Karatê - Artigo 01

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Barreira, C.R.A. & Massimi, M. (2006).

O caminho espiritual do corpo: a dinmica psquica no


karate-do shotokan. Memorandum, 11, 85-101. Retirado em / / , da World Wide Web
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/barreiramassimi03.pdf

Memorandum 11, out/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeiro Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/barreiramassimi03.pdf

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O caminho espiritual do corpo: a dinmica psquica no
karate- do shotokan

The spiritual way of body: karate- do shotokan psychological dynamic

Cristiano Roque Antunes Barreira
Marina Massimi
Universidade de So Paulo
Brasil

Resumo
O karate-do uma arte marcial de origem japonesa que tem como objetivo principal
formar o carter do praticante. A presente investigao explora percursos histricos,
tcnicos, conceituais e vivenciais das idias psicolgicas identificadas como inerentes ao
karate, visando conhecer seus estratos de base. Para tanto, o estilo shotokan do karate,
fundado por Gichin Funakoshi, analisado pelo prisma de pensamento de seu discpulo
Masatoshi Nakayama, um dos responsveis pela dispora mundial da arte. A essncia do
karate expressa pelo conceito de kime que define formas determinadas de ao em
funo de exigncias materiais e intencionais. O conceito de sun-dome contrape-se ao
kime, correspondendo a uma necessria conteno da inteno inicial. O equilbrio de
kime e sun-dome resulta no controle de si. Sob tais conceitos emerge zanshin, o esprito
de luta, que possibilita o acesso essncia do karate-do.

Palavras-chave: idias psicolgicas; karate; artes marciais; corporeidade;
fenomenologia.

Abstract
Karate-do is a Japanese martial art that has as its essential goal to form the character of
the practitioner. The present investigation explores historical, technical, conceptual paths
and lived experiences of karates psychological ideas aiming at comprehending its basic
stratus. Shotokan Karate style, founded by Gichin Funakoshi, is analyzed by the exam of
Masatoshi Nakayamas thoughts, as one of the persons responsible for the worldwide
spread of this art. Karate essences are expressed by the kime concept, which defines
determined ways of acting in function of material and intentional exigencies. As a
counterpoint, there is sun-dome, needed continence to kime with which it negotiates the
balance of self-control. Under that concept emerges zanshin, the fight spirit, which opens
the access to the karate-dos essence.

Keywords: psychological ideas; karate; martial arts; corporeity; phenomenology.

Introduo
O presente artigo d seqncia a trabalhos de pesquisa que tomam o karate como objeto
de investigao no mbito da psicologia, mais especificamente no campo da histria das
idias psicolgicas. O interesse inicial da psicologia pelo karate se consolida
primariamente pela constatao de que a finalidade dessa arte a formao do carter
do praticante. A investigao no se restringe a apurar a percepo cultural de centenas
de milhares de praticantes brasileiros, dentre alguns milhes de praticantes ocidentais.
Como objeto de pesquisa, em se tratando de um saber de razes orientais, evoca um
recorte privilegiado de experincias e de produes culturais que levam ao
aprofundamento de conhecimentos. Estes, por sua vez, em decorrncia da difuso da
prtica, transitam de leste a oeste do globo, ainda que partam de uma dinmica
psicolgica que, em funo de sua origem, se distingue do dualismo prprio da percepo
da modernidade do Ocidente.
Tendo como referncia o conjunto das idias psicolgicas vinculadas a um recorte do
karate shotokan, esta investigao prope-se a localizar e apreender os sentidos que
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definem tais idias. O recorte que delimita o objeto deste trabalho corresponde a um
momento de mediao, representado pelos trabalhos de Masatoshi Nakayama (1913-
1987), entre as origens okinawenses do karate prprias dos escritos de Gichin Funakoshi
(1868-1957) e sua posterior difuso pelo Brasil. O mtodo de pesquisa empregado,
inspirado na histria das idias psicolgicas, orienta-se pela perspectiva fenomenolgica.

Breve enfoque histrico: a difuso do karate shotokan
O karate aportou em Tquio, na dcada de 1920, trazido do arquiplago de Okinawa,
localizado no extremo sul do Japo. A dcada seguinte seria conhecida como os anos de
ouro do karate. Embora esse perodo presencie a aparentemente simples difuso de um
saber cultural no interior de um mesmo pas, durante sculos Okinawa viu seus laos
comerciais e culturais apontando mais China do que ao restante do Japo. Quando em
1868 ocorreu a Reforma Meiji, profundas e drsticas modificaes estruturais viriam
afetar a vida de um pas que, iniciando seus contatos com o mundo Ocidental, pretendia
modernizar-se politicamente. Naquele mesmo ano, nascia em Okinawa Gichin Funakoshi
que, aos onze anos de idade, iniciar-se-ia nas prticas de karate, tornar-se-ia professor
escolar e, mais tarde, seria o responsvel pela chegada daquela arte marcial a Tquio.
Sentindo a necessidade de contribuir para a solidificao dos laos nacionais, conforme
relato autobiogrfico, Funakoshi dedicou-se educao tanto como professor escolar,
quanto como professor de karate com intuito de aproximar a cultura de Okinawa do
restante do Japo. A regio em que vivia era dotada de algumas peculiaridades dialeto
prprio, afinidades com a China, traos fenotpicos da populao distintos dos
predominantes na populao do restante do pas que contribuam para uma viso
depreciativa da regio pelo arquiplago central.
Dada a situao poltica que se desencadeava no Japo no incio do sculo XX, em que a
tenso com a China eclodiria belicamente na dcada de 1930, se avolumava a tendncia
da populao okinawense em fortalecer sua identidade japonesa. A afirmao e a
valorizao da cultura local ganhavam fora e, na esteira dessa necessidade, Gichin
Funakoshi (1868-1957), professor que, alm do dialeto okinawense, dominava o japons
e tinha uma educao diferenciada era mestre nos clssicos confucianos foi
encarregado de dirigir uma demonstrao de karate diante do Imperador em 1921. Em
1922 foi a Kyoto (arquiplago central) para outra demonstrao e acabou convidado e
incentivado por Jigoro Kano (1860-1938), o fundador do jud (1882), a ensinar sua arte
em Tquio. Segundo sua autobiografia, diante do encorajamento de Kano e da
possibilidade de divulgar este brao de sua cultura local, Funakoshi decidiu por se
instalar ali e, aps anos de intensas dificuldades e mesmo penrias, seu intuito inicial
tomou vulto. Sua permanncia ali se estenderia at sua morte, em 1957.
A religiosidade nativa e plural do Japo (cuja unificao atende pelo nome de xintosmo),
o confucionismo e o budismo atravessam os direcionamentos morais e espirituais
instalados na prtica e na conduta dos praticantes de karate desde suas razes
okinawenses. Ao se difundir pelo Japo, tais direcionamentos encontraram-se com a j
bastante desenvolvida tradio do bushido, caminho do guerreiro, oriunda da
experincia de sculos de transmisso das prticas de combate dos samurais. Apesar de
proveniente de uma localidade pouco prezada pelo restante do pas, o esforo de mestres
como Funakoshi e outros resultou no reconhecimento do karate como genuinamente
japons. A partir da dcada de 1930, o karate passou a ser adotado e desenvolvido por
milhares de praticantes.
Masatoshi Nakayama (1913-1987), de tradicional famlia japonesa, iniciou sua prtica de
karate em 1931, quando ingressou na Universidade de Takushoku (1) tendo Funakoshi
como mestre. Entre 1937 e 1946, Nakayama esteve na China onde, alm de se manter
treinando karate, deu continuidade aos estudos de mandarim e de histria chinesa, por
cinco anos, na Universidade de Pequim. Posteriormente, trabalhou junto ao governo. Por
ocasio de seu retorno no ps-guerra, a maioria de seus colegas de treinamento havia
morrido ou abandonado o karate. Diante das restries legais prtica de artes marciais
impostas pelos Aliados, Nakayama movimentou-se no sentido de apresentar o karate
como uma espcie de boxe, conseguindo liberar o ensino e a prtica das restries ainda
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em vigor para as demais tradies marciais do pas. Nakayama fez parte, ento, do
grupo que fundou a Nihon Karate Kyokai em 1949, mais conhecida por Japan Karate
Association, tornando-se posteriormente seu lder. A JKA foi afiliada ao Ministrio da
Educao japons promovendo ainda mais o crescimento do karate. Entre suas principais
aes, agrupou karatekas e procurou formar instrutores e combatentes que tivessem a
mais extrema eficcia. No que tange continuidade da difuso do karate, entretanto, o
papel decisivo da JKA se deu via implementao do karate esportivo com normas para
competies. Sob sua liderana, o estilo de karate vinculado a Funakoshi, denominado
shotokan, espalhou-se por todo o mundo, sob as novas feies da JKA. No Brasil, a
dcada de 1960 assistiu a chegada de professores provenientes dessa organizao.
Masatoshi Nakayama enviou instrutores japoneses a vrios pases, escreveu diversos
livros, produziu vrios filmes de divulgao tcnica e circulou pelo mundo difundindo o
karate shotokan como modalidade esportiva competitiva, bem como o pensamento que
permeia sua prtica. diretamente dessa concepo de karate que se deriva a
compreenso da arte pela maioria de seus praticantes em todo o mundo. A despeito da
incluso do conceito de esporte competitivo e das vastas transformaes que a prtica
sofreu, a concepo atual do karate distante, mas no totalmente desvinculada da
proposta original de Funakoshi.

Apreenso dos sentidos das idias psicolgicas
Embora as produes relacionadas s artes marciais orientais sejam muito vastas, o
papel central da figura e da obra de Masatoshi Nakayama na difuso mundial de um
estilo especfico de karate, justamente aquele que acabou se tornando o mais praticado
no mundo, impe que se identifiquem os elementos essenciais a partir dos quais a
prtica e seus sentidos desenvolveram-se centrifugamente. Previamente elencados por
Gichin Funakoshi, os sentidos do karate shotokan encontram um momento distinto na
histria de suas idias psicolgicas a partir da aproximao feita por Nakayama da
experincia com textos antigos da tradio japonesa. Este momento foi prximo
chegada do karate no Ocidente.
Esta investigao objetiva identificar e apreender, em seu conjunto, os sentidos das
idias psicolgicas vinculadas ao karate desenvolvidas no intervalo compreendido entre
suas origens okinawenses, prprias dos escritos de Funakoshi, e sua difuso pelo Brasil.
Este momento especialmente representado pelos trabalhos de Masatoshi Nakayama.
De modo prognstico, pesquisas referentes a uma histria das idias psicolgicas do
karate devem propiciar condies terico-conceituais, sustentadas historicamente, que
permitam a aproximao fenomenolgica junto quelas vivncias inerentes sua prtica
e sua proposta de formao do carter. Assume-se que a dinmica de formao do
carter ocorra, no somente com fundamento nos textos que constituem a tradio, mas
tambm na experincia contempornea de seus praticantes.

Metodologia
A histria da psicologia e das idias psicolgicas atende s demandas pertinentes aos
objetos de cada pesquisa especfica para optar pelos rumos metodolgicos que melhor
lhe convenham. Assim, no caso da histria das idias psicolgicas inerentes ao caminho
do karate, as prprias condies de acesso ao objeto indicam trilhas opo
metodolgica, perfazendo simultaneamente objeto e mtodo.
A obra escrita de Masatoshi Nakayama (1913-1987), bem como uma entrevista que
concedeu poucos anos antes de sua morte (2), permitem, no apenas identificar e
relacionar as idias psicolgicas, mas tambm o lugar fundamental que ocupam como
descritoras dos principais objetivos atribudos ao karate. Sucedendo, derivando e
modificando os saberes tradicionais, expressos na obra de seu mestre Funakoshi, o
discpulo Nakayama, quando j mestre, imps-se como um dos principais intermedirios
da linhagem histrica da arte que germina em Okinawa e se expande pelo mundo.
Conforme trabalhos anteriores (Barreira e Massimi, 2002; Barreira e Massimi, 2003), as
pesquisas referentes a essas idias psicolgicas visam apreender os sentidos globais das
mesmas, de acordo com seus prprios escopos e na perspectiva da viso de mundo que
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lhes subjaz. Portanto, aps identificar o contedo dessas idias psicolgicas, busca-se,
naquilo que as precede e motiva, o auxlio para compreenso de sua finalidade e
horizonte. Tal contedo corresponderia ao sentido evocado pelas experincias vivenciais
inerentes ao karate, praticado em longo prazo, compreendidas como influenciadas pela
moral confuciana, pela espiritualidade zen budista e por textos da tradio guerreira
japonesa, o bushido tradio esta que tambm tocada pelas mensagens de Confcio
e Buda. Relacionam-se as caractersticas tcnicas associadas a uma prtica e a um saber
que, a rigor, no cindem idias de aes, mas as conjugam. O intuito observar, com
maior clareza, as decorrncias de certos desenvolvimentos prticos do karate.

Aspectos tcnicos e conceituais
Seria improvvel o sucesso da descrio de idias psicolgicas que subjazem na prtica
do karate, sem que se considerassem as variadas formas tcnicas assumidas e ali
desenvolvidas. Inicialmente sero enfocados prticas e mtodos que constituem o que,
provisoriamente, denominado o caminho do corpo. Essa nomenclatura considerada
provisria por prefigurar o deslocamento do corpo em relao ao esprito, o que, apenas
parcialmente encontra respaldo nos textos de Nakayama, principalmente se considerado
o argumento de cientificidade por ele desenvolvido com intuito de tornar o ensino da arte
mais compreensvel pelos ocidentais.
My experience in teaching students from Western
countries after the war has also provided me with
valuable hints, such as the habit of seeking answers to
questions from the fields of physiology and body
kinetics. (Nakayama, 1997, p. 11).
Dessa maneira Nakayama realiza certa compartimentalizao dos conhecimentos do
karate, que no havia nas formas mais antigas da arte. Portanto, sobretudo em
Nakayama, uma leitura disjuntiva entre tcnica e esprito compatvel com a apropriao
de uma viso ocidentalizada do karate, bem como de sua metodologia, embora tal
disjuno no encerre toda sua a perspectiva.
O karate antigo era ensinado e transmitido atravs de um mtodo principal chamado
kata. O kata como uma luta que o praticante realiza contra diversos adversrios
imaginrios. Cada kata tem seu prprio nome e um criador, no necessariamente
conhecido, que nele expressava suas preferncias tcnicas para a luta. Os kata
modificam-se com o passar do tempo de acordo, principalmente, com os estilos dos que
os praticam. Para o observador externo, o kata uma seqncia de vrios golpes e
defesas em movimento ritmado, atravs dos quais se nota uma intensa concentrao no
praticante. Todo kata comea com uma defesa representando a idia de que no karate
no existe o primeiro ataque (karate-do ni senti nashi), princpio sempre enfatizado por
Gichin Funakoshi.
Em termos prticos, o kata transmitiria quase toda a tradio do karate (salvo o artifcio
dos treinos com makiwara). Gichin Funakoshi menciona ter aprendido karate apenas por
meio do kata; entretanto, desenvolveu outros mtodos para facilitar o ensino e o treino
de aspectos isolados. A ocorrncia de tal sistematizao da prtica foi especialmente
motivada pelo grande nmero de alunos aos quais ele ensinava no Japo, enquanto, no
seu tempo, a aprendizagem era individual, junto ao seu mestre. Nakayama considera
que as novas sistematizaes eram motivadas pelo fato de que os novos praticantes no
Japo, em sua maioria, j tinham contato anterior com outras artes marciais, como o
Jud e o Kendo, artes estas que incluam combates. Atendendo aos mpetos desses
novos praticantes, Funakoshi lentamente foi desenvolvendo e introduzindo exerccios
para luta entre parceiros (3).
Trs conjuntos de mtodos passaram a ser praticados no karate: kata, kihon (fundamento)
e kumite (trabalho a dois). Segundo Nakayama, Funakoshi dizia que estas trs reas so
uma s e que no podem ser separadas (Hassel, 1983, p. 14). Levando em conta o fato
de que a maneira moderna de ensino do karate pretende que a assimilao tcnica seja
realizada do mais simples em direo ao mais complexo o kihon, seguido pelo kata e
depois pelo kumite, constituem, desde ento, a ordem comum de ensino.
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Acerca do kihon, afirma Nakayama: comeamos a praticar cada tcnica isoladamente,
caminhando para frente e para trs no tablado de treino, repetindo as tcnicas muitas
vezes. Este hoje o mtodo fundamental de treinamento (Hassel, 1983, p. 11). Um
nico golpe praticado seqencialmente permite maior ateno a elementos tcnicos
especficos que podem, assim, ser mais facilmente corrigidos. Mas o motivo de Funakoshi
para sistematiz-lo teria sido desenvolver o sentimento do ikken hissatsu (matar ou
parar o oponente com um nico golpe) no combate. A importncia de ikken hissatsu
ser abordada mais adiante.
As formas iniciais de luta (kumite) (4) foram seqenciadas em quatro tipos sucessivos
(5). Cada um deles ensinado gradualmente, visando dirimir a necessidade de ateno
consciente aos princpios mais importantes do karate, obedecendo ao processo de
aprendizagem explorado neste artigo.
O Makiwara uma pea usada para golpear e seu valor no est s no fortalecimento
das partes do corpo usadas para atacar e bloquear, mas tambm no aprendizado da
concentrao da fora de todo o corpo no punho na hora do impacto (Nakayama, 1996a,
p.135). uma prtica antiga que aprimora e treina a definio (6) e, conseqentemente,
o ikken hissatsu, j que essa a inteno de um kime ideal. Da a considerao de que
a prtica com makiwara a alma do karate (idem). Mas, por qu? Seria essa a alma do
karate, a eliminao de um adversrio com um golpe?
Para que isso seja compreendido, preciso deixar o escopo simplificado das descries
ocidentalizadas de Nakayama e penetrar nas entrelinhas de seus textos, bem como
buscar as informaes referentes s influncias sofridas pelo karate. Nesse momento,
importante recordar afirmaes feitas pelo prprio Nakayama de que o treino nos kata
tanto espiritual quanto fsico (1996c, p.13) e assim para todo o karate, uma busca
da perfeio do carter atravs da expresso fsica (Hassel, 1983, p.17).

Kime: o esprito impelido
Nos volumes da srie O Melhor do Karate, Masatoshi Nakayama chama a ateno para
interpretaes inapropriadas do que o karate. No texto trata da importncia de
aspectos que so abordados no presente estudo, quais sejam os espirituais, neles
enquadrando-se a necessria atitude apropriada, a cortesia e etiqueta, a luta em nome
da justia, o cultivo de um esprito sublime, de um esprito de humildade.
lamentvel que o karate seja praticado apenas como
uma tcnica de luta. As tcnicas foram desenvolvidas e
aperfeioadas atravs de longos anos de estudo e de
prtica; mas, para se fazer um uso eficaz dessas
tcnicas, preciso reconhecer o aspecto espiritual
dessa arte de defesa pessoal e dar-lhe a devida
importncia. gratificante para mim constatar que
existem aqueles que entendem isso, que sabem que o
karate-do uma genuna arte marcial do Oriente, e que
treinam com a atitude apropriada.
Ser capaz de infligir danos devastadores no adversrio
com um soco ou com um nico chute tem sido, de fato,
o objetivo dessa antiga arte marcial de origem
okinawana. Mas, mesmo os praticantes de antigamente
colocavam maior nfase no aspecto espiritual da arte
do que nas tcnicas. Treinar significa treinar o corpo e
o esprito e, acima de tudo, a pessoa deve tratar o
adversrio com cortesia e a devida etiqueta. No basta
lutar com toda a fora pessoal; o verdadeiro objetivo
do karate-do lutar em nome da justia.
Gichin Funakoshi, um grande mestre de karate-do,
observou repetidas vezes que o propsito mximo da
prtica dessa arte o cultivo de um esprito sublime, de
um esprito de humildade. E, ao mesmo tempo,
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desenvolver uma fora capaz de destruir um animal
selvagem enfurecido com um nico golpe. S possvel
tornar-se um verdadeiro adepto do karate-do quando
se atinge a perfeio nesses dois aspectos: o espiritual
e o fsico. (Nakayama, 1996a, p. 09).
Nakayama considera que a eficcia das tcnicas depende de uma atitude apropriada. Em
meio a textos que tm, mormente, um carter tcnico, ocasionalmente surgem referncias
atitude necessria aplicao das tcnicas quando o autor as descreve. Se Nakayama
aponta o objetivo do karate-do como o de possibilitar uma potente capacidade fsica
(infligir danos devastadores no adversrio), alerta tambm que a nfase seja no aspecto
espiritual, o que serviria no s como catalisador do poder fsico, mas, principalmente,
como contentor do uso desse poder. Nesse sentido, ter vasto poder implica em utiliz-lo
em nome da justia, ladeado pela cortesia e etiqueta. Numa remisso a Funakoshi, este
manifestou seu pensamento de que a moralidade vem de encontro com a finalidade,
fundamentada no pensamento confuciano, de estabelecimento da paz e da harmonia (7).
Ressalte-se que Funakoshi foi o grande responsvel pela difuso de uma srie de cinco
kata bsicos denominados Heian, que se traduz por paz e harmonia. O pensamento de
Funakoshi permeia, ao menos parcialmente, a mensagem de Nakayama, reafirmando o
karate como uma busca de perfeio espiritual e fsica, fortalecendo uma concepo em
que se conjuga a presena de uma enorme fora com humildade.
Aps a Introduo, cada volume da srie traz uma parte intitulada O que o karate-do,
que se inicia com o recorte transcrito abaixo:
Decidir quem o vencedor e quem o vencido no o
seu objetivo principal. O karate-do uma arte marcial
para o desenvolvimento do carter atravs do
treinamento, para que o karateka possa superar
quaisquer obstculos, palpveis ou no. (Nakayama,
1996a, p.11).
O autor define, pois, como um dos principais objetivos do karate, no o que est restrito
possibilidade de uma luta real e concreta entre dois homens e sim a potencializao de
algo que pode ser considerado como similar ao mbito do psquico. Nesse sentido, ter-
se-ia a prtica com a ateno e pensamento voltados a um objetivo concreto, que o de
postar-se e habilitar-se luta, potencializando uma fora que, sem mediao, se estende
disposio, mente, ao no palpvel, ao simblico. o prprio pensamento do autor,
portanto, que autoriza a extenso de suas consideraes como irrestritas ao uso tcnico
e ampliveis ao universo das idias psicolgicas e morais. Tal ampliao adicionalmente
respaldada nas palavras de orientao ao treinamento escritas por Funakoshi e oriundas
da tradio que o precede:
... pense na vida de cada dia como um treinamento em
karate. No limite apenas ao doj, nem o considere
apenas como um mtodo de luta. O esprito da prtica
do karate e os elementos do treinamento se aplicam a
todos e a cada um dos aspectos da nossa vida diria.
(Funakoshi, 1998, p.51)
Volta-se ao texto de Nakayama, assumindo-se agora que da boa condio psquica
dependa a correta aplicao da tcnica, condio que corresponde meta a ser assimilada
para proporcionar a formao do carter e como recurso vida de maneira geral: As
tcnicas do karate-do so bem controladas de acordo com a fora de vontade do karateka
e so dirigidas para o alvo de maneira precisa e espontnea (Nakayama, 1996a, p.11).
Portanto, o treinamento proporciona ao karateka a aplicao de sua fora de vontade,
isto , a realizao daquilo que decididamente quer, de maneira objetiva e natural. Nota-
se, claramente, que o karate de Nakayama explicita uma inteno de orientar um padro
desejvel de atitude pessoal (8), no como uma imposio, mas como uma constatao
imperativa diante das condies forjadas no treinamento.
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A fora de vontade o primeiro motor, primeira energia que deve ser preparada,
treinada para dirigir-se aos objetivos com um formato determinado. Observe-se como
Nakayama define este formato:
A essncia das tcnicas do karate-do o kime. O
propsito do kime um ataque explosivo ao alvo
usando a tcnica apropriada e o mximo de fora no
menor tempo possvel. (Antigamente, havia a
expresso ikken hissatsu, que significa matar com um
golpe, mas concluir disso que matar seja o objetivo
dessa tcnica to perigoso quanto incorreto. preciso
lembrar que o karateka de antigamente podia praticar o
kime diariamente e com uma seriedade mortal usando
o makiwara). (Nakayama, 1996a, p.11)
Essa idia alusiva a toda a tradio de que herdeiro e que tem na obra escrita de
Funakoshi a maior representao o princpio de todo o pensamento a respeito do
karate na viso de Nakayama, devendo fazer-se sempre presente, pois define o prprio
karate: Uma tcnica sem kime jamais pode ser considerada um verdadeiro karate, por
maior que seja a semelhana (1996a, p.11). Como ser destacado, vrias descries de
Nakayama so derivaes do conceito de kime, mais sugestivas do que concerne ao estado
de determinao da atitude mental necessria ao uso do karate, de suas tcnicas e do
prprio kime.

Sun- dome: o perigo e a regra
Entretanto, da potncia do kime derivam-se riscos relacionados sua aplicao:
A disputa no nenhuma exceo, embora seja
contrrio s regras estabelecer contato por causa do
perigo envolvido.
Sun-dome significa interromper a tcnica
imediatamente antes de se estabelecer contato com o
alvo (um sun equivale a cerca de trs centmetros).
Mas excluir o kime de uma tcnica no o verdadeiro
karate, de modo que o problema como reconciliar a
contradio entre kime e sun-dome. A resposta a
seguinte: determine o alvo levemente adiante do ponto
vital do adversrio. Ele ento pode ser atingido de uma
maneira controlada com o mximo de fora, sem que
haja contato.
O treino transforma as vrias partes do corpo em armas
a serem usadas de modo livre e eficaz. A qualidade
necessria para se conseguir isso o autocontrole. Para
tornar-se um vencedor, a pessoa antes precisa vencer a
si mesma. (Nakayama, 1996a, p.11)
Com o sun-dome, Nakayama agrega determinao de realizao da vontade (associada
ao kime) a necessidade de controle, de contenso, de outro tipo de auto-controle que
exige que o praticante se volte sobre si mesmo e considere o perigo. Conforme o texto
inicialmente transcrito, o perigo que exige a existncia da regra. A regra delimitaria as
fronteiras obedecidas pelo controle e, quando assimilada e esquecida, acarretaria a
naturalidade e a espontaneidade do controle. Pois ento, se o karate para Nakayama
proporciona o mtodo de realizar a vontade, exige tambm que a mesma seja contida,
controlada, submetida aos limites delineados pela realidade do perigo.
Considera-se que todas as coisas comeam e acabam na mente (Hassel, 1983, p.31) e
que esta deva estar em harmonia com o corpo, para que haja o auto-controle. Ainda que
em nenhum momento Nakayama faa aluso explcita ao que so exatamente o corpo e
a mente, o fato de recorrentemente expressar que o karate no apenas uma luta mas
um mtodo de formao do carter faz supor que no se refira ao corpo apenas como
organismo fsico, a ser treinado para habilitar-se a responder aos comandos da mente.
Barreira, C.R.A. & Massimi, M. (2006). O caminho espiritual do corpo: a dinmica psquica no
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Ao corpo estariam associadas tambm as emoes, que devem ser controladas, isto ,
habilitadas a responder aos comandos da mente que, por sua vez, precisa seguir
alinhada com os princpios da moral e da razo. Todavia, a prpria mente no est
dissociada dos aspectos emocionais a serem controlados, pois Nakayama claro ao dizer
que para haver a habilidade fsica exige-se total controle da mente, o que traz implcito
que a mente no gerenciada por uma razo fria, destacada do corpo e, por isso,
hermtica s suas influncias. Nesse sentido, ainda que se constate um discurso que
separa mente e corpo, tratando-os de forma semelhante cartesiana (9), reconhece-se a
presena, ainda que ambgua, da tradio oriental, que no admite real disjuno entre
mente e corpo (10). H uma interdependncia entre mente e corpo, que j sugere a
condio de unidade do homem, unidade que tem sua harmonizao como ideal na
espiritualidade oriental. De toda forma, essa ambigidade evidencia o plano de
interseco Oriente/Ocidente, no qual se configura, nas palavras de Masatoshi
Nakayama, esse karate moderno e cientfico que , ao mesmo tempo, uma genuna arte
marcial do Oriente. Nesse plano, os traos do fantasma cartesiano, com seu dualismo,
comeam a provocar marcas profundas na prtica e pensamento do karate.
O treinamento baseado apenas na prtica esportiva, visando os pontos que levam
vitria, no tido como suficiente para que haja real controle de tcnicas, nem
autocontrole e tampouco para que sejam realizados os objetivos do karate-do. O
treinamento que proporcionaria controle seria aquele em que h o ikken hissatsu (matar
com um golpe), isto , em que existe a inteno mais prxima da realidade do combate,
da disputa entre vida ou morte e no uma inteno de entreter-se na busca por pontos.
necessria a proximidade com a representao da mxima violncia potencial, aquela
que se aproxima da morte, para obter-se controle e se fazer do karate um caminho de
vida. Isso porque os limites que o controle visa assimilar so limites de risco absoluto, do
paroxismo do perigo, ou seja, a potencialidade do extremo como a morte atravs de
um golpe no karate que mostra a necessidade de limites.
Os limites tomam dois itinerrios inversos, dependendo da tessitura de sua configurao. O
limite posto pelo karate esportivo - em que se colocam praticantes frente a frente para
combater, sob a condio de se respeitar a integridade fsica do adversrio est no
perigo de golpear sem conteno do impacto. H uma ambigidade entre vontade de
acertar e vontade de controlar o golpe, isto , em fazer o movimento ir e em seguida
interromp-lo. J no karate no esportivo, idealmente, no h predisposio alguma luta,
mas apenas prontido imediata diante da necessidade, o que corresponde a um evento de
vida e morte. O limite compelido no perigo contrrio, o de ineficincia do golpe, de
ineficincia em conjugar fora de vontade e capacidade fsica. Aqui, o risco de morte o
risco de que esse golpe no se realize por falta de resistncia fsica, potncia muscular,
capacidade tcnica ou fora de vontade, j que o evento imaginrio do qual se parte no
treinamento, evento ligado ao mito fundador do karate, no deixa dvida de que ou se
golpeia para matar e se eficiente, ou a derrota e a morte de si so certas e idnticas.
Esses tratamentos diversos dados ao perigo e ao limite, de acordo com as condies reais
e imaginrias que constituem toda prtica de karate, incorrem em duas concepes de
controle diversas, que merecero um exame minucioso em outro trabalho.

Razes histrico-culturais da exigncia de kime
Fazer presente a inteno imaginria de matar, ou melhor, a disposio de matar ou
morrer lutando, corresponderia a manter representado aquilo que originou as prticas de
combate, como a violncia, que assume seu auge na guerra: Nas primeiras guerras, o
instinto para a vida trazia consigo, naturalmente, o conceito de matar ou morrer. Isto ,
o guerreiro tinha que matar o inimigo ou ser morto por ele (Hassel, 1983, p.19). De
acordo com Nakayama, esse elemento constitui o pilar da cultura nipnica que sustenta
uma filosofia chamada heijo-shin-koro-michi:
Isto quer dizer que o guerreiro deveria se esforar em
ser o mesmo na aparncia, no obstante o que ele
estivesse fazendo ou o que estivesse vestindo. Quer ele
esteja simplesmente indo para o seu dia a dia ou indo
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para a guerra encarando a morte, ele deve ser o
mesmo e agir igual confiante, calmo e preparado para
agir, e completamente alerta internamente. (Hassel,
1983, p.19)
Nakayama acresce que o zen, o confucionismo e o xintosmo foram estudados pelos
guerreiros que passaram a utiliz-los (como at o hoje o so) para entender esta filosofia
que, para ele, a espinha dorsal da tradio nipnica. Retoma-se aquilo que se expressa
nas prticas do kime e do ikken hissatsu, que o conceito de que no h segunda
chance. Muitas coisas devem ser feitas corretamente na primeira vez, ou a pessoa
morre (Hassel, 1983, p.10).
Os elementos reunidos at aqui constituem os alicerces do incio da compreenso dos
objetivos do karate, segundo a concepo de Nakayama. Note-se que se associam,
invariavelmente, questo do controle, controle para dirigir a inteno e fora no
cumprimento de um determinado objetivo, controle para conter, dentro daquilo que se
delimite como justo, a fora muscular ou as intenes morais. Para que se desenvolva o
verdadeiro saber a respeito daquilo que se delimita como justo, no bastam nem a
norma e nem a razo, preciso a vivncia, o contato com a natureza; da a necessidade
de proximidade com o risco e com a violncia. Essa experincia criaria certezas morais,
oferecidas diretamente pela natureza (11). Assim, o perigo impe a necessidade de
regras, as quais delimitam as fronteiras da ao. As fronteiras so reconhecidas como
naturais e somente o contato com elas possibilitaria a assimilao das regras e o
conseqente auto-controle (12).
O controle adquirido e expresso fisicamente, atravs dos conceitos de kime e sun-
dome. O kime proporciona controle ao promover a aplicao mxima da vontade, de
maneira dirigida, com total concentrao no objetivo essencial. O sun-dome proporciona
controle ao promover a conteno, de acordo com a regra decorrente do perigo. Ambos
devem atuar, equilibrando realizao e conteno da vontade, dentro dos limites
estabelecidos pela regra, pelo que justo.

Trs nveis de aplicao de si
O karateka orientado a aplicar-se a si prprio para que, ao interromper a luta, promova
a paz e harmonia, de acordo com princpios de justia, garantidos pela experincia e pela
razo. A aplicao de si prprio se d na relao entre corpo e esprito, dentro de uma
concepo de desenvolvimento humano que se estende da habilidade de reao
habilidade de antecipao. Nessa extenso no h verdadeiro privilgio do esprito ou do
corpo, pois as reaes fsica e tcnica no determinam soluo de continuidade entre
ateno e sensibilidade. Nas descries de Nakayama, possvel localizar trs nveis para
a aplicao de si prprio que esto ao longo da extenso entre reao e antecipao.
Essa aplicao dar-se-ia, em princpio, tecnicamente: Com um bloqueio apenas, braos
e pernas transformados em ao pelo treino dirio podem causar um tremendo impacto
no adversrio e abalar sua vontade de lutar. (Nakayama, 1998b, p.120)
Se abalar a vontade de lutar pode se dar em um nvel tcnico, h tambm a possibilidade
de domin-lo em outro aspecto, pormenorizado em Zanshin: O Esprito de Luta:
Dominando o adversrio com seu esprito, voc pode induzi-lo ao e derrot-lo. Em
suma, o esprito o ponto principal na vitria
.
(Nakayama, 1998a, p.44).
Finalmente, tem-se a viso de um momento tercirio, um estado de esprito que como
empenho de si para evitar o combate se antecipa ainda mais do que a tcnica ou o
domnio do esprito do adversrio:
... karate ni senti nashi (no h primeiro ataque no
karate) um desejo para harmonizar as pessoas. No
kata Kanku Da, este desejo de harmonia est
simbolizado em seu primeiro movimento, como no h
em nenhum outro kata e que no demonstra
diretamente nem ataque nem defesa. As mos esto
erguidas e unidas acima da cabea, as palmas para fora
e o karateka olha para o cu atravs do buraco
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formado pelos seus dedos e o polegar. Este movimento
expressa identificao com a natureza, tranqilidade de
mente e corpo, e desejo de harmonia. O karateka que
entende isso ter um corao modesto, uma atitude
gentil, e um desejo de harmonia. (Hassel, 1983, p.22)
Se para Nakayama ser capaz de se proteger sem causar nenhum dano vida humana
a prpria essncia do karate-do

(Nakayama, 1998b, p.120), prope-se que, idealmente,


essa essncia corresponda a busca de um saber para proteger-se a si, em qualquer
momento do processo que se estende do selvagem ao civilizado, seja atravs da
aplicao tcnica ou atravs da transcendncia espiritual. Karate seria manter-se
passando por e preparando-se para todo e qualquer nvel do processo, selvagem ou
civilizado, onde a aplicao de si preste-se a, ao interromper a luta, obter paz com
justia. A preparao interpretada de acordo com a mentalidade ocidental que j se
anuncia no texto de Nakayama se d sempre atravs de um retorno a uma espcie de
violncia fundadora, aquela que orienta as fronteiras que serviro de base para as regras
entre os homens, regras que se graduam na configurao da civilizao. Nessa
configurao, vrios cdigos, cujo exame no compete presente investigao, definiro
regras e significados de conduta. Porm, o que se destaca como propriamente oriental
nesses sentidos sincrticos do karate o papel dado sensibilidade corprea como
protagonista do processo fluido de um combate que negocia uma concluso. Na
realidade, quando se trata de abordar as fronteiras entre vida e morte, na situao
imaginria ou factual de um combate de karate, pouca ou nenhuma regra pr-
estabelecida se sustenta. Diferentemente, o combate esportivo de karate se desenrola
dentro de um conjunto de cdigos e regras que se desenvolveram considerando a
representao da fronteira vida/morte, mas, contemporaneamente, afastando cada vez
mais uma abordagem realmente vivencial dessa fronteira. As regras, artifcios
racionalizados, correspondem proposta levantada por Norbert Elias (Elias e Dunning,
1994), de correlao necessria entre processo civilizatrio e minimizao da violncia na
prtica dos jogos e das disputas do Ocidente moderno que vieram a constituir,
respectivamente, os esportes da maneira atualmente conhecida e a democracia moderna
num sistema jurdico de igualdade de todos perante as normas e a lei.
A capacidade de proteo e garantia da justia, a que o ideal de karate deve servir pelos
trs nveis de aplicao de si, so intimamente ligados ao pensamento confuciano, o qual
considera que o rompimento da harmonia causa uma reatividade natural, no
necessariamente imediata. O homem o responsvel pelo rompimento da harmonia e
cabe a ele restabelec-la, antes que advenham conseqncias desastrosas. No
confucionismo clssico, esses desastres podem se restringir ao mbito poltico, como
tambm se estender a catstrofes naturais, como tempestades e terremotos, de acordo
com as crenas mais antigas do mundo sino-aculturado. Preparar o praticante, fazendo-o
passar por situaes em nveis mais e menos regulados o que depende, sobretudo, da
poca e conjuntura scio-histrica a proposta das artes marciais japonesas. Elas
evoluram historicamente partindo dessa relao, inicialmente direta, com a violncia
extrema e se afastando dela pouco a pouco, sem perder este evento fundador nem de
vista, nem tampouco do imaginrio.
Originalmente, quando as tcnicas de karate foram
primeiramente desenvolvidas o raciocnio era muito
simples: ns estamos frente a frente, e ento ou voc
me mata ou eu vou te matar. Estas artes nasceram em
pocas de guerra.
Nos tempos modernos, entretanto, ns no estamos
face s mesmas situaes como aquelas que primeiro
usamos para autodefesa. O desenvolvimento do Budo
em oposio ao Bujutsu recai sobre o princpio do forte
desenvolvimento espiritual e na firmeza do carter.
Este o real valor do Budo para a existncia humana.
(Hassel, 1983, p.33)
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Bujutsu (13) uma prtica que se mantm numa perspectiva blica utilitria, enquanto o
Budo uma prtica de vida e desenvolvimento espiritual que se prope a, passando pelo
escopo blico, adquirir o saber para evit-lo ou sua super-lo, de modo justo. H uma
insistncia constante de Nakayama, e anteriormente de Funakoshi, de que devam ser
colocados profundos alicerces, para depois se avanar para estgios mais sofisticados.
Karate-do e Budo fazem da guerra, do conflito como estgio mais primitivo ou selvagem,
a base para o aprimoramento do carter e do esprito. Dessa base estabelecida no
sentimento de proteo da prpria vida, vivenciado no conflito de vida e morte
pretende-se um constante desenvolvimento que, pouco a pouco, ilustra-se neste
trabalho. Cite-se como exemplo os prprios conceitos de kime e sun-dome de que ora
se trata e que fundamentam concepes vivenciais de moralidade.
A nfase no que se refere ao controle, que no apenas a conteno (sun-dome), mas
anteriormente convergncia, a determinao exigida para que se dirija a fora e inteno
(kime), o objetivo que mais se explicita dentre as idias de cunho psicolgico da obra
de Nakayama, idias herdadas e modificadas de Funakoshi. Todavia, em alguns
momentos, Nakayama parece sugerir uma finalidade oculta que transcende a busca por
controle, seja o controle por convergncia, seja o controle por conteno. Essa
transcendncia um tema a ser desenvolvido em outro artigo, mas sendo um dos mais
altos objetivos do karate, mencionada a seguir. Randall Hassel, redigindo a introduo
entrevista concedida por Nakayama, relata algo que ele teria dito:
O mais alto grau do karate-do, ele disse, transcender
o corpo e a mente, um estado no qual a mente e o
corpo movem-se suavemente, independentemente da
idade ou da condio fsica. Ainda que ele fosse
relutante em admitir isto, os seguidores de Nakayama
acreditam que ele tenha alcanado este estado e se
movia para alm dele. Ele no era um homem comum
disse um instrutor. (Hassel, 1983, p.4)

Zanshin: o esprito de luta
... O esprito o ponto principal na vitria... (Nakayama, 1998a, p.44).
Por esprito de luta entende-se uma gama de condies psicolgicas que, de certa forma,
define o carter do praticante de karate. O esprito de luta faz parte do caminho do
karate, pois condio para trilh-lo. Ao mesmo tempo, o esprito de luta faz parte dos
objetivos do karate. Cabe ressaltar que tanto a busca pela vitria, quanto o prprio
esprito de luta, alm de se constiturem como valores em si em uma luta real, so
tambm e talvez principalmente valores de carter moral que norteiam a atitude
cotidiana do karateka. O karateka faz de sua experincia uma espcie de fonte
conceitual, isto , faz da luta uma fonte de referncia para a vida e para o modo de
encar-la. A experincia da luta assume o lugar de referncia concreta diretamente dada
pela natureza de onde surgem conceitos para a vida. Esses conceitos so claros em ditar
o certo e o errado moral a partir do envolvimento com a natureza, que s pode acontecer
com o empenho corporal.
O que sustenta tais consideraes pode ser resumido pelo que Nakayama chamou de o
denominador comum (Hassel, 1983, p.20) da cultura japonesa, a filosofia heijo-shin-
koro-michi (14). Ela se refere ao modo de se posicionar frente vida e morte,
originado das experincias dos samurais durante os perodos de guerras constantes no
Japo feudal. Alm disso, o pensamento confuciano refora a sustentao dessas idias
no que diz respeito naturalidade (15) do que se define como certo e errado. A
necessidade de sobrevivncia em uma luta define o modo de ser do guerreiro e sua
atitude nas relaes polticas. Antecipa-se que, para o aprofundamento do
desenvolvimento espiritual, ocorrer uma importante reorientao de perspectiva quanto
a esse olhar que, no entanto, mantm-se vinculado questo originria da vida e da
morte. Mas, por esse momento, basta que se considere que o zanshin constitui uma
atitude para com a vida o que no exclui a morte , suas dificuldades, seus conflitos.
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Pode-se afirmar que, em relao ao esprito de luta, a nfase de Nakayama recai sobre
aquilo que estaria manifesto no kime. O kime j definido caracterizar-se-ia como uma
manifestao fsica e tcnica de um feroz esprito de luta (Nakayama, 1996a, p.110), de
uma atitude de determinao, de impetuosidade, de inteno decidida. Nakayama insiste
na necessidade de que haja esse esprito. Tome-se como exemplo a descrio do jiy
ippon kumite (16): Nakayama afirma que nenhum dos dois praticantes deve achar que
tem uma segunda chance; o primeiro ataque, ou o bloqueio, decisivo (p.124). A
necessidade de determinao constantemente referendada e permite que a deciso
seja tomada sem que se vacile. Nakayama apresenta os riscos da dvida.
Na iminncia de um chute ou de um soco, se voc for
assaltado pela dvida ou se titubear diante do mpeto
do oponente, voc vacilar no momento de desferir o
ataque, o corpo se enrijecer e uma abertura mental
ocorrer. (Nakayama, 1998a, p.19)
Isso o mesmo que perder o controle, solidariamente, do corpo (que se enrijecer) e da
mente (na qual uma abertura ocorrer). Estar altamente determinado e tomar a deciso,
aplicando-a com todo o mpeto, condio para que haja real controle da situao,
tomando como princpio o prprio autocontrole. Dessa maneira indica-se, como uma das
primeiras fases do desenvolvimento da atitude ideal, que a vontade, o mpeto, aprendam
a ser direcionados incisivamente, em oposio a uma possvel difuso, uma divergncia
da inteno e da energia, que impossibilita objetivar a ao. Isto , o kime, manifestando
a condio de se estar decidido e determinado, educa um controle no qual:
A potncia mxima a concentrao da fora de todas
as partes do corpo no alvo, no apenas a fora de
braos e pernas.
Igualmente importante a eliminao das foras
desnecessrias ao se executar uma tcnica, o que
resultar na aplicao de uma maior potncia onde ela
for necessria. (Nakayama, 1996a, p.50)
Essa forma de controle, que direciona e concentra a inteno e a fora, no tida como tudo o
que necessrio ou suficiente. Corresponde apenas a um aspecto que, por outro lado, exige a
descontrao. Para a competio do kata os principais aspectos levados em considerao no
julgamento so a fora e o esprito, mas tambm a moderao (Nakayama, 1996a, p.133).
Como critrio de avaliao da maneira de ser apontam-se o equilbrio, o autodomnio e, no
meramente, uma expresso de raiva concentrada, por exemplo.
O equilbrio educado com a experincia; no a tentativa consciente e racional que
proporciona o equilbrio. Tanto a fora quanto a moderao tm origem, e podem ser
expressas, em uma localidade do corpo que centraliza a atitude de esprito: alm de ser
uma fonte de potncia, os quadris constituem a base de um esprito estvel, de uma
forma correta e da manuteno de um bom equilbrio (Nakayama, 1996a, p.52). A
estabilidade e a fora do esprito manifestam-se atravs dos quadris, que tm um vnculo
estreito com o hara, ventre, centro da energia vital do homem e responsvel por seu
estado de esprito no entendimento da tradio japonesa (17). Mas, se voc estiver
obcecado por ter boa forma, ser impossvel manter uma postura realmente correta
(Nakayama, 1996b, p.56), o que significa que uma ateno consciente obcecada no
resultar na estabilidade do esprito. A tentativa forada de manifestar-se estavelmente
no faz a estabilidade, mas antes a impossibilita. O desenvolvimento mtuo (corpo e
esprito) e gradual, o homem evoluindo como um todo. Se h um direcionamento da
fora e da inteno que precisa ser aprendido, h tambm um estado de esprito ideal
que deve gerenci-lo, o que significa evitar que fora e inteno sejam obsesses que
aprisionem o esprito do karateka. Esse ideal o perfeito zanshin.
O que ns precisamos, acredito, um equilbrio em todas as coisas (Hassel, 1983,
p.34). Esse equilbrio deve acompanhar aquilo que a situao exige; , portanto,
dinmico e no esttico. Numa forma confuciana de pensar, o homem responsvel pelo
equilbrio e pelo desequilbrio de qualquer situao, devendo estar preparado para,
constantemente, retomar o balano, de modo que relaxe sempre a fora desnecessria,
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mas esteja alerta e pronto para aplicar toda a fora do seu corpo e seu esprito de luta no
instante em que for chamado (Nakayama, 1996b, p.110). Esse princpio dinmico rege a
maneira acertada de equilibrar. Referindo-se ao verdadeiro praticante do budo,
Funakoshi versava que seu sorriso pode conquistar at o corao das crianas, sua ira
pode fazer um tigre encolher-se de medo (Funakoshi, 1998, p.50). Esse modelo
contrape-se ao esteretipo do praticante de artes marciais como pessoa sempre tensa.
A tenso surge como exigncia de restabelecimento do equilbrio.
So dois, portanto, os aspectos solicitados ao esprito de luta: determinao e
descontrao. Nakayama (1996a, p.28) define como princpio de descontrao alerta a
postura natural (shizen-tai) em que o corpo est relaxado, mas em estado de alerta,
pronto para enfrentar qualquer situao.
Esse princpio parece ser uma definio que, num paralelo ao trabalho muscular do
karateka, pede que ao dar o soco comece com a posio correta e mantenha toda a
fora desnecessria afastada da mo ou do brao (Nakayama, 1996b, p.110). Os
praticantes de karate experimentam que a rigidez muscular prvia ao soco atrasa seu
disparo e o torna mais lento, sendo, portanto, prefervel um quase completo relaxamento
da musculatura do brao ou da perna antes de golpear. Para o esprito de luta, o
funcionamento semelhante. Deve-se estar alerta, ter ateno verdadeira, mas uma
qualidade de ateno desprendida qual Musashi, citado por Nakayama, se refere:
cuide para que a mente no se fixe num nico ponto, mas vagueie tranqilamente sobre
todas as coisas (Nakayama, 1998a, pp.22-23). algo semelhante a um relaxamento
atento, que permite mente agir de imediato sobre o que lhe seja solicitado: Muitas
vezes eu digo aos estudantes que h postura e no h postura. O que eu quero dizer
que h uma postura mental, mas no h postura fsica (Hassel, 1983, pp.22-23).
O termo zanshin quase sempre traduzido nas academias brasileiras de karate pela
expresso esprito de luta, traduo que, embora no seja incorreta, no evidencia, o
significado mais sutil de seu contedo. Se no h nenhuma referncia postura
concebida pela filosofia heijo shin koro michi, a expresso esprito de luta est aberta a
diversas compreenses, que podem ir de ferocidade incitao pelo gosto de bater,
dependendo do hbito corrente numa academia, ou mesmo do imaginrio pessoal a
respeito da atitude ideal para o combate. De toda forma, pode-se avaliar que a imitao
foi a principal referncia ao longo da histria do karate no Brasil e teve a capacidade de
manter o esprito de luta associado resoluo, determinao e tranqilidade, ou
serenidade, para o combate (18). Zanshin, no entanto, vai alm desses significados e,
com suas razes nos clssicos de Musashi, Takuan e Munemori no sc. XVI, tem uma
conotao que refina essas caractersticas do estado psicolgico. Trata-se de um
estado de esprito calmo, vigilante, mas no tendendo a
uma inteno precisa enquanto esta inteno no tenha
sido decidida e, a cada vez que nenhuma ao est
ocorrendo, ento, tanto antes como imediatamente
aps o combate. Zanshin a manifestao de um
estado mental livre, neutro, que no est fixo sobre
nada, ento, capaz de reagir instantaneamente
primeira solicitao, em face de toda eventualidade.
Este estado de calma aparente , no entanto, vigilante
(ateno ativa), no um estado de inatividade mental.
(Harbersetzer e Harbersetzer, 2000, p.793)
A chave para o zanshin a confiana na capacidade de agir instantnea, determinada e
eficazmente. Para adquirir tal confiana, que pode ser interpretada como o que subjaz ao
prprio kime, necessrio o treinamento atravs de muita repetio e concentrao.
Pode-se ler o zanshin como a contra-face da mesma pea em que est talhado o conceito
de kime. Para a determinao e definio, antes preciso o desprendimento e a
contemplao; para a contrao, antes preciso a descontrao. Sendo a categoria
complementar do kime e tomando parte na essncia do karate, o zanshin possibilita a
eficcia do kime, e vice-versa. Nesse equilbrio dinmico encontra-se, no apenas o
princpio do karate-do, mas tambm o princpio da vida como um todo. Esse princpio, no
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mundo sino-aculturado, assume a mescla dos paradoxos como a via ternria pela qual a
vida flui (Cheng, 1997).
verdade que o karate do sculo XX centrou sua prtica no conceito de kime e na
aquisio de potncia, muitas vezes levando os karatekas a assumirem uma postura
rgida e militarizada. Nakayama, mesmo tendo sido um dos mais importantes expoentes
desse karate competitivo, faz afirmaes na contramo dessa tendncia: No mais alto
grau de desenvolvimento, penso, o karateka dever ter uma no postura para tudo no
postura para a mente, e no postura para o corpo (Hassel, 1983, pp.22-23).

Sinopse conclusiva
A expresso corporal da aplicao dirigida da vontade o kime, com a explosividade da
tcnica e com a inteno determinada. Assume-se a existncia do ikken hissatsu (matar
com um golpe) que, conforme Nakayama, exigido pelo fato de que muitas coisas
devem ser feitas corretamente na primeira vez, ou a pessoa morre (Hassel, 1983, p.10).
Em contrapartida, a expresso corporal da conteno o sun-dome (interrupo da
tcnica imediatamente antes de estabelecer contato com o alvo), exigncia imposta pelo
perigo do impacto dos golpes. Para Nakayama, o controle se d, portanto, atravs do
kime e do sun-dome, o primeiro ao promover a aplicao mxima da vontade de maneira
dirigida, o segundo ao promover a conteno da mesma: ambos devem equilibrar-se,
dentro dos limites impostos pela regra, pelo que justo.
O retorno representao da gnese do karate, representao da luta real, da violncia
e da possibilidade de morte, tido como essencial para que verdadeiramente se promova
o controle como modo de vida, uma vez que hikken hissatsu e kime deveriam deixar de
ser opes para se tornarem imperiosos. Isso no significa armar uma predisposio ao
combate e sim uma predisposio a evit-lo, a antecipar-se ao perigo. Isso faria com que
o karate sirva para que haja uma aplicao de si prprio no sentido de, ao interromper a
luta e sua germinao, promover a paz e a harmonia de acordo com princpios de justia,
modulados intersubjetivamente, isto , de modo coletivo. A prtica seria uma busca de
uma espcie de sabedoria sobre como nortear-se por estes princpios em qualquer
instncia, da mais primitiva mais civilizada.
A assimilao do controle, que permite agir no espectro delimitado pela regra, d-se at
um momento de transcendncia do prprio controle, isto , de esquecimento do auto-
domnio, que tornar-se-ia natural e espontneo. Isso ocorreria, tanto no mbito corporal
quanto do pensamento moral que, a rigor, pela concepo zen budista ou confuciana, so
inseparveis.
A condio de possibilidade do kime um gnero de abertura que pode se restringir ao
aspecto tcnico, mas tambm abranger um alargamento da espiritualidade. Se o kime
o conceito para uma ao que define uma confluncia de energia, fora, impetuosidade.
Preferencial e idealmente define a integrao espiritual do corpo numa ao no
planejada, no pensada. J o esprito de luta, que antecede e sucede o kime, possibilita
sua plena realizao. Zanshin uma espera sem expectativa, uma prontido no pr-
parada, sinteticamente, o esprito de luta ideal corresponde ao esvaziamento que d
acesso ao bem, essncia positiva da natureza que, no caso do karate, se realiza como
kime, exigncia para se salvar.
fazendo o caminho, tao, em chins, do, em japons, sujeitando-se s suas penosas
exigncias e empenhando-se em cumpri-las, que as tcnicas de combate sem arma
podem levar ao esvaziamento, associado a imagens tais como, figura sem figura, forma
sem forma, matria vazia. O esvaziamento a ascenso maior na mais profunda das
conotaes possveis para a palavra karate-do. Ao se realizar uma tentativa de
compreenso interna daquelas suas idias psicolgicas ou, simplesmente, daquela sua
inerente dinmica psquica, no se pode prescindir de uma ancoragem nesta conotao
de karate-do. Sem ela, o magnetismo das leituras superficiais e moralistas to
freqentes na expressividade apressada de no raros karatekas intensifica sua fora de
atrao interpretativa, impedindo o esclarecimento do olhar. Uma vez que uma suposio
do presente objeto de que o treinamento leve, como conseqncia natural, a uma
moral, grande o risco de um escorregamento a uma tendncia moralista associada,
Barreira, C.R.A. & Massimi, M. (2006). O caminho espiritual do corpo: a dinmica psquica no
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sobretudo, em decorrncia reais influncias militares e nacionalistas exercidas sobre as
artes marciais japonesas. Para que no karate sobressaia o mbito da moralidade, e no
do moralismo, necessrio trazer como auxlio de fundo o pensamento sino-aculturado.
H, contudo, uma base vivida de experincias que perpetua alguns princpios
condensados e inscritos em saberes conceituais mais ou menos abertos a horizontes que
se podem chamar por existenciais. assim, por exemplo, com o primeiro objetivo da
gnese do karate objetivo este implcito no pensamento de Nakayama. Sua gnese a
absoluta necessidade de vitria em um combate no qual a derrota idntica morte.
Dessa situao axial, no limitada aos combates entre pessoas, mas extensiva s
diversas formas de combate pela vida, desenvolvem-se as conseqentes atitudes, tais
como a perseverana e a determinao. Uma aproximao da forma peculiar assumida
por essas atitudes na tradio do karate implica na explorao compreensiva daqueles
conceitos inseparveis de sua dimenso corporal, de seus movimentos e tcnicas, pois
esse o modo pelo qual a tradio se realiza, atualiza e perpetua. Conquanto seja
pertinente verificar posturas utilitrias em torno destes saberes, presentes num karate
desacompanhado de do (caminho), a nfase prpria ao karate-do abre-se a perspectivas
espirituais. De uma maneira ou de outra, utilitria ou atenta espiritualidade, no
treinamento orientado por estes nortes conceituais retomados nos pargrafos
preliminares a demanda prtica a de catalisar e dirigir a vontade e, tambm, cont-la
de maneira a delimitar a ao naquilo que depreendido justo pela razo e pela moral.

Referncias bibliogrficas
Barreira, C.R.A. e Massimi, M. (2002). A moralidade e a atitude mental no karate-do no
pensamento de Gichin Funakoshi. Memorandum, 2, 39-54. Retirado em
31/05/2002 da World Wide Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigo02/barreira01.htm.
Barreira, C.R.A. e Massimi, M. (2003). As idias psicopedaggicas e a espiritualidade no
karate-do segundo a obra de Gichin Funakoshi. Psicologia Reflexo e Crtica,
2(16), 379-388.
Cheng, A. (1997). Histoire de la pense chinoise. Paris : Ed. du Seuil.
Elias, N. e Dunning, E. (1994). Sport et civilisation: la violence matrise. (J. Chicheportiche e
F. Duvigneau, Trad.). Paris: Fayard. (Original publicado em 1986).
Funakoshi, G. (1998). Karate-Do Nyumon: texto introdutrio do mestre. (E. L. Calloni,
Trad.). So Paulo: Ed. Cultrix. (Original publicado em 1988).
Habersetzer, G. e Habersetzer, R. (2000). Encyclopedie des arts martiaux de lextreme
Orient: technique, historique, biographique et culturelle. Saint-Nabor: Ed. Amphora.
Hassel, R.G. (1983). Conversations with the master: Masatoshi Nakayama. St. Louis:
Palmerston & Reed Publishing Company.
Nakayama, M. (1996a). O melhor do karate: Vol. 1. Viso abrangente, prticas. (C.
Fischer, Trad.). So Paulo: Ed. Cultrix. (Original publicado em 1977).
Nakayama, M. (1996b). O melhor do karate: Vol. 2. fundamentos. (C. Fischer, Trad.).
So Paulo: Ed. Cultrix. (Original publicado em 1978).
Nakayama, M. (1996c). O melhor do karate: Vol. 5: heian, tekki. (C. Fischer, Trad.). So
Paulo: Ed. Cultrix. (Original publicado em 1979).
Nakayama, M. (1997). Dynamic Karate. (H. Kauz e J. Teramoto, Trad.). New York:
Kodansha America. (Original publicado em 1966).
Nakayama, M. (1998a). O melhor do karate: Vol. 3: kumite 1. (D. C. R. Delela e S. N.
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Nakayama, M. (1998b). O melhor do karate: Vol. 4: kumite 2. (D. C. R. Delela e S. N.
Ferreira, Trad.). So Paulo: Ed. Cultrix. (Original publicado em 1979).
Tokitsu, K. (1997). Histoire du karate-do. Paris: Ed. SEM.

Notas
(1) Takushoku pode ser traduzido por colonizao, o que sinal da mentalidade poltica
que reinava naquele perodo. A Universidade em questo tem sua tendncia nacionalista
de extrema-direita, segundo Tokitsu (1997), bem conhecida no Japo. Apesar deste
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dado, nada irrelevante, o objeto a que se destina este artigo, to bem quanto o conjunto
documental a que se tem acesso, no favorece maiores consideraes a este respeito.

(2) Tal material segue referido na Bibliografia. Inclui-se no material de autoria de
Nakayama a entrevista concedida a Randall Hassell que, salvo meno direta ao
entrevistador, dever ter a referncia bibliogrfica Hassel (1983) lida como sendo
contedo de autoria de Nakayama.

(3) Conforme Nakayama relata. Em Hassel, R.G. (1983). Conversations with the master:
Masatoshi Nakayama. St. Louis: Palmerston & Reed Publishing Company.

(4) Kumi corresponde a encontro ou agarre e Te a mos. Leia-se encontro tcnico ou
encontro de combate (Habersetzer e Habersetzer, 2000). Normalmente entendido
estritamente como luta.

(5) Os quatro tipos so: gohon-kumite (5 passos, frente a frente), kihon-ippon-kumite (1
passo, frente a frente), jyu-ippon-kumite (um nico golpe anunciado e aplicado com
liberdade de movimentao, frente a frente) e jyu-kumite (a luta com total liberdade de
ao).

(6) O conceito de kime desenvolvido logo abaixo em Kime: o esprito impelido.

(7) A este propsito veja-se Barreira, C.R.A. e Massimi, M., 2002: A Moralidade e a
Atitude Mental no karate-do no Pensamento de Gichin Funakoshi.

(8) Neste trabalho, veja-se precisamente Zanshin: O Esprito de Luta.

(9) Pode-se mesmo supor a influncia ocidental nesse discurso e pensamento, j que
Nakayama apregoa a cientificidade do karate: transformao do karate miraculoso e
misterioso numa arte marcial moderna e cientfica. (Nakayama, 1996a, p. 131)

(10) ...Karate-do serve para desenvolver o indivduo como um todo, este indivduo
que deve responder por qualquer situao que surja. (Hassel, 1983, p.35)

(11) Deve-se considerar aqui a concepo confuciana de ordem do Cu e da Terra que
orienta o homem no modo natural de se comportar.

(12) Vale-se do seguinte exemplo que pode ser lido de forma estrita ou ilustrativa no que
se refere aos limites ou fronteiras naturais: Quando centro de gravidade mudado para
a extremidade da rea de base, o equilbrio diminui. Se o centro de gravidade ultrapassa
a rea de base, a harmonia do corpo rompida e se perde o equilbrio. (...) Entretanto,
no incomum que o centro de gravidade ultrapasse a rea do nico p de apoio.
Quando isso acontece em pequena proporo, os rgos sensoriais, os nervos e os
msculos agem automaticamente para trazer o corpo de volta e o equilbrio pode ser
mantido, embora apenas com uma margem muito estreita de eficincia. (Nakayama,
1996b, p.96). Equilbrio, harmonia e tambm eficincia, nessa compreenso, dependem
da natureza e do conhecimento da extenso fsica em que se pode atuar o corpo.

(13) Tcnica de combate ou Tcnica do guerreiro, de Bu = marcial e Jutsu = tcnica.

(14) Visto em Razes histrico-culturais da exigncia de kime.

(15) O que no corresponde a um naturalismo biolgico, mas a uma compreenso
cosmolgica de natureza.

(16) Luta de um nico golpe, anunciado e aplicado com liberdade de movimentao.
Barreira, C.R.A. & Massimi, M. (2006). O caminho espiritual do corpo: a dinmica psquica no
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(17) A este propsito recomenda-se Graf Drckheim, K. (1974). Hara: centre vital de
lhomme.(C. Vic, Trad.). Paris: Le courrier du livre. (Original publicado em 1967).

(18) Pode-se supor com segurana que a compreenso limitada de zanshin junto s
peculiaridades culturais dos praticantes instou a produo de um esprito de luta
brasileira no karate, algo ainda no pesquisado que poderia revelar os modos de
apreenso, assimilao e transformao da arte no universo cultural brasileiro.

Nota sobre os autores
Cristiano Roque Antunes Barreira professor junto Escola de Artes, Cincias e
Humanidades da Universidade de So Paulo, Brasil. Contatos: [email protected]

Marina Massimi Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e
Educao na Faculdade de Filosofia Cincias e Letras de Ribeiro Preto da Universidade
de So Paulo, Brasil. Especialista na rea de Histria das Idias Psicolgicas na Cultura
Luso-Brasileira. Contatos: Avenida Bandeirantes, 3900 CEP 14040-901 - Ribeiro Preto
(SP) / Brasil. E-mail: [email protected]

Data de recebimento: 12/02/2005
Data de aceite: 28/10/2006

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