Este artigo examina as abordagens musicológicas em relação à performance musical, abordando o lugar da música erudita ocidental no mundo da performance e os meios pelos quais os musicólogos investigaram performances individuais. Discute também a aplicação prática da pesquisa à performance, demonstrando como as lacunas entre pesquisa e prática podem ser preenchidas para aprimorar cada performance.
Este artigo examina as abordagens musicológicas em relação à performance musical, abordando o lugar da música erudita ocidental no mundo da performance e os meios pelos quais os musicólogos investigaram performances individuais. Discute também a aplicação prática da pesquisa à performance, demonstrando como as lacunas entre pesquisa e prática podem ser preenchidas para aprimorar cada performance.
Este artigo examina as abordagens musicológicas em relação à performance musical, abordando o lugar da música erudita ocidental no mundo da performance e os meios pelos quais os musicólogos investigaram performances individuais. Discute também a aplicação prática da pesquisa à performance, demonstrando como as lacunas entre pesquisa e prática podem ser preenchidas para aprimorar cada performance.
Este artigo examina as abordagens musicológicas em relação à performance musical, abordando o lugar da música erudita ocidental no mundo da performance e os meios pelos quais os musicólogos investigaram performances individuais. Discute também a aplicação prática da pesquisa à performance, demonstrando como as lacunas entre pesquisa e prática podem ser preenchidas para aprimorar cada performance.
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JOHN RINK
32 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n
o 1, p. 32-60, ago. 2012 SOBRE A PERFORMANCE JOHN RINK University of Cambridge [email protected] O ponto de vista da musicologia 1 1 Uma verso anterior desse ensaio foi publicada em Psychology of Music 31 (2003), 30323; a verso usada neste artigo foi adaptada e atualizada pelo autor. O texto foi traduzido para o portugus por Pedro Sperandio. A reviso foi realizada pelo Prof. Mrio Videira. 32 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 33 SOBRE A PERFORMANCE RESUMO Este artigo examina uma srie de abordagens musicolgicas em relao performance musical. Aborda-se, primeiramente, o lugar da msica erudita ocidental no mbito do mundo da performance em geral; em seguida, con- sideram-se os meios retrospectivos pelos quais os musiclogos investigaram performances individuais e as diversas questes relacionadas. Em seguida, a discusso se volta para a aplicao prtica da pesquisa performance. Um estudo de caso do Noturno em Mi bemol maior Op. 9 No. 2 de Chopin de- monstra como as lacunas entre a pesquisa e a prtica podem ser preenchidas de modo a realar o momento de verdade que cada performance representa. A nfase colocada sobre a necessidade tanto de uma mediao como de uma compreenso contextualizada do que quer que seja que a investigao histrica, analtica, bem como outros modos de pesquisa, possam oferecer ao intrprete. palavras-chave: Chopin; variantes composicionais; musicologia histrica; anlise musical; prticas interpretativas; conceito de obra. JOHN RINK 34 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 IN RESPECT OF PERFORMANCE: THE VIEW FROM MUSICOLOGY ABSTRACT Tis article surveys a range of musicological approaches to musical performance. It frst addresses the place of Western art music within the world of performance at large; it then considers the retrospective means by which musicologists have investigated individual performances and the manifold issues related to them. Te discussion turns thereafer to the practical application of research to performance. A case study of Chopins Nocturne in E-fat major Op. 9 No. 2 demonstrates how the gaps between research and practice might be bridged to enhance the moment of truth that each performance represents. Emphasis is placed on the need for both mediation and a contextualized understanding of whatever it is that historical, analytical and other modes of research might ofer the performer. keywords: Chopin, compositional variants, historical musicology, music analysis, performance practice, work concept REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 35 SOBRE A PERFORMANCE O ato de fazer msica no apenas uma atividade humana virtualmente uni- versal, mas ao longo dos tempos e das civilizaes do mundo a expe- rincia musical real, direta e ao vivo [...] que parece ter sido integral [...] cultura humana (DUNSBY, 2000, p. 346). Estas referncias universali- dade e s civilizaes do mundo so salutares, na medida que os acad- micos passam a reconhecer cada vez mais a necessidade de uma perspec- tiva global no estudo da performan- ce musical, independentemente do foco individual de suas iniciativas de pesquisa (e, como irei argumentar, a especifcidade , ao mesmo tempo, desejvel e inevitvel). A pesquisa etnomusicolgica serve como um modelo til, com sua ateno tipica- mente voltada performance como evento e processo, em oposio s consideraes isoladas sobre a m- sica e suas respectivas prticas inter- pretativas, tpicas dos trabalhos mu- sicolgicos mais tradicionais. Porm, apesar de a musicolo- gia poder alegar ser uma disciplina abrangente, a arte musical ocidental tradicionalmente tem estado (e, em certa medida, continua) frmemen- te posicionada no centro (NET- TL, 1999, p. 301). Ao me focar nesse centro, desejo evitar os problemas que tm perseguido as pesquisas musicolgicas do passado tomando o caminho de maior resistncia; re- sistindo a quaisquer suposies de que a msica ocidental seja funda- mentalmente superior s outras m- sicas; resistindo a uma diviso estrita entre tradies escritas e orais (por mais sofsticado que seja, nosso siste- ma de notao musical no consegue capturar todos os elementos de uma O MUNDO DA PERFORMANCE JOHN RINK 36 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 performance); resistindo distino dominante entre composio e im- provisao 2 ; e resistindo quela du- radoura noo de obra musical que ignora o fato de que a msica surge a partir da performance, e dela depen- de. Nicholas Cook encorajava os mu- siclogos no apenas a lembrar que msica uma arte da performance, mas tambm a dissolver qualquer distino estvel entre performan- ces e obras, pensando, ao invs disso, num nmero ilimitado de instancia- es ontologicamente equivalentes, todas elas existentes sobre um mes- mo plano horizontal 3 . Retornarei a estes pontos mais tarde, aps fazer um levantamento das maneiras pelas quais a musicologia tem investigado a performance at a presente data. 2 Carl Dahlhaus (1979, p. 9-23) afrma em seu ensaio Was heit Improvisation?, que estas [distines] existem em um continuum; para discusso cf. John Rink (2000, p. 117-21). 3 Cf. Cook (2001, 7, 16 e 17). O autor (Cook, 2001, 2) tambm lamenta a separa- o entre msica e performance na musicologia, notando que a linguagem nos leva a cons- truir o processo de performance como suplementar ao produto que o ocasiona ou no qual ele resulta; isso que nos leva a falar bastante naturalmente sobre msica e sua performance. 4 Os ttulos desta seo e da prxima, respectivamente, evitam a problemtica dicoto- mia entre pesquisa pura e aplicada, que s vezes empregada. O QUE ACONTECEU? Conforme indiquei acima, os musi- clogos se concentram tipicamente e de maneira retrospectiva nos atos individuais de performance, no que est por trs destes, e nos contextos ou circunstncias particulares que os cercam 4 . No mbito de qualquer mu- sicologia da performance ocorre uma tenso inevitvel entre generalidade e especifcidade, dada a vasta gama de tipos de performance e as questes que a intervm e que surgem a par- tir da, exigindo certa atomizao de maneira a sustentar um enfoque inte- ligvel acerca do assunto em questo. Paradoxalmente, tanto os pontos de vista mais prximos quanto os mais perifricos podem ser necessrios, se REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 37 SOBRE A PERFORMANCE quisermos que uma pesquisa musi- colgica possa ser aplicada prtica e que possa reivindicar alguma via- bilidade musical: um enfoque muito limitado nos resultados particulares dessa pesquisa e uma concomitante falta de ateno ao contexto e sn- tese podem vir a distorcer ou causar parcialidade concepo e realizao da performance. A pesquisa psicologicamente orientada no mbito da musicologia talvez se preste mais prontamente a uma generalizao atravs de uma variedade de meios de performance e idiomas presentes na msica ociden- tal, do que a uma generalizao atra- vs de campos de pesquisa global- mente mais defnidos. No explorarei esse domnio aqui, concentrando-me em vez disso na musicologia histri- ca, qual Nettl (1999, p. 303) outro- ra se referiu como musicologia par excellence. O estudo da performance no mbito da musicologia histrica no deve se restringir a investigaes na rea de prticas interpretativas, tais como estas so tradicionalmente compreendidas, isto , todos os as- pectos da maneira pela qual a msica e tem sido executada (DUNSBY 2000, p. 349). H muito mais coisas em jogo, e a ampliao gradual dos estudos histricos da performance deve ser genuinamente bem-acolhi- da, justamente no momento em que as barreiras que cercam a msica oci- dental esto ruindo, indefesas. De fato, a variedade de tpicos e modos de investigao que preocu- pam os historiadores da performance est se tornando cada vez mais vas- ta. Inmeras fontes de informao garantem um estudo minucioso, in- cluindo: 1. instrumentos remanescentes 2. material iconogrfco 3. registros histricos dos mais varia- dos tipos (ex. contas domsticas, extratos postais, contratos, etc.) 4. fontes literrias, tais como: escritos crticos, cartas e dirios 5. tratados prticos e livros de instru- o 6. tratados tericos 7. partituras, incluindo manuscritos autgrafos e de copistas, impresses ori- ginais e subsequentes de primeiras edi- es, e todas as edies posteriores 8. gravaes de udio e vdeo. A partir destes materiais, pode-se buscar um conhecimento aprofun- dado sobre questes de interpretao e estilo em relao aos seguintes aspectos: JOHN RINK 38 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 1. notao (a qual, como afrmei an- teriormente, incompleta e pode ser in- compreensvel) 2. articulao 3. infexo meldica 4. acentuao 5. tempo e alterao rtmica 6. outros aspectos da tcnica, relacio- nados estrutura fsica dos instrumentos e a questes de produo instrumental e vocal 7. ornamentaes improvisadas 8. improvisao de maneira geral, incluindo acompanhamento de baixo- contnuo 5. Pode-se propor ainda uma outra lis- ta de questes relacionadas perfor- mance e que convidam ateno do pesquisador de musicologia histri- ca, incluindo o que Lawson e Stowell 6
se referem como condies e prti- cas, entre eles: 1. registro, afnao e temperamento 2. formao (i.e. solo versus msica de cmara) 3. local de apresentao e programao 4. escuta 5. recursos fnanceiros (ex. Quanto ganharam os msicos? Quais eram suas condies profssionais? Quanto o pbli- co pagou para assistir ao concerto, e o que isso signifcou para eles do ponto de vista fnanceiro?) 6. mecenato 7. instituies de ensino e as prticas de professores especfcos 8. edio musical ( preciso saber qual repertrio estava disponvel, onde e quando, e quem teve acesso a ele e o exe- cutou) 9. outras formas de publicao (ex. jornais, revistas, livros, livros, mtodos, etc) 10. performance em domiclio ou em algum outro lugar privado (em oposio aos locais pblicos em geral) 11. questes de gnero e sexualidade 12. a relao entre msica popular e artstica (uma distino que possui uma legitimidade relativa, por vezes baseada em barreiras artifciais, como se pode ob- servar no caso da msica para piano do sculo XIX). As investigaes detalhadas de cada 5 Naturalmente, esta e as demais listas deste artigo poderiam ser ampliadas: cf. Ker- man (1985) e Lawson & Stowell (1999). 6 Cf. Captulo 4 de Lawson & Stowell (1999). REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 39 SOBRE A PERFORMANCE uma dessas evidncias ao longo de uma enorme gama de perodos cronolgicos e tipos de performan- ce resultaram em um monumental corpus de conhecimento acadmico que continua a crescer e forescer. Paralelamente a isto, h progressos recentes, tais como a anlise de per- formance, que constitui uma maneira diferente de determinar o que acon- teceu, tanto em performances grava- das quanto ao vivo. Tal anlise, que de natureza essencialmente des- critiva, pode tambm lanar mo de dados capturados atravs de meios tecnolgicos envolvendo oscilaes de andamento e dinmica, tcnicas espectrogrfcas e assim por diante. Essa abordagem tem estado muito em evidncia em textos analticos re- centes, bem como na literatura psico- lgica 7 . Outras inovaes incluem es- tudos longitudinais de performance e pesquisas sobre prtica em conjun- to 8 . Cook 9 encorajou a integrao de som, palavra e imagem no estudo da performance, possivelmente ex- plorando tecnologias de hipermdia. Mais recentemente, um centro de pesquisa inteiro foi fundado com o intuito de explorar o fazer musical ao vivo e, particularmente, como a m- sica toma forma durante a perfor- mance 10 . Esta uma das muitas e am- biciosas iniciativas recentes na nova rea dos estudos de performance. E DEPOIS? Outros caminhos para se prosseguir podem tambm ser encontrados ao reavaliar a potencial aplicao da pesquisa musicolgica a novas atividades de performance musi- cal. Aplicar os frutos de tal pesqui- sa diretamente performance no uma tarefa simples, e as inmeras 7 Para exemplos de anlise de performance, cf. os projetos empreendidos no Centro de Pesquisas AHRC para a Histria e Anlise da Msica Gravada (CHARM) descritos no site: www.charm.kcl.ac.uk. 8
Veja, por exemplo, Goodman (2002, p. 15367). 9
Cook (2001, 29). 10 Trata-se do AHRC, Centro de Pesquisa em Performance Musical como Prtica Cri- ativa (CMPCP), descrita no site www.cmpcp.ac.uk. JOHN RINK 40 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 injunes na literatura acadmica ao longo desses caminhos s tm servido habitualmente para limi- tar a liberdade dos intrpretes, em vez de libert-los como seria de se esperar; e, no entanto, [esta aplica- o] perfeitamente factvel, dadas as mediaes apropriadas. Contudo, frequentemente falta essa mediao. Alm disso, existe h muito tempo na musicologia uma suposio im- plcita, segundo a qual os acadmi- cos ocupariam um patamar superior em termos de conhecimento e dis- cernimento, e que os intrpretes que no buscam assimilar avidamente os resultados dessas pesquisas em suas performances correriam o risco de se entregar a um fazer musical super- fcial e desprovido de sentido, que serviria apenas a eles enquanto indi- vduos, ao invs de atender a um ide- al mais elevado. Tal ponto de vista insustentvel e deve ser abandonado de uma vez por todas. Um exemplo disto a busca por uma autenticidade quimrica qual a musicologia histrica e um bom nmero de intrpretes se dedicaram por dcadas (em parte por razes comerciais); atualmente, um prop- sito mais tpico a interpretao historicamente informada 11 , ainda que a presena de informaes his- tricas na interpretao no garanta sua qualidade e no necessariamente funcione musicalmente, pela razo supracitada. Igualmente, do campo de anlise e performance originaram- se muitas prescries doutrinrias, que incitam um mapeamento uni- lateral desde a anlise rigorosa at o ato da performance, onde concluses sincrnicas e analticas que podem no ter nenhuma relao com a reali- zao temporal da msica deveriam, de alguma maneira, ser comunicadas por meio do som. Eu questionei esta abordagem e propus alternativas, as quais demonstrarei posteriormente. 12 Musiclogos que trabalham com performance precisam reconhecer os mltiplos fatores que esto por trs de uma determinada interpretao e 11 Para discusso cf. Butt (2002). 12 Cf. Rink (1990, p. 31939) e Rink (2002, p. 3558). REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 41 SOBRE A PERFORMANCE que lhe atribuem forma. Eles devem resistir tentao de impor que este fato analtico ou aquele achado hist- rico deve necessariamente dominar ou at mesmo infuenciar a leitura de um intrprete acerca da msica em questo. Requer-se compreenso e respeito diante da amplitude e com- plexidade da concepo musical do intrprete, alm da percepo de que a performance no algo que diz res- peito a verdades eternas: os intrpre- tes podem muito bem desejar refetir os frutos de suas prprias investiga- es musicolgicas em suas perfor- mances, mas no como uma questo de prioridade absoluta. JOHN RINK 42 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012
REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 43 SOBRE A PERFORMANCE
figura 1: Chopin, Noturno em Mi Bemol Maior Op. 9 No. 2: Primeira edio francesa, primei- ra impresso. Paris: Maurice Schlesinger, 1833. Reproduzido com a permisso da Biblioteca da Universidade de Chicago, Special Collections Research Center. JOHN RINK 44 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 PREENCHENDO LACUNAS Uma srie de excertos do Noturno Op. 9 No. 2 13 em Mi Bemol Maior de Chopin exemplifcar os vrios tipos de investigao descritos anterior- mente acerca das fontes, questes de interpretao e estilo, condies e prticas aludindo tambm exten- sa variedade de fatores que podem intervir numa performance. Em se- guida, farei breves comentrios a res- peito de como poderia ser efetuada a mediao entre as descobertas de pesquisas musicolgicas e a perfor- mance propriamente dita, mesmo se a verdade que da resulta for con- tingente. Alm de um incipit escrito mo por Chopin datado de 1835, no res- tou nenhum material autgrafo do Noturno em Mi Bemol, pea com- posta entre 1830 e 1832. Assim como a maior parte da msica de Chopin, os Noturnos Op. 9 foram publicados em Paris, Leipzig e Londres em trs primeiras edies muito semelhan- tes, embora distintas entre si: a ver- so francesa foi publicada por Mau- rice Schlesinger (Figura 1) e a alem, por Kistner no incio de 1833, ao pas- so que Wessel produziu a primeira edio inglesa alguns meses depois. Cada uma delas foi sucessivamente reeditada em impresses subsequen- tes, contendo, por vezes, correes equivocadas e outras emendas; o No. 2 tambm apareceu em edies sepa- radas, derivadas das verses alem e inglesa. 14 Todas essas primeiras edi- es demandam ateno acadmica, e qualquer intrprete que se interesse pelas complexidades relacionadas s fontes que cercam as composies de Chopin encontrar, nestas edies e em outras semelhantes, uma srie de evidncias acerca da evoluo das concepes do compositor. Dezenas de novas edies da m- sica de Chopin surgiram aps o mo- mento decisivo marcado pelas leis de direitos autorais, na Frana em 1859 13 Selecionei esta obra pelo fato de ela se apresentar num vasto mbito de bibliografa relevante, e tambm porque j a executei em algumas das verses abaixo descritas. 14 Para detalhes cf. Grabowski & Rink (2010). REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 45 SOBRE A PERFORMANCE 15 Os Noturnos foram publicados da seguinte maneira: Edio Paderewski, ed. Ignacy Jan Paderewski, Ludwik Bronarski e Jozef Turczynski (Cracvia: PWM, 1951); Henle Urtext, ed. Ewald Zimmermann (Munich: Henle, 1980); Wiener Urtext, ed. Jan Ekier (Vienna and Mainz: Schott/Universal Edition, 1980); Wydanie Narodowe, ed. Jan Ekier and Pawel Ka- minski (Cracvia: PWM, 1995). 16 A presena de Chopin em Paris e, portanto, o fato dele estar apto a participar na correo das verses e impresses originais francesas atribui a essas edies uma autoridade ausente nas verses inglesas e alems, as quais eram preparadas sem intervenes recorrentes por parte do compositor. e na Alemanha em 1879; particular- mente notveis e ainda em circula- o at os dias de hoje so as assim chamadas edies Paderewski, a Henle Urtext, a Wydanie Naro- dowe (Edio Nacional Polonesa) e Te Complete Chopin A New Cri- tical Edition. 15 O uso amplamente difundido da edio Paderewski por pianistas modernos pode parecer lamentvel ao se comparar o frase- ado nos compassos de abertura do Op.9 No. 2 quele da primeira edio Francesa, 16 que conta com ligaduras muito mais curtas ao invs dos ges- tos com menor riqueza de detalhes impostos pela edio Paderewski (estendendo-se, por exemplo, da anacruse inicial penltima nota da mo direita no compasso 1 e, de ma- neira semelhante, da ltima nota da mo direita do compasso 2 at a nota fnal do compasso 3; cf. Figura 1). A Edio Henle Urtext mais confvel, embora ocorra no compasso 16 uma mudana no ritmo das foriture: ao invs das semi-colcheias de Chopin (que evocam uma fexibilidade rt- mica improvisatria cf. Figura 1), a edio adota as fusas matematica- mente corretas. As semi-colcheias foram preservadas na Edio Na- cional Polonesa, mas em sua seo de Comentrios Crticos h uma referncia errnea s supostas fusas na primeira Edio Alem, quando na verdade a primeira impresso de Kistner, datada de 1833, apresenta as mesmas semi-colcheias tambm en- contradas nas verses de Schlesinger e Wessel. Somente na segunda im- presso de Kistner (publicada antes de 1841) aparece o ritmo incorreto, juntamente com o smbolo de terci- JOHN RINK 46 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 na 3 adicionado s notas 14-16 da mo direita. 17
A Edio Nacional Polonesa tam- bm descreve erroneamente o ritmo do primeiro tempo do compasso 24, no qual as primeiras edies fran- cesa e inglesa apresentam um ponto de aumento na terceira nota da mo direita desse compasso, um d#3 (cf. Figura 1), enquanto a primeira edio alem, tal como publicada original- mente, no conta com nenhum pon- to de aumento (o que no faz sentido do ponto de vista rtmico), embora a edio polonesa comente exatamente o contrrio. Na segunda impresso de Kistner, contudo, adiciona-se um ponto indubitavelmente sem a au- torizao de Chopin quarta nota da mo direita, um d natural3, qual a maioria dos pianistas est acostu- mada e, alm disso, como aparece editado na Henle Urtext. O efeito na performance completamente dife- rente: enquanto esta ltima verso sufcientemente lgica, o ritmo da Edio Schlesinger imbui a descida meldica de uma parada intencional, uma qualidade enftica caracterstica do estilo bel canto, o favorito de Cho- pin e no qual esse Noturno to clara- mente se inspira. O dedilhado na primeira Edio Francesa lana ainda mais luz es- ttica da performance chopiniana, na medida que as repeties anota- das para o dedo 5 e os agrupamen- tos 4-5/5-4 nos compassos 2628 obrigam os dedos a soltar as teclas precisamente em determinados mo- mentos e assim, atravs da rearticu- lao, atribuem uma infexo sutil a notas signifcativas do ponto de vista expressivo. Um estudo detalhado do dedilhado, articulao, dinmica e de outras glosas anotadas a lpis nas partituras de seus alunos Jane Stirling e Camille Dubois, bem como nas de sua irm Ludwika Jedrzejewicz e de seu amigo violoncelista Auguste 17 Cf. Grabowski & Rink (2010, p. 58). Os responsveis pela Edio Nacional Polonesa aparentemente utilizaram no a primeira, mas a segunda impresso de Kistner para confec- cionar a sua prpria. REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 47 SOBRE A PERFORMANCE Franchomme, tambm se mostra es- clarecedor. 18 Por exemplo, uma liga- dura foi adicionada (provavelmente por Chopin) entre o arpejo da mo direita que precede o primeiro tempo do compasso 13 e a nota da mo es- querda no tempo forte, com o objeti- vo de produzir um ataque simultneo de ambas as mos na cabea do tem- po uma maneira de articulao do sculo XVIII usada com o intuito de evitar o brilhantismo tpico das pr- ticas interpretativas vigentes no scu- lo XIX. O que est em jogo aqui o efeito expressivo da msica, corpori- fcado em mincias de notao cuja infuncia potencial na performance no poderia ser maior. em parte por esta razo que a es- colha de um texto editado tem tantas consequncias para a performance. No obstante, somente a fdelidade aos aspectos individuais acima des- critos sero, em si, insufcientes para recriar a esttica original da msica, isto , se este for realmente o obje- tivo. Porm, uma falta de fdelidade a esses aspectos no necessariamen- te a destruir. 19 preciso haver no apenas contextualizao e sntese, deve-se ainda ter em mente a abor- dagem idiossincrtica de Chopin (em suas execues e no seu ensino, ele no se submetia nem a regras, nem a sistemas), bem como as flosofas editoriais vigentes naquela poca, conforme as quais o texto impresso carecia da autoridade suprema que se lhe atribui atualmente, com erros fa- grantes de natureza variada que no 18 Para um agrupamento dessas glosas, cf. Eigeldinger (1986) e (2000). Em seu artigo Prsence de Tomas D. A. Tellefsen dans le corpus annot des oeuvres de Chopin (exem- plaire Stirling), Eigeldinger (1998, p. 260) observa que algumas anotaes nas partituras de Stirling podem ser atribudas ao pupilo de Chopin, Tomas Tellefsen (embora possivelmente no seja o caso do Op. 9 No. 2). 19 A esta luz interessante considerar a performance de Shura Cherkassky do Preldio em mi menor de Chopin Op. 28 No. 4 (Decca 433 653-2) datada de 1975; embora Cherkas- sky toque notas erradas em uma passagem e use um rubato aparentemente inautntico, bem como uma articulao incorreta de alguns ornamentos, sua execuo (ao vivo) extrema- mente comovente. Para discusso cf. Rink (2001, p. 441). JOHN RINK 48 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 necessariamente ofendiam ou preo- cupavam os compositores e intrpre- tes. Naturalmente, seria aconselhvel aos intrpretes modernos o uso do melhor texto possvel, por mais es- quivos que estes possam vir a ser no caso de Chopin. Mas eles no devem confar cegamente nesses textos. essencial ponderar as alternativas e determinar o que funciona melhor no contexto e em cada ocasio de performance, de acordo com a esco- lha de preceitos estticos do intrpre- te e quaisquer outras consideraes s quais ele deseje obedecer. Uma das crticas que manifestei sobre a literatura acerca de anlise- e-performance tem sua origem no fato de que ela geralmente subtrai aos intrpretes a prerrogativa de tomar decises, forando-os, em vez disso, a seguir sobretudo questes estrutu- rais (indiferente de como estas sejam defnidas) ao invs de uma forma mais dinmica, qual tenho conti- nuamente me referido em meus es- critos nesta rea durante os ltimos vinte anos. 20 Compare, por exemplo, os grfcos de plano intermedirio do Op. 9 No. 2 na Figura 2, publi- cados respectivamente por Heinrich Schenker no segundo anurio Meis- terwerk 21 e em um ensaio de minha autoria. 22 20 Para maiores discusses, cf. Rink (2002) 21 Schenker (1996); o grfco da fgura 2a aparece pgina 5. 22 Rink (1999); o grfco na fgura 2b aparece pgina 119. REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 49 SOBRE A PERFORMANCE Figura 2a: Diagrama de plano intermedirio de Schenker do Noturno Op. 9 No. 2 de Chopin. Reproduzido com a permisso da Cambridge University Press. Figura 2b: Diagrama de plano intermedirio do Noturno Op. 9 No. 2 de Chopin. Reproduzido com a permisso da Cambridge University Press.
JOHN RINK 50 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 No grfco de Schenker (Figura 2a), no atribudo contedo algum aos ltimos 10 compassos; as pala- vras folgt Coda (segue-se a Coda) indicam que a passagem no possui importncia estrutural, pelo menos nesse nvel analtico. Se interpretado literalmente, tal diagrama pode dar origem a uma performance desprovi- da de direo, at mesmo desprovida de propsito, carente de uma trajet- ria em larga-escala ou um gesto mais amplo como o implcito em minha adaptao (Figura 2b). Sem dvida, meu grfco no de maneira algu- ma sufciente para constituir a base de uma concepo interpretativa; mas ao menos ele tem o potencial de conduzir a uma interpretao mais coerente e equilibrada contanto, obviamente, que o pianista no tente fazer uma traduo direta deste ou de outros grfcos similares para os ter- mos da performance, mas sim, pro- cure inferir a partir da os insights especifcamente musicais que esto latentes. Mais uma vez, preciso que haja aqui inferncia ou mediao. Por essa razo, os intrpretes se- riam sbios ao resistirem a qualquer injuno para ressaltar sistema- ticamente os motivos constituintes do Noturno durante a performan- ce. 23 Mesmo assim, vale a pena notar um motivo particular de potencial importncia a esse respeito a f- gurao circular da mo esquerda encontrada ao longo de toda a pea, como mostrada na Figura 3. 24 Usado reiteradamente na seo principal da pea (i.e. os vinte e quatro compassos grafados por Schenker), esse padro retorna em uma forma fragmentada nos compassos 2728, depois por completo nos compassos 3032, en- quanto a msica caminha em direo ao clmax. possvel conceber uma narrativa temporal para a perfor- 23 Rothstein (1995) defende uma questo similar sobre a performance de temas fugais. 24 A Figura 3 reproduzida a partir de Rink (1999, p. 118). Este tipo de justaposio de passagens similares pode ser um exerccio til para intrpretes, inclusive durante o processo de memorizao da msica. Para discusso, cf. Rink (2002). REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 51 SOBRE A PERFORMANCE mance desse Noturno, em parte tendo como base essas afrmaes motvi- cas, cujas repeties sucessivas criam uma expectativa de continuidade que se mantm presente nos compas- sos 31-32, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, destaca justamente o modo dramtico atravs do qual a msica foi introduzida nessa expan- so culminante. Em outras palavras, uma trajetria em larga-escala se origina e se liga a uma frmula ca- dencial aparentemente comum, cuja funo , em todos os sentidos, de fundamental importncia. JOHN RINK 52 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012
Figura 3: Motivo de fgurao circular no Noturno Op.9 No. 2 de Chopin. Reproduzido com a permisso da Cambridge University Press. REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 53 SOBRE A PERFORMANCE A natureza aparentemente ino- cente e incua do Noturno tambm foi notada de maneira mais genrica por Wilhelm von Lenz, aluno ocasio- nal de Chopin, cujas longas conside- raes datadas de 1872 sobre os ensi- namentos de Chopin a respeito desta pea referem-se a problemas parti- culares de execuo, frequentemente observados pelo prprio compositor. De acordo com Lenz: Chopin queria que o baixo fosse estuda- do separadamente, dividido entre as duas mos; e cada um dos acordes que seguem os tempos principais marcados pelos bai- xos no 12/8 deveriam soar como um con- junto de violes. Uma vez que se domina a parte do baixo com as duas mos empregando uma sonoridade plena, mas com dinmica piano e em tempo estrito, mantendo um andamento allegretto ab- solutamente estvel sem que o 12/8 se re- duza a tercinas, a ento pode-se confar mo esquerda o acompanhamento toca- do dessa maneira, e o tenor convidado a cantar sua parte na voz superior. A se- gunda variao deveria ser um Andante; a terceira, um comovente Adagio. O tema e a segunda variao deveriam ser cantados a plena voz, expressivamente, mas isentos de sentimentalismos. O estilo deve seguir o modelo de [Giuditta] Pasta e a grande Escola Italiana de canto, e o pathos deve- ria se intensifcar ao longo das variaes (lenz apud eigeldinger, 1986, p. 77) 25 . No apenas a intensifcao do pa- thos relevante para a narrativa da performance descrita acima, mas tambm as referncias de von Lenz ao tempo estrito e a um andamen- to absolutamente estvel levantam questes signifcativas para a inter- pretao desse Noturno e para a m- sica de Chopin de uma maneira geral. Esses comentrios foram publicados numa poca em que a esttica de performance de Chopin estava sendo ameaada por certas tendncias nas prticas interpretativas; em particu- lar, por uma maior fexibilidade de andamento empreendida em prol da expresso, mas potencialmente pre- judicial lgica de pequena e gran- de escala. Tal fexibilidade era uma 25 Wilhelm von Lenz, bersichtliche Beurtheilung der Pianoforte-Kompositionen von Chopin, Neue Berliner Musikzeitung 26, no. 3638 (1872), 297; traduo de Eigeldinger (1986, p. 77). JOHN RINK 54 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 das principais caractersticas de uma tradio ostensiva em voga naque- la poca envolvendo a interpretao da obra de Chopin, e que foi posta em questo por vrias pessoas prxi- mas a Chopin notadamente Lenz, Carl Mikuli e a Princesa Marcelina Czartoryska. 26 Mikuli (apud EIGEL- DINGER, 1986, p. 49), por exemplo, afrmava em tom de protesto, que o metrnomo nunca deixou o piano [de Chopin], embora isso no signi- fque que a execuo de Chopin fosse rigidamente metronmica: deve-se entender esse comentrio de Mikuli em seu contexto polmico, destinado a combater uma tendncia que tanto ele como outros de seus contempor- neos consideravam perniciosa. Mui- to pelo contrrio, sabe-se que Chopin empregava pelo menos trs tipos de rubato um inspirado pelo estilo bel canto, outro derivado da msica fol- clrica polonesa, e o terceiro defnido em termos de mudanas passageiras de ritmo relativas ao andamento b- sico (EIGELDINGER, 1986, p. 120). Neste Noturno, o signifcado espec- fco de poco rubato no compasso 26 no desprovido de ambiguidade, 27
mas o rubato herdado do bel canto sem dvida modelou a concepo de Chopin a respeito de melodia e acom- panhamento em geral. O intrprete certamente precisa estar ciente desse tipo de rubato no em uma busca ftil por uma suposta autenticidade, mas simplesmente com a fnalidade de respeitar o sentido da msica. Sem a fexibilidade simbitica e lgica ca- ractersticas da prpria execuo de Chopin, uma performance do Op. 9 No. 2 pode acabar soando to afetada e antinatural quanto um texto verbal 26 Para discusso, cf. Eigeldinger (1993). 27 Segundo Eigeldinger (1986, p. 121) o poco rubato se aplica a uma frase particular de um carter mais pattico usando as prprias palavras de [Pier Francisco] Tosi. Cf. tam- bm Rink (1999) REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 55 SOBRE A PERFORMANCE declamado em uma lngua em que o orador no compreende ou que car- rega um sotaque to pesado que che- ga a ser quase ininteligvel. 28 A prosdia natural da msica, quando interpretada de acordo com a esttica temporal de Chopin, vem tona quando se compara esse primei- ro Noturno em Mi bemol com os no- turnos de John Field (1812 e 1816), que soam um pouco estticos e at- xicos por causa das inmeras fnali- zaes cadenciais e a resultante falta de dinamismo no mbito do mate- rial harmnico e meldico, assim como em sua estrutura de um modo geral. 29 Uma comparao com o ou- tro Noturno em Mi bemol de Cho- pin o Op. 55 N. 2, composto entre 184244, possivelmente em resposta pea homnima anterior tambm se mostra instrutiva. Sua maestria em termos de fuidez, fexibilidade e im- pulso em nveis tanto remotos quan- to imediatos parecem criticar, mas tambm lanar luz sobre a dinmica interna do Op. 9 N.2, mesmo que sua sofsticao e sutileza ultrapas- sem as de seu predecessor. O objetivo de tal comparao no mostrar um progresso composicional ou superio- ridade, mas sim, ao posicionar uma pea frente a outra, apreciar em sua totalidade justamente o que foi al- canado em cada uma, alm de ob- ter maior conhecimento no mbito da lgica temporal da msica e sobre seu ritmo em uma larga escala. Alm da ateno ao contexto his- trico e estilstico ser til nesse as- pecto, ela tambm possibilita que se faa um bom uso das numerosas va- riantes anotadas a lpis por Chopin em cpias do Noturno pertencentes a seus alunos. Essas variantes repro- duzidas na Wiener Urtext e na Edi- o Nacional Polonesa, entre outras englobam desde pequenas notas de passagem cromticas at ornamenta- es de tirar o flego nos principais pontos cadenciais (incluindo a ca- dncia no compasso 32); sendo que tais fguraes situam-se fora do al- cance de pianistas amadores que avi- 28 Mikuli (apud EIGELDINGER, 1986, p. 42) nota a insistncia de Chopin na im- portncia do fraseado correto e sua analogia adequada sobre uma recitao desprovida de sentido de um discurso em uma lngua desconhecida, memorizado laboriosamente. 29 Cf. Rink (1999). JOHN RINK 56 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 damente tocavam e popularizavam o Noturno. Na opinio de Eigeldinger (1986, p. 152), estas variantes extra- ordinariamente abundantes podem indicar o desejo de Chopin de que o Op. 9 N. 2 se distanciasse do mundo da msica de salo, bem como dos noturnos de Field, aos quais eram frequentemente relacionados. Elas tambm refetem a abordagem im- provisatria de Chopin, tanto no que diz respeito composio quanto performance, revelando uma falta de fdelidade ao conceito de obra que manteria sua infuncia por cerca de 150 anos. Os pianistas modernos podem pensar que estas variantes acrescentam sua execuo a espon- taneidade e o brilho que as prprias interpretaes de Chopin parecem ter tido mas o melhor seria evitar a abordagem indulgente daqueles que amontoam praticamente todas elas em uma nica performance. Tal variedade embaraosa de ornamen- taes difcilmente compatvel com a postura, a discrio e o refnamento geralmente associados a Chopin, re- sultando em uma verso sobrecarre- gada tpica do que h de pior (e no de melhor) no bel canto. Uma abordagem mais sensvel a essas variantes e ao Noturno em geral pode ser constatada nas gravaes de Raoul Koczalski, 30 que estudou com Carl Mikuli, o qual havia sido alu- no de Chopin. Suas gravaes cons- tituem a herana mais prxima da esttica de performance de Chopin, a qual procurei descrever aqui. As in- terpretaes de Koczalski so sempre dignas de uma escuta mais detalhada, e ele se mostra particularmente escla- recedor no caso do Op. 9 N. 2. No obstante, h uma certa discrepncia entre suas interpretaes e as evidn- cias encontradas tanto nas primeiras edies quanto, especialmente, nas cpias do Noturno pertencentes aos alunos de Chopin (por exemplo, ele toca as anacruses arpejadas nos com- passos 13 e 21 antes da cabea do compasso, e no no tempo), de modo que algumas das variantes empre- 30 Estas foram feitas em 1925 (Polydor 65786), 1938 (Polydor 62746) e 1948 (MEWA no. 33); as duas primeiras contm muitas das variantes s quais fez-se referncia neste ensaio. Cf. tambm Koczalski (1909, p. 7071). REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 57 SOBRE A PERFORMANCE gadas por Koczalski podem no ser originais de Chopin. Alm disso, ele toca em um piano moderno em vez de escolher um instrumento vienen- se ou francs da poca de Chopin, nos quais a delicadeza da msica e sua clareza cristalina so, talvez, mais facilmente capturadas. Mas de modo algum esses aspectos devem ser en- carados como equvocos fatais, pelas razes acima descritas. Com efeito, as interpretaes de Koczalski ainda esto entre as mais impressionantes da histria das gravaes. Emular ativamente o estilo de execuo de Koczalski, pelo fato de representar o registro que mais se aproxima da execuo do prprio Chopin, uma questo de escolha individual. possvel que o intrpre- te deseje emprestar apenas algumas de suas ideias, e prescindir de outras. Igualmente, pode-se ou no tocar as variantes de Chopin; ou empregar apenas um determinado nmero de marcaes dinmicas provenientes das cpias de seus alunos; ou conside- rar somente certos aspectos das an- lises motvicas, harmnicas ou me- ldicas s quais me referi; ou mesmo buscar inspirao a partir do rubato de Chopin e da articulao do sculo XVIII, mas evitar os dedilhados do compositor. O mais importante no a presena ou ausncia desses aspec- tos, mas sim, como eles so emprega- dos e isto no apenas em si e por si mesmos mas, principalmente, no interior da concepo musical como um todo. Para que isso tenha xi- to, necessrio o uso de mediaes como as descritas anteriormente, de maneira que o intrprete se aproprie desses elementos a servio da msi- ca, tal como ele a entende, em vez de simplesmente trilhar os caminhos j abertos por musiclogos ou outros msicos. Este o motivo pelo qual muitas interpretaes podem vir a fracassar em um ou outro aspecto no teste decisivo de autenticidade, mas ainda assim gerar um resultado sa- tisfatrio e inspirador; tambm por isso que at mesmo o conhecimento mais vasto pode vir a resultar no em uma verdadeira concepo musical, mas em uma verso de segunda cate- goria, com um forte sotaque, mais ou menos incompreensvel. MOMENTOS DA VERDADE Esta discusso apresentou uma srie JOHN RINK 58 | REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 de perspectivas sobre o Noturno de Chopin com a inteno de demons- trar no apenas o quanto a pesqui- sa pura pode infuenciar direta ou indiretamente a interpretao mu- sical, mas tambm a necessidade de se adotar uma viso global ao in- terpretar obras particulares. Para este fm, minha apresentao desses vrios elementos em sucesso de certa maneira forjada, uma vez que os intrpretes no constroem uma organizada mise-en-place cujos in- gredientes individuais so ento lan- ados um por um no leo incandes- cente de uma panela. Mesmo que a performance de fato apresente certo aspecto de frigideira (e ocasionais saltos batismais para dentro do fogo), a fuso dos ingredientes no calor da performance idealmente mais com- pleta, assim como pode ser tambm a mais resistente ao exame minucioso e compreenso. A arte envolve a habi- lidade de transformar a performance em algo que represente mais do que somente a soma de suas partes, in- cluindo as infuncias da histria, da anlise e muito mais (alm da dimen- so tcnica, no menos importante e to frequentemente ignorada na li- teratura sobre interpretao). A arte envolve uma viso centrada e perif- rica ao mesmo tempo, especialmente no momento da verdade decisiva. As performances nunca so def- nitivas: isto bvio. Mas isto tende a ser esquecido pelos musiclogos, que insistem em colocar suas pesquisas em primeiro plano, em detrimento do ato da performance. Poder-se-ia muito bem perguntar se poder ha- ver algum dia uma conciliao entre o rigor exigido pelos acadmicos em suas pesquisas e a liberdade necess- ria prtica dos msicos. Talvez tudo o que se pode esperar uma fexibi- lidade por princpio, ao invs de uma retido moral (h algo de hipcrita e puritano envolvendo algumas pres- cries para performance e tambm a prxis em meios acadmicos de tempos passados). Por outro lado, uma promiscuidade desenfreada tampouco desejvel. As performan- ces precisam nos convencer que elas representam a verdade, mesmo se ela contingente e incompleta. A verda- de do momento pode ser inaceitvel para o acadmico, mas ela tanto uma aspirao quanto um motivo a celebrar quando se trata da perfor- mance musical. REVI STA MSI CA | v. 13 | n o 1, p. 32-60, ago. 2012 | 59 SOBRE A PERFORMANCE REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BUTT, John. 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