos, onde foi assassinada por CLITEMNESTRA. Segundo outra verso do mito, CASSANDRA, Irm gmea de HELENO, teria obtido a capacidade da viso, na infncia. enquanto PRAMO e HCUBA davam uma festa no templo de APOLO TIMBREU, situado fora das portas de Tria; os pais ter-se-o esquecido das crianas, que passaram a noite no santurio. Na manh seguinte, foram encontradas a dormir, enquanto duas serpentes lhes passavam a lngua pelos rgos dos sentidos. Assustados pela presena humana, as serpentes fugiram. Mais tarde, as duas crianas revelaram o dom da profecia, adquirido atravs da purificao operada pelas serpentes. (PIERRE GRIMAL, Dicionrio da Mitologia Grega e Romana. Informaes do site: httpp://www.triplov.com/letras 16 Cfe roteiro do filme Claro 1975, de Glauber Rocha. Os fragmentos de falas foram retirados do livro: Glauber Rocha - Roteiros do Terceiro Mundo. Editorial Alhambra/ Tipo Editor Ltda. RJ. 1985. Organizado por Orlando Senna. 17 Famlia tradicional estruturada nos valores de um capitalismo crescente (ano 1975). No jantar encontram-se o capitalista-pai, a rica estrangeira-me, os filhos ricos e angustiados Mrio e Carlo e o amigo nobre.
Numa concepo polifnica da narrativa, no existe um centro que determine o significado, surgindo este exclusivamente das trocas entre todas as singularidades em dilogo. todas as singularidades expressam-se livremente, e atravs de seus dilogos elas criam juntas as estruturas narrativas comuns. Em outras palavras, a narrao polifnica de Bakhtin coloca em termos lingsticos uma noo da produo do comum numa estrutura em rede aberta e disseminada.
Hardt e Negri. Multido. Ed. Record.RJ e SP. 2005. P. 274 46 Sua tarefa era promover a destruio da famlia, a morte do pai, a dissoluo do estado, do papado, de Roma, do capitalismo, da histria, do bem e do mal, da lgica mscula; ela gritava solitria em meio famlia e os cadveres de aves de cima da mesa: Ele ainda cr no Bem e no Mal, na moral dos heris do Capitalismo e da Histria. (...) Esquizofrnicos, divididos, dissociados: eis o resultado da famlia, o ncleo convencional. Os pais sero assassinados pelos filhos. Os filhos vo trepar com as mes. As mes vo trepar com os filhos. E ser a destruio definitiva desse horror representado por esta cidade de Roma.
Suas palavras vo subsidiando os acontecimentos daquele estranhssimo encontro e seus menores gestos serviam como guia das trajetrias de desastre. Traava uma linha no ar conectando me e filho e o incesto iniciava-se; apontava a faca e dava-se o assassinato do pai. Ao se consolidar a cena trgica ela enlouquece em gritos que mais pareciam navalhas vocais afiadas que cortavam os fios de qualquer esperana porventura sugerida: Mas no h mais olhos para ver, no h mais ouvidos para escutar. Ningum sabe o que fazer deles. O povo ir renascer desta cidade de cartes-postais que esvoaam em meio aos turistas enfermos. Uma multido mistificada, com aquela cara sem dentes, cheia de lama, de terra, de serpentes. Roma sumir do mapa. Os homens edificaro novas construes sobre as velhas construes para que acreditemos que so novas.
Depois do filme derivar por uma Roma-em-runas a moa reaparece no interior de uma casa riscando o ar com um pequeno anjo de metal nas mos; est calada, move o corpo vagarosamente de um lado para o outro, acumulando foras insuspeitveis. Na mesma sala um travesti decadente bebe usque no gargalo enquanto fala sua fala bbada: Ah o imprio, minha cara, o imprio! Um estado que se depara com a polcia em casa. Os imperadores da decadncia... e a decadncia bela, bela porque em parte desejada pelos imperadores, mas, sobretudo desejada pela libertinagem. A evoluo, digamos assim, sadiana da polcia... Entende? Sade na polcia. E ento esses legionrios... Porque preciso entender a questo do Ministrio do Interior, um ministrio dos interiores, dos lares. A polcia! com a polcia que podemos avanar a Histria. Camus, Albert Camus: com a polcia se faz avanar a Histria. E ento, eu dizia (...) Eu sou uma senhora por aquele tanto de respeito que me devido. Porque a Histria eu deixo aos machos, aos trabalhadores, moda s para homens... Cantemos. Enquanto ele canta seu canto dodo a moa sugere gestualmente penetrar-lhe-o-cu-com-o-anjo- metlico.
Dessa forma meio Moa, meio Jaderlina 18 , meio Cassandra, meio xam, meio visionria, eu habitei a ocupao indita, desvairada e ldica, cheia de panos e cantigas de louvores e lamentos s mulheres, aos humanos e ps-humanos, imprensa e aos artistas. As linhas de alegria e psames atravessavam meus ps danarinos e titubeavam-me para todos os lados. Meus ditirambos iam alm de exultaes de alegria, eles imprimiam tambm uma dose de crueldade. Era como se naquele lugar, por algum espao curto de tempo, a vida propriamente dita fosse possvel de ser vivida em seu estado ampliado de replicao e continuidade, como num intervalo de dana de desterramento (but): Meu revide! No havia negao da dor nem da morte nessa zona-aleph, eram todas as densidades. Romance cru de carnes e espaos.
Fui dessa forma incentivando em-mim-e-em-tudo-em-torno um delrio poltico, mtico, ontolgico, que no caberia nos registros clssicos da poltica burocrtica. Minha idia que aquele encontro acontecia muito mais como ajuntamento de heterogeneidades producentes do que como reunies politizadas e desgastantes cheias de medidas consensuais. No consenso subjaz
18 Jaderlina da Silva: Eu mesma. Documentrio da estilista Cristiane Mesquita. Co-direo de Lucas Bambozzi. 2006. 47 a violncia das molculas diferenciantes -: sufocadas. Dessa violncia ningum falava. O consenso um instante resguardado atrs do pensamento. Alm e aqum dele. A desconstruo da msica harmnica, a princpio sugere uma dissonncia aterradora, logo depois ela se instala no espao como ambiente sonoro incisivo que cria outros sentidos de harmonia. Assim o consenso que eu almejava, e tentar produzi-lo em espaos de eventos pblicos trabalho de feiticeiro, magia... Aglutinao de energias e cansao, no entanto as molculas do prdio e dos corpos respondiam, tinindo feito castanholas...
Trabalhos de Cassandra:
Fila 1- 1: cassandra interagindo com o trabalho de Fabiana Rossarola, Vista suas Veias. 2: virando parede e se desmaterializando nos espaos internos da ocupao. Fila 2- 1: cassandra em performance com o grupo Zaratruta. 2: coral dadasta. Fila 3- 1:cassandra em performance com Cesar Rosa. 2: em performance com Jssica, moradora da ocupao. Fotos: Rafael Adaime 48 A Boca de Cassandra:
Virava prdio, virava obra, me desmaterializava nas paredes nuas, quebrava em cacos, me reerguia suja... Amava tanto que previa a queda de tudo que havia e ainda vivia ... Minha noite... Runas, rumores, risadas, rancores, rudos, rabinos, ratos, romances-rpidos... As folhas caindo sem terem nascido... O ouvido ouvia tudo que no havia... Elas mulheres dos anos 50, saiotes, cadeiras-tetudas... Lenos e lenos na cabea, no quadril, na garganta, no brao quebrado, na boca! Na boca! Na boca! No vs? No ouves? Cachaa! Cachaa! Cansao de degraus e adrenalinas. Procuro, caminho, vagueio, alucino, falo outra lngua? Me escuta, te digo... Daria para ser agora? Da morte eu te falo. Agora, quem sabe. Depois d preguia... Agora... Todos agora em orgia com a molcula. Libera o pensamento, ocupa o teu tempo, retoma o brilho da pupila, do muquifo, da sirigaita da vizinha. Traduz meu texto na janela, pem pra fora, defenestra... Da janela, da janela, veste o prdio de incndio, no vs a lngua vida do fogo, como brilha.... Di o olho. Faz o prdio chorar de menina, de cachorro, tudo morto.... Isso t acontecendo? Ouvistes o choro da loirinha... de fome. Vamos ento, nada a perder... Um exrcito paralelo bem vermelho, cor de sangue e lngua... Isso, contamina, contamina.... Mas com sexo, eu quero gozar... Bem gostoso naquele pilar. Vai, vamos... Juntos pela escada... Todo mundo se acaricia e se atira do vigsimo primeiro.... Agora me deu fome, no quero mais... Eles perguntam tanto... Quem? Os mortos vivos ali na reunio... Expulsam-se de tanto medo... O menino falou que teve medo do distrbio... Ele viu a moa cortando o cabelo igual ao da artista. Disse que ia ficar famosa, mas no dava mais tempo... No tinha leite, caiu o dente... Muito cedo. Pinta a cara da criana para ela comer chocolate, bem suja... l no andar da morta. Diz pra ela falar com o governador. Cara-a-cara. Beija a boca do governador, Kimberley... Beija, defunta de incndio.... Homem de negcio tem medo de fantasma... Vamos assustar ele, puxa a gravata dele, cospe gs putrefato na boca dele e tranca o reto Que medo que eles tm do fogo. Vai morrer bem queimado, eu vi... Mas velho.... Velho de dar pena. Busca a sada, busca sada, buscada, boceta, buzo... to pobre esse povo! Meu povo! Meu povo escandaloso e zonzo, venha at aqui ver o pau do menininho crescendo com a prpria foto no jornal. Entrou um vrus vo no pensamento dele. Enxergastes? Eu vi bem claro o momento, entrou em mim tambm, no meio do olho... Vou ao paraso dar uma olhada no dinheiro deles, depois eu conto. Agora quero restaurante chique porque aqui t muito pobre. Meu povo pobre e burro, vamos fazer o despacho, mas com perfume caro. Lava o sovaco, estende o lenol no hotel para ela militar. Seno cansa muito rpido, muita escada. Que culpa! Que culpa! Vou pedir as pazes! No t achando as bombas, sobraram as fezes. Viu que caganeira deu essa baguna toda? Limpa as paredes, tira as obras, desata os arames, pem fora os cachorros, limpa a casa, lava os banheiros... Isso arte? Isso arte? So mais pobres do que ns sem teto. S fio e pano velho. Limpa tudo e queima, queima os livros tambm, bota fora Mariah-dissidente. Traz o armrio pra baixo, limpa a maquinaria. Mas quando tem que ocupar, ocupa? Ah, a os pobrezinhos fogem, e o artista da vida fica na frente da borracharia. Conecta nesse momento os fios da tua vida e suporta o tranco... Ali no d pra pensar. Ali ou fica ou vai. Pra onde? Borda do tempo, borda do tempo sem teto. Escreve tua tese no paraleleppedo, mulher. Faz ele de travesseiro. Concretiza teu pensamento, s um pouco. Sistematiza ele na lona preta. No para sempre no - s aventura. Te aventura para ver o quanto o sangue corre. Mas eu t to cansada... Cansada... Cansada.... Eu nem vi quando que me penetraram. Ser que comeram meu cu tambm? Est doendo tanto... Rasgou a prega do olho do cu bem debaixo da lona preta. Era despejo? No, instalao de artes visuais e plsticas. Tinha uns pedaos de porco morto, a menina levou para a av comer, tinha fome a pobre-velha-pobre. Comia porco cru e assistia vdeo-arte. Ficou com teso pelo rapaz laranja. Se tivesse dinheiro seria diferente, n no? Ia pagar o artista bonito para fazer uma instalao bem na entrada.... S a cabecinha na portaria. D mam pro artista enquanto atira o osso pela janela. Caiu dentro do copo de maria-mole da outra louca. Mas s tem louco? No, tem 49 os ativistas. Eles sabem porque estamos aqui. Vo nos ajudar a sair. Mas quando? Calma! Temos que atravessar a experincia. Mas at quando? At o fim dos tempos. Mas se eu no quiser? Agora no tem volta. Eu vi o vrus entrar no teu olho, lembra? Mas era vrus vo? No, era ocupao! ......................................... Sustentando paradoxos insustentveis e mesmo assim inventando modos de conexes subjetivas e matricas, artistas e moradores iam aos poucos refinando brios e desencilhando-se dos guetos. Construindo nfimos ritos de simpatizao, anuncia e negao. Passagenzinhas de contato e fuga da dureza nua. Alguns artistas escreveram sobre seu processo de encontro de arte com a ocupao sem teto, coloco-os nesse texto afim de que suas narrativas ampliem os pontos de vista sobre o acontecimento ACMSTC:
From: Luciana Costa Sent: Thursday, January 22, 2004 1:13 PM Subject: LCMC no CACMSTC ou SCBPSFBC Meu relato sobre minha experincia com a ocupao. Um abrao forte a todos. Luciana Costa ................................................................................................................................................................................. ................. Interveno de Luciana Costa no ACMSTC *
* se correr o bicho pega se ficar o bicho come.Em minhas visitas ocupao do Movimento Sem Teto do Centro fui tomando contato com os moradores e sua situao, com os artistas envolvidos e as temticas e reflexes pelas quais estvamos todos atentos. De cara me vieram duas vontades: realizar um trabalho plstico e oficinas (de desenho, pintura, malabarismo e o que mais pudesse oferecer).Ento formulei um trabalho plstico de uma instalao nos primeiros lances de escada na entrada da ocupao na Avenida Prestes Maia. Alm do mau cheiro, particular desta rea, que nos remetia aos dejetos humanos, alguns degraus desta escada estavam quebrados revelando uma camada mais profunda na estrutura do prdio, como a carne exposta de uma ferida. O trabalho seria fazer brotar desta "ferida" um material amarronzado por seu brilho dourado e que escorresse pelos degraus. Uma aluso preciosidade do fluido vital se esvaindo por entre fendas, desperdiando riquezas, acumulando-as como dejetos, por indiferena e descaso. Reflexes acerca da comunicao da arte que criaramos naquele contexto especfico, a necessidade de que nossas aes fossem feitas para eles, e a vontade de transformao atravs de nossas aes, me fizeram questionar minha vontade artstica. O formalismo de meu trabalho, regido pelas noes estticas e conceituais de minha poca me pareceram frgeis e transitrias demais para tamanha vontade comunicativa e transformadora. Ento ao invs de realizar a instalao decidi vivenciar o espao e a comunidade buscando estar aberta a interagir com as necessidades que se apresentassem, na meta de descobrir qual seria o trabalho requisitado por eles e que eu poderia oferecer. Ou ainda, na vontade de ser eu, e no a obra, que os levasse ao caminho da descoberta e aproveitamento de suas riquezas. Me transformei ento numa artista/presente. (...) E foi assim, nesse jogo da vida, que a primeira ao com os moradores e se fez presente, e as primeiras linhas foram escritas, neste caso buscando as linhas retas.Em outro momento como incentivadora, crianas moradoras no 9 andar do bloco b, ao reclamarem de ao em seu andar, desenharam e pintaram um jardim na parede ao lado da escada, com rvores de natal e presentes, como costume desta poca, para Main sua grande realizao foram os pssaros que pintou, para mim sua grande realizao foi a filmagem que fez de sua casa, de seu mundo incluindo a si mesma no reflexo do espelho. Colhi, em minha peregrinao, depoimentos e demandas diversas, e o conhecimento de como a ao artstica, nesta comunidade, reverberava e se transformava por entre todos ns.Encontrei quem estivesse refletindo profundamente sobre sua vida por ter visto e enxergado tantas outras formas de pensar; escutei crticas de moradores que me afirmaram que tambm o conceito de nossa ocupao fora discutido a assimilado por eles; recebi pedidos de moradores que ainda demandavam de nossa ao mostrando que, apesar do nmero monstruoso de artistas participantes, muitos mais eram desejados e sim, de forma mais pessoal. Fui requisitada vrias vezes a realizar trabalhos em locais ainda no intervindos; (...) Outra questo, que me ficou clara (inclusive atravs dos atritos ocorridos), que este caminho traado pela nossa ao junto ao MSTC, por se tratar de um dilogo direto com uma comunidade a forma mais rica, democrtica, no invasiva e produtiva no nimo e na alma destas ou de quaisquer outras pessoas, pois no se tratam de especulaes e teorias mas de uma realidade na qual o artista est presente, aberto ao pblico, e responsvel por sua ao. Luciana Costa (So Paulo, Janeiro de 2004)
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Foto: Mnica Rizzoli Experincia n. 2 de Olga Maria Fernandes
Realizada no ACMSTC Contempornea no Movimento Sem Teto do Centro. Dia 13 de dezembro de 2003 Local: Ocupao Prestes Maia. www.ocupao.tk
Um movimento como o ACMSTCC (Arte e Cultura Contempornea no Movimento Sem Teto do Centro) torna-se possvel atravs desenvolvimento prvio entre artistas/moradores e a conjuno de suas expectativas e necessidades. O artista age efetivamente DENTRO da comunidade (com todas as suas especificidades, problemas/solues). Em contrapartida, a comunidade age efetivamente dentro do "artista", portador de uma outra organizao, um outro pensar. Entre essas diferenas e atravs do embate [comunicativo] que cramos um espao de vivncia crtica e interAtiva. ESTAR entre diferenas. O espao de vivncia crtica e interAtiva o espao da vida e no da representao. o espao do deslocamento corporal e psquico. o espao da integrao entre "artista" e "no-artista" e da supresso das diferenas entre ambos (...) Afirmo efmero, pois todo e qualquer objeto e/ou ao produzida dentro do contexto do ACMSTCC ser adaptada e adequada pelos moradores s suas necessidades. (...) Memria X Monumento: o reconhecimento do EU na metrpole. Procurei estabelecer trocas e criar vnculos com os moradores. A partir desse contato meu trabalho foi possvel. Com a inteno de trazer a tona histrias individuais e chamar ateno para as mesmas, recolhi uma srie de cartas/depoimentos de moradores da ocupao. Cada uma dessas histrias "engolida" pelo tempo/espao. Os nomes "annimos" (mesmo sendo base de toda e qualquer histria) refletem a dificuldade que o indivduo enfrenta em se reconhecer/ser reconhecido dentro da metrpole em constante transformao. Suas marcas e rastros rapidamente so apagados. A matria, re-moldada cotidianamente incapaz de resgatar a memria. A matria na grande cidade fluda, efmera. Pequenos atos/ritos so possveis formas de nos inserirmos na cidade, na sua histria e at mesmo em sua brevidade. Criar um monumento efmero uma forma de afirmar-se no espao, encontrar-se na metrpole e construir memria. O monumento efmero erguido no ACMSTCC foi constitudo das cartas/depoimentos e partes do meu cabelo (o cabelo foi cortado por um dos moradores do prdio). Tudo colado na calada, exposto e transmutado matericamente a cada passo, chuva, sol... At o desaparecimento. Os cabelos marcam corporalmente (marca breve) as transformaes sofridas no espao de vivncia. Deixa-los deixar-me. estar lado a lado com todas histrias (recolhidas/vividas/esquecidas), buscar por um instante nico, afirmar-me como indivduo presente na construo de nossa histria. Algumas observaes a respeito da Ocupao e suas decorrncias: A primeira delas a respeito da dissoluo da arte no cotidiano. Todos que receberam o convite da exposio e foram visit-la como espectadores, provavelmente sentiram-se frustrados. Existiam sim trabalhos utilizando linguagens como a pintura, a instalao ou at mesmo environments, entretanto estes se encontravam incorporados de tal maneira ao prdio tornando-se uma extenso do mesmo. Isso no sendo suficiente, os moradores, visitantes, enfim as pessoas interagiam mesmo que inconscientemente com os trabalhos propostos. Isso deu um carter de mutabilidade a esses trabalhos e conferiu autonomia crtica ao ex-expectador. No se tratava mais da construo de um produto artstico e sim da vivncia e transformao de um espao. Da confluncia entre diferentes pensamentos e experincias, e da produo do efmero (mutabilidade imposta pela interao). O artista transformou-se em agente social atravs do pensamento esttico e em contrapartida tornou-se primordialmente um indivduo. Agindo e sofrendo a ao. Tornando-se a vida a prpria arte. Mesmo ao desenhar nas paredes das casas, antes de ser a representao o primordial, encontrvamos o ato/ritual de marcar simbologicamente o espao. O desenho como um ato primeiro de reconhecimento do indivduo no tempo/espao. As crianas que interagiam no processo de criao dos desenhos como no caso do artista Eduardo Verderame, no trabalho "Jogo de possibilidades", tornavam-no um ato coletivo em decadncia do ato individual do artista "gnio". Todas as linguagens "hibridamente", unificadas e em sinergia, dissolutas no espao tanto quanto o artista. Numa busca de expresso esttica no espao-tempo. Tudo isso poderia caracterizar uma nova esttica? Uma nova postura scio-poltica? Dentro desse contexto prefiro descartar toda e qualquer idia de novidade. Essa idia torna-se obsoleta quando compreendemos que as rupturas s so possveis quando relacionadas ao pensamento esttico vigente anterior. A ruptura antes de mais nada uma transformao. Creio que seja essa a caracterstica de aes como a Ocupao, no a caracterstica da novidade, mas sim da assimilao e transformao de todo conhecimento anterior, em algo que possa suprir nossas necessidades atuais. 01/2004 51
Caminhos - Mapa da amrica do sul. Rodrigo do esqueleto coletivo
Um mapa da Amrica do Sul, exposto em meio a um evento artstico, dentro de uma ocupao do MSTC est alm ou aqum da Arte? O mapa buscava apenas algo diverso, entre a esttica e a educao, entre a plstica e a performance, entre o jogo e a reflexo; o mapa, como idia simples e precisa, colocou os moradores no palco e fez do contato entre artista, objeto e pblico o prprio centro da criao. No branco e grande mapa, cada morador desenhou o caminho de sua vida, desde seu nascimento, passando pelas cidades onde morou, at sua chegada quele prdio na Avenida Prestes Maia, no centro de So Paulo. Sobre esta rota, outros pequenos traos indicariam quantos anos j haviam sido vividos. Nossa! Como j vivi! disseram alguns, Puxa! Como j andei nesta vida..., disseram outros. O resultado do desenho de cada morador foi uma grande cicatriz, uma cicatriz de rememorao. Uma proposta que se realizou em ato, na lembrana de um caminho percorrido em meio s necessidades de cada passo. O mapa no apenas foi sendo preenchido por histrias individuais, mas por uma Histria. A Histria de um pas que no garante sequer a permanncia. A liberdade de movimento, de repente, surge como aprisionamento na necessidade de todos. A rememorao individual tambm passou a ser uma memria coletiva. O espao vazio do mapa tornou-se o espao do Brasil, o mapa deixa de ser mapa poltico para virar mapa vivido de cicatrizes, percorrido por uma histria de expulses, cerceamentos, escassez, penria, secas, despejos, cercamentos, fome, saudade, misria... O que todos j sabiam agora estava estampado; o que todos sentiam estava dito. Todos saram do mesmo espao, o espao da recusa, para se juntar num outro: aquele prdio, sede de histrias semelhantes, histrias de impossibilidades. Porm l, no ponto de encontro de todas aquelas cicatrizes se esboava o possvel nascente do impossvel, a luta de todos por um mnimo que fora prometido e jamais cumprido: o direito de estar.
From: "Fabio Tremonte Sent: Friday, January 23, 2004 1:35 AM Subject: Re: LCMC no CACMSTC ou SCBPSFBC Sobre a no-ocupao do Grupo Los Valderramas
No ocupamos, pois no somos ocupados, nem os culpados! Porque da no-participao do Grupo Los Valderramas? No sabemos, talvez porque o sol brilhasse muito nos dias da ocupao, ou talvez chovia muito, no sei, no consigo me lembrar! S sei que um dia desses fomos passear no centro de So Paulo, passamos em frente a ocupao que, curiosamente, ainda continua ocupada. Mas, a ocupao dos artistas no foi no ano passado? Acho que sim. Isso nos fez pensar e resolvemos entra e conversar com os (verdadeiros) ocupantes, conversar sobre como ocupar um lugar, quais as estratgias necessrias, qual a necessidade, conversamos muito, com muitas pessoas. Agora, estamos lembrando, nem nos apresentamos, esquecemos de dizer que ramos artistas, esquecemos de oferecer nossa ocupao, esquecemos de oferecer nossa criatividade, esquecemos de ocupar aquelas pessoas que ocuparam aquele espao desocupado. Foi melhor assim, faria diferena se dissssemos que somos artistas? (...) Acho que vamos continuar como nossos passeios sem rumo, talvez um dia voltemos quela ocupao e, desejamos do fundo do nosso corao, que ela esteja desocupada, totalmente, sem pessoas no-morando e sem artistas ocupando o que j foi ocupado. Talvez encontremos essas pessoas em outros dos nossos passeios, vivendo como merecem, como um bom emprego, com luz e gua encanada, com um casa to ou mais confortvel que as nossas. isso que esperamos e desejamos. O que podemos fazer? Tudo o que est a alcance e fora de alcance. podemos. Queremos. Ocupamos sempre que possvel e impossvel. Assim seja, ocupando nosso tempo sempre. NADA MAIS que amar! Grupo Los Valderramas
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Construo de mapas em grande escala por Cristiane Moraes
Oficina: Construo de mapas em grande escala, pressupe a demarcao de um territrio imaginrio, ironizando a noo de desterritorializao, cara ao discurso globalizante, mas cujas quebras de fronteiras se fazem preponderantemente -ou mais notadamente- no campo econmico e que, portanto, continua excluindo enormes contingentes de pessoas do acesso um teto descente ou terras produtivas, que possibilitem fcil escoamento da produo,ou proximidade com seus locais de trabalho. no campo simblico que demarcar um x com os corpos de duas pessoas em caminhadas constante se faz poltico. O lugar!, Aqui, como se quisssemos dizer com os rastros invisveis daquele x, aos moldes do que se faz em mapas quaisquer, sejam os de guerra ou os geogrficos, os polticos (sic) ou os de prprio punho para dar orientaes ligando l e c. Comeamos a andar s 14h de sbado, dia 13 de dezembro e s paramos s 14h de domingo, dia 14 de dezembro. Nesta viglia qual se faz em momentos em que a polcia despeja ocupantes dos prdios- no se podia perder o foco. No nos facultamos o direito de baixar a guarda, nem mesmo na madrugada, com a maioria dos espectadores dormindo. No se tratava de espetculo. Nem mesmo s 6 horas da manh, quando aps 16 horas andando incessantemente precisei parar para tirar os sapatos, massagear os ps em bolhas e as costas doloridas, pudemos nos permitir desvios de objetivos. Neste momento deitei no cho do espao sem teto- e por 20 ou 30 minutos propositalmente no usamos relgios- cochilei respeitando a forma de x ao lado de Andr. Conversas e situaes diversas fizeram parte da jornada, mas o foco colocado na inteno de demarcar o lugar e aproximar realidades sociais e culturais distintas no poderia se perder.
Pressuposto da ao era, pela distncia, criar proximidade. Atravs do corpo, do movimento repetido, das palavras mesmo, puxvamos conversa com os transeuntes e com eles travamos o x juntos, convidando a serem participantes da costruo de um sentido para todas as realidades ali existentes. No queramos deixar restos fsicos. O registro se d na memria do espao, nas conversas havidas, nas relaes estabelecidas, na bolha dos ps, na troca de afeto, na conscincia poltica ampliada, na vivncia nica. Ao longo das horas, muitas manifestaes artsticas e rotineiras do espao em que estvamos ocorreram simultaneamente ao nosso caminhar ol mame!- e fomos adaptando o desenho do x ao espao necessrio. Entendemos todos os que ali estavam como participantes do mesmo ato de demarcao e algumas vezes o x se reduziu em escala, porque mais combatentes entravam em campo. Performances de longa durao ou de resistncia no so nenhuma novidade no campo da performance, to pouco o a aproximao do desgastado e mal usado!- binmio arte/ vida. Talvez apenas para mim, que nunca havia realizado uma performance com estas caractersticas to acentuadas, a novidade tenha se instaurado. Talvez para os 2.000 moradores do prdio, chamar de arte um ato de resistncia que de certo modo eles enfrentam cotidianamente, tenha sido a nica operao perturbadora instaurada por esta interveno. Religio, loucura, drogas. Ouvimos muitas tentativas de encaixe de nossa interveno nestes rtulos. Arte, s vezes eu respondia (porque no se pode ser artista no Brasil, sem pensar em educao!). Fanatismo, alterao de sentidos, criao de cdigos que dem vazo a pensa/senti/mentos que no encontram lugar (ops!) nos parmetros mais amplamente adotados. Muitos perguntavam o que estvamos fazendo, para alguns a resposta era estamos procurando sentido. Uma criana perguntou e j achou?. Aceitamos com necessidade, assim como necessidade parece ter sido a mola mestra para terem aceito um grupo de artistas de diferentes perfis e atuaes a ocupar por alguns dias o espao ocupado pela necessidade. No tive dvidas, pela primeira vez, de que todos precisamos de arte. Vocs conseguiram, so duas horas da tarde!, fala Frank. E ento recoloco meus sapatos neste momento eu estava usando os chinelos que Edna generosamente me emprestou- e vou para outro local. 53 Mas o que esse tempo/espao onde estvamos imersos? O que mesmo o MSTC? Uma rede em movimento social de arte-mdia-e-teto... Indo.... Deixemos que fale de si prprio...
O que o MSTC? 1
O Movimento Sem-Teto do Centro uma articulao de grupos de base e de Associaes de Moradores das ocupaes e projetos j conquistados. um espao de formulao de propostas e de lutas por moradia ao mesmo tempo em que procura se articular com outras lutas populares organizadas pelo movimento social. Quais so as orientaes e princpios do que norteiam o MSTC?
1. Incentivar a populao que no tem moradia a pleitear recursos do Estado e/ou dos beneficirios do modelo econmico para a realizao de projetos habitacionais e construo de moradias populares, que atendam suas necessidades enquanto populao excluda, possibilitando assim a manuteno da estrutura familiar. 2. No processo de luta por moradia, organizar grupos e associaes populares autnomas e permanentes, que garantam a ampla participao democrtica das pessoas e famlias. A organizao prpria um instrumento para desenvolver as famlias e suas lideranas, garantindo a continuidade da luta e transformando aquela populao excluda em agentes de sua prpria histria 3. Inter-relacionar-se, unir-se, o mximo possvel, prioritariamente com o maior nmero de outros grupos populares de luta por moradia, e tambm com outras lutas populares. Em primeiro lugar, para conseguir seus objetivos especficos. Em segundo lugar, de modo combinado com o primeiro, para construir um movimento social forte que ataque as causas da misria, lutando por uma Reforma Urbana efetiva. 4. Travar a luta permanente pelo direito moradia - nunca fre-la, sob pretexto algum - porque somente atravs da luta possvel colocar na ordem do dia as reivindicaes populares frente ao sistema de excluso que a est. Sero implementadas todas as formas de luta e aes, decididas pelo coletivo, desde iniciativas diretas, negociaes, intermediaes, etc. 5. Como perspectiva mais ampla, buscar o desenvolvimento fsico, econmico, profissional e cultural das famlias sem-teto, tendo como horizonte a construo de uma sociedade fraterna e igualitria, socialista. 6. Nas conjunturas eleitorais, incentivar para que o movimento se engaje na eleio de candidatos efetivamente comprometidos com as causas populares.
Manifesto dos Movimentos de Moradia (julho, 2003)
AUTORIDADES!Federal, Estadual e MunicipalExecutivo, Legislativo e Judicirio... No agentamos esperar!
Se pagar o aluguel, no come. Se comer, no paga o aluguel. este o nosso dilema. Somos trabalhadores sem-teto desta magnfica cidade. Somos empurrados para as favelas, cortios, penses e para o relento das ruas. Sofremos com o despejo do senhorio. Nossas crianas, devido s nossas condies precrias de vida, penam para se conservarem crianas. Somos tocados de um lado para outro. No encontramos espao, para nossas famlias, em nosso prprio territrio. Nossa cidade, que construmos e mantemos com nosso trabalho, afugenta-nos para fora, para o nada. Dizem que os trabalhadores so a pea mais importante da sociedade. Entretanto, estamos sendo triturados por esta engrenagem econmica perversa - mecanismo que destri os trabalhadores em vida e conserva no luxo uns poucos privilegiados. Uma minoria que mantm centenas de imveis vazios, abandonados, por vrios anos. Imveis que no cumprem sua funo social. Enquanto somos empurrados para as periferias sem infra-estrutura urbana, em favelas, reas de risco ou de mananciais. No podemos aceitar esta situao. No podemos esperar. Nossas famlias e nossas vidas esto em perigo. Queremos que a Lei entre em vigor: D funo social a esses imveis vazios e abandonados. Vamos eliminar esse desperdcio criminoso. 54 Era em meio a essa urgncia real de fome, aluguel, falta de teto, polticas econmicas, projetos governamentais, negligncias governamentais, passeatas, presses estratgicas, reintegraes de posses, despejos, falta de gua, gambiarras de fios e futuros, acampamentos, derrotas, cartazes, assemblias, que as produes estticas/vitae se davam... Artistas viravam polticos e os ocupantes, artistas. E assim prosseguiu a ocupao das vidas e dos tempos nas paredes e fachadas. Gambiarras de afetos emaranharam-se em movimentos de arte social e moradia plstica. Abaixo, alguns dos trabalhos realizados no ACMSTC.
Trabalhos desenvolvidos por artistas na Ocupao Prestes Maia 19
19 Montagem da imagens: Tlio Tavares e Rodrigo Arajo Quadro I: 1-Forr com drum in bass, dj Peetssa 2-Bolas pretas (pontos de vista no espao) de Mauro de Souza, 3-Luta mitolgica do fogo de Paulo Zeminian 3- Telefone sem fio de Flvia Vivacqua 4- Fachada e cartaz AC-MSTC, Transio Listrada 5- Adequao do espao em laranja de Rodrigo Arajo, 6- Hotel Prestes Maia de Milene Goudet. 55
Quadro II: 1- Fachadas do prdio, 2-Cuidado com o fogo e a paisagem de ningum de Tlio Tavares, 3- Escultura na parede de Tiago Judas, 4- Pipa Gigante de Andr Boeno, 5- Re(e)sistncia de Marcelo Cidade, 6-Caminhando em X por 24 horas de Cristiana Moraes, 7- Estilista Clia Lopes e modelo vestindo sua roupa, 8- Grafite no cho de Celso Gitay .
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Esse evento de Arte Contempornea no Movimento dos Sem Tetos do Centro (ACMSTC) foi um importante deflagrador de potncias artstico-poltico paulistas. Centenas de pessoas entraram
Quadro III: 1- Luciana da Costa e Moradores, 2- Diversos grafiteiros, 3- Mapa de percurso/imigrao de Rodrigo Barbosa, 4-Ocupa-se ou Mora-se de Sofia Pazzarini, 5-Jogo das Possibilidades de Eduardo Verderame, 6-Sonhos de Mariana Cavalcante, 7-Modelos de Casa de Adalgiza, 8- Vista suas Veias de Fabiana Rossarola, 9-Embaixo-encima de Mozar Mesquita.
57 em contato pela primeira vez com o universo das ocupaes e os ocupantes com esse modo de ao artstica repleta de coloraes e visibilidades. Uma das falas mais insistentes dos moradores para os artistas era de que eles queriam mostrar para a sociedade que no eram escria, e que por isso estavam to contentes com nossa presena. Ns, em troca, agradecamos em reverncia o vigor, a intrepidez das aes e a acolhida. As obras artsticas iam surgindo e sucumbindo por todos os lados, a qualquer hora, inundando a ocupao de instalaes de si no outro. Os moradores, por sua vez, tambm se colocaram em obra criando trabalhos que no teriam importncia cotidiana, no soubessem que se tratava de um evento que propunha outros paradigmas perceptivos. Que paradigmas seriam esses? Situacionista, social, sociolgica, contextual, ativista in process, militante in progress, site specific, arte situada, site related, arte do relacional, do local ao global... Csmica...
Tratava-se de um encontro intenso-imersivo num tempo-espao-situao liminar e absolutamente potente. Transfuses subjetivo-estticas-digito-ambientais. Mais do que uma ao de Arte foi uma Ao de Sade, ou melhor, de doena e convalescena :
Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, ainda longo o caminho at a enorme e transbordante certeza e sade, que no pode dispensar a prpria doena como meio e anzol para o conhecimento, at a madura liberdade do esprito, que tambm autodomnio e disciplina do corao e permite o acesso a modos de pensar numerosos e contrrios at a amplido e refinamento interior que vem da abundncia, que exclui o perigo de que o esprito porventura se perca e se apaixone pelos prprios caminhos e fique inebriado em algum canto; at o excesso de foras plsticas, curativas, reconstrutoras e restauradoras, que precisamente a marca da grande sade, o excesso que d ao esprito livre o perigoso privilgio de poder viver por experincia e oferecer-se aventura: o privilgio de mestre do esprito livre! No entremeio podem estar longos anos de convalescena , anos plenos de transformaes multicores, dolorosamente mgicas, dominadas e conduzidas por uma tenaz vontade de sade, que freqentemente ousa vestir-se e travestir-se de sade. H um estado intermedirio, de que um homem com esse destino no se lembrar depois sem emoo: uma plida, refinada felicidade de luz e sol que lhe peculiar, uma sensao de liberdade de pssaro, de horizonte e altivez de pssaro, um terceiro termo, no qual curiosidade e suave desprezo se uniram. Um esprito livre esta fria expresso faz bem nesse estado, aquece quase. Assim se vive, no mais nos grilhes de amor e dio, sem Sim, sem No, voluntariamente prximo, voluntariamente longe, de preferncia escapando, evitando, esvoaando, outra vez alm, novamente para o alto; esse homem exigente, mal-acostumado, como todo aquele que viu abaixo de si uma multiplicidade imensa torna-se o exato oposto dos que se ocupam de coisas que no lhes dizem respeito. De fato, ao esprito livre dizem respeito, de ora em diante, somente coisas e quantas coisas! que no mais o preocupam. 20 ....
20 Uma noo de Sade em Nietzsche: Cfe. Friedrich Nietzsche: Humano, Demasiado Humano... Um Livro para Espritos Livres. Ed. companhia das Letras. 2002. Prlogo. Aforisma 4. 58 O evento terminou dia 14 de dezembro em um debate com grande parte dos moradores, artistas e visitantes. Comeou com Peter Pl Pelbart lendo no escuro com uma lanterninha e uma tocha de fogo, um texto de Vera Monteiro 21 , o qual reproduzo em parte:
(...) O ser humano precisa de no estar sempre no cotidiano, Precisa de sair do cotidiano e entrar noutros nveis. Noutra sensao do mundo. Precisa de voltar a saber, que no h s um nico caminho entorpecedor e mecnico. Que a vida mais sutil do que isso, Mais rica de redes e ns de sentidos e sensaes,
(...) preciso entrar no xtase, na contemplao na calma nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em vises, no espanto, no assombro, no gozo no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda,
(...) Ns precisamos muito disso, precisamos muito disso tudo e estamos a ter muito pouco disto. E por isso, que como disse Vinicius, O esprito est em eroso A cultura est em eroso E ns as vezes estamos muito tristes E temos a impresso de que a vida desapareceu daqui de dentro.
Depois desse texto fabuloso ter sido lido, as luzes se acenderam e uma srie de discusses iniciou. Deu briga. Grupos de jovens artistas/ativistas que se sentiam mais engajados que todos os outros nas durezas da vida, fizeram uma srie de crticas coordenao do evento, ao comportamento dos artistas e a cultura burguesa que teria entrado na ocupao, etc. Foram interrompidos pelo desfile de moda realizado pela estilista-sem-teto Clia Maria Lopes, que se auto proclama estilista do absurdo e do ridculo. Aos sons do atabaque de Csar Rosa, oito modelos-sem-teto desfilaram suas roupas feitas de pastos, sementes, fios de gambiarra, bricolagem de tecidos e achaduras da cidade. Interrompemos uma torrencial rede de acusaes com corpos/collage. Enquanto Tlio Tavares, amigo do Menossi, saa ensandecido escadaria a fora, em plena fria com os oprimidos (teatro do oprimido) que no entendiam poesia.
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Talvez a singularidade do ACMSTC tenha sido seu vampirismo; no, no se trata do artista tomando sangue do sem teto nem vice-versa, me refiro a um encontro de vampiros... Vampiro como aquela figura monstruosa que bebe inescrupulosamente a vida alheia, e que tem que sustentar nesse ato cotidiano de sobrevivncia o paradoxo existente entre morte e imortalidade.
21 Bailarina e performer portuguesa. Obs: O texto foi retirado das gravaes em vdeo feitas durante todo o tempo do evento. 59 No entre vida e morte dos humanos que reside o conflito tico do vampiro, mas entre matar ou imortalizar em cada mordida. O vampiro como a figura que carrega sempre outra dimenso de existncia (sensao/percepo), que vive em outro mundo, mesmo que seja o velho e mesmo mundo; que carrega enquanto vivente, extraordinria potncia de devires com toda a intensidade que lhe possvel e que, no entanto, sofre a crueldade de sua eternidade por sab- la, ao mesmo tempo, livramento dos conflitos ordinrios dos homens, mas tambm, convivncia com sua pattica repetio e morosidade : condenao mediocridade. Digo que o evento ACMSTC teve um carter vampiresco por compreend-lo como uma reunio de potncias, que de jeito nenhum um encontro de iguais. Como poderia ser especular um evento monstruoso de inmeros infinitos? Trata-se sempre de um encontro de profunda alteridade, repleto de desmesuras e insuspeitveis idiossincrasias. O perigo de sua extenso cronolgica se d pelo fato de os vampiros serem altamente destruidores e passionais. Sua presena insistente produziria uma insustentvel devastao territorial, guerras de poder e formao de governos sanguinrios. J suas reunies eventuais so de grande intensidade e a intensidade, independentemente dos corpos que a ocasionam, por si mesma infinita. Que sobre ela a intensidade tica como leitmotiv do EVENTO. O evento deve ter sua prpria temporalidade, impulsionado por emergncias pontuais e ser EFICIENTE, pois tempo/espao constituinte, que tem como funo fazer tudo pulular. No evento se criam linhas que proliferam e outras que se partem. Que partam! Como os pssaros partem, com sementes invisveis nas garras no novo mundo dos monstros que a humanidade tem de agarrar o seu futuro 22 . Eu diria, que no encontro dos monstros que se inventa o futuro. Aps esse EVENTO/CONTITUINTE de relevante ressonncia artstica, poltica, miditica e subjetiva, muitas outras aes foram sendo produzidas em So Paulo, inclusive no Prestes Maia, que aos poucos redimensionou-se em importante smbolo de resistncia (carto postal da metrpole), proliferando suas redes scio/culturais e mantendo-nos conectados em eventos vampirescos; alguns pontuais, outros... Fractais...
22 Cfe. Michael Hardt e Antnio Negri em: Multido. Guerra e Democracia na era do Imprio. Ed. Record. RJ e SP. 2005. A Monstruosidade da Carne. P. 256. 61 4 - CUT-UPS DE ARTE INTERFERNCIAS PBLICAS Cartografei alguns eventos ps-ACMSTC.... Para compartilhar sua fora espraiada. Sem pretenso de dar conta de toda saga coletiva paulistica, contribuo com meus dados catados por meio de eventos que produzi ou participei diretamente. Reitero a importncia do ACMSTC na ampliao das prticas artstico/polticas dos coletivos, nas discusses das redes colaborativas e nos eventos interventivos que relacionam arte contempornea, comunidades e movimentos sociais (des) organizados. Ao mesmo tempo, se intensifica a insero poltica destes grupos, seja em aes conjuntas e amlgamas de artistas com ativistas, como em iniciativas com o CMI (Centro de Mdia Independente, o Indymedia brasileiro), em mobilizaes coletivas pelos Sem-Teto em So Paulo, como foi o caso do movimento ACMSTC (Arte Contempornea no Movimento dos Sem Teto do Centro) na ocupao da Prestes Maia, em dezembro de 2003 , ou a ao na Favela do Moinho, em 2004, em novos festivais e encontros como o Salo de Maio, de Salvador, o EIA (Experincia de Imerso Ambiental), Territrio de Anti-Espetculo, Zona de Ao e Mltiplo Comum, em So Paulo, o encontro de coletivos Chave Mestra, no Rio de Janeiro, nas interseces entre o encontro Perdidos no Espao com os Fruns Sociais Mundiais em Porto Alegre, ou ainda em listas de discusso como o CORO (2). Paralela proliferao cada vez maior de novos coletivos, a atitude politizada se d no trabalho com as comunidades desfavorecidas no espao urbano, seja pela falta de moradia ou pela precariedade da vida das favelas, ou por inseres de mensagens questionadoras na esfera pblica via lambe-lambes, cartazes, performances, alterao de outdoors, colagem de adesivos, ou interferncias eletrnicas 1 . Ao terminar o ACMSTC, Suely Rolnik 2 convocou alguns coletivos de arte que participaram do evento para uns encontros de discusses sobre prticas de interveno urbana, pois fora convidada para ser a curadora da revista de Arte Contempornea canadense Parachute 3 , cujo tema seria dedicado a So Paulo. Essas discusses foram interessantes por propiciar um raro momento de elaborao conceitual sobre as aes produzidas pelos coletivos de arte. A qualidade dos encontros superou em muito o artigo em questo.
1 Cfe. Ricardo Rosas. Texto: Hibridismo coletivo no Brasil: transversalidade ou cooptao? http://www.canalcontemporaneo.art.br/forum/viewtopic.php?t=57&sid=7aee01e3ab717d1fd1659495ab6dda38 2 Psicanalista, Crtica de Arte, Professora do Ps Graduao em Psicologia Clnica. Ncleo de subjetividade. Puc. SP. Sua participao foi importante na medida em que nos trouxe suas experincias com os movimentos de vanguarda dos anos 60 /70 in Brasil/Frana, compartilhou histrias, pensou coletivamente as aes produzidas na atual cena da arte paulista/global, props plataformas de elaboraes terico/prticas fazendo conexes com as polticas de subjetivao na contemporaneidade 3 Revista Parachute n 116 - Canad Janeiro de 2005. Todos encontros foram gravados em formato mini-DV, transcritos e enviados para os grupos participantes. Transcrevi alguns dos dilogos que considero interessantes de expor, devido aos temas levantados. No esto citados os autores de cada fala. Participantes: Rodrigo Arajo, Eduardo Fernandes (Bijari), Daniel Lima (A Revoluo no ser televisionada), Joana , Cibele Lucena, Jerusa Messina (Contra Fil), Lucas Bambozzi, Christine Mello (Formigueiro), Gisele Vasconcelos (Mdia Ttica), Sofia Panzarini, Flavia Vivacqua (Horizonte Nmade), Ricardo Rosas (Rizoma), Fabiane Borges, Rafael Adaime (Catadores de Histrias), Tlio Tavares (Nova Pasta), Gavin Adams, Breno Menezes, Alexandre Menossi, Christiana Moraes, etc. (Os encontros semanais duraram de dezembro de 2003 a abril de 2004).
62 Os dilogos abaixo denotam a aura em que estavam os coletivos durante os encontros e considero pertinente exp-los por se tratar de um perodo ps-evento-coletivo e porque os contedos das falas expressam problemticas e impasses vividos nesse exato recorte geracional/poltico/filosfico/tico/artstico/paulista... Neles aparecem coisas como a relao com a mdia, museus, curadorias, galerias, rgos financiadores, relaes internas e externas dos grupos, o papel da arte, idias sobre a realidade, sobre movimentos sociais, interferncias, espaos, impresses sobre o urbano, sobre a vida pblica, etc. Deixo-vos nossos dilogos pra-quedas:
Parachute
A urgncia do real
Dilogos pra-quedas
Discusso sobre ocupao dos espaos pblicos e vida pblica;
_ So Paulo conservador soube fazer ocupao na cidade com bancos, museus, etc. Nos anos 80 e 90 houve um forte movimento do mercado imobilirio de utilizao da arte como vitalizador de seus empreendimentos. Esse circuito capaz de glamourizar obras que se destacam na sociedade, com grande valor no mercado, produzindo excelncias.
_ H um pequeno grupo de historiadores da arte e crticos de arte que formalizam o que arte ou no. So grupos seletos ligados a um discurso modernista, que no consegue ou quer compreender o contemporneo; na Argentina h movimentos artsticos polticos que fazem o contrapeso essa utilizao fustica da arte, no Brasil esses movimentos insurgem nos anos 90 como forma de resistncia, um movimento que reivindica a urgncia e a legitimao da utilizao de outros espaos de atuao.
_ Urgncia do real um conceito que abarca a necessidade de dilogo direto com a cidade, diminuindo o papel do intermediador ( museus, curadores) que se mantm num circuito fechado e burocrtico acarretando, muitas vezes, no esvaziamento de sentido da ao e na amenizao da premncia da criao, em uma teia de negociaes morosas e improfcuas. Desse modo, surgem outras formas de potencializar a ao, para alm dos espaos determinados para a arte.
_ notrio que as artes caminham para uma posio de interao mais direta com a realidade. Est-se diante da possibilidade de assumir essa zona de transio, que s possvel nessa poca. H duas trs geraes anteriores, era quase impossvel se pensar numa arte vinculada a um pensamento politizado atuante; nessa gerao arte e poltica se conectam de forma transformadora. H curadores que investem na experimentao, fazendo a mediao entre artista, capital e Estado, assim como galerias que sustentam essas experimentaes. Como fazer para que as galerias e museus de So Paulo invistam mais na experimentao artstica? A questo que se coloca : Como se dribla o capital? preciso ter inteligncia para a utilizao dessas novas modalidades de criao nos espaos de arte institucionalizados. Trata-se de uma negociao estratgica com as vrias instncias administrativas, como forma de inscrever essa arte na cultura, para que ela se constitua como produtora de conhecimento e de realidade.
_ No preciso abrir mo da forma para atuar com esses novos mecanismos, mas a forma pela forma vazia; o desafio exatamente criar modos de traduzir formalmente essa necessidade que surge do investimento no real, na relao com o outro, no encontro com a cidade, na produo de subjetividade que se cria a partir dessa travessia.
_ Vivemos num dos paises de maior diferenas de classes do mundo, onde prepondera a cultura da discriminao. Esse movimento de resistncia artstica prope-se a atravessar esses limites abismais, se colocando no risco, na linha do meio, na experimentao radical ; atravessar esses preconceitos possibilita que se promovam outras cartografias sobre esses mapas imaginrios. preciso aprender a se transformar, a criar fissuras nesses blocos de classes sociais, instaurando outras redes onde prevalece o elemento humano. 63
_ , o encontro do movimento de arte pblica com o movimento dos Sem Teto foi uma relao de criao experimental. Travessia ao abismo de classe, a realidade social, a realidade poltica, a interferncia pblica, produo de sentido, relaes de riscos, etc.
_Temos que pensar sobre os conceitos que esto sendo usados: o que vida pblica, o que real, urgncia do real, urgncia interferncia na vida pblica...
_ Diferenciao entre poltica e arte
_ Eu no tenho muita preocupao em definir o nosso limite de poltica e o que o nosso limite de arte. Qual nosso limite de arte? Porque da cai numa conversa metafsica Eu me preocupo menos em discutir se arte ou no Se a arte est assim ou no, est indo pra l ou pra c. Acho melhor falar do embate., afinal somos de mo sujas mesmo.
_ Esse mesmo problema vamos enfrentar com definies sobre o que vida pblica, o que real, urgncia do real, urgncia uma discusso filosfica. Entra quase num vis acadmico do tipo, segundo no sei quem pode ser isso, ou aquilo... Em algum momento temos que aprofundar um pouco, usar a palavra arte pelo menos pra dizer sobre o que estamos falando, coisas em comum.
_ Mas acho que d pra discutir essa fronteira entre arte e poltica, assim como d pra discutir vida pblica, o que real No d pra ser pelo vis filosfico porque no tem nada a ver. Segundo Habermas. Eu no sei fazer isso, acho que a nossa experincia que conta
_ Eu pediria, pra que todo mundo pense antes de responder. No pra se defender, mas que a gente pense. Talvez seja uma falsa questo mas o que pensamos Essa coisa de falar de real, urgncia do real, como se a realidade fosse um outro.
_ mais fcil e coerente falar de um choque de realidades. De contrastar e colocar inquietaes a partir de encontros, de realidades diferentes. Voc pode transformar em arte esses encontros, a partir do seu arsenal, e ver como a que a coisa se comporta.
_ A gente teve que ir pra rua eliminar o museu como mediao porque ele no dava mais conta. Voc tem que ser rpido, se voc no der conta esse tempo se come, a idia se perde. Pela internet elimina-se o mediador. Esses mediadores, os aparatos culturais dissociaram a produo artstica da inscrio na realidade. O museu que deveria ser o lugar da inscrio artstica, foi ele que dissociou, como est hoje consolidado, a expresso artstica das pessoas artsticas em geral. Nas aes do Mico a gente tinha a conscincia dessa urgncia, tinha que colocar no outro dia na rua. No dava pra esperar pra reverberar essa histria que estava contida no cotidiano. Ento voc tem que eliminar o museu como mediador.
_ Me parece restritivo pensar que a gente adota essas maneiras fora do sistema artstico definido, como expresso, por uma urgncia jornalstica, quase que como uma notcia pelo que esta em pauta no momento. Em parte o que estamos falando atemporal. Pode ser feito hoje, amanh, depois de amanh ou daqui a 10 anos, que ainda tem sentido. Vejo que essa urgncia nasce um pouco dessa separao que a gente expressa atravs da colocao de que existe a realidade e a gente, e de que a gente no faz parte disso. De alguma maneira, me parece, so mecanismos pra conseguir se embrenhar, de fazer parte. De maneira muito simples: como o pixador que quer deixar sua marca na cidade, em algum espao pblico ter a sua marca. E a gente tenta fazer isso por um vis potico, que no uma mensagem restrita a voc e a comunidade dos pixadores. Essa urgncia surge de uma vida que e muito separada. Voc vai ao metr mas parece que ele no faz parte de voc.
_ Nesse sentido a arte cotidiana. Ela no pode estar s no museu. O museu tem um frame completamente diferente.
_ Acho que o que d a sensao de participar da realidade, no apenas como incluso mas participar da prpria construo da realidade, responder essa urgncia do real, no estar separado da experincia do real, a experincia sensvel no perceptvel est em coma na gente, pra mim a coisa principal da subjetividade no capitalismo essa separao. Ento primeiro, linkar tudo isso. A partir do momento que isso esta linkado e que voc age respondendo ao que isso vai te indicando voc est participando 64 efetivamente participando da construo da realidade. patolgico mesmo, doena Quando isso no pode existir.
_ Chegamos ao consenso de que todo lugar real e que a gente no deveria estar brigando com galeria ou museu, e que todos querem fazer essa operao em todos os lugares. A gente parece estar fazendo um certo tipo. A verdade que parece que o museu no esta respondendo a essa urgncia. Essa arte que est no museu no interessa mais pra gente.
_ Mas essa arte que est no museu pode ser a gente, pode ser o Lucas. A minha crtica que esses museus tm um processo de atualizao super rpido, de engolir... Tudo pode ser absorvido. No s o fato de absorver, mas o frame dele j esta dado.
_ Tem muitas galerias absorvendo experincias imediatamente. Algo se desponta e j est absorvido.
_A ltima Bienal de Veneza (2003), era isso. Essa discusso estava l. Uma sensao de impotncia absoluta. Voc est indo e o sistema j est voltando Dando cambalhota e voc j est se afogando na praia.
_ Ele no tem como ser vlvula de escape de uma separao, de uma dissociao que voc tem com a vida numa cidade como So Paulo. Estamos numa megalpole onde tudo se torna impessoal. Voc no estabelece o que o teu lugar, as suas relaes. O museu por mais que ele absorva, ele no vai dar conta dessa urgncia.
_ Essa crtica ao museu um tanto abrangente. Essa opo pela interveno urbana no depende de uma boa ou m administrao de um espao cultural. O MAM (Museu de Arte Moderna - SP) poderia ser bem administrado e mesmo assim na daria conta dessa urgncia
_ A Bienal de Veneza que eu conheci era muito esttica.
_ Agora virou uma exposio de Coletivos.
_ Mas a que fui era muito diferente da Bienal de Kassel, a Dcima, que apontava pra uma desmaterializao muito mais completa.
_ A Dcima foi a virada, bancada pela Catherine David, foi uma forma de mostrar que arte estava viva, apesar do mercado. Aquilo acabou tendo um papel poltico que resultou numa virada
_ A minha urgncia seria falar com qualquer tipo de pblico. Poderia estar na rua mas poderia estar em outro lugar, na internet, numa revista, no falando de artes mas fazendo uma ao direta. A arte por muito tempo ficou se protegendo muito dos lugares. Como se falssemos: olha um negcio muito sensvel voc no pode colocar ela junto de outra coisa, pois ela muito frgil. Seno voc a destri, ento a gente a guarda numa caixinha.
_ muito mais grave. Separar a arte da vida uma funo muito mais perversa e grave do que guardar numa caixinha. Porque essa a separao que a gente est falando. So dois sculos dessa separao. Agora estourou as comportas. muito grave isso que acontece.
_ Acho que o Nicolau Sevcenko falou isso: que quando a gente tenta ser libertrio [a Lgia Clark tentou ser libertria] o sistema se volta como opresso. O museu coloca uma obra do Kandinski na parede, mas em vez disso despertar uma vontade no artista de fazer uma obra abstrata legal, algo parecido, o museu diz: voc no tem condies de fazer isso, voc no artista. O artista ficou refletindo sobre isso. Isso tira a capacidade de ao das pessoas e coloca uma incapacidade de agir. Reprime a pessoa. O museu se presta a essa situao de opresso.
_ Foi todo um processo da arte institucional do sculo XX. Ela destruiu o objeto de arte, o processo da arte como coordenao motora. Sobra a persona artstica. A partir do momento em que o sujeito diz: eu sou artista. Ento ele . No importa o que ele faz, nem se ele tem boa coordenao motora. Sobrou o artista em si, o ente criador. Qualquer um pode colocar uma roda de bicicleta num banco. Mas ningum faz. O objeto no mais nada. E se voc ficar famoso voc pode fazer qualquer coisa.
65 _ Todos podemos participar da construo da realidade.
_ Usando uma fala do Basbaum: a arte tem vrias funes, uma coluna social, outra dar notcia/motivo nos jornais, outra circulao nas galerias, venda. Mas tem outra coisa, escondida, em constante transformao. algo que no se sabe exatamente o que , ligado talvez a essa urgncia. No sei se estou fugindo do assunto. Mas acho que tem algo escondido e que a gente no sabe onde est.
_ Voltando ao espao dos museus. Entendo que vocs defendam essa idia de que os espaos institucionais so constrangedores e que por causa disso exista uma urgncia em criar outros espaos. Apenas pra gente no cair no perigo de considerar que o inimigo seja o museu. Mas o inimigo essa separao. Pode ter um crtico que seja aliado e outro no. Um diretor de museu que seja e outro no. Um capitalista pode bancar a experimentao e outro no. Conheo experincias de instituies que esto em alguma sintonia com esse tipo de urgncia.
_ Essa discusso do museu como sistema artstico lembra uma questo que o Lucas colocou numa reunio passada. Ele me perguntou o que me motivava a fazer interveno. De onde tinha surgido isso. E a, em parte seria essa urgncia em relao ao cotidiano, indissociada do cotidiano. Mas no d pra ser ingnuo fazendo um discurso descolado do sistema da arte. como disse o Duchamp, voc tem que encontrar a sua clareira. como se voc encontrasse nessa sua relao como o real a sua matria prima com a qual voc vai discutir conceitos que fazem parte da produo artstica. De alguma forma o sistema inteiro no o inimigo. Mas ele o possvel tensionamento. O que eu posso fazer estando fora dele? Eu posso trazer um tensionamento Que uma forma de estar nele, uma clareira.
_ Que outros abriram antes, pra gente poder pensar assim.
_ Aqui ningum radical, anti-museu. A gente est construindo uma realidade paralela, que anda ao lado mesmo, que as vezes pode se encontrar e as vezes ficar separada. O CMI por exemplo, anda na linha paralela, no quer ser a Folha de So Paulo, no quer ser stablishment. ele no quer correr pra linha do meio. A gente no quer arrebentar com o museu, porque um dia a gente est l. O Daniel pode estar na direo do museu e a gente vai l fazer um projeto legal. Essa linha paralela ento pode encontrar um espao.
_ Nos anos 60 a gente tambm criava uma realidade paralela, mas a gente vivia como se fosse outra realidade. Eu numa comunidade nmade, numa famlia poligmica, andando pelada, comendo razes, eu estou criando uma outra realidade. E vocs falando de alargamentos e clares esto falando da mesma realidade.
_ Na nossa gerao, na minha experincia pessoal, eu achava que dava pra fugir, que existia um outro lugar, a natureza.
_ Voc nasceu de um 68, acreditando que isso era possvel.
_ Mas hoje como se a cidade fosse infinita. No d mais pra fugir.
_ Uma globalizao generalizada.
_ No tem mais essa histria de mato. O urbano tomou conta.
_ Fiquei pensando nessa coisa do real e da urgncia. Tirando a mdia, essa atuao da prestes maia, por exemplo, me faz pensar em campos de fora, a realidade em So Paulo A gente percebe de repente que a realidade so encontros de realidades diferentes. Estamos falando de pontos de vista e existem outros que vo se chocar com o seu. Penso em configuraes flutuantes, da existncia na cidade, de realidades que vo se configurando pelo entrecruzamento de realidades diferentes. Se voc est atento e capaz de perceber esses entrecruzamentos que acontecem parece que isso se soma nas pessoas como uma urgncia de conexo. Uma percepo de que a construo de realidade no nica, mas a vivncia de mltiplas realidades, de vivncias em contextos diferentes, com um carter novo em funo das experincias. Penso ento em conexes efmeras, mas com uma necessidade de contato. O real ento Tm uma frase do Genet, sobre o Giacometi, que diz: o conhecimento pra ser esttico tem que se recusar a ser histrico. uma frase estranha Mas ento 66 pensei, o que est acontecendo. como se comessemos a falar de realidades antenadas, onde vamos buscando realidades diferentes no dia a dia, ou campos de fora, como junto a movimentos organizados, do tipo MSTC, etc.
_ A a gente entra em outro assunto. O registro da interveno urbana Hoje em dia, todos aqui fazem uma outra equao: criam essa experincia, mas criam a imagem que mediada com a estratgia de circulao de uma outra mensagem. quase uma contradio da prpria ao. meio contraditrio. Veja o vdeo, e no viva a ao. Mas tambm tem: faa a ao!
_ Acho que a gente tem essa estratgia de usar o prprio mecanismo que o sistema tem de separar e nivelar, atravs da imagem, fotografia, cinema vdeo, elaborao grfica, para de alguma maneira criar um mecanismo diferente na prpria imagem, uma possibilidade de acidez da propria imagem.
_ Eu queria propor um exerccio, de tentar enxergar melhor essas conexes. Outras conexes que no esto necessariamente no campo da arte, ou no campo da interveno urbana e desse universo que estamos falando aqui. De um tempo pra c existem booms que so detectveis a partir de outros universos. Por exemplo, no cinema houve o boom do documentrio, nos ltimos 6 ou 8 anos, um interesse extraordinrio pelo documentrio. Ao mesmo tempo comearam a surgir tecnologias que permitiram uma espcie de devassa na vida privada. Em alguns momentos isso se traveste de interesse pelo real. Ento comea existir todo um mecanismo bem gigantesco, conspirando em direo a um contexto que nos permitiria dizer por exemplo que a realidade possivelmente est na moda. Vemos que essa idia de realidade hoje est sendo perseguida em todos os campos. Vamos analisar: O reality show potencializado pela existncia de determinadas cmeras, pela miniaturizao das cmeras, pela facilidade de transmisso dessas cmeras, pela qualidade que essas cmeras pequenas passam ter. O reality show tambm potencializado pelo boom das web-cams, pela prpria evoluo internet e pelo alargamento das bandas de transmisso, permitindo que as web-cams transmitam em tempo real. Todo gadget, todo device, todo brinquedo de comunicao hoje tem o pretexto de aproximar as pessoas, de colocar uma em comunicao com outra, movimentando indstrias conexas, e alimentando e potencializando novamente a intimidade. Voltando idia do cinema isso tem levado muitos crticos falarem numa espcie de falncia da fico. Se a realidade tem tantos elementos que interessam e cada vez mais possvel resgat-la, registr-la, e ento forj-la tal como se fosse fico, ento vamos comear a travestir a fico de realidade, vamos fazer com que a fico tenha a esttica do documental, tenha a esttica do precrio, do tempo real, da transmisso simultnea, da no glamourizao... Tudo isso reflete um universo esttico que vem sendo criado e arremedado. A prpria publicidade comea a se apropriar se potencializar disso, o design, os filmes porns um risco: quando supostamente fugimos da ida dos coletivos, por ser uma idia j mastigada e triturada, ento estou fazendo esse exerccio: essa terminologia toda est gasta, a realidade talvez seja reflexo de algo que est sendo, a grosso modo, mais um produto do sistema. Porque isso est presente em muitos campos
_ No sei se exatamente uma busca, voc atravessado por essas realidades Voc tromba com elas
_ Mas porque est urgindo isso hoje ento?
_ Porque se as pessoas hoje tem algum constrangimento ao falar de coletivos, como algo que est na onda, ento eu sugiro que elas tambm tenham algum constrangimento em falar do real. Eu acho que no tem que haver nenhum tipo de constrangimento, mas eu apenas acho que as coisas esto juntas amassadas pelo mesmo rolo compressor.
_ O que me chama a ateno nisso que voc falou, que estamos fazendo um esforo Toda a museologia, a publicidade, o capitalismo, tudo vai sempre captar as coisas, mas vai sempre esvaziar o sentido de uma tal maneira que o reality show por exemplo no tenha nada de realidade. uma pura ficco e no sei o que mais. Pra mim o esforo que estamos fazendo em torno da urgncia do real, um real que est ali na rua e no est sendo mediado como fico.
_ No aquele que est sendo representado, apesar de se dizer sem glamour. Qual essa realidade que talvez no esteja sendo mediada? Pra mim, o limite entre real e vida pblica bem fsico.
_ Acho que estamos uniformizando os conceitos. Muita gente se identificaria com o que a gente faz. Acho difcil fazer uma postura de oposio em relao mdia. 67
_ Isso seria ridculo. Seria a mesma coisa de ser contra o museu.
_ Minha gerao no sobrevive de arte;
- O que esse negcio que chamamos de pblico que achamos que importante? A palavra coletivo perigosa, devemos implodi-la, limp-la e lev-la para outro lugar. Quando se fala que naquele tempo havia um inimigo, uma alucinao! O inimigo no existe. Isto que mudou. Quando pensamos em termo de excluso ou de inimigo, quando pensamos em blocos de realidade, de unidade como um clube, nos organizamos subjetivamente entendendo-nos como excludo daquele bloco. Ficamos lutando por um fortalecimento seja s avessas, seja se opondo quilo, criando um outro bloco, querendo se identificar com aquilo. Mas no existe bloco nenhum. O que existe so redes que vo se agenciando e criando territrios que tm um tempo de durao X, que s vezes so muito fugazes, s vezes estveis, mas no so eternos. S se pensa em termo de inimigos quando se pensa em termo de blocos: Tem um bloco l que do mal.... Acho que legal pensar que cada um de ns tem vrios tipos de fora. Algumas so conservadoras, outras criadoras. Tem foras que inspiram a criao, outras emperram a luta para que esta criao se inscreva na realidade.
_ Na relao com o MSTC, chegava horas que pensava que a arte era intil.
_ Mesmo quando o trabalho espacial, ele tem poderes disruptivos; uns trabalham com uma questo mais simblica e outros mais direta;
_ L pela primeira vez tive certeza que todo mundo precisa de arte;
_ A reao o ponto fervilhante da ao;
_ Algum tem algo pra contar como esto as coisas junto ao mstc por ocasio desse despejo em santa ceclia? O que pode a arte nesse contexto? Houve uma ajuda efetiva? Que relaes se estabelecem agora entre artista x despejado? Quando o contexto adquire tal seriedade realmente as dvidas voltam com outra configurao.
_ O que, de fato, podemos fazer? Em que, de fato, podemos contribuir? Pra quem nossa participao ser importante? Se pra chamar de arte, o que difere nossa participao de camaradagem na hora desse aperto forte? Onde esto as tais estratgias e para que sero usadas? Se no pra chamar de arte, no precisa chamar de nada? Concordamos que rtulos no facilitam nadica a vida, pero. No me parece que tenhamos muito claro -como grupo que passamos a configurar, temporrio ou no- qual nosso papel nessa potente relao com o Movimento Sem Teto?
_ J saram da rua, uns esto no mstc, outros alugaram barraco, outros voltaram para casa de parentes.. Saiu o bolsa famlia.
- Vejo a necessidade de trabalhar o ritual na arte contempornea, como ruptura com o cotidiano. A anlise feita pela Valria na reunio passada foi a de ver o que aconteceu como um ritual urbano e perceb-la por elementos que passam desapercebidos da anlise tcnica, metafsica, pois afloram numa percepo mais sensitiva.
_ A presena do xamanismo na Prestes Maia funcionou tanto como aproximao da arte com o prdio como para sensibilizao dos grupos.
_ Se cada um de ns um feixe na colaborao, movidos por tal urgncia, cada um um feixe de rede de colaboraes flexveis. Assim o grupo tambm uma rede de colaboraes flexveis, e, por conseqncia, colaboraes efmeras ou mais estveis.
- No teria a ver com o conceito de multido?
- A gerao atual age dentro de redes de colaborao. Somos uma grande rede de colaborao, uma noo de coletivo ligado pela Internet, que se agrupa, que se desfaz.
_ O que me move no exatamente o coletivo, o fato de no se saber que universo esse, que frmula, 68 que formato, que insero que isso tem... Qual o procedimento, qual o mecanismo, se isso vai ou no ser aceito... Eu me movo muito por a, por esse desconhecido.
_ Quando voc fala de incerteza... Ela um bom caminho do coletivo. Tocamos nessa forma indefinida vrias vezes, mas acho que falta insistirmos nela, nisso que voc tentou definir a. Seria o fato de no saber a frmula que torna isso interessante? O que voc acha? - Desconhecido por uma coisa que est incerta e que vira uma urgncia. A prpria mobilizao, aquela pessoa naquela hora e depois outras pessoas... Alguma coisa da experincia cotidiana que vivida como incerta e estranha. Da qual as coisas que a gente dispe no funcionam e no fazem sentido e que vira por isso mesmo uma urgncia de criar sentido ali. So as experincias de incertezas mesmo, de no-sentido. _ Etc... Etc... Etc...
Incertezas... No sentidos... Indefinies... Atrapalhvamo-nos em nossas prprias prticas/conceitos tentando dar uma escapada das nomeaes sobre ns impingidas pelos crticos de arte, que falavam-nos em colunas semanais mas que na maioria das vezes nunca acompanhavam nenhuma interveno. Em meio a tudo isso vrias outras aes incontveis aconteciam, como o projeto Zona de Ao 4 no Sesc Paulista . O coletivo Horizonte Nmade organizava uma nova rede de coletivos do Brasil rede CORO (Coletivos em Rede e Ocupaes) com novos grupos recm formados e baseados em redes de coletivos j existentes como Canal Contemporneo, Linha Imaginria, PIA (Projeto de Interferncia Ambiental), Mdia Ttica Brasil, Centro de Mdia Independente (CMI), Rejeitados, Fundao Menossi, e muitos outros. Dessas redes colaborativas emergiram vrias listas de discusso, projetos de interveno, encontros, seminrios e eventos; enquanto umas redes eram desativadas, outras se criavam. Devido as diferenas das aes e propostas de cada coletivo, suas instabilidades, suas proliferaes incessantes, suas diferentes influncias artsticas e polticas, suas ambigidades, esses mapeamentos eram e ainda so volteis.
Talvez uma das caractersticas dos coletivos de arte que eles funcionam por ao e/ou projetos, e nesse momento existem... So paupveis... Afora isso, cada componente tem sua prpria vida, sua prpria forma de fazer arte ou qualquer outra coisa. Evidentemente h grupos que j trabalham juntos h muito tempo e mantm suas relaes pautadas em formatos de empresas, agncias, Ongs, associaes, cooperativas, operando com outras modalidades para alm da arte pblica, ou at mesmo com arte pblica em setores de pesquisa e desenvolvimento
4 Durante os meses de junho e julho de 2004 os grupos de arte A Revoluo No Ser Televisionada, Bijari, Cobaia, Contra Fil e Grupo Arte Callejero (Argentina) em parceria com o Sesc, desenvolveram o projeto Zona de Ao (Z.A.), um laboratrio de investigao, ao e reflexo coletiva sobre o espao urbano. O projeto aconteceu nas 5 zonas da cidade de So Paulo (norte, sul, leste, oeste e centro) e todo o seu processo foi apresentado na Galeria Sesc Paulista, em uma exposio que se transformou de acordo com as pesquisas desenvolvidas pelos grupos. Na zona sul, A Revoluo No Ser Televisionada junto Frente 3 de fevereiro desenvolveu o projeto RACISMO POLICIAL, Quem policia a Polcia?: levantamento de dados, mapeamentos, entrevistas, intervenes junto comunidade, tenses e confrontos diretos com a Polcia. A Bijari desenvolveu o projeto ESTO VENDENDO NOSSO ESPAO AREO, mostrando o Largo da Batata na mira da especulao imobiliria: a populao local e seus hbitos sero removidos, trocados por espaos "revitalizados" e excludentes, cumprindo os interesses do capitalismo global integrado. Cobaia, CONSTRANGIDO, na Rodoviria do Tiet e no Frum Cultural Mundial. O grupo se colocou em diversas situaes de constrangimento pblico, revelando os fluxos dos sujeitos contemporneos relacionados ao controle poltico. O QUE VOCE PREFERE: SE VER OU QUE EU TE VEJA? O Contra Fil desenvolveu o PROGRAMA PARA A DESCATRACALIZAO DA PRPRIA VIDA. A catraca como signo revelador do controle biopoltico, atravs de foras visveis e/ou invisveis. Por quantas catracas passamos diariamente? Por quantas no passamos, apesar de termos a sensao de passar? Do alto de um edifcio da Av. Paulista, o Grupo Arte Callejero lanou mais de 1500 soldadinhos de plstico presos em pequenos pra-quedas amarelos, carregando mensagens que sintetizavam a experincia do grupo argentino junto aos outros grupos e sua relao com a cidade de So Paulo. Z.A. foi acompanhado pelos tericos Suley Rolnik, Peter Pl Pelbart e pelo terico-ativista Brian Holmes, radicado na Frana, os quais se debruaram sobre o desenvolvimento dos trabalhos dos grupos, colaborando na organizao de conhecimento terico acerca das possibilidades da arte junto diferentes situaes da vida urbana contempornea. cfe. http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/za/
69 de projetos para museus, galerias, eventos de arte e bienais. Nesses casos as intervenes urbanas so mais uma das atividades do grupo. Mas a grosso modo os coletivos tendem a se juntar por projetos especiais, que podem ser feitos pelo prprio coletivo ou como proposta de ajuntamento de vrios coletivos em nvel regional, nacional e internacional. H pessoas que sozinhas sustentam o nome de vrios coletivos.
No caso dos Catadores de Histrias, coletivo 5 que eu atuava, era bvia sua imaterialidade, ele s se atualizava quando em alguma ao. Para cada idia, um grupo novo se formava e o nome catadores persistia, at porque gostvamos desse nome inventado por um morador de rua que nos via como catadores de lixo, que colocava histrias ao invs de papis na carrocinha; poderamos ter dado um nome outro para cada novo agrupamento de ao. No entanto, essa anomia toda me parecia meio idealista, pois o que sobrava no final das contas, eram os nomes prprios dos executores. Currculos e sites.
Eu estava recm adentrando ao mundo do cognitariado e aprendendo meio que involuntria/violentamente com os artistas paulistanos a inscrever e amplificar meu prprio nome. Cada vez achava mais pertinente o nome escolhido para o encontro de coletivos feito na casa de Tlio Tavares: ARRIVISMO. No era toa que a msica FAME tocou durante todo perodo do encontro. Era uma forma de ironizar a situao mas tambm evidenci-la. Mas da as velhas questes sempre voltavam: as pessoas mais inconformadas com essa tica contestvel ficavam latindo, ressentidas com a poltica neoliberal fazendo uma srie de acusaes pertinentes mas cansativas sobre as formas de auto-promoo propostas por essas novas redes. No incio eu era uma delas... Depois desisti e at aderi a auto-publicidade, com muita incompetncia...
Quando os grupos se juntavam em eventuais reunies, as crticas mais contundentes vinham de figuras que tratavam a coisa toda como uma lgica perversa capitalista que cooptava a inovao trazida pelos coletivos puros; que tnhamos que lutar contra a fagocitagem do sistema da arte ou das empresas financiadoras, para que no tornassem nosso produto consumvel e vazio, e que legal mesmo era fazer ativismo voluntrio, como se isso tambm no fosse uma violncia e um reconhecimento, pois existe todo um esforo corpreo/presencial dos voluntrios que, ao que parece, redimem sua culpa-politizada para com a sociedade e quem sabe para com um Deus disfarado, atravs de suas misses solidrias; o reconhecimento viria da atitude limpa, sem vnculo com o capital sujo. As discusses sobre as aes serem ativistas ou artsticas foram sempre demoradas e nunca se chegou a nenhuma concluso coletiva.
Para ser sincera, eu estava meio paranica com todos os discursos... No era essa a minha guerra. Estava testando outras potncias, inclusive as da representao. No teria nenhuma afirmao positiva a era da reprodutibilidade tcnica, Benjamim? Quero dizer, como intensificar o produto/consumo de modo que ele se transforme numa espcie de metafsica da carne, como dizia Daniel Lins, ou que atue com a potncia que o mithos exerceria sobre a phisis, como insistia, na via nietzscheana, meu amigo Julio York? Nem que fosse pelo excesso... Talvez a nos enfraquecamos... No tnhamos condies de promover excessos... Salvo quando na ocupao Maia!
Por vezes me sentia como uma fantica religiosa que estava sempre querendo inconscientizar tudo que se passava, tanto as reunies quanto as propostas que fazia. Costumava chamar os eventos/encontros de Ritual de Interveno e Celebrao Vida, mas isso era demasiado alienado para alguns remanescentes da Escola de Frankfurt. Insistia em minha tentativa clnica,
5 Os catadores de histrias era mantido por Fabi Borges e Rafa Adaime, as outras pessoas eram chamadas para participarem de projetos especficos, e variavam acordo com as propostas. 70 pblica e esttica de pensar esses movimentos produzidos na cidade expandida e as intervenes dos coletivos de arte, como eventos ontolgicos e polticos que traziam em seu ventre molecular a potncia do infinito; sem futuro - sem passado, s a eficincia da intensidade em seus desdobramentos e riscos. Uma nova religio, bem materialista... Mais materialista que os parasos artificiais vendidos pelos meios de produo contemporneos.... To materialistas que excederiam a matria e virariam a sua intensificao absoluta. Era o que Renato Cohen queria, eu sei... Tanto que no suportou a morosidade tcnica dos laboratrios de cincia e tecnologia e assumiu por sua conta e risco a intensificao de sua prpria matria ... No seria isso uma das estratgias contra o niilismo? Acelerar a negao at o ponto em que ela viraria pura afirmao? Se for para sermos imagens, que sejamos luz, de uma vez... Luz > Imagem. A potncia do corpo em conexo com as ltimas da cincia... Voltamos a Diotima danando no discurso de Scrates. O pice da inteligncia. Os softwares livres precisariam de muito mais investimentos; era uma questo de inteligncia capitalista... O no compartilhamento dos meios de produo um problema de impedimento moral.
s vezes ficava mesmo incomodada com alguns coletivos de artistas de plstico, cujas bases tericas eram pautadas pela crtica-de-arte-dos-sistemas-da-arte ou pela crtica-de-arte-da- esquerda-da-libertao, que sustentavam todo um estilo cheio de atitude com o espao urbano e no passavam de uns caretas esquecidos de qualquer potencializao das tecnologias do corpo. Meu interesse por arte no estava atrelado, a princpio, a nenhuma mquina discursiva, queria os sentidos produzidos na dissoluo, mesmo que temporria, da lgica ascendente e por muito tempo me senti enjaulada nas discusses seguimentrias da Arte frouxa e nos discursos capengas de esquerda. No final das contas o problema sempre de valores, valores da metade do caminho, como diria o velho Nietzsche.
E assim o pice da inteligncia talvez tenha sido guardado para uma nica era da humanidade: - ele apareceu aparece, pois ainda vivemos este perodo - quando uma extraordinria, longamente acumulada energia da vontade se transferiu excepcionalmente para fins intelectuais, mediante a hereditariedade. Esse apogeu ter seu fim quando esse furor e essa energia no mais forem cultivados. Talvez no meio de seu caminho, na metade do tempo de sua existncia, mais do que no fim, a humanidade chegue mais perto de seu verdadeiro objetivo. Foras como as que determinam a arte, por exemplo, poderiam simplesmente se esgotar; o prazer na mentira, na impreciso, no simblico, na embriaguez, no xtase poderia cair no desprezo. Sim, estando a vida organizada num Estado perfeito, o presente j no forneceria motivo algum para a poesia, e somente homens atrasados quereriam a irrealidade potica. Em todo caso, eles olhariam saudosamente para trs, para os tempos do Estado imperfeito, da sociedade semi-brbara, para nossos tempos. 6 ....
Enquanto essas discusses altercavam-se no fora/dentro em mim, ainda reverberava a interveno de arte e mdia sem teto, vrios grupos desenvolviam aes junto a movimentos de ocupao. Alguns encarnavam de tal forma as propostas que abandonavam suas realidades universitrio-urbanas e iam morar nos acampamentos sem terras... Seria pelos discursos de
6 Cfe. Friedrich Nietzsche. Humano, Demasiado Humano. Ed. Companhia das Letras. SP. 2002. Aforismo 234. P. 162 71 esquerda? Pelas performances pblicas msticas introduzidas pelos franciscanos 7 ? Pelo cultivo de plantas mgicas nas terras compartilhadas?
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Ocupaes imateriais - 1 Comunas da Terra MST/Brs 8
Ressalto o evento Ocupaes Imateriais 1 por pens-lo festivo e poltico, pblico e ontolgico, construdo como um rito transconectivo contemporneo, cujos pressupostos eram o encontro das multiplicidades pulsantes nos espaos pblicos, urbanos e agrrios. Foi realizado na sede estadual do MST (Movimento dos Sem Terra) em maio de 2004, dentro do projeto Cidade- Campo do Comunas da Terra, do qual eu participava.
Comunas da Terra um projeto do MST cujas ocupaes so feitas em zonas prximas s grandes cidades, perto de grandes favelas. Tem como um dos seus mais importantes objetivos transversalizar projetos entre cidade e campo, a fim de construir novos agenciamentos polticos, econmicos e humanos. A regional de So Paulo fez uma srie de encontros com estudantes, intelectuais, artistas, de onde surgiram vrias propostas coletivas. A idia que a Luta pela Terra seja uma luta de todos, que alcance mais expresso do que alcana a luta pela reforma agrria, pois trabalha com a noo de que todos os humanos so Filhos da Terra e tem Direito ela 9 .
A terra deve ser um bem comum e no propriedade privada. Deve (...) garantir trabalho s pessoas e a produo de alimentos para alimentar a humanidade, preservar o meio ambiente e a natureza. No deve ser objeto de especulao imobiliria, muito menos meio de explorao e subjugao do homem sobre o homem. (...) um territrio que as pessoas possam morar, trabalhar, ter alimentao garantida com possibilidade de renda, com espaos garantidos para atividades sociais e culturais., (...) o contato com a terra e a natureza, certamente o sonho de muitas pessoas. Delwek Matheus MST
7 Cabe lembrar que o MST realiza seus ritos msticos, que servem tanto para ampliar a imagem do movimento como potencializar recursos subjetivos e corpreos. Essas prticas tm grande influncia da igreja catlica, mas a extrapola em absoluto. 8 Evento de arte e poltica na sede estadual do MST SP. O objetivo era criar uma ao celebrativa e de fortificao das redes de juventude e arte em So Paulo. Prodio: Comunas da terra, Catadores de histrias, Esqueleto coletivo, Estudantes da USP e Puc. Data: 23/05/2004. 9 Flyer distribudo nos prdios ocupados, nas ruas e nas listas de coletivos, grafiteiros, artistas, estudantes, mdias independentes, listas de movimentos de ocupao como o MST( Movimento dos Sem Terra), MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto), FLM (Frente de Luta por Moradia), etc. ( Foto de Anderson Barbosa tirada em um dia de chuva no acampamento Ana Cintra do MSTC. Design Fabi Borges). (23 de maio de 2004). 72 - De onde vm a idia de Ocupaes Imateriais? - Partindo da idia de que o trabalho em grande escala j no fundamentado na mo de obra fixada em esteiras (fordismo), mas sim na inteligncia e intuio humana (cognitariado), achamos interessante ampliar o uso do conceito de trabalho imaterial, utilizado por pensadores da poltica global como Toni Negri, para outras instncias, transformando o prprio conceito. - Que instncias? - Das ocupaes, por exemplo. H vrios tipos de ocupaes, mas trabalhamos com o entrelaamento de duas: territoriais e imateriais. As primeiras, so as lutas por espao real, urbano ou agrrio, onde se pretende fixar residncia, produzir e trabalhar, enfim, um espao de vida. As ocupaes imateriais dizem respeito aos territrios subjetivos, construdos a partir de critrios intelectivos, emocionais e intuitivos, que no caso dos nossos eventos, visam aes celebrativas onde se possibilite a confluncias de movimentos atravs de agenciamentos heterogneos, re-significando conceitos, modos revolucionrios, provocando hibridismo dentro de estruturas burocratizadas. Alguns podem chamar de ocupao semitica ou mdica e at ocupaes subjetivas, que o que os setores da publicidade fazem a bastante tempo, e ns nos utilizamos dessas prticas assimiladas para propor as nossas. -As nossas ocupaes imateriais no visam uma finalidade especfica, visvel ou concreta. No h centro de poder, de mdia. Elas so um caldo casmico que funciona como plataforma de lanamento de projetos coletivos, que muitas vezes podemos nem ficar conhecendo. Como um festival ou uma TAZ. O Sarau Ocupao, no centro de formao do MST, no projeto Comunas da Terra, foi assim... - Pois , no tinha roteiro, mesa coordenadora... Um monte de gente tava l por causa da idia de Ocupao: Que cada um amplifique o acontecimento de acordo com suas prprias conexes. - , e foi tambm o dia em que a Mariah Leike divulgou pela primeira vez o Comunas Urbanas, que uma semana depois iria ocupar pela primeira vez, um prdio na Av. Guapira 10 .
Nesse domingo o leitmotiv do encontro foi pensar em ocupaes, em seus sentidos expressivos. Quase 300 pessoas que no se conheciam se encontraram pelos muros do metr e da FEBEM, prximos ao local, as fachadas dos vizinhos, o asfalto... Grafites, cartazes, mensagens, pinturas, esculturas em materiais efmeros foram criados por artistas pobres e ricos de todas as zonas da cidade e do ABC paulista. Manifestaes com mscaras, vdeos na parede interna da Sede, msicos dando o ritmo, ritual de mandala, luz de velas pelo cho. A ocupao imaterial deu-se naquele tempespao como ajuntamento de ocupadores de diferentes tipos, num ritmo de celebrao, troca de experincias e ampliao dos territrios imateriais dos seus prprios circuitos: ocupao de terra para plantio, de prdios para moradia e cultura, das ruas para mostrar sua arte ativista, para cantar contra o capitalismo ou a guerra no Iraque, ocupao de reitorias universitrias, de mdias alternativas, de estao de metr, das ruas pelas passagens livres. Des-rito esttico/poltico de fortalecimento da biopotncia para escapar do onicontrole! O que queramos era o encontro das tecnologias das ocupaes imateriais com as das ocupaes materiais: o p de cabra e a enxada interagindo com a cmera de vdeo do cyborgue.
10 Conversa entre os catadores de histrias (gravao em vdeo) Exu mensageiro: Catadores de Histrias
<[email protected]> wrote: Domingo, 23 de maio de 2004 Ocupao Imaterial: Vamos passar a tarde de domingo juntos? Mostrar trabalhos, pensar juntos sobre o que OCUPAO. Esse fenmeno contemporneo urbano, agrrio, poltico e performtico que traz em si grande potencial de mobilizao, enfrentamento, coletividade e transformao. Convite enviado junto com o flyer para as listas de email. 73 Ocupaes Imateriais foi uma ao-interferncia urbano-agrrio-social. Desde coletivos de arte e interveno urbana, desde grafiteiros da zona norte e sul, jovens de ocupaes urbanas e agrrias, estudantes ligados a movimentos universitrios e secundaristas, ativistas, mdia- ativistas, hackers, at anarco-punks, roqueiros e pichadores. Rdio ao vivo com cmeras de vdeos e teles... Na medida que o dia passava, os grupos iam trocando idias e produzindo suas aes, por todos os lados se via grupinhos trocando idias e atuando na perspectiva de sua singularidade. Teve um debate final que ao meu ver pareceu tremendamente interventivo por priorizar a conexo da arte com a fala, sem que uma se minimizasse por efeito da presena da outra. Transpassagens. Enquanto um sujeito falava no microfone a outra fazia uma mandala de girassis no centro da roda de conversa, o outro ainda filmava e mixava a imagem na hora fazendo o desapercebido flutuar pelas paredes do galpo. Um rito de vozes que se misturavam e uma sensao de que a vida est de novo aproximada da experincia... Foi uma tarde de intensas trocas materiais e imateriais, de novo uma zona temporria de vivificao. O medo desses ritos? O medo do vinho puro de Dioniso, aquele gole de poder no medido que pode dar em harmonia ou em atrocidade. Heterogeneidade sempre arriscada.
A partir desse evento outros vrios se deram... Alguns grupos se tornaram colaboradores em projetos do MST, outros foram morar na ocupao sem terra, alguns jovens do MSTC se tornaram parceiros do MST, outros saram no brao, alguns nunca mais se viram, e assim foi. Abaixo imagens do evento Ocupaes Imateriais.
74 OCUPAES IMATERIAIS - 2 MST I FESTA CULUTRAL COMUNAS DA TERRA 11
Em novembro de 2004 produzimos um outro Evento/Ao, no Acampamento Irm Alberta, que foi a primeira ocupao das Comunas da Terra do MST e do Brasil. Esse Evento foi organizado por grupos jovens, na sua maioria estudantes universitrios envolvidos diretamente com o Projeto Cidade e Campo do Comunas da Terra junto com os assentados e com a coordenao do MST regional SP.
No assentamento Irm Alberta foi pensado um encontro festivo de carter poltico e cultural. Um misto de poltica, culinria, hip-hop, teatro, circo, etc. Alm de participar da produo do evento como um todo, me dediquei a construir um pequeno evento imerso/espao/temporal, 12 dentro da Festa Cultural, chamado Zona Autnoma, que consistia no ajuntamento de alguns coletivos de interveno plsticas, visuais e sonoras numa tenda cheia de gambiarras. Optei por essa tenda j que nessa poca, ainda no seria possvel fazer uma rave 13 no assentamento, por uma srie de questes econmicas, subjetivas e culturais.
11 Realizado dia 27/11/2004 12 Coletivos convidados: Uafro-Bantu, DubVerso, Bijari, Esqueleto Coletivo. Produo: Catadores de Histrias. 13 Rave um tipo de festa que acontece em stios ou galpes, com msica eletrnica (basicamente variando entre os estilos House, Techno, Trance, Psy e Drumn Bass). um evento de longa durao, acima de 12 horas, onde DJs e outros artistas da cena eletrnica tocam. O termo "rave" foi originalmente usado por caribenhos de Londres em 1960 para denominar sua festa local. Em 1980, o termo comeou a ser usado para descrever uma cultura que cresceu do movimento "acid house" de Chicago e evoluiu no Reino Unido. Cfe. http://pt.wikipedia.org/wiki/Rave
DubVerso fazendo rdio Juventude local iniciando a festa Jovens da vizinhana do acampamento Fotos: Ronaldo Franco. 75
Meu trabalho como psicloga, performer e produtora cultural vai muito nesse sentido, de fazer reencontrarem-se o caminho ontolgico e poltico. Nesse sentido, o conceito TAZ 14
consegue dar nome a uma prtica que venho, em contato com meu tempo, construindo. Outros nomes vo surgindo, de acordo com as experincias realizadas, como performances pblicas, ambincias conectivas, ocupaes imateriais, rituais de interveno e celebrao vida, mas todos eles de alguma forma
ou de outra, cabem nesse nome: TAZ fabi borges - 2003.
Em meio precariedade do assentamento com suas casas de lonas pretas e gua de lato, os coletivos chegaram com suas caixas de som, rdios, notebooks, mini-DVs e conectaram seus equipamentos nos fios pelados puxados dos postes. Criamos uma espcie de mini/rave/taz, onde o DubVerso 15 fazia rdio ao vivo, entrevistando pessoas, passando o microfone ao pblico, mixando o som. As imagens do grande encontro (200 metros do local) passavam nas paredes da tenda temporria. O grupo Bijari, coletivo de arquitetos e web designers instalaram um balo de sete metros que anunciava: esto vendendo nosso espao areo 16 , que gerou estranhamento; talvez para muitos assentados fosse a primeira vez que pensassem que o cu tambm era latifndio e muita gente j o ocupa legitimados pelo poder do capital.
Como j disse antes, hibridismo no sinnimo de harmonia; houve problemas relativos a diferentes perspectivas/expectativas do mundo: um dos coletivos alm de uma kombi lotada de maquinarias tecnolgicas, trouxe tambm um bom punhado de Cannabis Sativa e praticou seu ativismo contra a criminalizao das drogas nesse suposto espao autnomo. Isso gerou grande conflito com a coordenao do MST, assim como vrios assentados se ofenderam com essa postura e o conflito foi inevitvel mas, no entanto, extremamente saudvel. Como misturar
14 1 caixa de texto direita uma entrevista de Hakim Bey (TAZ) revista High Times Por Renato Tazmanaco 02/07/2003 - http://www.midiaindependente.org/es/blue/2003/07/257794.shtml & Bey, Hakim . TAZ . The Temporary autonomous zone http://www.hermetic.com/bey 15 Um dos participantes do Dub/verso coordena hoje um projeto de rdio livre e metareciclagem (software livre) junto a assentamentos do MST. www.estudiolivre.org 16 Balo de sete metros que discute a questo da gentrificao no Largo da Batata. Foi criado por ocasio do evento Zona de Ao/ Sesc Paulista em julho de 2004. HT: O que zona Autnoma temporria?
HB: A Zona Autnoma Temporria uma idia que algumas pessoas acham que eu criei, mas eu no acho que tenha criado ela. Eu s acho que eu pus um nome esperto em algo que j estava acontecendo: a inevitvel tendncia dos indivduos de se juntarem em grupos para buscarem liberdade. E no terem que esperar por ela at que chegue algum futuro utpico abstrato e ps-revolucionrio. (...) A questo : como os indivduos em grupos maximizam a liberdade sob as situaes dos dias de hoje, no mundo real? Eu no estou perguntando como ns gostaramos que o mundo fosse, nem naquilo em que ns estamos querendo transformar o mundo, mas o que podemos fazer aqui e agora. Quando falamos sobre uma Zona Autnoma Temporria, estamos falando em como um grupo, uma coagulao voluntria de pessoas afins, no- hierarquizada, pode maximizar a liberdade por eles mesmos numa sociedade atual. Organizao para a maximizao de atividades prazerosas sem controle de hierarquias opressivas. 76 linguagens to radicalmente estranhas umas outras esperando que s haja harmonia? Como fazer com que os diferentes mundos se encontrem de forma que no haja confrontos? Definitivamente no sei, e nem esse um ideal do meu trabalho. Uma das artistas que estava no MST perguntava: at que ponto o confronto salutar, quer dizer, como fica a preservao da vida quando o conflito se mostra inevitvel num encontro desses? Essa questo se coloca e me cara.
Talvez essa pergunta denote uma possvel linha diferencial entre terrorismo e ativismo e dependendo do espao em que se est essa linha se dissipa. Em muitos atos dos coletivos de interveno a polcia se mostrou austera e vrias pessoas j se machucaram. Quando a ao realizada junto a momentos de despejos dos movimentos de moradia e terra, de ocupaes, passeatas pela liberao das drogas, momentos de confronto direto com a lei, essa linha tnue realmente se dissipa e a qualquer momento o revide violento, a priso, a morte, o assassinato, pode acontecer. Zonas de risco.
Parece-me que a linha diferencial mais evidente entre o terrorismo e o ativismo que o assim chamado terrorista capaz de atuar com a prpria vida em suas intervenes. Seu projeto tem que ser levado a cabo, custe quantas vidas custar. o corpo/interferncia estilhaado na cidade - o prprio corpo e o alheio. No h simbolismos que dem conta de tamanha entrega. Estou falando aqui, despreocupada da questo moral que se coloca socialmente em relao aos terroristas; no estou discutindo seus efeitos nocivos s comunidades inocentes que morrem em funo de suas intervenes. Estou pensando nesse ponto, na maioria das vezes sem volta, que o terrorista capaz de ultrapassar e os ativistas e interventores culturais no, salvo quando no h escolha.
Na bodyart talvez tenhamos um ponto conector entre esses dois vetores, pois de novo a carne/corpo que se mostra, que se corta, perfurando a barreira da pele, introduzindo o metal- gancho na pele, tornando pele e metal um novo corpo, uma nova sensibilidade. Os modificadores corporais atuam como potentes interventores pblicos, devido a essa capacidade de evidenciar o trnsito existente entre o fora e o dentro do corpo, desbloqueando esse suposto limite. Logicamente, continuam circunscritas as linhas diferenciais que separam o terrorista do interventor, porm, em relao ao corpo exposto, ambos denotam incisiva implicao em sua interveno pblica, mas da j engataramos em outra histria.
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COMUNAS URBANAS
Continuando na Saga dos Sem, ressalto tambm outro evento, dessa vez um pouco mais demorado no tempo: Comunas Urbanas: - O C.U EST ABERTO 17 :
Entre esse tempo de Ocupaes Imateriais, Festas Culturais e Zonas Temporrias, um grupo de dezessete pessoas ligadas ao MSTC, mais propriamente ocupao Prestes Maia, resolveu
17 Comunas Urbanas foi uma das mais ricas experincias de interveno urbana que vivi, devido a ousadia, intrepidez e proposies. Os Catadores de Histrias colaboraram com esse movimento/evento/interfercia desde sua construo (primeiras reunies), do dia da ocupao, e tambm fiz parte da organizao do C.U como produtora de redes e fomentadora cultural junto com Mariah Leick uma das coordenadoras do Movimento. Maio setembro de 2005. 77 formar um movimento chamado Comunas Urbanas. Em parte influenciados pelas novas propostas do MST (Comunas da Terra) e em parte seguindo as linhas de fuga produzidas durante o ACMSTC (Arte Contempornea no Movimento dos Sem Teto do Centro). A idia era ocupar prdios ociosos da cidade para pr em funcionamento uma nova idia de moradia. Segundo eles a luta para ter um teto no deveria reduzir-se a conquistar uma casa. Queriam mais: queriam que essas ocupaes se tornassem auto-sustentveis, pontos de emanao cultural, econmica e vital. Para isso precisaram sair atrs de espaos que comportassem suas inventivas arrojadas. A idia era fazer uma espcie de ocupao ACMSTC nas suas caractersticas produtivas e artsticas - todos os dias.
No dia 29 de maio por volta da meia noite um estranho coletivo composto de dezessete pessoas se juntou prximo ao metr Tucuruvi. Pela primeira vez, o Comunas Urbanas saa para ocupar um local. O corao pulsando. As ferramentas na mochila. O suposto endereo na cachola. Longa Caminhada pela frente. Caminhamos... Caminhamos... Ex mensageiro:Catadores de Histrias <[email protected]> wrote: Sent: Tuesday, June 01, 2004 1:28 PM Subject: apoio ocupao de prdio das comunas urbanas aliados, sbado dia 29 de maio de 2004 ocorreu a ocupao de um prdio na avenida guapira 232, bairro Tucuruvi. Essa ao ousada, realizada apenas por dezessete pessoas, foi a primeira ocupao feita pelo grupo Comunas Urbanas, ligado ao Movimento dos Sem Teto do Centro - SP. Em torno das 03:00 da madrugada de tera-feira completaram-se s 48 horas necessrias legalmente para os ocupantes lutarem pela permanncia no local. Hoje, dia primeiro de junho, uma pessoa responsvel pelo edifcio, acompanhada da polcia militar, foi requerer a sua reintegrao de posse. Aparentemente no conseguir isso imediatamente. O Comunas Urbanas uma iniciativa de Mariah Leike, Adriana e Janiz que pretende utilizar espaos ociosos, desapropriados, endividados com o poder pblico, para fins de criao de cooperativas, centros de cultura e moradia. Deseja-se que o prdio ocupado seja um ponto de confluncia entre poltica, arte e trabalho, que beneficiar alm dos moradores, a populao do bairro e da cidade de So Paulo. Convidamos a todos para que conheam melhor esse projeto, indo at prdio, prestando seu apoio nesse momento de delicados trmites jurdicos e policiais. O movimento precisa de pessoas dentro do prdio!!! Voc pode contribuir com sua presena, mas tambm com sua criatividade esprito de luta. 1. contribuio com alimentos 2. velas (no h luz no prdio) 3. visite e faa sua arte; importante comear desde j a mostrar os objetivos reais dessa iniciativa 4. divulgue para os seus aliados, Comunas Urbanas o C.U. est aberto!!! endereo AV. Guapira 232, 242 - Tucuruvi. (trs quadras do metr Tucuruvi) [email protected] 78
Mariah. A indisciplinada. A sem limites. Aberta cidade como uma puta incandescente. Vontade dela beber a cidade em forma de drinks borbulhantes. Champanhe SP. atrs de sua vidncia que caminhvamos, enquanto falava disparates. Aponta prdios inacessveis. Criando sonho na cabea do pobre. Performer sem teto! Performer pblica! A cidade na palma da mo. Medrosa de riscos, mas insistente. Amedrontadoramente insistente. Sua vida dois filmes. Um, documentrio em preto e branco e outro: fico cientfica. Sua embriagues lcida atropelando o trnsito ordinrio. Um possvel intervindo no tempo/espao das gentes. Sua vontade de mudar o mundo no para de mud-la. Para todos os lados, ininterrupta. Intuio e coragem de mulher vivida. Chata , de tanta voz e fala. De quantos tempos ela diz? Cassandra Sem Teto ela . Princesa da cidade incendiada.
Fabi Borges.
Ela - a Cassandra sem teto - esquece o endereo do prdio ocioso. L vamos ns... Sem Tetos andantes, atravessando a zona norte de so Paulo, quase s duas da manh, em direo casa de um conhecido que viu com ela o prdio outro dia. Batemos na porta. Uma mulher loira e escabelada atende. Se assusta. Uma horda em frente sua porta quer saber do seu marido. Titubeia. Entra e fecha a porta. Sai o marido baixinho, careca, com fiapos escabelados. _Mariah? Olha o relgio. _ A polcia baixou l? Fez a ocupao? _ No! Esqueci o endereo.
Ento samos atrs do baixinho em busca do espao perdido. Achamos uma casa. Entramos. No tinha teto. _ Mas no tem teto!!!! _ Ah, mas s colocar umas lonas. _ No! Quero ocupar um local com teto. _Ento vamos sair daqui antes que a polcia chegue. Procisso. Dezoito pessoas s 3 horas da manh, atrs de um teto-norte. A polcia para o camioneto: _Que vocs esto fazendo? _ Estamos vindo de um churrasco seu moo. _Estamos levando minha me em casa. A polcia sai. Acredita na me idosa, o piedoso. Esse sinal de alerta nos separou. _Cinco para cada lado. _Pra esse lado sete, diz Cassandra-ela. Vamos ao prximo ponto, direita, esquerda, dobra no meio. Pixado. Meia hora depois os dezoito em frente ao prdio. _ Um disfara, outro senta, outro levanta, um dobra a esquina, dois cuidam polcia, um abre a bolsa- p-de-cabra-que-abre-porta. Entramos. Ocupao Comunas Urbanas. O C.U est aberto, diz a incandescente borbulhante. 48 horas de silncio. Poucas sadas e entradas. Apartamentos grandes. Por quatro meses a vida pareceu possvel. Ocupao um ato atpico nos territrios comuns da cidade. Todas as reunies prvias, todos os mapeamentos e pesquisas dos locais, todos os segredos, a confiana construda, ganham sentido no ato da ocupao: Bacanal de adrenalina! Orgia de hormnios cmplices! Os despejados do mundo unidos numa estranha potncia (poder dos fracos), de alterar os mecanismos burocrticos do poder. no limiar do temor e da euforia que esses despossudos tomam de assalto um espao ocioso. Imbudos de uma certeza radical do seu direito, eles sofrem o medo do flagrante, ao mesmo tempo em que esse mesmo medo o que fortalece sua ao. Para a lei, muito tnue a diferena entre uma quadrilha de bandidos e um movimento de ocupao, a qualquer descuido pode-se enjaular um lder de movimento por crime organizado, por isso medo e adrenalina so os componentes essenciais no ato de ocupao, cujo desafio enfiar o p na porta, adentrar novos territrios, instaurar modos diferenciados de convivncia e sentidos de vida. Eis o vcio de um ocupador. A pobreza tende a nos ensinar a lio do limite: ponto onde se transmuta ou se sucumbe. A fora vai sendo retirada da decadncia; da lentido desesperadora de ver o teto ruir, a comida acabar, a bala matar o filho que dormia em barraco de papelo. fabi borges rafa adaime 79 Cenas do dia da ocupao 18 .
Prdio Guapira noite da ocupao Momento de abertura da porta
Averiguao do espao velas Crianas vivendo toda a aventura da ocupao
Cena - 1 19 : noite. Um homem acuado no canto do quarto ouve a parede nua. Uma estranha reza ecoa do prdio abandonado ao lado. Silencia... Choro de criana, mulheres rindo, algum falando no celular ao lado da sua janela. Pedidos de silncio nada discretos delatam a situao: ocupao- de-sem-tetos. O homem pensa no filho no assumido e teme a invaso da sua casa. No dorme. Na televiso o filme mostra uma multido de ratos tomando a cidade e trazendo a peste, ele treme desorientadamente no escuro.
Subtexto Constelaes de palavras e sentidos previamente codificados operam na mente do insone, alternando-se, sobrepondo-se, confundindo-se em suas intrincadas tramas associadas. A terrvel sensao de ter sido invadido em seus territrios extensivos concatena-se a uma estranha euforia de extracotidianidade. Algo foge. Ainda no h palavras.
Revelao 1: Performance dos pobres ocupaes e desocupaes...
O mapa da cidade sofre estranhos tremores e se desconfigura lentamente, conforme se do os xodos urbanos. Os despejados do mundo formam pequenos bandos e se atrevem a habitar. So bandos-quadrilhas-de-bandidos-invasores quando pegos pela Lei; at poderem provar que so bandos-Movimento: CNPJ, Financiadores, Advogados...
Revelao 2: Ocupaes como Performance pblica.
18 Imagens do documentrio - Ocupao Guapira que quer dizer: vale das sombras. (16 min.) Fotos: Rafael Adaime e Fabi Borges. 19 ditirambo feito sobre relato de um homem que escutou a ocupao realizada ao lado do seu prdio na zona norte de So Paulo (Comunas Urbanas) Setembro de 2004.
80 O ato de ocupao traz em si poder ruptor de cotidianidade. Possibilidade de abandonar o territrio dado: cortios, favelas e se adentrar a um social em agitao: movimento que ocupa espaos ociosos. Um estranho brilho no olho que volta, uma antiga esperana resgatada, que as vezes passa, devido a cotidianidade do rompimento, a burocracia hierrquica habitual do Movimento Social. Essa performance coletiva traz tona vertiginosos sentidos: resgate de potncia coletiva, atualizao de memrias esquecidas, retomada de foras, intervenes pblicas. As quarenta e oito horas iniciais de qualquer ocupao so as mais arriscadas e as mais ricas em esprito comunitrio. Nesses instantes-js as singularidades so amplificadas, os saberes especficos valorizados ao extremo: o que faz gambiarras, o que manipula o p de cabra, o curioso investigativo, o que faz comida-para-todos, o que gosta de crianas, o que negocia com a lei, caso ela aparea representada pelas viaturas policiais. Desterritorializaes. Inspirao de agrupamento: projetos e abandonos.
Subtexto Enquanto uma cidade dorme e sonha seus sonhos cotidianos embaados uma outra cidade se produz nas sombras, como se vivificasse o onirismo da primeira. Como vampiros notvagos, os despejados do mundo se ajuntam para desestabilizar a cidade pretendida em ordem, invertendo os mapas burocrticos, ocupando territrios ociosos, se lanando na inveno de futuro na borda do seu prprio tempo, rememorando os espaos esquecidos da metrpole e tensionando Direitos Constitucionais Idiossincraticamente Postergados.
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Devido a abundncia de sentidos que suscita os atos de ocupaes na contemporaneidade, me propus por um tempo a construir espaos de aes que se dessem entreas ocupaes e os coletivos de arte, imaginando que essas conexes hbridas possibilitassem a potencializao de ambos movimentos; de dentro para fora e para dentro... Um arrasto de biopotncia.
Alguns poucos coletivos de interveno estavam no C.U tentando promover um ponto de emanao cultural e poltico: Desbravadores (Floriana Breyer e Serginho), Catadores de Histrias (Fabi Borges e Rafa Adaime), Esqueleto Coletivo (Mariana Cavalcante e Luciana Costa), TEMP (Daniel Gonzales e Felipe Brait) Na caixa ao lado, chamamento de novos grupos: Coletivos de arte e interveno urbana que estavam reunidos em So Paulo, por ocasio do encontro Reverberaes 20 ...
20 O projeto Reverberaes aconteceu na Mostra Artstica do Frum Cultural Mundial em parceria com o SESC de So Paulo, entre 26 de junho e 04 de julho de 2004, na unidade do SESC Vila Mariana e no Poupa Tempo e SESC de Santo Amaro. Realizao: SESC So Paulo / Concepo: Flavia Vivacqua / Coordenao: Horizonte Nmade (So Paulo SP) / Produo: Izabel Franco e Guadalupe Marcondes. Informaes extradas do site: http://www.corocoletivo.org . Foi importante por ser o primeiro encontro de coletivos colaboradores da rede CORO.
Ex Mensageiro:
Luciana Costa <[email protected]> wrote: Queridos agregados ao CORO. Est confirmado nossa reunio com as Comunas Urbanas. O C.U EST ABERTO Neste Domingo 04 de Julho o encontro CORO na Avenida Gruapira n242, dois quarteires da estao Tucuruvi do Metr.
81 Dia 04 de julho 2004 recebemos os coletivos de interveno urbana envolvidos no projeto Reverberaes na Ocupao Guapira Comunas Urbanas. A idia era pensar aquele espao como ponto de cultura e plataforma de lanamento de projetos coletivos, miditicos, econmicos e artsticos. As redes estavam lanadas. Desse encontro resultou alguns apoios e parcerias, menores do que o necessrio, pois as tenses/urgncias imperavam dentro da oc.upao: falta de comida, problemas com a Justia, problemas internos com o MSTC, que considerou o grupo dissidente e expulsou do movimento todos os lderes do C.U, isso significava menos apoio logstico. Mesmo com todos esses problemas as coisas iam sendo produzidas. Uma biblioteca. Um piano quebrado foi concertado. Tinha aulas de alfabetizao. Reciclagem. Oficinas de vdeo. Encontros de grupos de jovens, de crianas, de mulheres. Encontros festivos. Cozinha coletiva. Apresentao de filmes. Aulas de msica. Projeto Catadores de Histrias para criao de um Ponto de Cultura do Ministrio da Cultura na Ocupao. Oficinas de modelagem de Cristal dada na Oficina do Vidro pela Artista Plstica Dbora Muszkat e por mim que era Psicloga do projeto, para jovens moradores da ocupao. E muitas coisas mais. Germinaes...
Em meio a profusas confuses profcuas, o Comunas Urbanas fez sua segunda e terceira ocupao... Em quatro meses de movimento j estavam com um prdio e duas enormes casas ocupadas. Alguns artistas envolvidos com os projetos do C.U fizeram tambm as ocupaes, e penso ser consenso o fato de ter sido uma incrvel experincia urbana (interveno urbana) para todos ns.
Essa tnue linha que separa a legalidade da ilegalidade uma situao que coloca todos ocupadores em risco e esse um ponto emanador de extraordinria vivificao. O momento em que se abre uma porta com p de cabra se instaura, mesmo que momentaneamente, outras relaes com o mundo, com a cidade, com a lei e com a prpria vida. Ocupar quase um vcio. Um vcio odiado pelos senhores que defendem a propriedade privada. Os inimigos. Mesmo que o prdio esteja endividado, inutilizado, ocioso, quebrado, esses senhores no admitem o poder dos fracos. Temem a invaso de suas propriedades como se tratasse de pragas inumanas em suas plantaes latifundirias. Eles se juntam para defender seus bens, e esbravejam nos restaurantes caros contra essa invaso notvaga. _ Primeiro no campo do primo do teu vizinho, e isso no te diz nada. Depois na casa do teu vizinho, mas voc est muito ocupado para ser mobilizado. Depois contigo, mas voc j no pode fazer nada, porque j passou da hora. Foi assim que a Gestapo agiu contra todos ns judeus. Disse o senhor velho e rico tomando um usque importado, comparando a formao da Gestapo com os movimentos de moradia e terra.
Comparar a ao dos sem tetos e terras com aes da Gestapo nazista uma confuso compreensvel porque se trata de traumas scio-subjetivos que percebem no ajuntamento radical de uma massa de guerreiros uma esttica avizinhada formao de exrcitos paralelos
Jovens da ocupao Guapira Comunas Urbanas na modelagememcristal. Foto: Fabi Borges 06 a 09 de 2004 82 de extermnio, das quais facilmente se pode tornar-se vtima. Mas muito perigosa porque supe, devido a essas sobreposies semiticas, que esses ajuntamentos devem ser abortados j na concepo. E isso vira uma espcie de militncia s avessas, que destila entre uma rodada e outra de bebida cara e fungadas em cocana boa, reformulaes de leis e estratgias de mais controle. O medo da insurreio de coletivos esfarrapados associados ao medo de perder domnios. ta Brasil profundo! Os donos de prdios endividados, fortalecendo vnculos com bancos, industrias imobilirias e prefeituras. Reao urbana, no entanto: coletividades contemporneas. Foi entre reaes coletivas, que em setembro de 2004 o Comunas Urbanas perdeu seus trs espaos ocupados de jovens projetos..
PERFORMANCES IN FOCUS
Imagens da performance durante o despejo da Ocupao Guapira Comunas Urbanas
Durante a reintegrao de posse da ocupao Guapira resolvi intervir de forma performtica e ldica fazendo aluso novamente Cassandra mulambo, um pouco em homenagem Mariah Leike, a Cassandra-Sem-Teto-mulamba e por conseqncia a todos os movimentos de ocupaes, e um pouco porque aquela louca pitoniza aludia a esse estado de lgica ininteligvel, inaudvel, incompreensvel. Nenhum argumento evitaria o despejo, pois sua execuo era legtima na medida em que era uma ordem jurdica, supostamente justa e oficial.
Em performance delirante, eu puxava as crianas pelo pescoo com um leno colorido e perguntava para os policiais e para a oficial de justia se elas era sua? _No? Mas de quem ento? mudana? sua mudana? Ento encaixotava algumas crianas e colocava no caminho de mudanas. Ia falando aparentes disparates para o prdio, para o dono da padaria da esquina, entregue a intensidade do momento como se fosse mesmo uma viagem lisrgica, cujas pulsaes intempestivas do humor se densificam e nos tomam em joguetes somticos. Era a singela loucura/esttica destilando um veneno suave diretamente no olho que assistia. O escndalo do despejo era devolvido para o ambiente em cruis dosezinhas de imagens. Um veneno sutil que atrapalhava, mas no cabia em nenhuma ordem ou mandato de priso. As crianas entendiam do que se tratava, se no no teriam entrado em cena com tanto
Menina na janela do despejo Fala na lingua dos anjos coma polcia. na revista, encontra bolas de jornal amassados
bate nas crianas gritando anda povo Se vestemde sacos de lixo e pedempara entrar Planeja novas estratgias comas crianas no caminho de mudana imagens extradas do vdeo-documentrio Ocupao Guapira. Rafael Adaime. 83 despudoramento. Vingana infantil. Longe das bombas e revides sangrentos, mas... atuando num revide preciso: produo de sentido de si no outro. Eu Pomba-Cassandra-gira-louca sofria naquele momento todos os despejos do mundo, em toda a extenso de suas crises e seus alagamentos acampados: - Performance e ontologia! Era muito triste perder o prdio que tanto amava. Foi completado o giro sem teto: Ocupao e Despejo... Giras urbanas.
. e foram acampar na rua Frederico Steidl uma das ruas do centro, escolhida pelos movimentos de moradia:
Depois dessa imerso no fora muitos voltaram para casa de familiares e outros foram reincorporados por outros movimentos de moradia, mas o C. U. continua promovendo aes dentro de outros espaos, pois aos poucos foi se constituindo como um movimento cujo foco so intervenes e proposies culturais, sociais e polticas. Como exemplo das aes do C.U, temos a colaborao na criao da Associao dos moradores da Favela do Moinho, Apoio ocupaes de terreno como So Miguel Paulista, aes junto Marcha Mundial das Mulheres (gerao e renda), a Pastoral da Mulher Marginalizada (Prostitutas da Luz), Movimento Jovem do Jardim So Paulo, Aes Culturais em Guaianases, etc. C.U. em expanso.
Arte contempornea na favela do moinho 21
Em dezembro de 2004, outro evento de arte e comunidade aconteceu, dessa vez na Favela do Moinho a nica grande favela do centro de So Paulo. O objetivo desse encontro, segundo Tlio era criar uma relao entre moradores da favela e comunidade em geral pelo vis da arte se opondo radicalmente a prticas de higienizao promovidas por alguns circuitos da arte pblica como o evento Arte/cidade, que para instalar suas obras pblicas se tornaram cmplices da retirada forada dos habitantes desses espaos.
21 Organizado por Tlio Tavares nos dias 18-19 de dezembro de 2004. Participaram do evento: Paulo Zeminian, Peetssa, Rodrigo Arajo, Fabiane Borges, Rafael Adaime, Christiane Moraes, Tlio Tavares, Luciana Costa, Tiago Zacharias, Maurcio Tavares, Chico Linares, Jlia Tavares, Gavin Adans, Flvia Vivacqua, Milene de Stefano Fel, Luciana Costa, Marcos Vilas Boas, Alexandre Menossi, Antonio Brasiliano, Mariana Cavalcante, Sergio Machado, Mauro de Souza, Maria Leicke, Mila Goudet, Ana Bella, Christiane Arenas, June, Isabel Franco, Anderson // Coletivos representados // Bijari, Colectivo, Esqueleto Coletivo, Catadores, Nova Pasta, Agruppaa, Coringa, entre outros.
Acampamento Comunas Urbanas na Rua Frederico Steidl. Setembro de 2004. Foto Rafael Adaime e Anderson Barbosa 84
Em 1997 a regio desta favela foi utilizada pelo Arte Cidade como espao expositivo. Na poca rgos pblicos e privados expulsaram moradores, limparam, investiram milhes de reais e realizaram uma mega exposio de arte contempornea. A exposio acabou, a Casa das Caldeiras que recebeu a outra metade da exposio, foi restaurada como patrimnio histrico e a regio do Moinho ocupada novamente como moradia por favelados 22 .
Um dos motes conceituais desse evento foi pensado a partir da idia de campos de concentrao contemporneos, um estado de terror imposto sobre os corpos pela centralizao de capital e poder, que obriga os sujeitos alijados da partilha a construrem modos de vida e sobre/vida paralelos ao sistema de trocas do capitalismo oficial. Nessa poca os grupos que efetivamente apoiavam esse espao eram a pastoral catlica e o narcotrfico e esse paradoxo era sustentado pelo cotidiano dos habitantes da favela. Um outro leitmotiv do evento foi pensar as criaes de favelas como outro estilo de ocupao, diferentes dos movimentos sociais organizados que mapeiam os espaos de interveno. As favelas geralmente se do de modo mais natural, os grupos vo se aproximando de um espao trazendo outras pessoas e vagarosamente o espao se torna um territrio plenamente habitado prescindindo, a princpio, de formas mais burocratizadas de organizao, mas que sofrem como toda a ocupao a perseguio judicial e o carter de ilegalidade.
Houve vrias reunies com os coletivos de arte, com a pastoral da igreja catlica e moradores da favela antes dos dias marcados para o encontro. Por fim nos dias 18 e 19 cerca de 150 pessoas foram ter com os domnios demasiados do Moinho e foram produzindo seus trabalhos coletivos conforme iam conectando-se a atmosfera temporal e espacial. Devido ao fato da comunidade no ser organizada nos critrios j experimentados na Ocupao Prestes Maia, o clima no era to acolhedor e os espaos internos das casas e das vidas foram pouco exploradas, no entanto
22 Email de Tlio Tavares enviada para as listas de coletivos (rede coro). Ex mensageiro:
From: Tulio Tavares To: [email protected] Sent: Monday, December 06, 2004 2:54 AM Subject: Arte e Cultura Contempornea na Favela do Moinho
Aos aliad@s
Estamos propondo, nos dias 18 e 19 de dezembro, um encontro entre a populao de favela e a populao que mora fora das favelas de So Paulo. Artistas, arquitetos e pessoas interessadas esto sendo convidados a conviver na nica favela do centro da cidade, a Favela do Moinho, e junto com os moradores valorizar o espao fsico e psicolgico atravs de trabalhos de arte.(...) Junte se a ns e questione este sistema opressor e excludente em que vivemos. Repasse este e-mail a amigos interessados. Confirme sua participao nesta interveno mandando um e-mail para (...) [email protected] obs: est a mesma desestrutura que organizou a Ocupao de Arte no Movimento dos Sem Teto ano passado. Favela do Moinho. Dezembro de 2004. Foto: Rafael Adaime 85 o evento foi muito importante no sentido de ter possibilitado aos coletivos uma nova oportunidade de experimentar suas prticas, de coloc-las em questo, de aproximar circuitos e pessoas e de fazer as singularidades dessa ocupao serem evidenciadas. Zonas de radicalidades existenciais.
Um dos trabalhos mais tocantes foi o do Esqueleto Coletivo, que instalou um tecido vermelho de 40 metros de comprimento encima do moinho, que caia sobre a favela como uma grande lngua vermelha, como uma grande bandeira de guerra. Ao ver a instalao tive ganas de subir at o moinho... e fui... e me sentei sobre o vermelho... e menstruei fetos incorporais sobre a favela... e virei um jorro de sangue e lubrificao. Alguns moradores se incomodaram com o tecido temendo que ele fosse confundido com algum estado de alerta enviado pelo PCC e mandaram que fosse retirado imediatamente, e assim foi.
A Favela do Moinho, at a data de concluso desse texto vivia sob o risco de despejo, devido a liminar de reintegrao de posse concedida aos proprietrios. Algumas foras polticas esto se mobilizando em cooperao. Pessoas que por l estiveram na ao de arte coletiva de 2004, como Mariah Leick, do Comunas Urbanas, que atualmente colabora na criao da associao dos moradores da Favela do Moinho e em seu direito de lutar pelo espao.
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Entre essas aes citadas outras foram acontecendo. Produzi e/ou participei na organizao de vrias outras aes como ocupaes junto com Sem Terras - MST; Festa 20 anos do MST; visitas de grupos nacionais e internacionais ocupao Prestes Maia, projetos de meta- reciclagem para jovens da ocupao Prestes Maia com os implementadores do Projeto Nacional Pontos de Cultura que situava-se no espao Piolim Secretaria Municipal de Cultura; aes em espaos urbanos, projetos dentro de albergues; participao com sem tetos e terra em encontros como o Digitofagia ocorrido no MIS ( Museu de Imagem e Som) em novembro de 2004.
............................................ 1 INTEGRAO SEM POSSE 1
Madrugada. Poucos carros insistem na avenida Prestes Maia. A lder sem teto no prega o olho. Ser hoje o despejo? Em suas plpebras pesam quatro mil vidas sadas de cortios, favelas, praas pblicas, viadutos... Quanta promessa foi feita para que essa gente toda se aventurasse na peleja infame em busca de teto? No reflexo da janela o olho esbugalhado v as caras-das- pessoas: ...Dona Romilda cozinheira... Dona Idalina na costura... Manoel linha de frente... O vidro lhe espelha as caras todas e todas elas lhe exigem respostas. Mas no h respostas. Sabe s que a liminar despachada pelo juiz da 25 vara anuncia a reintegrao de posse e o despejo pode ser hoje... Insnia e viglia. Viglia-espreita que transmuta aquele-que-vende-gua-no-semforo em guardio-da-aldeia-sem- teto. Ele chega na ocupao cansado do barulho dos carros das encruzilhadas, troca sua roupa suada pela de arqueiro da noite; caf quente na trmica; dedos engatilhando cigarros como se fossem fuzis; pupila na vidraa quebrada espionando a possvel apario dos ces de guarda, oficiais de justia, atiradores de elite e assistentes sociais que fecharo a rua em seus dois lados instaurando a presso armada. Em nome da lei, das revitalizaes, das estpidas associaes semnticas que ligam a condio de pobreza a descartabilidade, os legitimados promovem prodigiosas varreduras na cidade despejando gente, gradeando praas e engaiolando moribundos em lixeiras assistenciais. Meus companheiros de luta so condenados pela lei como formadores de quadrilha... Tenho que estar atenta... Diz a lder sem teto para si mesma passando ruge nas olheiras-de-sono.
Em situaes de reintegrao de posse aos antigos proprietrios (despejos) as ocupaes intensificam sua condio de fronteira; os terrenos ocupados se tornam trmulos e movedios e no oferecem garantias de passagem. Os ocupantes tm que sustentar o paradoxo de participarem de um movimento poltico organizado, cujas prticas de presso so condenadas ilegalidade pela Justia. Esses disparates agravam-se devido misria, a fome e a superpopulao, que so realidades nas ocupaes. A sobrevivncia o pacto mais forte com a cotidianidade e por isso possvel, apesar das terrveis tenses, acompanhar a vida se dando com aura comum: crianas brincando, velhos trocando receitas, jovens engravidamentos, mortes e sambas.
1 Gravura Drago- Atelier amarelo Evento artstico/cultural/poltico ocorrido no dia 02 de julho de 2005 em sinal de apoio Ocupao Prestes Maia (MSTC) que estava sob mandato de Reintegrao de posse para a semana seguinte. Produo do evento feita na casa de Mariana Cavalcante e Flvia Vivacqua + Daniel Lima, Fabiane Borges, Melina Antis e Tlio Tavares. Viglias conectivas. 2 Devido urgncia da situao e da relao afetiva e poltica que tnhamos estabelecido com a Ocupao Prestes Maia 2 , em poucos dias de contatao das redes via Internet, realizamos um grande evento denominado INTEGRAO SEM POSSE 3 que contou com a presena de pessoas ligadas aos movimentos de moradia, arte contempornea, cinema, jornalismo, urbanismo, poltica e universidades. A idia era impedir esse despejo especfico e todas as polticas de gentrificao instauradas na cidade e, ao mesmo tempo, fomentar a proliferao dos movimentos de ocupao na cidade, no campo e nas produes miditicas. Estticas de infiltrao sgnica no imaginrio social. Reverso da lgica cultural que insiste em criminalizar as prticas dos movimentos sociais. Ocupao imaterial/subjetiva. Guerrilha semitica. Urgncia do real. Direito cidade. Hora de aplicao dos conceitos exaustivamente discutidos. Chegamos revendo e fazendo amigos, panfletando na vizinhana, lanando a campanha de cobrir o prdio com lenis coloridos, grafitando as fachadas, chamando toda a imprensa, paralisando o trfego com placas imobilirias roubadas e resignificadas, rolando pelas caladas em performances escandalosas, projetando vdeos nas paredes, ativando grupos culturais da prpria ocupao e seu entorno, inventando uma aura de resistncia amplificada!!! Os brincantes danavam aos sons de flautas, raps e tambores, evocando com seus gestos epifnicos as foras ontolgicas da vida. O homem exausto-de-tudo lhes derramou mijo da sacada ansiando pelo silncio impossvel, enquanto a esposa saracoteava na calada. A emergncia ruidosa e ainda no foram cantados todos os ditirambos. Um tecido gigante cor de sangue arreganhava-se pelas aberturas das fachadas masturbando os hierglifos pichados. Placas atravessavam a calada soletrando DIGNIDADE, enquanto o moo encapuzado tocava gaita de palhao para noiva esbofeteada. Uma mulher rolou pela calada em grunhidos desconexos. O pintor sorriu. A luz abaixou e uma fumaa amarelada tomou conta do recinto - a lder dos sem tetos gritou de dentro das nvoas: Quem no Luta? ... A multido respondeu: T Morto!
Esse segundo encontro desembocou em outros eventos sabatinos engendrados semanalmente a partir de visitas ao prdio, reunies com moradores e coordenaes, reunies com artistas, listas de discusso da web, anncios em sites, divulgao para imprensa formal e independente. O imenso galpo destinado a esses acontecimentos foi aos poucos se tornando territrio de conexes, produes de pautas miditicas, confluncias culturais e aes expansivas que aos poucos foram alterando o cotidiano de milhares de pessoas dentro e fora da ocupao.
2 Ocupao Prestes Maia estava sob ameaa de despejo devido ao mandato judicial de Reintegrao de Posse ao antigo proprietrio. Junho e julho de 2005. O primeiro evento/arte foi o ACMSTC (Arte Contempornea no Movimento dos Sem Teto do Centro - novembro e dezembro de 2003) Evento realizado por cerca de 200 artistas e coletivos de arte junto com mais de duas mil pessoas moradoras da ocupao Prestes Maia Ocupao na Ocupao Arte e poltica. No ano 2005 o prdio abrigava j cerca de 4000 mil moradores. 3 Integrao sem posse: Evento de Arte Pblica produzida dia 02 de julho de 2005 na ocupao Prestes Maia. Coletivos participantes: Catadores de Histrias, Esqueleto Coletivo, EIA, TEMP, A Revoluo no ser televisionada, Elefante, Comunas Urbanas, Comunas da Terra / MST, Nova Pasta, mm no confete, Bijari, Cia. Cachorra, Ateli Espao Coringa, Coletivo Tuxxx, CMI Centro de Mdia Independente, Comunas da Terra, Cena Dinmica, Frum Centro Vivo, Gavin Adans, Cristiane Arenas, Os Bigodistas, Marcha Mundial das Mulheres, Imagtico, Cabeza Marginal, Iat Cannabrava, Letcia Rita, Base V, Mdia Ttica, Instituto Polis, Frum Centro Vivo, Daniel Arrubio, Suely Rolnik, Peter Pelbart, Toni Venturi, Xico S, Lucas Bambozzi, Grupo C.O.B.A.I.A, Rui Amaral, Artbr, Radioatividade, Grupo Drago da Gravura, Evaldo Mocarzel.
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Um dos flyers das festas/resistncias - Ocupao Prestes Maia 4
4 Integrao Sem Posse. http://integracaosemposse.zip.net
Imagens do evento integrao sem posse 2 de julho de 2005/ Fotos: Mariana Cavalcanti http://integracaosemposse.zip.net
4 Tenso agonizante e festa onto-pblica! Medo do escorrao, do esgoto da calada, da chuva sem luz, da noite armada... O despejo no aconteceu na semana prevista - foi adiado. Isso ocorreu por causa dos eventos de arte produzidos no prdio e por ele ter conquistado, ao longo dos quatro anos de ocupao, um lugar de resistncia real e imaginria na cidade. A Ocupao Prestes Maia tornou-se uma referncia nacional/internacional de insistncia. OCUPAO virou signo importante nas esferas artsticas, intelectuais e scio/culturais, e no dizia mais respeito somente a um povo humilde atrozmente violentado em seus direitos constitucionais, para quem as polticas pblicas costumam impor seus projetos sociais verticalizados, sem considerarem as demandas trazidas pelo pblico, para os quais esses projetos deveriam se prestar. A aura de reintegrao de posse continuava a pairar sobre as subjetividades aliadas ocupao, isso era extremamente desgastante porque produzia ininterruptamente a sensao de ilegalidade e marginalidade. A partir desses eventos de arte e poltica quase sempre repercussivos, muitos novos parceiros foram se constituindo em consonncia de esprito-de-poca, e passamos a cultivar uma certa Cultura de Ocupao nos mais variados espaos pblicos, desde a cidade real at a cidade expandida (espaos pblicos, galerias, mdias oficiais e independentes, subjetividade e cultura). Foram criados uma weblist e um blog: territrios de expresso e comunicao. Integrao sem posse 5 tornou-se uma rede de colaborao caracterizada por suas vertentes artsticas, polticas e urbanas, com todas as confuses possveis que esses termos depreendem. Foram feitas vrias alianas com grupos que discutem Direitos Humanos e Direito Cidade, como o Instituto Plis Frum Centro Vivo , que junto com os materiais coletados por coletivos de aes- pesquisas pblicas e outras organizaes, deram incio ao Dossi de denncia pblica sobre violaes dos direitos humanos no centro de So Paulo 6 . A ocupao prestes maia nos ocupou e mobilizados fortalecemo-nos em nossa ocupao da cidade, convictos de que o espao pblico no se restringia s ruas e praas, mas tambm a todas as redes sociais, polticas, mdicas e subjetivas que nele pululam.
5 Tanto a weblist como o blog est sendo administrado voluntariamente pela artista Mariana Cavalcante. http://integracaosemposse.zip.net 6 DOSSI DE DENNCIA "Violaes dos direitos humanos no centro de So Paulo: propostas e reivindicaes para polticas pblicas", organizado pelo Frum Centro Vivo. O dossi aborda a situao atual dos cinco principais grupos que moram ou dependem do centro de So Paulo para sobreviver: sem-teto, catadores de material reciclvel, populao de rua, crianas e adolescentes em situao de risco e trabalhadores ambulantes. www.forumcentrovivo.hpg.ig.com.br Intensificou-se nessa poca a manifestao das intervenes de arte/poltica urbanas em So Paulo atravs de cartazes, murais, eletrocardiogramas das ocupaes paulistas, lambes explicando os processos de gentrificao, carimbos, intervenes em outdoors publicitrios, panfletos, performances esttico-corporal-plsticas, passeatas, homens e mulheres placas, roupas em forma de alvo, Splacs, textos, camisetas, mscaras, procisses carnavalescas, eventos artsticos em situaes de despejo (reintegraes), escrachos, cortejos fnebres e festivos, manifestos contra projetos higienistas de revitalizao, festas noturnas nas ocupaes, etc.
5 Durante esse tempo foram criados inmeros projetos tanto dentro como fora da ocupao Prestes Maia. Dentro: Cineclube da Cinemateca de Documentrios, Galeria de Arte e Vitrine, Escola Popular, Reciclagem de Lixo, Biblioteca Prestes Maia - iniciada por Mariah Leick quando ainda moradora da ocupao (2002-2003) reerguida e ampliada por Seu Sevirino (2005-2006), o atual administrador que nesse momento 7 toma conta de cerca de 6 mil ttulos e recebe constantes doaes. Fora: uma srie de manifestaes, algumas somente com coletivos de interveno, outras construdas em parceria entre artistas, colaboradores e militantes dos movimentos sociais agrrios e urbanos - coletividades 8 .
No dia 08 de agosto de 2005 houve um ato da FLM 9 (Frente de Luta por Moradia) em frente ao Frum Joo Mendes, que revelou um pouco dessas novas parcerias scio/esttica/urbano/pblicas entre coletivos de arte e movimentos de ocupao de So Paulo. Toda a proposta esttica da passeata foi pensada coletivamente, de modo que surgiram uma srie de novas idias, frases em faixas e camisetas, performances, etc. A reivindicao era relativa ao mandato de reintegrao de posse contra Ocupao Plnio Ramos e falta de propostas alternativas por parte do governo. A manifestao exigia uma conversa pblica com o juiz da 25 Vara, mas o encontro foi negado.
Uma semana depois desse ato a ocupao Plnio Ramos (MMRC) 10 sofreu o despejo. Foi uma experincia radical para todos os grupos de apoiadores, colaboradores e coletivos de arte que acompanharam o processo, devido violncia policial, o estado de exceo, o descaso do governo com os moradores e tudo o mais.
7 Momento de feitura da tese: julho e agosto de 2006.
8 (Movimentos sem terra MST, Movimento dos trabalhadores sem teto - MTST, Movimento por moradia regio central -MRC, Movimento dos sem teto do centro - MSTC, Movimento dos cortios MC, Catadores de papel, Moradores de rua, Torcidas organizadas, Movimento negro, Movimento das putas, etc). Encontra-se uma srie dessas intervenes no blog: http://integracaosemposse.zip.net 9 Frente de Luta por Moradia. Frente que aglutina grande parte dos movimentos de ocupaes, moradias, cortios e reforma urbana de So Paulo. Informaes: www.mstc.org.br 10 MMRC: Movimento por Moradia Regio Central. No dia 16 de agosto de 2005.
EmFrente ao FrumJoo Mendes - 08/2005 Foto: Mariana Cavalcante 6 Fala moa 11 : Desocupaes como Performances pblicas e ontolgicas: Somos levados pela cmera ficcional-documental de Glauber Rocha 12 a panorar sobre uma praa romana cheia de povo, cartazes e bandeiras anos 70. Multido em gritos de passeata. A moa assiste o movimento da sacada de uma dona-de-casa-romana que lhe conta terrveis histrias de sem tetos e polcia: Disparou bombas lacrimogneas contra o povo, entrou nas casas, surrou mulheres e crianas, fez coisas tremendas. Gentrificaes-idiossincrticas-do- poder. Seja em Roma ou em So Paulo a histria se repete... Se repete... Repete... O eu-moa estava l; no na Roma do filme no despejo da ocupao Plnio Ramos - no centro de So Paulo. Despejos forados so confrontos de foras que acontecem num determinado tempo-espao que foge absolutamente do tempo-espao determinado. Essas minsculas guerras so capazes de produzir atualizaes imemorveis: no embate das foras os hormnios copulam; uma estranha euforia invade os corpos; os gestos e gritos emitidos pelas hordas combatentes evocam inimaginveis devires. A boca arreganhada, a vontade inabalvel, a disposio de viver e morrer a um s tempo. O clima absolutamente extra-ordinrio que percorre as veias j dilatadas, o corao pulsante... O gesto arreganha-se em atualizaes de vertiginosas trajetrias: humanidades na terra; foras estromblicas de vulces destruidores e infinitamente belos; tzunames e kactrinas, homens bombas; bombas atmicas; tomos bombsticos... Os suores dos povos estranhos dolicocfalos e braquicfalos que esburacavam a terra em busca do metal 13 ... O metal da tecnologia e do medo... A vertigem agonizante dos prisioneiros reduzidos sub-existncias: carnes e ossos... Os soterrados da histria... Pensar o gesto expandido de uma pequena multido-sem-teto sendo despejada pens-lo como expresso ontolgica, sgnica e performtica que se movimenta enquanto produo corprea nas cadeias circulares (repetio) e nas espirais alucinantes (imemorialidade) das significaes. Era dia de despejo - dia da manifestao idiossincrtica do poder dia de atualizar o confronto j sabido e, no entanto, sempre novo... Ritornelo escandaloso... Atualizao de memrias minguadas realizadas nos terrenos pblicos da cidade qualquer... Os ces magros desprovidos de direito combatendo os ces de guarda dos imprios. Depois do despejo inevitvel, a tatuagem na calada em frente ao prdio outrora ocupado. O grupo de sem tetos da Plnio Ramos se arrisca em marcar a frente-do-prdio-da-cidade com sua instalao-presena. O prdio despejado fechado de cimento torna-se parede de prego que
11 Moa, personagem do filme Claro de Glauber Rocha, que se assemelha a uma vidente-profeta que atravessa o filme como atualizando imemoralidades e produzindo ampliao de sentidos para situaes cotidianas. Cfe roteiro do filme Claro 1975, de Glauber Rocha 12 Cfe roteiro do filme Claro 1975, de Glauber Rocha. Os fragmentos de falas foram retirados do livro: Glauber Rocha - Roteiros do Terceiro Mundo. Editorial Alhambra/ Tipo Editor Ltda. RJ. 1985. Organizado por Orlando Senna. 13 Povos estranhos, dolicocfalos e braquicfalos que se misturam, enxameando toda a Europa. So eles que controlam as minas, esburacando o espao europeu em todos os lados. Cfe. Deleuze e guattari. Mil Plats. Ed. 34.So Paulo. SP. 1997. Tratado de nomadologia: A mquina de guerra.P. 98
7 sustenta as lonas-pretas, casas arranjadas, arranhadas nas caladas. J no h teto, j no h prdio, somente uma condio de existncia exposta na calada pblica: Instalao-de-vida- lona. Tambm os sem tetos inscrevem suas vis hierarquias nos terrenos incertos... As expulses decididas em assemblias... As tarefas de grupo impostas por coordenaes autoritrias... Em seu nomadismo forado a instituio poltica social quase religiosa tenta ordenar o intempestivo sempre iminente. As caladificaes da vida cronificam desamparos, desmedidas, intempestividades... A lona, apesar de sua concretude, no concreta o suficiente para proteger a vida das balas do bandido, da polcia, dos raios da tempestade, da autoridade, da demncia... A misria que toma conta da instalao-sem-teto se abre tambm para jorros de loucura; mas esse tipo de desmedida produzida nos corpos-sem-tetos ainda no est inscrita em nenhum dos laudos jurdicos, sejam de acusaes ou defesas. O desvario surge aos poucos... Os golpes da desesperana densificam vagarosamente a realidade cor-de-lona-e-fome, tenuamente calcinam os corpos quase-todos-pretos. A vida se altera como se bebesse golaos de aguardente. O embriagamento paulatino exercido pelo excesso de uma realidade nua, transporta as vidas-tatuadas-nas-caladas para campos de concentraes demasiados. O real densificado vai criando estados de torpor e de demncia. Desmoronam identidades, por certo, desmoronam tambm potncias... Vida-lona; vida- superfcie. Sem romantismo e sem desprezo. As corporeidades horizontalizam-se; caladificam- se... Os jatos de poder retornam intermitentes em pequenos espasmos delirantes... A mulher faz voltas no quarteiro, est furiosa; fala diretamente com o ministrio da Repblica no celular de plstico brinquedo do filho com um ministro qualquer sobre a situao em que ela e os seus foram colocados. Faz uma srie de exigncias, fala em indenizaes, ofende a esposa do presidente e por vezes agacha-se, como se estivesse com dor no estmago, a fim de recuperar foras para o prximo xingamento. Volteia o acampamento estendido em frente ao prdio de portas acimentadas. Berra maledicncias contra a polcia e acusa deputados de assassinatos. O resto da populao instalada ouve conivente suas vociferaes, lhe custa acreditar que no h ningum do outro lado da linha, pois tudo to absolutamente provvel... A vida comprova a factualidade das palavras da cozinheira! No entanto, a prpria vida torna-se improvvel... O delrio daquela-que-cuida-da-cozinha sinalizava, enquanto gesto corpreo, a fome-louca-de-todos-os-tempos. Fomes e demncias...Teme-se o extermnio lento at mais do que o metal pesado da tecnologia das armas policiais. Estavam todos fortes no dia do despejo, no dia das idiossincrasias-do-poder-de-todos-os- tempos. Os jornalistas, os estudantes, os advogados, as assistentes sociais, o judicirio... Todas essas presenas no foram suficientes para impedir a retirada do povo-do-prdio. O sem-teto soldava as portas da ocupao, para dificultar a entrada e a sada de quem quer que fosse, os jovens contavam bravatas na sala dos fundos, as mulheres faziam caf, eu pintava as crianas de preto-ndio. Fazia riscos nas caras das crianas como um diminuto gesto performtico que sustentasse imaginrios longnquos. Por volta das 5 horas da manh, mes levavam filhos aos banheiros para retirar as listas de tintas das caras, porque a hora do confronto se aproximava, a resistncia se daria e os gases lacrimogneos expelidos pelos mandatos jurdicos seriam inevitveis. O gs queimaria a pele e marcaria para sempre o traado preto-ndio. Tatuagem do momento vivido. Alterao corprea provocada por diminutas pinturas nos rostos, eternizadas pelas bombas de gs. Eu continuei com os traos pretos na cara me escondendo dos lacrimogneos. Praa-romana-de-So-Paulo-mundo: a polcia batendo, os pobres apanhando, 8 as mulheres chorando, os estudantes reivindicando, a propriedade privada prevalecendo. E a vida de algum modo sub-insistindo... Performance indita e imemorial produzida por uma pequena multido sem teto. Meses antes do despejo fatdico da Plnio Ramos ou de qualquer outra ocupao eles, os ces magros, perambulam aos bandos procura de prdios abandonados. Migraes internas da cidade; populaes em deslocamento. Uma massa miservel adentrando inusitados territrios: disfuno-da-cidade-da-ordem. Procuram espaos ociosos cheios de dvidas antigas ddivas. Pequenas matilhas de despejados do mundo atrevendo-se a habitar. Mapas trmulos, insuspeitveis variaes nos territrios comuns da cidade territorial e burocrtica. Reminiscncias... Performances como composies de expressibilidades; gestos que abrem passagens para imemorialidades; ocupaes como movimentos performticos pblicos ontolgicos e escandalosos. E o imprio... Ah, o imprio! A multido exigiu o nascimento do Imprio 14 . PRDIO PRIVADO OUTRORA OCUPADO...
14 As massas revoltadas, seu desejo de libertao, suas experincias com a construo de alternativas e suas instncias de poder constituinte apontaram, em seus melhores momentos, para a internacionalizao e globalizao das relaes, para alm das divises de mando nacional, colonial e imperial. Em nossa poca, esse desejo posto em movimento pela multido foi atendido ( de forma estranha e perversa mas apesar disso real) pela construo do Imprio. Pode-se at dizer que a construo do Imprio e de suas redes globais uma resposta s diversas lutas contra as modernas mquinas de poder, e especificamente luta de classes ditadas pelo desejo de libertao da multido. A multido exigiu o nascimento do Imprio. Cfe Michael Hardt e Antonio Negri. Imprio. Ed. Record. Rio de Janeiro RJ. 2001. P. 62. Pessoal, O despejo da plnio ramos foi sem dvida o mais violento que participei. A violncia com que fomos tratados dentro e fora da ocupao foi aterradora. Fora, nossos amigos correndo para todos os lados com gs de pimenta, efeito moral, gs lacrimognio e tiros de borracha nos olhos, na cara e nas costas. Dentro, bombas e tiros de borracha que acertaram adultos e crianas. Gente chorando, gritando... crianas apavoradas... pnico. (...) Meu aluno rafael nascimento, morador da Prestes Maia, foi eleito como bode expiatrio pelos porcos e, enquanto 19 de ns estvamos ENCOSTADOS na parede, ele apanhava de cacetete no fundo do galpo. Seus urros ainda esto ecoando nos ouvidos de quem estava l. Ns no podamos fazer nada!!!! Nem olhar, ao menor gesto de resistncia, polciais vinham com cacetetes nos chamando de filhos da puta e nos forando ouvir em silncio a tortura do outro-nosso. Tortura corporal e psicolgica. (...) Nunca me senti to impotente na vida. A condio de vida nesse caso reduz-se a dizer sim para todas as atrocidades que esses homens de farda, e sem nenhum tipo de identificao, fazem. (...) Se na Plnio o despejo foi dessa violncia, o que acontecer na prestes maia? H momentos que tudo foge de controle. (...) Ns outros 19 escolhidos para o paredo fomos para a delegacia acusados de resistncia. (...) tanta palavra cordata: sim para a polcia, sim para os advogados; corpo-que-diz-sim-querendo-dizer-no!!! Quero dizer sim e digo para os sbados da prestes maia; acredito na arte; desprezo o confronto quando s um lado tem armas. Fabi Borges para lista do Integrao Sem Posse... Dia 09/08/2004
Fotos: Anderson Barboza 9 INSTALAO CORPORAL E SGNICA EM FRENTE AO PRDIO MURADO 15 :
15 Foram feitos dois vdeos-documentrios do despejo: Plnio Ramos do grupo Risco e Despejo Plnio Ramos de Melina Anthis e Chico Linares.
Imagens: Mariana Cavalcanti 10
Uma semana aps a reintegrao (24/08/2005), despejados, coletivos de arte e estudantes colaboradores juntaram-se para preparar o Cortejo Fnebre do 7 Dia de Morte da Ocupao Plnio Ramos e levaram um caixo preto com letras vermelhas em frente CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de So Paulo), para tentar uma reunio com a diretoria da instituio e apresentar as propostas de negociao do MMRC; mas eles no foram acolhidos. A criatividade esttica da reivindicao no comoveu a posio dos diretores, e isso nos serviu de grande questionamento: _ Poder Governamental X Arte Pblica.
Imagens de Mariana Cavalcante e Melina Anthis >Teriam esses tipos de atos pblicos e performticos alguma razo de existirem por si mesmos ao invs de serem promovidos exclusivamente a um destinatrio? >Que mecanismos empregar- se-iam para legitimar eficazmente essas novas linguagens/passeatas? >Se finda a palavra de ordem e, no seu lugar, uma srie de performances ritualsticas se iniciam, como se modificariam tambm as perspectivas de inteligibilidades do socius? >A ocupao subjetiva produzida pela ampliao do espectro sgnico das passeatas seria eficaz a ponto de integrar as demandas dos movimentos nos vrios segmentos da sociedade? >Para alm do evidente lamento coletivo pelo assassinato promovido pelas instncias jurdicas Ocupao Plnio Ramos, que outras signagens estariam sendo produzidas nesse cortejo? >O que mais diziam essas mscaras morturias que empurravam carrinhos de bebes e Djmbes, cujas bocas amordaadas e mos dadas destilavam incenso de enterro em plena via pblica? >Esses novos regimes de signos certamente propunham uma nova economia de registros scio/polticos. Quais aplicabilidades, no entanto, se produziam efetivamente? 11 Atravancada nessas perguntas lembrei de um texto de Diana Taylor 16 chamado El espectculo de la memoria: trauma, performance y poltica, que levanta algumas questes sobre as funes/reverberaes das aes performticas das Madres en la Plaza de Mayo, nas esferas sociais e polticas da contemporaneidade, que me parecem interessantes de serem pensadas no contexto do cortejo fnebre da Plnio Ramos. Segundo Diana, as performances das madres operam com a transmisso de memria social no tocante ao desaparecimento dos seus filhos em luta contra a ditadura. Memria re-atualizada no investimento em certas composies de signagens matricas e expressivas que remetem a populao lembrana dos tempos de conflito, que trazem tona a presena quase corprea dessas ausncias, possibilitando a re- apresentao do fato e a transformao dos cdigos de informao scio/culturais a respeito desse passado traumtico; manifestando em total concomitncia afetos de luto, lamento, duelo, denncia, protesto e resistncia; permitindo atravs da ritualizao desses processos um relativo afastamento esttico que corrobora para canalizar e manejar as dores das perdas sofridas; e promovendo a elaborao coletiva da experincia abrindo-a para novos sentidos, como exemplo os sentidos da maternidade e do feminino: essas mulheres utilizam-se estrategicamente de uma contradio existente no papel outorgado pelo poder patriarcal/estatal sobre seus corpos, que o de depositar a razo de suas existncias a dedicar-se aos filhos; mediante ao seus desaparecimentos saem s ruas para procur-los, cumprindo com o papel esperado, revertendo, desse modo, sua passividade frgil em potente corpo poltico, ativando um feminismo explcito e impecvel, legitimado pelo crescente reconhecimento mundial. A performance coletiva produzida pela morte da Plnio Ramos bem diferente da produzida pelas Mes da Praa de Maio, tanto nos critrios histricos quanto nas modalidades de expresso, no entanto, possvel fazer algumas aproximaes quando evocamos as imagens produzidas no cortejo em frente a CDHU. Essa performance coletiva de alto teor sgnico e expressivo recorre aos sinais poderosos da morte para explicitar a perda sofrida. Ao levarem um caixo com o nome da ocupao assassinada, em letras vermelho/sangue, eles modificaram a obviedade das faixas reivindicatrias introduzindo a morte como elemento de comunicao. Esse elemento trazido em cotidianidade ordinria de rua, por uma coletividade vestida de lona preta, remete a transitoriedade e instabilidade a qual esto submetidos, lhes aproximando demasiadamente a situao dos inumerveis outros que esto inseridos foradamente nos contextos de miserabilidade (moradores de rua). Com suas bocas lacradas expressam uma radical mudez imposta, uma indiferena vivida por quem no tem suas demandas escutadas. As crianas de mos dadas e os carrinhos dos bebs sendo empurrados pelas mes pactuam publicamente uma cadeia de resistncia gentica, tangenciando esse papel de procriadora/mulher que sofre, para alm de si mesma, os abatimentos da fome e da doena que recai mais pesadamente em sujeitos desabrigados: - o futuro do pais imerso nas concretudes caladificadas da cidade grande -, e ao mesmo tempo demonstram com esse ato, a fora de revide desde o bero, que se inscreve nas instncias subjetivas tanto dos que assistem a passeata quanto das prprias crianas carregadas. Enquanto isso, a perua mascarada e sorridente bate tampas de panela revelando com sarcasmo a implausibilidade da situao. O ritual coletivo mostra-nos a potncia condensada dessa coletividade que se atreve a carnavalizar a prpria condio demonstrando, publicamente, seu vigor compartilhado, e de fato agregando no s os desavisados transeuntes como tambm colaboradores das mais variadas frentes, inclusive os prprios coletivos de arte e/ou interveno, que implicados no processo tem funo de amplific-lo na plis virtual, atravs das mdias, dos sites, dos jornais, dos blogs, das revistas, das discusses em seminrios, das
16 http://hemi.nyu.edu/archive/text/hijos2.html 12 teses, e principalmente da instrumentalizao dos sem tetos em produo de tecnologias de comunicao para que possam gerar suas prprias demandas/aes-virtuais 17 , constituindo o alargamento dos atos nos territrios imateriais e subjetivos, onde subjazem os valores humanos e as opinies habituais. Cabe dizer aqui que Negri e Hardt so afeitos fora propulsora do hbito, onde segundo eles, reside nossa prtica social. Os hbitos no constituem realmente obstculos criao, sendo, pelo contrrio, a base comum sobre a qual tem lugar toda a criao. Os hbitos formam uma natureza que ao mesmo tempo produzida e produtiva, criada e criativa uma ontologia da prtica social em comum 18 . Desse modo, podemos pensar que uma das funes dessas mudanas estticas promovidas nas formas de manifestao dos movimentos de moradia multiplicar os sentidos da luta social, impingindo sobre seus contornos uma rede nova de constelaes conectivas e conectveis, onde se acoplam outras percepes - a luta pela moradia torna-se vontade de cidade, a festa pela cidade, a retomada dos espaos pblicos e dos tempos festivos de compartilhamento da coletividade e, talvez, possamos ento falar em democracia para alm dos votos e dos consensos. Vale lembrar que o MST utiliza como um dos seus slogans a seguinte frase: A Luta pela Terra uma Luta de Todos! Esse tipo de mote discursivo amplia o movimento social para outras instncias antropolgicas e ativa um desejo sucumbido pela prxis urbana. Apesar de tudo as estruturas governamentais neoliberais capitalsticas imperiais ainda no estavam aptas a corresponderem a essas reivindicaes dilatadas da vida pblica e durante os trs meses de acampamento na calada da rua Plnio Ramos, em frente ao edifcio cimentado, os sobreviventes do insultante despejo resistiram s investidas dos emissrios da prefeitura que lhes ofereciam vagas em albergues ou uma quantia irrisria de dinheiro para voltarem s suas cidades. Depois de trs meses de negociaes ofereceram para as famlias, mas no aos solteiros ou casais sem filhos, uma quantia de 350 reais por ms, durante um ano (projeto bolsa aluguel), que deveria ser utilizada para o pagamento de aluguel. Assim conseguiram dispersar o movimento, que no tendo meios de alugar um prdio coletivamente, espalhou seus membros pelas zonas do subrbio de So Paulo 19 . Enquanto isso tudo acontecia, continuavam as FestaInterferncia na Ocupao Prestes Maia e em outras ocupaes. Festa em ocupao paulista uma redundncia semitica, pois tambm o nome dado ao ato de ocupar espaos ociosos 20 . O que posso depreender disso que essa nomeao redundante coloca a vertiginosa ao de ocupao, como momento de compartilhamento e celebrao. As festas se davam como momentos de raros encontros, onde as pessoas de dentro da ocupao e de fora podiam interagir em clima brio e fantasioso, colocando em evidncia seus gestos de dana, seus estilos criados para a situao, suas opes bbadas e sensuais. As msicas intercalavam forrs e drum-bass, hip-hops e houses de modo que os gostos diversificados se viam contemplados. Pelas paredes do galpo do sub-solo Prestes Maia circulavam palavras de ordem que eram logo desmontadas in mixers de imagens que
17 Me refiro ao movimento do software livre que se conectou ao movimento sem teto com propostas de meta- reciclagem. 18 Cfe. Michael Hardt e Antnio Negri. Multido. Guerra e democracia na era do Imprio. Ed. Record. Rio de Janeiro e So Paulo. 2005. A produo do comum. P. 258. 19 O MMRC (Movimento Moradia Regio Central) continua produzindo reunies com novos grupos e algumas pessoas da ocupao Plnio Ramos, apoiados pela FLM (Frente de Luta por Moradia). 20 Ver filme Dia de Festa de Toni Venturi e Pablo Georgieff sobre quatro lderes do Movimento dos Sem Teto do Centro. MSTC. 13 insinuavam outras facetas de resistncias contemporneas, incorporadas pelos convivas em conivncia.... festaInterferncias: We want to attune and regulate this tremendous variety of noises harmonically and rhythmically. To attune noises does not mean to detract from all their irregular movements and vibrations in time and intensity, but rather to give gradation and tone to the most strongly predominant of these vibrations. Noise in fact can be differentiated from sound only in so far as the vibrations which produce it are confused and irregular, both in time and intensity. Every noise has a tone, and sometimes also a harmony that predominates over the body of its irregular vibrations. Parte do manifesto futurista de Luigi Russolo: The art of noises. http://www.unknown.nu/futurism/noises fcil reconhecer a natureza performativa e carnavalesca dos diferentes movimentos de protesto que tm surgido em torno das questes da globalizao. Mesmo quando evidenciam uma feroz combatividade, as manifestaes so altamente teatrais, com bonecos gigantes, figurinos, danas, canes humorsticas, cnticos e assim por diante. Em outras palavras, os protestos tambm so festivais de rua nos quais a indignao dos manifestantes coexiste com sua alegria carnavalesca. Hardt e Negri. Multido. Ed. Record.RJ e SP. 2005. P. 274 Flyer virtual da festa Prestes Maia.Vdeo-projeo Rodrigo Araujo BijaRi. Imagem de Mariana Cavalcante Reminiscncias sobre democracia : As narrativas lgicas e objetivantes, costumeiras nos circuitos dos movimentos sociais organizados, definitivamente no contemplam a multiplicidade de desejos que se do nas redes existenciais, imaginrias e corpreas que os sustentam. As singularidades no se expressam por narrativas institucionais. Os acordos se sustentam por cumplicidades desejantes que geralmente so submetidas a padres institucionais formatados. O consenso a violncia da ordem firmada por todos, que no contempla ningum; assim como a msica harmnica a imposio do ideal assptico e higienista a todas os outras msicas latentes sem inscrio. Tudo que existe, soa e tm tonalidades, algumas inapreensveis. Os ouvidos viciados tendem a ouvir o harmnico, msicos e polticos tendem a ouvir o bvio-objetivo. No existe democracia na harmonia narrativa, nem mesmo na polissemia narrativa. A polissemia s pode vir a ser democrtica quando o emissor polissmico dispersa seu ESTADO HARMNICO interno . A experincia de estar vivo um intento. O Estado desprovido de escuta para a inteno de estar vivo, por isso o Estado um cadver. Mas o putrefato dana, como dizia Hijikata. Eis ento o morto-vivo pr-existindo todo consenso. No consenso h o Estado. A conivncia um instante e mora atrs do pensamento. O consenso institucional no entende de magia. A magia sobrevive ao estado e se manifesta irregularmente.
86 Noise e democracia: Nem harmonia nem consenso. Noise barulho que sofre modulaes. Surge derivada da era industrial e de suas ritmias metlicas. A experimentao dos novos sons- machines perverteu a harmonia musical e subsistiu a ela. Atribui-se ao futurista Luigi Russolo o papel de pioneiro da filosofia industrial da msica moderna, por conta de seu manifesto Art of noises e das suas invenes de instrumentos barulhentos. Depois o noise se espraia e por vezes nega a si mesmo. O noise reivindica o som antes da harmonia musical. afeito a rudos imersivos parteiros de ambientes mgicos. Resoluto em ativar os corpos antes que os ouvidos. O som antecede a escuta. A iconoclastia-noise constante promove alterao dos sentidos e se amplia no espao perceptivo que j no mais se liga ao tempo. Muda a sensao do harmnico tornando-o dilatado. Essa dilatao no imprime s o vazio, mas mltiplos sentidos, porque no define o sentido. Tudo soa e o noise cria a partir do todo de cada som. democrtico quando habita a pluralidade dos sons intensificando peculiares e quando no opera com axiomticas. Atualiza o corpo/alma na experincia. No abre mo das variveis modulares tmbricas nem das composies temticas, mas as multiplica por princpio.
From: fabi borges / To: [email protected] / Sent: friday, july 28, 2006 5:06 AM / Subject: oi felipe
oi f. vc estaria disposto a entrar em um jogo ultra-rpido comigo? seria basicamente isso: como pensar o noise e a democracia (democracia radicalizada) algo do tipo: essa iconoclastia sonora se tornando um outro tipo de consenso que fica atrs do pensamento,. na real s gostaria de pensar esse devir metal no socius.... o jogo seria simples... vc mandaria, sem muita elaborao, o que te vem cabea e eu te mando o que vm minha,.....
From: f? / To: fabi borges / Sent: Saturday, july 29, 2006 2:29 PM / Subject: rocar e rolar, metalar e siliciar
... quando dylan constata que os roqueiros esto rolando, em direo ao abismo metlico entre os transistores e as cordas das guitarras... os brancos encontram enfim o blues dos negros, no limiar criadores- mendigos, as musas cagam minrios em ns... ... da nvoa roxa lisrgica antevista pelo terceiro ouvido de hendrix ao roxo profundo das cabeas de mquinas... Nobody gonna beat my car / It's gonna break the speed of sound / Oooh it's a killing machine / It's got everything ... ciberntica, rede de volantes e volante de redes... o carro a catedral do barroquismo hpermoderno... pulso de morte, a-lumnio, fiat alumni dei... ... dest'ruir d'recepcionados... sempre haver um nicho de consumidores vidos por turbilhes... do mote fordista any color you like as long as it's black que os sabbaths encontram seu caminho no seio da indstria da rebeldia... ... a cano a praa pblica da msica... se podemos falar de democracia nos mbitos do som, esta seria muito prxima do ideal tonal, o de uma arbitrariedade consentida de relaes intervalares... h caminhos que todos fazem, h os alm... ... do metal ao doom h um duplo movimento de criao de uma micropoltica esttica prpria, ao mesmo tempo uma guturalizao animalesca das macroestruturas industriais da forma-banda e uma complexificao das microestruturas digitais que almeja uma comedida mscara de desregramento... a corrupo se miniaturiza e toma entornos de uma opo esttica... 0 ou 1 o ideal maqunico ainda expresso em nossas demasiado inumanas leis para uma deciso democrtica ...ps os computa-dores, podemos rir-mo-nos ao ver no mundo um televisor fora do ar de atos... 00101010101001000100100100100001010001001001001001000100101010010010010010101001101001 1. ... noise na fita! o rudo por um qulculo aproxima-se da compreenso das relaes da rede muito mais rapidamente que o devaneio meldico, e ah! como ns amamos velocidade... ... o moderno quer estar em todas as modas ao mesmo tempo, para as dest'ruir... 87
FESTA NOISE LONA PRETA:
Lona preta o material mais utilizado nas ocupaes feitas por movimentos de moradia e terra no Brasil. Lona preta parede de sem teto cabana de sem terra a tnue pele que separa mundo e corpo. Levar esse signo para diferentes contextos ampliar seus sentidos e potencializ- lo. O som do vento batendo em milhares de lonas pretas de uma ocupao qualquer ensurdecedor e ao mesmo tempo ... som e movimento. Lona preta no festival internacional eletrnico submidiologia... Fabi Borges
Lona-preta-pele-preta-feminismo-hip-hop-noize-eletrnica-vjs-dj-mixer-teles-microfones-caixas-de-sons-artes- tecnolgicas-e-polissemia subtecnologia-sub-arte-Lona-preta-esttica-de-pele-preta-paisagem-sonora-banguna-mistura-produo-milhares- de-pblico-no-sabiam pessoas-plico-alguns-sem-tetos-comunas-urbanas-luz-sombra-escurido-ocupao-de-espaos-eletrnicos-sem- teto-lona-preta-comum mdias-ativistas-translocaes-matrica-performance-poltica-subjetivao-sgnica-cpula-semitica-instalao- festiva-insujeio-da-lona-preta-gambiarras-nos-corpos-fios-multi-ocupao-polivasivo-tcnicas-de-precariedades- zonas-imersivas-emersivas-propulsoras-de-vidas. Nessas 24 horas de festa com apresentao de trabalhos de arte e tecnologia do Brasil e do mundo fizemos 21 uma performance multimdia chamada Lona Preta. Consistia em entrar em meio a um pblico de quase 5 mil pessoas carregando 40 metros de lona preta e ergu-la a 30 metros de altura pendurando-a no teto da casa das caldeiras; quando esticada dava pra ler o sobrescrito nela: LONA PRETA. Enquanto Magabo e B-Nego misturavam seus sons, os Bijari mixavam imagens de despejos, moradores de rua, atos de ocupaes de terras e prdios em cinco teles gigantes. Fizemos a performance junto com alguns integrantes do movimento sem teto Comunas Urbanas e do Movimento
21 Catadores de Histrias/ Bijari/ UAFRO/ Comunas Urbanas,Magab e B-Nego.
Imagens do espetculo-Interferncia realizado no FILE (Festival Internacional de Linguagens Eletrnicas) Novembro-2005 . fotos: Rafael Adaime Reminiscncias sobre festas onto-pblicas: Aprisionaram as festas no sbado noite. Encarceraram o carnaval nos sambdromos de desfile. Burocratizaram a alegria. Delimitaram a idade da diverso. Festa para jovem secundarista como sexo para universitrio. Roubaram o gesto festivo. Quero-o de volta! J outro, mas vivo! Precisamos de festas onto-pblicas cuja funo de celebrao e compartilhamento. Comensalidades tribais. Banquete partilhado em frutos moleculares. Seu papel vificador e mstico. Estremecimento das carnes e dos rgos. Orgiasmo de gozo e troca. A festa que contempla tambm o solitrio afundado no incomensurvel.Tecnologias do corpo e das cincias. Momentos de carnaval fora dos dias marcados. Carnaval j! Quando quizermos. Ocupar espaos burocratizados com desvios perceptivos. No pode haver volta. Tem de ser potente para algo modificar. O mundo no pode aprisionar as potncias do corpo. As festas Onto- pblicas so da multido do ser. Atualizam o pensamento. Funcionam como excelente meio de comunicao enquanto descobrem outros. So abertas aos vivos e aos mortos. No se paga para entrar. Acontecem a qualquer hora do dia e com qualquer nmero de pessoas. No h coordenao, s produo. Todos so produtores das festas onto-pblicas. 88 Negro Bantu Uafro que ao subirem com a lona preta gritavam sua prpria pele. Essa mistura de eletrnica com ocupao se mostrou potente na medida em que foi se desenrolando. Quarenta minutos de ataque miditico totalmente policrnico e bagunado. Robson Dio conseguiu um microfone e interferia no som dos cantores fazendo grunhidos ininteligveis. Mariah Leike subia nas estruturas de ferro para colocar as lonas sem a segurana devida, porque sempre subiu em estruturas de prdios abandonados. Eu e Juny Kraiczyk vestidas de fios-gambiarras pelo corpo e lanternas nas cabeas iluminvamos a cena escura feito duas esttuas que sustentavam o papel das gambiarras, dos prdios e da justia. Uafro invadindo o espao sonoro, Bijari jogando bombas em prdios atravs de imagens. Rafael Adaime filmando tudo que acontecia entre pblico e performance e jogando nos teles sobrepondo-nos todos a prdios velhos sendo arrombados. As frases do vdeo mostravam as palavras ocupar resistir construir, que so as palavras utilizadas como gritos de resistncia pelos movimentos de luta por terra e moradia. A confuso generalizada tomando conta das visibilidades. Os corpos sem tetos, artsticos e os corpos pblicos atravessados por sons de lona preta elevada ensima potncia. Ah, que orgia polifnica-smantica-valente. Performance como ocupao. Ocupao performtica. Era preciso entender o metal corpreo que a msica eletrnica acionava. Devir metal como diria Deleuze. Um espetculo que gambiarra realidades to distintas atualizadas nos gestos/sons/iluminados. ESCRACHO:
Escracho feito na casa do Matarazzo Sub prefeito da S/ centro vivo 10/2005
Informaes tiradas dos sites: http://www.agrupacionhijos.tk/ foto: http://integracaosemposse.zip.net
Escracho quer dizer evidenciar, trazer luz, revelar. Ao que tudo indica os escraches de carter poltico e reivindicatrio tem uma histria recente. Inicia- se por volta de 1996 com aes feitas pelos filhos dos desaparecidos e torturados polticos da ditadura Argentina, que recentemente tinham constitudo uma espcie de associao: H.I.J.O.S - Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio. Os H.I.J.O.S criaram mtodos de colocar em evidncia pblica pessoas que participaram diretamente do genocdio promovido na Argentina nos anos 60/70 e que no sofreram nenhum tipo de punio, como Galtieri e Peyn que tiveram seus rostos mostrados em forma de grandes bonecos em passeatas pblicas. A partir dessas primeiras aes, uma srie de outras se desenvolveram com cada vez mais aliados em locais de relevncia poltica: nos servios da marinha, polcia e governo, casas de torturadores, congresso nacional e tambm manifestaes pblicas como as promovidas pelas mes da praa de maio, que j se faziam fortes no cenrio nacional com suas performances pblicas. Muitos grupos e coletivos de arte argentinos como o Grupo de Arte Callejero e Etctera se conectaram s aes dos H.I.J.O.S, introduzindo novas estticas no movimento e ampliando suas possibilidades, de modo que, hoje em dia, escraches se tornaram uma mania popular revelando-se como uma alternativa estratgica de reivindicao. Em So Paulo os escrachos entraram em cena de uma forma diferente. Mais irnicos e performticos, introduziram a reivindicao afirmando um certo desejo de festa. Um exemplo: o escracho em frente a casa do sub-prefeito da regio central, Andr Matarazzo, proposto pelo frum centro vivo. Houve uma srie de reunies para decidir de que modo se daria a ao e optou-se por introduzir uma veia cmica, como se as pessoas tivessem decidido migrar das ocupaes precrias do centro, de onde esto sendo expulsas, para a zona nobre do Morumbi, onde o sub-prefeito higienista habitava. (ver fotos ao lado). Chegando no Morumbi espalharam um piscino (lona azul), fizeram piquenique, penduraram cartazes com dizeres picantes mas engraados, como: _ Em Breve aqui: favela Matarazzo, Felicidade morar no Morumbi, Piscino do Andrezo.
O escracho serviu principalmente para protestar contra a poltica higienista do centro de So Paulo que nesse momento estava radicalmente violenta, despejando todas ocupaes, prendendo ambulantes, pegando moradores de rua fora e os levando em cambures para albergues. Tanto o manifesto quanto o escracho foram criados coletivamente. A reivindicao partira dos moradores de rua, catadores de papel, sem tetos, ambulantes, albergados, coletivos de arte, estudantes universitrios, movimento pelo passe livre e demais grupos que compunham o Frum Centro Vivo; todos contra o Apartheid Social. Quem Espera Sempre Cansa, Viemos Te Escrachar!!!! Essa interveno resultou na abertura de um processo judicial por danos morais, da parte de Andra Matarazzo contra o Frum Centro Vivo. Para a imprensa, Andra disse que o escracho no tinha legitimidade, pois no representava o povo! 89 PERFORMANCES
Foto: Isaumir ... Gira. Gira, que as vezes perua da mscara e outras mulher- rato, encarou a exclamao do sub-prefeito como um desafio: _ Quem representa o povo? Essa performance durou meses. Gira Cavalcante levava a faixa para todos lugares: passeatas, cortejos, ocupaes, despejos, encontros, festas e dessa forma espalhava a pergunta pela cidade. A ao denota intensa conexo com a vida pblica, pois experincia viva que alude em sua negritude mascarada uma constelao de problemticas humanas. Desde a inveno da democracia essa pergunta se sustenta. Na Grcia os homens se organizavam para representarem a si mesmos em nome do povo e essa lgica se perpetua idiossincraticamente at hoje, quase nos mesmos termos. A performer demonstra nessa ao o quanto est envolvida com as questes pblicas do seu tempo, do contrrio, no associaria sua pergunta a um esteretipo terrorista, que se instalou no imaginrio da civilizao na virada do sculo com a queda das torres gmeas: signo imperial. Quem faz a pergunta? Atrs da mscara subjaz o povo? O estado representa o povo? A coordenao do movimento social representa seu povo? Essa pergunta pontual mas serve para todos os viventes e apesar de sua ancestralidade radicalmente contempornea. Quem representa o povo? (Imagem esquerda)
Ao Matilha Na prefeitura e por todo centro contra a retirada dos moradores de rua-10/2005 A performance coletiva do projeto Matilha foi feita por alguns coletivos de arte no centro de So Paulo e chamava-se As Higienistas. Consistiu em um chamamento feito pela companhia Cachorras na Internet, de um dia para o outro. Era preciso ir de branco, com produtos de limpeza e mscaras. A idia era intensificar a imagem das prticas polticas de eugenia, promovidas pelo prefeito da cidade, evidenciando radicalmente o papel de assepsia. Gritvamos para os transeuntes que eles no poderiam pisar na calada em frente a prefeitura porque eram sujos. Povo porco! Imundos! Saiam do centro de so Paulo. Alguns se irritavam, outros riam, alguns diziam: isso mesmo! Foi divertido, mas diante da fria de uma mulher, paramos para explicar a farsa.
Projeto Matilha: http://www.blogmatilha.zip.net Esse tipo de performance de intensificao da representao se conclui nos efeitos mdicos produzidos depois do ato para que se eleve em relevncia. No entanto a experincia por si s j impressionante. Simbolizvamos naquele dia um grupo de nazistas que odiava pobreza, sujeira e feira; sustentar esse papel foi doloroso porque as pessoas que assistiram a performance correspondiam em grande parte a esses atributos e paralizavam diante da cena plida. Teramos produzido algum distrbio sinptico?
90 CORTEJO... As aes continuavam... Os cortejos choravam a morte das coisas que haviam. O clima estava tenso. Todas as ocupaes dos movimentos de moradia da regio central estavam sendo reintegradas aos proprietrios. Os ambulantes e moradores de rua estavam sendo literalmente varridos dos espaos pblicos, as praas estavam sendo cercadas. Instalou-se uma sensao de dor impotente nos coletivos de arte prximos a essas factuidades. Os projetos de revitalizao assptica do centro estavam a todo vapor e nossa vontade de interromper esse movimento encontrava resistncia demasiadamente superior a nossa fora. Nossas tentativas mdicas e simblicas no davam conta das negociatas empresariais. No havia negociao. Um trator histrico nos tomava de assalto e sequer intimidava-se com nossa presena. No tnhamos direito cidade nem vida pblica. As ruas nos eram negadas e nossos sem tetos intimamente ultrajados em qualquer tentativa de dignidade. As placas imobilirias berrando D.I.G.N.I.D.A.D.E, cor vermelho e preto, faziam frente aos despejos sucessivos e acabavam nos caminhes de entulho. Uma nefasta insuficincia. ramos menos importantes do que pretendamos. Para muitos a guerra era finda e consolar-se no isolamento do quarto era a nica sada. Para outros no havia sada. Enquanto isso a cidade explodia seu vitalismo artificial com projetos revitalizadores como o Virada Cultural 22
22 Projeto do Governo Serra iniciado em novembro de 2005 que consiste em 24 horas de arte para todas as pessoas em todas regies da cidade. A idia boa, mas a limpeza tnica e classista promovida nos dias anteriores ao grande espetculo avassaladora. No site oficial se pode encontrar essa definio: (...) uma grande maratona cultural de 24 horas em todas as regies da Cidade. A Virada Cultural de 2005 introduziu um conceito novo em eventos pblicos: cultura para todos, em todos os lugares. Por este motivo obteve adeso da populao e da mdia. O principal objetivo da iniciativa, que j faz parte do calendrio cultural de So Paulo, levar as pessoas a se apropriarem do espao pblico, assumindo e celebrando a cidade por meio da cultura. http://www.viradacultural.com.br.
ortejo ps-"virada cultural" feito pelo EIA e TrancaRua e moradores da Prestes Maia - 11/2005 otos: Isaumir / http://integracaosemposse.zip.net NESTE DOMINGO, DIA 20/11 CONVIDAMOS PARA A AO "CORTEJO" LAMENTAREMOS A MORTE DO CENTRO DE SO PAULO. EMNOME DA "REVITALIZAO" DO CENTRO, A PREFEITURA DE SO PAULO TIRA A VIDA DA CIDADE E DE MILHARES DE PESSOAS. SEM-TETOS, MORADORES DE RUA, CATADORES, CARROCEIROS, CAMELS ESTO SENDO PRIVADOS DE SEU DIREITO CIDADE. AO SIMBLICA APS O EVENTO "VIRADA CULTURAL" EM CORTEJO, CAMINHAREM OS DA OCUPAO PRESTES MAIA AT A PREFEITURA VENHA DE PRETO, TRAGA VELAS PARTICIPE DESTA PERFORMANCE COLETIVA DOMINGO, DIA 20/11, S 17H AV. PRESTES MAIA, 911
91 Descaminhos... Entre o final de 2005 e o incio de 2006 vrias outras coisas aconteceram na vida e arte pblicas. Entre elas ressalto o evento EIA Experincia Imersiva Ambiental organizado por um coletivo de artistas paulistas de mesmo nome, que em novembro de 2005 realizavam seu segundo encontro de Arte Pblica em So Paulo. As aes do EIA so belas e repletas de criatividade, de fato se entregam as imerses na cidade e tentam criar dispositivos estticos, que para alm de intervir no cenrio, deflagrem outras possibilidades... Como a interveno artstica de Floriana Breyer, Caminhos e Descaminhos. A obra atravessa o asfalto criando um caminho de pasto que ao mesmo tempo interferncia e desvio. O pasto como descaminho me leva de volta ao campo, pra um outro campo que no o da fazenda. Para um campo de potncia natural, uma espcie de revide daninho. Esse trabalho me soa como uma potica das possibilidades da cidade, esquecida de sua alma verde atravancada de fumaa e cinzas. O verde na faixa de pedestres atravessando o trfego. da experincia com a vida que o pasto me fala. No s do reflorestamento da cidade mas do reflorestamento da existncia desligada de suas prprias potncias. Fuga e impedimento.
As festas culturais e saraus que comearam a acontecer na ocupao Chico Mendes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que ocupam terrenos ociosos e endividados em torno da cidade. Festas criadas junto a vrios grupos apoiadores de diferentes partes da grande So Paulo.
Ao coletiva feita na Avenida Paulista contra a rampa anti- mendigo 23 . A ao se desenrolou durante todo o dia e demarcou o espao com trabalhos artsticos de vrios grupos. O local sendo vivenciado e a pergunta insistindo pela avenida. Onde est o direito a CIDADE?
23 No final do ano 2005 a prefeitura retirou todos de moradores de rua que viviam no tnel que cruza a avenida Paulista e a Dr. Arnaldo, enchendo a superfcie da rampa de chamuscas de cimento que impediam o acesso a mesma. Como resistncia a essa poltica de excluso e limpeza, coletivos de arte, grupos dos movimentos de ocupao e grupos de moradores de rua fizeram uma interveno na rampa, colando cartazes, fazendo churrasco, interrompendo o trfego, intervindo nas obras de arte do espao. Alguns grupos annimos tambm estavam l. Essa ao aconteceu dia 17 de dezembro de 2005. Por Floriana Breyer, EIA.11/2005 Caminhos e Descaminhos.
Festa no acampamento do MTST Chico Mendes 11/2005
Comit Natal na Rampa. Fotos: http://integracaosemposse.zip.net 92
Em fevereiro de 2006 a ocupao Prestes Maia novamente entra em estado de Stio resistindo ao mandato de Reintegrao de Posse, expelido pelo juiz Carlos Eduardo Fontacine, da 25 Vara, em favor do proprietrio do imvel: Jorge Hamuche. Os coletivos de arte, mdia, colaboradores e outros novamente se juntaram ao movimento em resistncia amplificada. Os grupos voltaram dispostos a construir sua arte intempestiva e alardear para a cidade/mundo a situao inslita. Algumas aes pontuais foram feitas durante os dias de ansiosa espera pela execuo da ordem de despejo: passeata at o Frum Joo Mendes, onde fica a 25 vara, e interferncias na prpria ocupao. Os moradores estavam em polvorosa dividindo-se entre a resistncia ao despejo e a quantia de cinco mil reais oferecida para 250 famlias, a fim de que retornassem para suas cidades. A resistncia venceu e as famlias abriram mo do dinheiro oferecido para exigirem seus direitos sempre protelados. Na manh de tera-feira, dia 7 de fevereiro, os ocupantes desceram do prdio e atravancaram a avenida Prestes Maia, paralisando o trfego do centro de So Paulo. Junto com eles os coletivos de arte introduziram suas linguagens plsticas e coloriram o asfalto cinza. A polcia foi acionada e com seus jogos tticos cercaram a rua pelos dois lados. Polcia ameaando 07/02/2006. Fotos Antnio Brasiliano Imagens da resistncia feita em frente a Ocupao 07/02/2006. Fotos: Antnio Brasiliano.
No houve ataque da polcia ttica. Houve apelo social e mdia plstica. As cmeras de vdeo registravam tudo e os jornais se lambuzaram na resistncia/acontecimento. Momento extremo e criao de arte. Frases-cartazes e Humanos Direitos. O gesto espichado em multido resoluta. A mora o consenso-noise. 93 No estava nada resolvido. O cotidiano estava ameaado pelo despejo. O ritornelo escandaloso sempre igual e no entanto diferente. Quase nunca se tem a data certa. Recebe-se a notcia que ser em algum dia do ms especfico e o desespero ocupa as almas. Estratgias comeam a serem pensadas: lugares de fuga e sada. O clima envolvente de desamparo mistura-se a certezas de conquistas. Os jovens se atiam em conversas de guerrilha e as crianas brincam de despejo pelos corredores: polcia vira bandido, sem teto vira heri. Inverses imaginrias. O inimigo veste cinza e cumpre mandatos judiciais. Os planos invadem as cucas que se pem a pensar no sentido de tudo. Uns vo embora, no suportariam; outros catam cocos furados para atirar de cima do prdio. Tenso in process. Dia 12 de fevereiro os coletivos de arte lanam mais uma ao cultural na Ocupao Prestes Maia. As festas onto-pblicas estavam longe de acabar. Celebrao em ritmo de urgncia. A maior ocupao vertical do Brasil no estava sozinha.
Biblioteca em evidncia...
Biblioteca Prestes Maia estava ficando famosa e volta e meia aparecia na mdia trazendo inmeros colaboradores de outras reas para a ocupao. 02/2006 94
Trabalhos produzidos na Ao cultural in 12/02/2006
Alguns trabalhos produzidos pelos coletivos de arte durante a ao cultural. Catadores de Histrias e Pharmakn, Gira, Rdio Xiado, Eia , Cachorras, Matilha, Nova pasta, Esqueleto Coletivo. Fotos: Anderson Barbosa, Antonio Brasiliano, Bijar, Cia.Cachorra, Floriana Breyer, Gira e Rodrigo Barbosa Imagens do: http://integracaosemposse.zip.net e http://eia05.zip.net 95 Brbara SZANIECKI v as cpulas corpreas e culturais entre artistas e sem tetos produzidas em So Paulo, como evento monstruoso. Fala que essa juno teve poderoso efeito sobre o imaginrio da polis real e virtual, que hoje acompanha as questes da ocupao com interesse confuso mas no mais indiferente. A ocupao Prestes Maia rompe os nexos hierrquicos e se insurge contra a insero submissa imposta pelo capital e pelo Estado. (...) sua ao assim como sua cidadania so, sua imagem: monstruosas, excessivas: elas excedem concretamente a insero no mercado e a representao no Estado. (...) A ocupao mobilizou coletivos de artistas paulistanos que multiplicaram intervenes juntos aos moradores. Essas intervenes foram importantes na medida em que apresentaram aos cidados paulistanos outro ponto de vista que no aquele da grande mdia e dos interesses particulares que ela defende 24 . Ela no acha gratuita a identificao da ocupao com Zumbi dos Palmares, que o maior cone da resistncia negra ao escravismo no Brasil e luta pela liberdade. Diz que a grandeza desse encontro reside na vigorosa potncia das manifestaes que protestam contra as polticas de higienizao e reivindicam seus direitos constitucionais de forma proliferante e carnavalesca. Ela chama o Prestes Maia de Monstro ativando-nos a vontade de vesti-lo inteiro de VAMPIRO, por nos ter imortalizado em suas veias, revificando nossos ordinrios. A pulsao de vida dessa ocupao supera o prprio movimento organizado e lana sentidos novos na cultura brasileira, inclusive naquilo que se chama arte contempornea, mesmo que ainda no caiba em suas formataes-Bienais. O grande Quilombo, o Deus da Guerra, o Fantasma Imortal ou o Morto Vivo como era traduzido o Zumbi dos Palmares, sobrevive ainda em lugares vrios e, s vezes, se revela em sua radicalidade monstruosa arrastando para suas situaes de risco, os insones da cidade.
24 Cfe artigo de SZANIECKI, Barbara, "Um monstro em So Paulo" in: A POLTICA DO AMOR: Imprio, Multido e Comum, COCCO, Giuseppe (organizador). Rio de Janeiro: Editora Record, no prelo.
Gira por todo lado,. Imagens extradas: http://integracaosemposse.zip.net
Faixa de 40 metros colocada na ocupao Prestes Maia pela Frente Trs de Fevereiro em fevereiro de 2006. 96 E por falar em Artes Contemporneas e Bienais, mais uma vez a Ocupao Prestes Maia palco de intervenes dos coletivos de arte, dessa vez como espao de exposio dos seus trabalhos por conta do convite feito a treze coletivos para participar da Bienal de Havana, Cuba:
TERRITRIO SO PAULO
SALA ESPECIAL DA BIENAL DE ARTES DE HAVANA ACONTECE NA OCUPAO PRESTES MAIA
Uma experincia em So Paulo/ uma sala em Havana: o registro de um acontecimento.
Territrio So Paulo se apresenta como um evento que acontece entre So Paulo e Havana, um conceito ampliado do espao expositivo da Bienal.
Convidados para se apresentar em sala especial da IX Bienal de Havana, 13 coletivos de So Paulo criaram o Territrio So Paulo um projeto em resposta ao desafio de transpor as aes que normalmente realizam para dentro do espao expositivo da Bienal. Tentando evitar que a colocao de aes tipicamente de rua dentro do espao da bienal diminusse a urgncia e especificidade das aes e intervenes, o projeto Territrio So Paulo quis fixar firmemente a Sala Especial nesta cidade, de modo que ela estivesse plenamente presente em Havana. Assim, o universo de aes desenvolvidas pelos artistas organizados em coletivos que incluem uma diversidade de intervenes urbanas, aes diretas, manifestaes e apropriaes poticas do espao da rua poder florescer em pleno vigor.
A ocupao Prestes Maia a maior ocupao vertical da Amrica Latina , ao nmero 911 da avenida de mesmo nome no centro de So Paulo, foi escolhida como espao expositivo por sua potncia poltica e simblica. Ocupado pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) e na iminncia de reintegrao de posse, o Prestes Maia tem sido palco de uma importante parceria entre artistas e movimento social nos ltimos trs anos.
A Bienal em Havana funcionar como uma espcie de lente de aumento sobre este importante movimento social e seu dilogo com os coletivos. Na sala especial em Havana, um aparelho de fax em cima de uma mesa receber, durante todo o perodo da mostra de arte, material dos 13 coletivos brasileiros. Assim, o Territrio So Paulo acontece tambm como situao viva em Havana, dando continuidade participao brasileira nesta e em todas as bienais da capital cubana, para onde o Brasil tem levado a maior delegao nacional da mostra.
Territrio So Paulo como que espelha as prprias condies de sua realizao: ao mesmo tempo em que explicita a impossibilidade de transpor para Bienal de Havana aes especficas cidade de So Paulo, a Sala Especial na Ocupao Prestes Maia responde falta de recursos adequados oferecidos tanto pelo governo brasileiro quanto pela iniciativa privada.
OS 13 coletivos criadores da sala especial Territrio So Paulo estenderam aos outros artistas convidados pela IX Bienal de Havana o convite para participarem da exposio no Prestes Maia.
Ocupao Prestes Maia/ Av. Prestes Maia, 911 / Dia 27 de maro, 19 horas. Aberturas simultneas da IX Bienal de Havana e Territrio So Paulo GRUPOS PARTICIPANTES DO TERRITRIO SP: A revoluo no ser televisionada, Bijari, Catadores de Histrias, Cia. Cachorra, Cobaia, Contra-fil, Coringa, Experincia Imersiva Ambiental (EIA), Elefante, Esqueleto Coletivo, Frente Trs de Fevereiro, Nova Pasta, TrancaRua, 97 A abertura da exposio ocorrida no dia 27 de maro de 2006 tambm inaugurava mais dois projetos criados por grupos participantes da lista do Integrao sem Posse: Galeria Vitrine Prestes Maia e Escola Popular Prestes Maia. Vale lembrar que, alguns dias antes, no dia 11 de maro foi lanado tambm o Cineclube da Cinemateca de Documentrios Prestes Maia. A exposio ficou aberta ao pblico do dia 31 de maro 30 de abril e um grande nmero de pessoas foi atrada ao espao para conhecer os trabalhos dos grupos e a Ocupao Prestes Maia. Era mais uma interveno coletiva de arte nas tramas pblicas da metrpole. Os trabalhos confundiam-se em performances, pinturas, esculturas, instalaes, video-arte, interferncias nas fachadas, arte conceitual, mostra de vdeos, etc. A importncia desse tipo de ao/exposio opera claramente no interstcio de dois circuitos da sociedade segmentria os avizinhando, os conectando e ao mesmo tempo os inventando na borda do tempo dos acontecimentos. A arte criando valor para a ocupao e vice-versa. A criao dessa zona intermediria intervindo na zona de tenso vivida cotidianamente por mais de quatro mil pessoas ameaadas de despejo. O movimento dos sem teto sendo intervido por uma enchente de novas linguagens, novos aparatos tecno-mdicos e novos estilos comportamentais que atuam na imagem do movimento para fora da ocupao e principalmente nas subjetividades, nos corpos e no pensamento. Interferncias infraestruturais. Os artistas constituindo suas aes em campos minados completamente atravessados pela realidade das urgncias, criando sentidos, intervindo de fato como sua proposta. Abertetura da Exposio Territrio SP 27/03/2006:
Imagens Rodrigo Cabelo e Mariana Cavalcanti http://integracaosemposse.zip.net 98 Baile dos Espantalhos: noite a exposio terminou com uma festa onto-conectiva onde teve o Baile dos Espantalhos proposto pelo coletivo EIA, que passou duas tardes fazendo espantalhos com o pessoal da Ocupao.
Baile dos Espantalhos: voltamos aos monstros. Espantalho como uma das transfaces do DIABO. Espantalho feio e mau e serve para espantar pssaros. Espantalho rural e pobre. Espantalho sem terra embora proteja plantaes alheias. mendigo do campo. Imvel e assustador. uma figura do assombro e sem teto. Ele habita o fora da casa e fora do prprio corpo, pois existe em frangalhos, feito de palha e resto que foge da conteno da roupa. Sempre de braos abertos resistindo aos ataques funestos. monstro e humano ao mesmo tempo. Representao demasiada. A Ocupao Prestes Maia um gigantesco espantalho fincado no centro da megalpole. No tememos sua monstruosidade - a incentivamos porque a reconhecemos nossa. Por isso o baile espantalhafatoso... Encontros vampricos que desde o ACMSTC conectam-se entre intensos eventos que sustentam no cotidiano o intervalo entre morte e imortalidade.
Ter fim?
Todos esses trabalhos foram realizados pelos treze coletivos de arte na abertura da exposio Territrio SP Bienal de Havana e Inaugurao da Galeria Vitrine da ocupao Prestes Maia. Imagens: http://eia05.zip.net e http://integracaosemposse.zip.net - Fotos: Anderson Barbosa, Bijari e EIA.. Foto abaixo: S l &E t lh &El f t 99 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:
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