Teoria Do Teatro
Teoria Do Teatro
Teoria Do Teatro
ARTE E DO
TEATRO
MARCUS MOTA
FOTO CAPA:
OLHOS DE TOURO
DIR. MARCIA DUARTE
CRED. MILA PETRILLO
MARCUS MOTA
Marcus Mota professor de Teoria e Histria do Teatro da Universidade de Braslia e na Ps-Graduao em Arte,na mesma
instituio.
Entre suas realizaes, dirigiu e produziu Bodas de Fgaro,
de Mozart (Teatro Ulysses Guimares, Braslia, 2004);Carmen, de Bizet (Teatro Nacional de Braslia, 2005); O telefone, de Menotti (Teatro Nacional de Braslia, 2005); Cavalleria
Rusticana(CCBB-Braslia e Teatro Nacional de Braslia,2006) O
empresrio, de Mozart (Teatro Nacional de Braslia, 2006). Elaborou o texto e as canes dos seguintes musicais: As Partes
Todas de um benefcio (Dirigido por Hugo Rodas, apresentado
no Teatro do Departamento de Artes Cnicas, da Universidade
de Braslia, 2003; Um dia de festa (Dirigido por Jesus Vivas,
apresentado no Departamento de Artes Cnicas, da Universidade de Braslia, 2003). Dirigiu e elaborou o texto e as canes
de Saul. Drama Musical ( Teatro Nacional de Braslia, 2006),
com arranjos e orquestrao de Guilherme Girotto; Caliban
(Teatro do Departamento de Artes Cnicas, Universidade de
Braslia, 2007), com arranjos e orquestrao de Ricardo Nakamura. Alm disso, teve os seguintes textos encenados: Idades.
Lola. (Direo Hugo Rodas, Departamento de Artes Cnicas
UnB,2002; Docenovembro (CCBB-Braslia, 2001); Iago(Dirigido
por Nitza Tenenblat,CCBB-Braslia, 2004), Salada para trs (Dirigido por Hugo Rodas, Teatro Departamento de Artes Cnicas,
2003); Elaborou textos para os espetculos Olhos de Touro.
Dana teatro.(Direo Mrcia Duarte, apresentado em vrias
cidades do Brasil, pelo Palco Giratrio-SESC 2001-2002); e As
quatro caras do mistrio(Direo Hugo Rodas, CCBB-Braslia,
2003);). Ganhador do Edital Eletrobrs 2008, comps, junto
com Plnio Perru, o drama musical No Muro. pera Hip-Hop,
com direo de Hugo Rodas, apresentado na Funarte-Braslia,
2009. Em 2010 a mesma obra recebeu o Prmio Nacional de
Expresses Afro-Brasileiras, e foi reapresentada no Teatro da
Caixa Braslia, em 2010.
Ainda, Marcus Mota recebeu meno honrosa no Prmio Cidade de Literatura Cidade de Belo Horizonte, categoria Dramaturgia, em 2003, com o texto Rdio-maior, o qual foi apresentado na Funarte-Braslia em 2004 .
SUMRIO
1.1 COMPOSIO .............................................................................................. 16
1.2 REALIZAO................................................................................................ 18
1.3 RECEPO ................................................................................................... 19
1.4 PRODUO.................................................................................................. 20
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................74
A P R E S E N T A O
Neste curso vamos nos aproximar de conceitos bsicos em ArWHV&QLFDVDSDUWLUGDGLVFXVVRGHREUDVFLQHPDWRJUFDV
Teatro e cinema possuem uma histria de ntimas relaes. A
HVFROKDGHOPHVSDUDDPSOLDUFHUWRVWSLFRVHPWHULFRV
HVWUDWJLFRRVOPHVQRLOXVWUDPRVFRQFHLWRV&DGDOPH
XPDREUDMXVWLFYHOHPVLPHVPD
(MXVWDPHQWHSRULVVRTXHRSWDPRVSRUQRVYDOHUGHOPHV
preciso ver, analisar, estudar entender a obra para ento
FRPSUHHQGHU RV FRQFHLWRV ( QR TXDOTXHU OPH TXH VHUve para o nosso propsito: as obras escolhidas manifestam
GHOLEHUDGDV HVFROKDV HVWWLFDV 6R OPHV TXH QR V DSUHsentam uma histria: so obras que exploram procedimentos
H WFQLFDV FLQHPDWRJUFDV FRQWULEXLQGR SDUD IRUQHFHU XP
contexto extenso para nossas discusses.
O foco do curso, pois, o desenvolvimento da percepo esttica. Ou seja, teorias em artes esto diretamente relacionadas com experincias, com o contato, fruio e entendimento
das obras. O estudo de teorias teatrais no meramente o
FKDPHQWRHWUDQVFULRGHFLWDHVGHWUHFKRVGHOLYURV1RV
OLYURVHVWRUHJLVWUDGDVUHH[HVDSDUWLUGHVVHVFRQWDWRVH
vivncias. As grandes teorias de teatro no sculo 20 foram
elaboradas por diretores, atores, encenadores, dramaturgos,
todos envolvidos diretamente em processos criativos cnicos.
H, muitas vezes, uma falsa concepo do que seja pensar o
WHDWURHODERUDUWHRULDVFRQFHLWRVUHH[HVVREUHRID]HUWHDtro. Temos em mente uma certa separao entre as atividade
de participar de um processo criativo e as de discutir, comentar e analisar tal processo. Este curso parte justamente disso,
desse pretenso dualismo, dessa oposio e excluso de atividades para demonstrar que na capacitao intelectual em
artes cnicas preciso um paradigma global, com a formao
de intrprete que integrem habilidades mltiplas.
(P IXQR GLVVR R FXUVR GHVHQKDGR QD LGHQWLFDR GH
conceitos operacionais bsicos para tal capacitao. A cada
VHPDQDVRSURSRVWRVXPFRQFHLWRHXPOPH$VWDUHIDVH
atividades durante o curso procuram fazer a mediao entre
RGHVHQYROYLPHQWRGDSHUFHSRHVWWLFDDSDUWLUGRVOPHVH
a discusso e compreenso de conceitos operacionais bsicos
em Artes Cnicas.
Para tanto, este livro do curso assim se organiza: inicialmente voc tem cada uma das oito semanas comentadas, com a
DSUHVHQWDRHGLVFXVVRGRFRQFHLWRHGROPHHPTXHVWR
Em seguida, nos anexos, temos artigos e crticas intimamente vinculadas com as questes aqui colocadas. Ou seja, para
ampliar as discusses das semanas ou para futuros desdobramentos, os textos extras so um material providencial.
Durante o processo criativo da
montagem de Aluga-se(1996),
foram utilizados as comdias
do cinema norte-americano da
dcada de 1920/1930. Alm
desse texto, a dramaturgia de
Uma ltima noite sobre a terra
(1995), Domingo spero (1997),
Acid
House
(1998),Brutal
(1998),Docenovembro(2001),
disponveis no site www.marcusmota.com.br, foi elaborada
a partir de obras cinematogrficas. A partir desse estudo e produo de dramaturgia, fundei
e dirijo o LADI (Laboratrio de
Dramaturgia e Imaginao Dramtica) no Departamento de
Artes Cnicas da Universidade
de Braslia, em 1996.
Lembrar que, por exemplo, o livro Anlise de Espetculos (So
Paulo: Perspectiva), de P.Pavis,
foi publicado no Brasil em 2003.
Desenvolvi parte dessa argumentao no texto Dramaturgia,
colaborao
e
aprendizagem:um
encontro
com Hugo Rodas. In: VILLAR,
F.P e CARVALHO,E.F. (Orgs.)
Histrias do Teatro Brasiliense.
Braslia: IdA/UnB, 2003, v. 1,
p. 198-217.
FXOGDGHVTXDQGRRDWRGDOHLWXUDDFRQUPDRGHLGLDV
e informaes sem o questionamento das fontes. Abre-se o
FDPLQKRSDUDXPRSRUWXQLVPRVXSHUFLDOSRUPHLRGRTXDO
os comentrios da obras no passam de apressadas reprodues de (im)posturas intelectuais.
Com o contnuo recurso a interpenetrao entre obras cinePDWRJUFDVHWHDWUDLVFRPHFHLDREVHUYDUQRVXPDUHVLVtncia a estas prticas descontextualizadoras como tambm
o desenvolvimento uma abordagem que fossem uma iniciao para o aprimoramento da percepo esttica.
L activit rationaliste de la
physique contemporaine.Paris,
P.U.F., 1951.
10
A utopia de se encontrar uma metodologia que antecipe e deQDWRGDVDVDWLYLGDGHVHQYROYLGDVQDFRPSUHHQVRHSDUWLFLpao de obras teatrais sedutora, mas encontra seu limite na
diversidade irredutvel de prticas, estilos e tradies artsticos.
Diante disso, resta para a capacitao intelectual de intrpretes em Artes Cnicas a integrao de habilidades heterogneas
para enfrentar eventos multidimensionais.
1HVVH VHQWLGR D SUHVHQD GH REUDV FLQHPDWRJUFDV FRPR
campo de discusso de conceitos operacionais teatrais se
MXVWLFD &LQHPD H WHDWUR VR PRGDOLGDGHV GH H[SRVLR GH
processos criativos, que distinguem e se aproximam em funo de suas tradies, suportes e materiais. Um arco entre o
primeiro cinema, aquele que freqentava as feiras, os circos,
lugares de uma teatralidade popular, e as contemporneas
instalaes e hibridismo multimiditicos nos impele para a
defesa de um saber interartstico e pluridisciplinar. Se a cena
pode muito, preciso capacitar-se para torn-la possvel.
Bom curso para todos ns.
11
12
O B J E T I V O S
Iniciar os participantes do curso em uma compreenso mais
englobante do fazer e do pensar as Artes Cnicas. Perceber
FRPR FRQFHLWRV H UHH[HV HP $UWHV &QLFDV VR JHUDGRV D
SDUWLUGHXPFRQWH[WRGHSURGXREHPHVSHFFR3URPRYHUD
discusso de teorias como estmulo para compreenso de processos criativos em Artes Cnicas.
E M E N T A
,GHQWLFDRGHSDUPHWURVGHFRQVWUXRGHWHRULDVHP$Utes Cnicas.
P R O G R A M A
Semana 1
Filme Zelig, de W. Allen;
Apresentao do plano do curso e do guia de estudos;
0OWLSODV GHQLHV GH WHRULD HP $UWHV &QLFDV
Avaliao Colles(expectativas);
tarefas:questionrio de avaliao;
construo de glossrio;
Semana 2
Texto Ion, de Plato;
Parmetros bsicos de Teoria em Artes Cnicas:
composio, realizao, recepo e produo.
Tarefa:lio.
Semana 3
Filme Dogville, de Lars Von Trier;
Espacializao, localizao e presena;
Tarefa:questionrio.
Semana 4
Filme O selvagem da motocicleta, F. F. Coppola;
Personagem e assimetrias entre agentes e recepo.
13
tarefa:questionrio.
Semana 5
Filmes Verdades e Mentiras, de Orson Welles;
Dinmica de perspectivas e interpretaes.
Tarefa:comentrio escrito.
Semana 6
O beb Santo de Mcon, de P. Greenaway;
Metateatralidade: o espetculo sobre o espetculo;
Tarefa: questionrio.
Semana 7
Filme Bodas de Sangue;
Pea Bodas de Sangue, de F. Garcia Lorca;
O teatro como campo interartstico;
Tarefa: lio.
Semana 8
)LOPH2HOFDPDUHLURGH3<DWHV
tica e esttica: as fronteiras do fazer e do representar;
14
INTRODUO:
O TEATRO
E SUAS
MLTIPLAS
FORMAS DE
ACESSO
Nessa semana vamos entrar em contato com uma experincia fundamental em Artes Cnicas: a multiplicidade de aspectos atravs dos
quais um evento cnico pode ser estudado. Este o nosso ponto de
partida. A abertura que essa experincia de pluralizao acarreta vai
nos acompanhar durante todo o curso.
Em primeiro lugar preciso ter em mente a situao bsica do intrprete. Qual a sua participao no espetculo? Voc est assistindo?
Voc atuou? Voc fez o roteiro? Voc est dirigindo? H diversas outras. Por qu? Como se v, h diversos tipos de participao em um
HYHQWRFQLFRFDGDXPDGHODVEHPHVSHFFDHGHWHUPLQDGD8PD
mesma pessoa pode ter vrias participaes no processo criativo.
Mesmo assim cada funo diversa. Voc pode escrever o roteiro e
dirigir e atuar que ainda voc passou por diversas atividades.
Ou seja, aquilo que em um primeiro momento parece uma coisa nica, um produto uma pea apresentada diante de um auditrio comea a se desdobrar em um conjunto de diferentes aes. Uma observao mais atenta vai tornar perceptvel que mesmo o espetculo
em si explicita essa multiplicidade de aes. Voc pode seguir a luz
RXDFHQRJUDDGHXPHVSHWFXORHQRVRPHQWHDVDWXDHV9RF
pode constatar que o espetculo possui vrias partes ou cenas, que
se organiza de alguma forma. Ou seja, as perguntas e anlise aumentam na medida em que voc interage melhor com a obra e comea a
sair de uma posio de apenas aplicar ao que v as coisas que voc
pretensamente conhece.
No aprofundamento de sua participao na obra cnica voc comea
a perceber que h uma heterogeneidade de atividades que so ali
DSUHVHQWDGDVHPFHQD(PWHPRVGLGWLFRVSRGHPRVLGHQWLFDUSHOR
menos quatro grande tipos de atividades.
1.1
COMPOSIO
4XDQGRYRFYXPOPHRXDVVLVWHDXPDSHDKXPDLOXVRGD
ordem, da continuidade. Na maioria das vezes voc permanece ali
sentado, imvel e com o tempo h uma sucesso de entradas e sadas de agentes dramticos, mudanas no espao visvel platia,
novas paisagens sonoras,entre outros procedimentos. Voc consegue
16
LGHQWLFDUVHTQFLDVGHGLIHUHQWHVWDPDQKRVHULWPRVFHQDVFXUWDV
ou longas, acelerao ou desacelerao das cenas. Quando voc l
XPWH[WRWHDWUDORXXPURWHLURFLQHPDWRJUFRSRVVYHOSHUFHEHU
uma diviso do todo em diversas partes: atos, cenas, estaes so conhecidas formas de nomear essas divises. Na verdade se voc parar
SDUDSHQVDUWXGRSDUWH$RPGRHVSHWFXORWHPRVDVHQVDRGH
uma totalidade. Mas essa abrangncia o efeito de como as partes
so organizadas e de como as partes se relacionam entre si. Aquilo
que vemos em um primeiro momento e parece to bem feito, to
exato, to amarrado o resultado de diversas operaes seletivas, as
quais so expostas agora durante a performance. A costura exibida
durante a apresentao. Um espetculo nada mais que a exposio
dos atos de sua organizao.
Essa dimenso de coeso, sinttica, pode ser chamada de composio. Com-por colocar junto, reunir, integrar os dspares. A composio a explorao da heterogeneidade da obra. Uma maneira de
perceber a composio , do ponto de vista do intrprete, perceber o
ritmo estrutural do espetculo, cujo registro est na macro-estrutura,
em um diagrama da quantidade e durao das partes de um espetFXOR3DUDFLQHPDWHPRVDVJUDQGHVVHTQFLDVHVXDPLQXWDJHP
Para textos teatrais, temos a diviso de partes que pode ser percebida no texto.
Por isso essa dimenso construtiva do espetculo muito aproximada
da atividade tradicional da dramaturgia. Uma das atividades da dramaturgia no apenas escrever as falas que as pessoas vo proferir em
cenas. Antes, marcar espaos de performances por meio de blocos de
contracenao, de distribuio dos agentes e dos elementos de cena.
&RPRVHQVDLRVHVVHVURWHLURVGHDHVVRWHVWDGRVPRGLFDGRV1R
WH[WRQDOH[LEHVHRSURFHVVRFULDWLYRGHUHGHQLRGDIRUPDFRPRR
espetculo organizou e distribuiu seus articuladores da cena.
A composio, pois, no se reduz ao planejamento prvio das cenas, a
XPDLQVWQFLDGLVVRFLDGDGHTXDOTXHUVLFLGDGHPDWHULDOL]DR(VVD
tendncia em isolar composio e performance um velho hbito
aristotlico. Na Potica, novamente, temos uma enumerao das partes da tragdia: Prlogo, episdio, xodo e coral.
Potica, 1252 b.
17
acontecimento para se produzir o evento teatral. No h teatralidade instantnea. O tempo daquilo que se mostra e o tempo para sua
apreciao e compreenso so imprescindveis. Eventos teatrais exSORUDPHPRGLFDPRPRGRFRPRSHUFHEHPRVQRVVDUHDOLGDGH3RU
LVVRYRWHUXPDGXUDRFRQVWUXGDHVSHFFDXPDPDQLSXODRGH
parmetros temporais. A composio, o colocar tudo junto, o modo
como se concretiza a experincia dessa interveno no tempo dos
DFRQWHFLPHQWRV 7UDGX]LPRV HP HVSDRV FHQD VHTQFLDVDWRV R
tempo novo da obra. E o tempo que se abre em tantos pedaos e
partes o espao das vrias perspectivas de como podemos ver os
acontecimentos representados.
(QPFRPSRVLRQRXPPHURSODQHMDPHQWRSUYLRGRTXHYDL
acontecer. Mais que diagramas e promessas, trata-se de uma exposio da multiplicidade de aspectos dos acontecimentos atualizados
em cena. Entre eles, a prpria organizao da obra.
1.2
REALIZAO
18
1.3
RECEPO
As obras no reduzem sua organizao interna nem aos seus articuladores: h um grupo de pessoas que acompanha, avalia, analisa, interpreta, analisa, reage ao que exposto. A audincia o acabamento do espetculo.No est fora dele: a prpria forma de organizao
do espetculo efetivada em funo das expectativas da audincia.
Durante muito tempo no se pensou teoricamente a recepo, pois
havia o privilgio da composio e se achava que a audincia era um
dado, que o povo ali presente simplesmente no acarretaria uma discusso terica. sintomtico que a perda de pblico na contemporaneidade, o esvaziamento das salas de apresentao, a reduo da
audincia a integrantes da casta artstica est em sincronia com o incremento das discusses sobre recepo. Em primeiro lugar, preciso
ter em mente uma distino bsica entre pblico e recepo. Pessoas
reunidas informalmente como testemunhas curiosas de um evento
ocasional algo bem diferente de um grupo de pessoas que saiu de
casa para participar de algo previamente acordado e que demanda
XP WHPSR HP XP HVSDR HVSHFFR H UHVSRVWDV POWLSODV D POWLplos estmulos l apresentados. Um espetculo a transformao
GRSEOLFRHPUHFHSRHPSODWLDGHVWHHYHQWRHVSHFFRTXHIRL
construdo para ser reconhecido no jogo de suas escolhas e efeitos.
H todo um campo de questes e procedimentos de recepo a ser
explorado. Mesmo tcnicas dramatrgicas e atuacionais aparentemente to simples como a personagem-escada so de fato materializaes de questes recepcionais: em cena um agente faz o papel de
que no entende o que est acontecendo. Quando mais ele no sabe,
mais a audincia conhece e participa do espetculo. Assim a construo da recepo, a transformao do pblico em platia comea
em cena:algum ou um grupo de atores no palco atua na posio do
auditrio, como platia. Esses papis so dinmicos: ser platiano
privilgio de um personagem.
19
1.4
PRODUO
20
O percurso anmalo da personagem faz com que se perceba a mudana como algo que possui um contexto, uma reconhecvel relao
entre o que se altera e algo que j existe. As diversas faces de Zelig
VHGRDWUDYVGDLQWHUDRGHOHFRPRXWUDVJXUDV(OHDRPHVPR
tempo ele mesmo e uma outra pessoa. Cada novo rosto uma fuso
GR LGHQWLFYHO =HOLJ H SDUWH GD QRYD SHVVRD RX FRLVD FRP R TXDO
ele entrou em contato. As alteraes, essa metamorfose em processo,
podem sem percebidas, analisadas e compreendidas. Aquilo que se
transforma explicita a produo das mesclas, das fuses, do material
TXHUHGHQLGRHPRGLFDGR
'LVVR K XPD DOWD WD[D GH WHDWUDOLGDGH HP =HOLJ 3DUD TXH R OPH
faa efeito, preciso que se organize em torno de parmetros de
composio e recepo cnicos. Como um bizarro show de variedades, Zelig se mostra em suas transformaes. Ele o suporte para a
diversidade de aspectos que sucessivamente so exibidos na tela. O
OPHVHDUWLFXODFRPRDWUDHVFRPRTXDGURVGDVVLWXDHVGH=HOLJ
em contato e metamorfose. A personagem coloca em primeiro plano seu potencial variacional, seu de estatuto de mscara. Ao romper
com a identidade estvel entre ator e personagem, e recaindo nesse
FLFORLQFHVVDQWHGHQRYDVJXUDVROPHFRORFDHPTXHVWRROLPLWH
GDFDUDFWHUL]DRHROLPLWHGRLGHQWLFDRSRUSDUWHGDSODWLDGD
identidade do agente. Se Zelig pode ser qualquer coisa, e no consegue impedir essa atualizao do outro em si mesmo, chegamos aos
extremos da plasticidade daquilo que se mostra ao pblico, podemos
atingir e enfatizar o horizonte plural de perspectivas de um evento.
2OPHSRLVH[SORUDHVVDSRVVLELOLGDGHGDJXUDVHDPSOLDUHPPOtiplas concretizaes sendo ao mesmo tempo uma coisa s. E essa
tenso entre Zelig e suas mscaras produz tanto a dramaturgia da
IRUPDGROPHTXDQWRRULHQWDDVH[SHFWLYDVGDUHFHSR
Disso temos a teatralidade de Zelig, o uso de molduras teatrais, a apro[LPDRHQWUHDREUDFLQHPDWRJUFDHDH[SHULQFLDFQLFDDWHQVR
entre os mltiplos aspectos de uma realidade a partir do modo como ela
exposta nos permite associar essa forma plural de representao da
personagem com sua percepo. H o encaixe entre o camaleo Zelig e
nossas estratgias de intelibilidade. Zelig em sua dinmica transformacional s faz sentido se a audincia perceber como essa dinmica efetivada. A teatralidade est nisso: nessa situao na qual algo se expe em
sua organizao e os padres ali dispostos so compreendidos a partir
de um efeito, de uma conscincia em quem percebe. Mais que saber que
=HOLJPXGDGHIRUPDSUHFLVRTXHDDXGLQFLDVHPRGLTXHWDPEP
21
22
ATOS
INTEGRADOS
NO FAZER
TEATRAL
24
HOHV+RPHUR$VHGXWRUDJXUDGH6FUDWHVYDLLQWHUURJDU,RQVREUHR
conhecimento que o rapsodo tem ou no sobre sua atividade. Fazer e
saber o que faz seriam atos excludentes?
Essa questo atravessa sculos. A resposta de Scrates enfatiza apenas
umdos aspectos da atividade do rapsodo: que o artista cnico no sabe
o que faz, guiado apenas por sua sensibilidade e pelas reaes emoFLRQDLVGRSEOLFR'LGHURWHPVHXWH[WR2SDUDGR[RGR&Rmediante, apresenta uma outra verso dessa reduo do artista cnico
pura emocionalidade: excessos emocionais demonstram um insenbilidade, um no conhecimento do que se est fazendo, uma disposio em
DGXODUDSODWLD6WDQLVODYVNLPRVWUDTXHDFRQVWUXRGR
papel pode ser guiada por uma maior conscincia que o ator tem tanto
do contexto imediato das aes presentes na trama e nas rubricas da
obra analisada quanto em laboratrios, em estudos de situaes homlogas as do texto, mas presentes em espaos concretos como hospitais,
DVLORVHQWUHRXWUDV%UHFKWYDLDGYRJDUXPHVWLORLQWHUSUHtativo por meio do qual o foco da atuao no est na individualidade
isolada da personagem e em reaes e gestos convencionais. Para tanto,
advoga um estudo e insero dos atos em cena no todo social os atores mostrando que esto em um palco fazendo o pblico ver a lgica
econmico-social que movimenta as relaes interpessoais.
Em todos esses casos, e em outros mais, h todo um esforo para
no se idealizar ou restringir a atividade do ator e materialidade do
espetculo a um aspecto s, a algo fcil de se comentar, evidente em
VLPHVPR2UHFXUVRGHQLRDIHWLYDGHHYHQWRVWHDWUDOL]DGRVSDradoxalmente nos fala de parte da experincia por meio da qual a
cena se realiza ao mesmo tempo que no completa a amplitude dos
atos envolvidos em sua concretizao. A fruio do que se est fa]HQGRVHMDUHSUHVHQWDGRVHMDDFRPSDQKDQGRXPDSHDXPOPH
s possvel por h uma pluralidade de agentes e reaes envolvidas. Scrates constata essa heterogeneidade constitutiva do evento cnico, mas, em seguida, a reduz apenas a um trao dominante:
a afetividade. O dilogo explora esse e outros excessos redutores: o
ator Ion construdo ao mesmo tempo como um excelente artista e
um estpido. Mas como pode ele vencer tantos concursos baseados
em vrias habilidades pois so necessrias vrias habilidades para
se apresentar diante de uma multido e encant-la - e no saber de
coisa alguma, como se fosse somente a prpria situao que orquesWUDVVHDHFQFLDGDLQWHUDR"vFRPRVHSXGHVVHPRVIDODUGHXPD
msica sem msicos, de um livro sem leitor.
25
Dentro dessa perspectiva, a estratgia platnica de apresentar a amplitude da teatralidade para depois reduzi-la muitas vezes partilhaGDSRUXPWLSRGHHQYROYLPHQWRVXSHUFLDORXJHQULFRFRP REUDV
teatrais. Sem sabermos, a defesa das artes cnicas por meio dessas
HVWUDWJLFDV VLPSOLFDGRUHV SHUSHWXD D FRQGHQDR SODWQLFD QR
sabem o que fazem, pois no h conhecimento em obras teatrais.
Essa dissociao entre afetividade, conhecimento e teatralidade s
possvel na exata medida em que se privilegia um dos aspectos da
experincia teatral e, apartir disso, temos a reduo de sua complexidade, tanto pelo elogio absoluto do alvo dessa eleio, quanto por
sua desvalorao e, disto, de todos demais elementos.
O que devemos realar nessa semana que assim como a obra teatral
o arranjo de suas escolhas e de seus multiplos aspectos, da mesma
forma teorias teatrais so atos seletivos que partem da complexidade e heterogeneidade do evento cnico. Arranjos de arranjos, as teorias, como as obras, so obras, possuem sua contrutividade.
A seletividade das teoria ocasiona at inesperadas construes como
DWRLQXHQWHDERUGDJHPHP,RQGHVQHYROYLGDGHSRLVHPA Repblica: uma teoria antiteatral do teatro.
Da o tpico dessa semana: parmetros de teorias teatrais. Ou seja,
HVWXGDU H FRPSUHHQGHU R IDWR TXH UHH[HV LGLDV WHRULDV PDQLIHVWRV HVWWLFDV DUWLFXODP XPD GHQLR GR HVSHWFXOR SUHVVXSH
alguma referncia, conhecimento, ou valorizao a respeito do que
pretendem traduzir racionalmente.
26
PENSANDO
O ESPAO
CNICO
Nessa semana vamos trabalhar com os conceitos de Espao, localizaRHSUHVHQDDSDUWLUGRHVWXGRGROPHDogville,de Lars Von Trier.
2OPHGH/DUV9RQ7ULHUH[SORUDHPYULRVQYHLVDDSUR[LPDRHQWUHFLQHPDHWHDWURGHVGHDHVSHFFDFHQRJUDDHGLVWULEXLRGRV
atores at a aplicao da teoria do distanciamento Brechtiniana a
todo o processo criativo.
Sobre as relaes entre teatro e cinema, preciso levar em considerao o modo como DogvilleIRLOPDGR1RGRFXPHQWULRTXHDFRPpanha a edio de colecionador, vemos que o espao de locao era
um galpo na Sucia. Essa reduo e controle de todos os aspectos
GD OPDJHP HP XP HVWGLR GHQLXVH HP WRUQR GH XPD SURSRVWD
minimalista: a cidade que nomeia a obra apresenta com poucos elementos: as poucas casas esto apenas marcadas no cho, assim como
algumas ruas. Nas duas imagens abaixo podemos ver esse cenrio
YHUWLFDO HVVD SODQWDEDL[D GR OPH DV SHVVRDV DQGDP SRU VREUH R
mapa da cidade como se estivesse em uma cidade real.
28
Ao mostrar a cidade no em seus espaos fechados, completos, acabados, e sim como rascunhos de algo a ser construdo pela audincia,
Lars Von Trier trabalha com as expectativas que temos de espao:
h uma longa tradio de se contextualizar as aes e os agentes
em cena inserindo-os em lugares relacionados com suas atividades.
$PRQWDJHPFLQHWRJUFDYDOHVHGHVVHSUHVVXSRVWRGHYHURVVLPLlhana do universo representado a partir da longa tradio teatral
da quarta parede. A quarta parede, muito criticada diversas prticas
artsticas no sculo XX, refere-se caixa cnica, ao espao onde os
atores contracenam e estabelecem com seus movimentos e relao
com os objetos de cena a perspectiva como se deve observar o que ali
acontece. A quarta parede seria uma conveno: a caixa estaria fechada sobre si mesma, cercada pelos lados e fundo pela estrutura mesPDGRSDOFRTXHUHSUHVHQWDULDRLQWHULRUGHDOJXPHVSDRGHQLGR
e pela frente do palco esta uma barreira imaginria, a quarta parede. Os crticos da quarta parede, entre eles B. Brecht, argumentam
que ela gera um afastamento entre audincia e palco, um apassavivamento da recepo que meramente contempla o que est se desenrolando diante de seus olhos. Pois se caixa est fechada em todos
os lados, o mundo da cena mostrado auto-centrado, no restando
DRHVSHFWDGRUQDGDDOPGHREVHUYDUXPPXQGRTXHMHVWGHQLGR
que no se altera, que no alvo da interveno recepcional. Ou seja,
a separao fsica entre o mundo aprisionado na quarta parede e o
mundo da audincia desdobra-se em uma pedagogia das represenWDHVVHDVFHVLQWHUSUHWDPHVHDSURSULDPGDUHDOLGDGHHVHD
cena mostrada no sujeita a mudanas e participao, o espectador
projetar a imobilidade do teatro imobilidade social.
Potica, 1252 b.
29
pea, as mudanas de local e tempo, o contedo das cenas, entre outros procedimentos. Nessa mistura entre feira, teatro de variedades e
circo, Brecht enfatizava que aquilo que os espectadores viam era um
conjunto de acontecimentos organizados, construdos. Os espectadores participavam da obra ao perceber como ela se efetivava. Tudo era
explcito. O palco a exibio de seus suportes de interpretao.
9ROWDQGRDROPHYHPRVFRPRDRQRWUDEDOKDUFRPLQWHUQDVGHHVSDRVLVRODGRVSHODLPDJLQULDTXDUWDSDUHGHRQGHFDULDDFPHUD
Lars Von Trier conecta todas as casas da cidade, todos os seus habitantes na partilha de uma existncia que para os espectadores
demonstrada como fundada no ar, no vazio de algo que no se v. Da
teatralidade da quarta parede para a teatralidade que trabalha com
uma exposio generalizada temos a amplitude do questionamento
dos nexos interindividuais por meio da explorao dos vrios espaos
FRQVWUXGRV QR OPH 3RLV R PDLV LPSRUWDQWH TXH DV SDUHGHV DV
portas, os espaos privados permanecem presentes em suas marcas
para os atores, o que vincula essas barreiras a estratgias de disfarce
de ocultamento das aes mais terrveis, tudo isso sob nossos olhos.
DogvilleQRVHXWLOL]DVXSHUFLDOPHQWHGHPROGXUDVWHDWUDLV2OPH
detidamente se empenha em trabalhar com os diversos aspectos e
implicaes do espao de representao e suas expectativas recepFLRQDLV $ GHVFRQWUXR GD TXDUWD SDUHGH QR OPH WHP POWLSORV
efeitos: demonstra que a questo esttica acopla-se a uma dimenso poltica e tica dos acontecimentos. As formas artsticas no so
ideologicamente neutras. Elas acarretam valores e disposies cogQLWLYDVHDIHWLYDV$RPROPHDSUHVHQWDVHFRPRXPDSDUEROD
que transforma uma cidadezinha norte-americana como laboratrio
esttico-existencial.
A mudana no tratamento do espao altera a perspectiva sobre os
eventos expostos na tela. Dessa maneira, comeamos a perceber que
DGLVFXVVRVREUHRHVSDRQRVHFRQQDDXPDHODERUDRGLVFXUVLva sem os limites e possibilidades que a experincia concreta com o
espao efetiva. como contextura observacional que o espao acontece em sua teatralidade. Vemos que a cena e o palco, mais que o
piso onde se colocam coisas e pessoas, um arranjo e distribuio
de elementos, trajetrias e expectativas. A materialidade do espao
FRPSUHHQGHDVDWLYLGDGHVGHVXDFRQJXUDR1XQFDHOHVLPSOHVmente algo como pr-dado.
30
'DDSDUWLUGROPHFRPHDUDUHGHQLURFRQFHLWRGHHVSDRFQLco, de espacializao da atividade representacional. Tudo espacializado, tudo adquire posio, perspectiva e valor quando passa ser
observado. Note-se como com a cmera na mo essa materialidade
que integra atores e espacializao se efetiva:
31
32
CONSTRUINDO
CONFLITOS
1ROPHGHVWDVHPDQDYDPRVHQWUDUHPFRQWDWRFRPRFRQFHLWRGH
SHUVDVVLPWULFRV(VVHSURFHGLPHQWRIRLEHPGHVHQYROYLGRQDHODborao das tenses entre personagens e entre personagens e pbliFRQD7UDJGLD*UHJD1ROPHO selvagem da motocicleta isso bem
HYLGHQWHQRFRQWUDVWHHQWUHRSHUFXUVRGDSHUVRQDJHP5XVW\-DPHV
que procura seguir os passos de seu irmo e modelo. A tenso entre
o modelo e sua reproduo observada nas diferentes perspectivas
dos dois personagens quanto a um estilo de vida que no faz mais
sentido: o universo das gangues.
Fotogramas disponveis em
http://lashlee71.com/rumblefishsc.html.
Com a chegada do irmo mais velho, as coisas se alteram.
O inominado personagem retorna
casa, rua, sua cidade, mas no
o mesmo: ele no mais se dedica
rotina de se envolver em brigas
H SHTXHQRV DWRV GH GHOLQTQFLD
(QWRROPHH[SORUDHVVDGLIHUHQa entre os irmos quanto a continuar ou no o ciclo de aes intemSHVWLYDVHLQFRQVHTHQWHV$SDUWLU
disso, h uma afastamento entre
5XVW\-DPHVHVHXLUPR
34
Para que a assimetria seja produzida preciso uma aproximao intensa. Ele so irmos, o que projeta uma identidade mais estreita.
Mas justamente nessa tendncia ao similar, nessa expectativa de
convergncia que se mostra a diferena mais radical.
0XLWDVREUDVWHDWUDLVHFLQHPDWRJUFDVVHRUJDQL]DPWRPDQGRSRU
base linhas de ao de personagens em contraste e oposio. Em virWXGHGHVVDDOWDWD[DGHIUHTQFLDKDGLVSRVLRGHVHSHQVDUTXH
WRGDVDVREUDVVHRUJDQL]DPGRPHVPRPRGRTXHWHDWURFRQLWR
TXHDHVVQFLDGHHYHQWRVGUDPWLFRVDSUHVHQWDUFRQLWRV3RUP
RFRQFHLWRHDH[SHULQFLDGHVHHIHWLYDUUHDOLGDGHVFRQLWXRVDVHP
cena mais que uma generalidade. preciso observar que oposies,
constrates, contradies, lutas e todo o vocabulrio em torno de tenVRHQWUHSHUVSHFWLYDVHDHVFRQLWDQWHVPDLVTXHFRQVWDWDHV
de generalidades. Os nveis de oposio e tenso se distribuem por
todos os aspectos da experincia teatral e de sua organizao. Por
PHLRGDUXEULFDSHUVDVVLPWULFRVYDPRVFRPHDDSHQVDUPHOKRU
como se d o contexto de produo de situaes divergentes que tanto manifestam a construo de personagens quanto de sua recepo.
&RPLVVRSUHFLVRWHUHPPHQWHTXHRFRQLWRLQVWDODGRHPFHQD
no se reduz a uma idia, a uma oposio abstrata, previamente deQLGD&RPRVHYQROPH5XVW\-DPHVVHRSHDRVHXLUPRHGHOH
se distingue em razo do modo como reage e interpreta a vida das
gangues. O entrechoque entre os irmos em relao ao seu conheciPHQWRDDVSHFWRVFRJQLWLYRV5XVW\-DPHVSRVVXLXPDOLPLWDGDSHUVpectiva em relao rotina de autodestruio e perda de tempo da
aventura que sempre, para ele, desventura. Em virtude desse saber
GHPHQRV5XVW\-DPHVVHPSUHSHUGHVHPSUHHVWIHULGRFRPRVHY
nos confrontos entre rivais, nas conquistas amorosas.
35
$SHUVRQDJHPGH5XVW\-DPHVLVVRDH[LELRGH
um conhecimento reduzido frente diversidade
de contextos os quais ele enfrenta. Estamos falando do modo como este personagem construdo.
8PDFULDWXUDFFLRQDODUWLFXODRVDEHUGRVHYHQWRV
TXH SDUWLFLSD 5XVW\ -DPHV SDUWLFLSD FRP UHVWULHVFRJQLWLYDVGDVXFHVVRGHHYHQWRVGROPH
Depois de uma sria de eventos mal sucedidos, o
seu irmo se aproxima dele e pergunta insistentePHQWHSRUTX"3RUTX"2VDEHUGH5XVW\-DPHV
XPDQRVDEHU(HVVDDVXDGHQLRUHSUHVHQtacional: mostrar pelos seus atos que no compreende a amplitude dos acontecimentos.
Assim, a assimetria uma construo: dispe-se em cena agentes
com diferentes tipos de conhecimento quanto aos eventos encenaGRV 5XVW\ -DPHV H VHX LUPR SRVVXHP SHUV DVVLPWULFRV SRU TXH
manifestam perspectivas diversas em relao aos mesmos aconteciPHQWRV5XVW\-DPHVWHQWDYLYHUDYLGDGHVHXLUPR(TXDQWRPDLV
ROPHPRVWUDRVSHTXHQRVLQVXFHVVRVGHVVDMRUQDGDPDLVHPDLV
percebemos em que a assimetria se fundamenta.
2FRQLWRGHSHUVSHFWLYDVH[LELGRQROPHQRVHUHGX]DRPRGRFRPR
RVSHUVRQDJHQVVRHODERUDGRV$DVVLPHWULDFRQMXJDDFRQJXUDR
do que se mostra para orientar as expectativas da recepo. Quanto
PDLV 5XVW\ -DPHV HQIDWL]D VXD OLPLWDR FRJQLWLYD PDLV D DXGLQFLD
percebe essa limitao. O no saber da personagem induz ao increPHQWRFRJQLWLYRGDUHFHSR4XDQWRPHQRV5XVW\-DPHVHQWHQGHR
que est acontecendo, mais a platia compreende o jogo da obra.
Com isso podemos ter acesso a uma viso mais ampla do conceito de
personagem e, disto, de espetculo. Se deliberadamente as personagens
so elaboradas a partir de um conjunto de possibilidades e restries
cognitivas, elas no so simplesmente pessoas, como o hbito de conceb-las. Personagens so um conjunto de determinadas escolhas que
so mostradas em cena. Essas escolhas se traduzem no que elas so capazes de mostrar. Uma personagem no pode tudo: ela se distingue por
certos traos e essa seletividade contribui mais para a compreenso do
espetculo que dela mesma. Antes de saber quem , a personagem exibe
o que preciso entender para compreender e usufruir a obra que se encena. Os agentes dramticos so articuladores da cena e no indivduos
com sua identidade. A identidade da personagem a do espetculo.
36
8PDSURYDGLVVRTXHYRFPHVPRTXHYROPHDJLULDGLIHUHQWHPHQWH HPPXLWDV GDV FHQDV GH 5XVW\ -DPHV H GH VHX LUPR 0DV
no j jeito: eles tm de fazer a mesma coisa sempre. Hamlet tem de
PRUUHUQRPGRTXLQWRDQR6HQRHOHQR+DPOHW3LUDQGHOORHP
Seis Personagens em busca de um ator, mostra como a diferena entre
a existncia de uma personagem e uma pessoa so abissais. Qualquer
pessoa pode mudar sua vida a qualquer hora, se quiser. Personagens
no tm essa opo. Por isso so personagens. Assim, para ns resta
entender a personagem, ou aquilo se se mostra diante de ns. Um
PRGRGHRUJDQL]DUDFHQDSRUPHLRGHSHUVDVVLPWULFRVDPDQLpulao das diferenas entre personagens por meio do entrechoque
entre seus horizontes cognitivos.
2FRQFHLWRHH[SHULQFLDGHWUDJGLDXPDH[SORUDRGRVSHUVDVsimtricos: o desconhecimento do heri, sua cegueira ou suas resolues produzem a ampliao do conhecimento da platia. Quanto
PDLVHOHDYDQDSDUDVXDUXQDDRQHJDUDOWHUQDWLYDVHUHDUPDUVHX
limite cognitivo, mais a audincia conhece outras formas de se agir.
$RPQDGDUHVWDDOPGDPRUWHDSOHQDFHVVRGHSRVVLELOLGDGHV
37
38
PERPECTIVAS E
INTERPRETAES
3DUDWDQWRROPHVHRUJDQL]DHPWRGRVGHHVWLOKDRVGHXPDPXOWLSOLcao de partes, de cortes, reunidos pela edio. Mais que a continuidade
das cenas, o que se destaca a tenso entre os pedaos e sua reunio.
Dos planos-detalhe sucesso de locaes e diversos informantes, o
OPHSULPDSHORFRQVWDQWHUHGLUHFLRQDPHQWRGDLPDJHPH[LELGDHGDV
informaes disponibilizadas. A rapidez com que materiais so apresentados acarreta sua sobreposio: um excesso que se projeta em todas
as direes e que agride o espectador, se lana contra ele, no proporcionando o tempo de assimilao ou questionamento do que se mostra.
40
41
2OPHSRLVFRQMXJDTXHVWHVHVWWLFDVWLFDVHSROWLFDVDFDEDQGR
SRUFHOHEUDUDJXUDGRFULDGRUGRDXWRUQRSRUXPDDWULEXLRGLvina ou fora da realidade e sim por aquilo que ele faz.
'HVVDPDQHLUDYHUROPHHHQIUHQWDUVXDHVSHFFDFRQVWUXWLYLGDGH
relacionar a experincia de platia ao conceito da dinmica de perspectivas e interpretaes que Verdade e mentiras enfatiza, mas que, em
verdade, est em experincias cotidianas e artsticas as mais diversas.
42
METATEATRALIDADE
&RPRYLPRVQDVVHPDQDVDQWHULRUHVREUDVFLQHPDWRJUFDVHWHDtrais partilham tanto a realidade multitarefa de sua preparao, realizao e recepo, quanto chamam ateno para si mesmas, para
seu processo criativo. A amplitude dessas obras faz transparecer seu
apelo para a considerao do modo como so organizadas. o que
podemos chamar de metateatralidade. Explicando: normalmente, ao
DVVLVWLU XP OPH RX XPD REUD WHDWUDO DVVRFLDPRV R PXQGR UHSUHsentado com o mundo tal qual conhecemos. Mas algumas obras, por
meio modo como so organizadas e performadas, evidenciam relaes diferentes da audincia com a encenao. No caso de obras teatrais temos o fato que tudo que apresentado est disposto em um
espao preparado, um arranjo de elementos e movimentos. Quando
o espectador movido a enfatizar em sua percepo que aquilo que
observa a prpria organizao e distribuio dos elementos. Ele se
localiza como estando um lugar chamado teatro vendo uma pea, um
FRQMXQWRGHDWRVHHVFROKDVEHPGHQLGDV'DWHPRVRWHUPRPHWDteatralidade: quando a cena se mostra como cena, quando o foco da
cena a exibio mesma dos materiais e das atividades que possibilita haver um espetculo.
H vrios meios para se produzir esse efeito da obra sobre ela mesma. Em Hamlet, por exemplo: na cena dos atores, temos uma pea
representada para o rei Cludio. Ou seja, temos uma pea dentro de
uma pea. Outro exemplo: o centro do primeiro ato de A gaivota, de
Tchecov, uma pea falhada. Novamente, um espetculo dentro de
outro. Ou seja, temos metateatro.
Quando em alguns momentos os atores fazem referncias ao fato de
estarem em um palco ou se valerem de termos relacionados atividade teatral, como papel, cena, espetculo, a audincia correlaciona
a pea de agora com uma experincia mais conhecida do teatro. Estamos diante de metareferncias teatrais.
Outra variao do procedimento da metateatralidade se encontra na
disposio das partes do espetculo. Quando a forma de organizao
EDVHDGDHPFHQDVLQGHSHQGHQWHVFRPGLYHUVRVWLSRVGHGHQLR
e arranjos, como canes, pantomimas, danas, dilogos, entre tantos, com diversas modalidades de atrao, a nfase na forma e nos
nmeros como partes autnomas tambm orienta a percepo para
o espetculo como conjunto de espetculos, como integrao de formas espetaculares diversas.
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45
46
ARTES EM
CONTATO
(VWD YDL VHU VHPDQD GLIHUHQWH YDPRV WHU XP OPH H XPD SHD
MXQWRV2OPHXPDYHUVRFLQHPDWRJUFDGRWH[WRWHDWUDOBodas
de Sangue. Para melhor compreenso do conceito e a experincia de
campo interartstico, a anlise contrastiva entre as duas obras ser
fundamental. Inicialmente, em um curso que se vale de obras flmicas
para se trabalhar conceitos teatrais o relacionamento entre diversas
artes desde j um pressuposto de trabalho. Ou seja, durante todo
o curso nos valemos do conceito sem nome-lo. Estava explcito, mas
sem sua expresso verbal ou um tempo mais detido em seu exame.
Com isso aprendemos um trao caracterstico da produo de teoria
em artes cnicas: em muitas ocasies no h a formulao prvia de
FRQFHLWRVXPDDEUDQJHQWHUHGHGHGHQLHVHGHVFULRGHSURFHGLmentos quando nos deparamos com tradies, tcnicas ou processos
criativos. Mesmo assim, a ao no interrompida: h sempre a possibilidade de se realizar algo independentemente do pleno conhecimento de uma trama discursiva. Ainda: at quando as palavras no
parecem apropriadas ao que se faz, o ato pode ser efetivado. Este
intervalo entre o conceito e o ato mais que uma abstrata dicotomia.
O esclarecimento conceitual no abrange toda a atividade representacional. No adianta apenas mudar as palavras para se ter a iluso
de saber mais e melhor sobre o que se quer fazer ou pensar.
$ FODULFDR FRQFHSWXDO QR DXWRVXFLHQWH $QWHV HOD DSRQWD
para tradies interpretativas, para abordagens em confronto, para
UHDOLGDGH DOP GD OQJXD H GDV LGLDV 1HVVH VHQWLGR D FODULFDR
conceptual, como atividade integrante de processos que aproximam
saberes diversos, emerge como uma possibilidade, aplicvel em discusses preparatrias, preliminares ou em outros momentos quando
for oportuno para aquilo que se est investigando.
Em nosso caso, tornou-se uma opo vlida enfrentar explicitamente
a questo da relao entre artes aps termos passado por experincias com a multiplicidade de perspectivas de um evento teatral.
Assim, o campo interatstico das artes da cena se entende no apenas
por um agregado, uma adio de elementos. O pluralismo em teatro
no vem reboque de solues supletivas: h uma estreita correlao
entre a diversidade do evento cnico em sua materialidade e a interrelao entre artes
48
(PQRVVRFDVRLVVRFDPDLVSHUFHSWYHOTXDQGRHVWDPRVWUDEDOKDQGR
FRPYHUVHV$HVWUDWJLDQRDFRPSDQKDUTXDLVDVPRGLFDHVROme produziu a partir da obra teatral. No trabalho com verses e adaptaes preciso ter em mente que cada nova obra um obra diferente. A
EXVFDSHORRULJLQDOVLPSOLFDRSURFHVVR no jogo entre similaridades
e diferenas que a atividade de adaptao melhor se compreende. Se
toda obra uma seleo de materiais e sua transformao, impossvel
efetivar um processo criativo sem se valer de algo que j exista. No caso
a relao entre a nova obra e as com as quais h um intercmbio se d
de diversas formas: h a tendncia de se aproximar ou se distanciar mais
das obras anteriores, de parafrasear ou parodi-las. Com isso, no lugar
de uma relao horizontal-causal entre obras a obra A gerou ou foi
gerada pela obra B temos que cada nova obra um novo original. O
passado relido e reinterpretado a partir de uma instncia atual. A qualidade das apropriaes e transformaes no se deve intensidade da
aproximao e/ou dependncia com o que se incorpora ou cita.
.
claro que tais noes so melhor compreendidas no processo criativos de eventos cnicos e que de nenhuma forma estabelece o plgio
como regra estilstica. Simplesmente est manifesto que o material
com que trabalhamos em nossos processos criativos est no mundo,
pr-existente. Porm, ao se lidar com este material estamos sujeitos tanto a ordenaes estticas, quanto jurdicas.
O caso da adaptao de Bodas de Sangue bem esclarecedor. A pea
de Garcia Lorca se organiza em trs atos que se subdividem em quadros, com uma progresso bem marcada para a mtua morte entre os
SUHWHQGHQWHVGDQRLYDUDWLFDQGRRWWXORGDREUD$IRUD/HRQDUGRR
amante febril, todas as personagens no tem nome, deslocando o foco
dos acontecimentos das personalidades dos agentes em cena para as
metforas e estrutura social. A poematizao de um universo to rude
e primitivo contextualiza as aes e seus efeitos. Atravessando a obra,
temos canes e falas ritmadas, corroborando o diferencial do espetculo: encenar situaes-limite na apresentao de extremos da linguagem, dos afetos e dos movimentos. O baile durante a festa de casamento, o baile ento interrompido, cifra essa conjuno entre extremo.
2OPHDPSOLDDFRUHRJUDDGDSHDHVFULWD(PVXDYHUVRFLQHPDWRJUFD&DUORV6DXUDFRORFDRVLQRPLQDGRVDJHQWHVGHVVDWUDJGLD
anunciada nos bastidores do ensaio geral da pea homnima, nos camarins e nas nos estdio de dana como que se aquecendo para o
espetculo. Este jogo entre os atores e as personagens, este jogo me-
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50
TICA E
ESTTICA
&KHJDPRV DR P SHOR PHQRV GHVWH FXUVR ( SDUD HQFHUUDU YDPRV
LGHQWLFDUVLWXDHVWHDWUDLVEVLFDVHGLVFXWLODVSRUPHLRGROPH2
HOFDPDUHLUR1ROPHWHPRVXPH[SHULHQWHDWRUVKDNHVSHULDQR
em torno do qual gira os integrantes de uma companhia teatral duUDQWHDVHJXQGDJUDQGHJXHUUD2VFRQVWDQWHVERPEDUGHLRV DOHPHV QR LQWHUURPSHP DV YLDJHQV GD FRPSDQKLD 2 OPH
habilmente capta os bastidores das apresentaes, exibindo como o
velho ator serelaciona com os companheiros, sejam eles atores, tcnicos e auxiliares. Nos extremos das tenses temos o ator principal
e seu ajudante mais prximo Norman. Opostos na hierarquia da
companhia, eles vivenciam uma estranha cumplicidade, aproximando
afetos e mudana de status: ora o camareiro est no comando do inVHJXURHGHVTXLOLEUDGRDWRUSULQFLSDOLGHQWLFDGRDSHQDVFRPR6LU
ora Sir descarrega todo seu dio e frustraes contra o humilhado
HIUJLOFDPDUHLUR1XQFDHVTXHFHUTXHROPHXPDDGDSWDR
FLQHPDWRJUFDGDSHD7KH'UHVVHUHVFULWDSRU5+DUZRRGDSDUtir de suas experincias como camareiro de um ator shakesperiano,
HVWUHRXHP/RQGUHVHPHQD%URDGZD\HPWHQGRGHSRLV
YULDVUHPRQWDJHQV7RP&RXUWHQD\IH]RSDSHOGH1RUPDQQDVPRQWDJHQVDFLPDFLWDGDVHQROPH
Entre os opostos, temos o relacionamento de Sir com os demais
atores e tcnicos, explicitando uma cadeia de relacionamento que expande o que acontece no palco para fora dele. As aes em cena e nos
bastidores se completam, demonstrando a co-pertinncia entre tica
e esttica. Em nome da arte, ou melhor, de si mesmo, Sir realiza as
mais ditatoriais e intempestiva aes, justamente como aquelas que
o chamado mundo ocidental democrtico parecia naquele momento
combater. Ao mesmo tempo, ao revelar-se to terrvel o velho ator
seduz e a todos comove.
Essa associao entre individualismo, carisma e poder no microcosmo de uma companhia teatral nos capacita a no pensar ingenuamente nas representaes, isolando-as de todas as suas implicaes.
2OPHPRVWUDEHPRFRQWUDVWHHQWUHDVEHODVSDODYUDVHPFHQDHRV
negativos atos fora do palco.
$VVLPROPHQRVDOHUWDFRQWUDDLGHDOL]DRGDDWLYLGDGHWHDWUDOFRQtra a separao entre arte e existncia. Em nome da arte, por melhor
que seja, no se pode permitir que barbaridades sejam cometidas. O
OPHDFRPSDQKDEHPHVVDGHFDGQFLDHPRUWHGH6LUHQFDVWHODGR
HPVXDUDGLFDOUHDUPDRGHVLPHVPRSHUGHQGRFRQWDWRFRPRV
52
53
54
A PERFORMANCE
COMO
ARGUMENTO: A
CENA INICIAL DO
DILOGO ON, DE
PLATO
SCRATES
Mas olha se no o famoso on! De onde voc est vindo pra passar
agora um tempo com a gente? De feso, tua terra?
ON
De jeito nenhum, Scrates. Venho de Epidauro, das festas em honra
de Asclpio.
SCRATES
Ento os habitantes de Epidauro tambm organizam concursos de
rapsodos para a divindade?
Mousik.
ON
Isso mesmo, assim como concursos das outras habilidades.
SCRATES
E como foi? Voc competiu? Fale! Como voc se saiu?
ON
Ganhamos o primeiro prmio, Scrates.
SCRATES
Meus parabns! Se continuar desse jeito, vamos ganhar at as Panatenias.
ON
Assim seja, se a divindade quiser.
SCRATES
Techns.
56
Sabe, on, por muitas vezes eu senti inveja do que vocs, os rapsodos,
tm a capacidade de fazer. Por causa do que vocs fazem, vocs sempre precisam tanto estar bem vestidos, com a aparncia o mais esplndida possvel, quanto necessrio que vocs ocupem grande parte
do tempo com as obras de muitos autores excelentes, principalmente
Homero, o melhor e mais divino deles, e examinar a fundo mais seu
pensamento que suas palavras. Como isso invejvel! No h como se
tornar rapsodo de excelncia se no entender o que o poeta disse. Pois
o rapsodo deve ser, para os ouvintes, o intrprete do pensamento do
poeta. E impossvel fazer isso bem sem ter conhecimento do que o
poeta diz. Realmente todas essas coisas so dignas de inveja.
O dialogo platnico on articulado por apenas dois agentes. Inicialmente, como podemos observar, temos uma marcada estrutura de abertura, de comeo da situao de confrontao. Nesse
momento, o contato entre os dois agentes explicitado. Scrates
sada a chegada de on e o interroga seguidamente de modo fazer conhecer 1- quem seu interlocutor; 2- de onde ele vem; 3- o
que ele faz. Ao mesmo tempo, tal analtica, que decompe on,
patenteia que o centro do espao de representao, a hegemonia
da cena j est ocupado. Na abertura, o contato orientado em
funo da assimetria entre os agentes: a reiterada marcao de
posies excludentes em um mesmo espao. O espao de representao o desempenho dessa assimetria.
Alm disso, no s o espao de representao constitudo. Na atualidade do encontro, Scrates interroga o rapsodo on a respeito de
coisas que se deram em outro lugar e em outro tempo. A curta narrativa do que aconteceu no aqui e no agora duplica a no pertena
de on ao tempo e ao espao de Scrates.
Mas, junto com essa assimetria, -nos oferecida tambm a inicial excepcionalidade do estrangeiro. on um vencedor de disputas, um
performer premiado. Por mais que, j desde a abertura, Scrates maQLSXOHRVGDGRVGDVUHVSRVWDVGHRQFLUFXQVFUHYHQGRRVVXDGHQLRGHQLRTXH6FUDWHVDSUHVHQWDGHRQHVWDPRVGLDQWHGH
um rapsodo que chega aps conquista de vitria em concurso (EpiGDXURSDUDJDQKDURXWUD3DQDWHQLDRQYHPSDUDJDQKDURIHVWLYDO
de Atenas, festival da cidade para toda a Hlade.
Scrates se posiciona no meio do caminho dessa carreira vitoriosa do
rapsodo on, interrompendo esse vencedor transcurso, de modo a enfatizar que o rapsodo no deste lugar e que suas aes so passadas.
Neste encontro, Scrates aproxima-se de on para rivalizar com ele.
Entre as habilidades de rapsodo, temos sua itinerncia, a capacidade de transpor espaos. Viajando para tantos e diferentes lugares,
seguindo um calendrio de festividades e concursos, um roteiro de
ocasies para competir e demonstrar suas habilidades, on insere-se
em uma tradio de rapsodos cuja mobilidade e performance no se
associam diretamente ao que Scrates valida. Emendando a questo
sobre a origem, Scrates pergunta se on est vindo de sua terra naWDOSURFXUDQGRUHODFLRQDU?LGHQWLFDUSHVVRDHHVSDR
57
Primeiramente, on um competidor e vencedor nos espaos espeFFRVGHIHVWLYDLVHRFDVLHVSEOLFDVTXHH[LJHPDVXDGHPRQVWUDo de habilidades. J para Scrates, a arena est nesses encontros
intersubjetivos, de platia reduzida. Scrates habita Atenas, mas se
comporta na contramo da cidade. on est no espao de competio
de Scrates. Para um rapsodo, a relao com um massivo auditrio,
determinante para sua performance, est ausente, contrariamente
a Scrates. Temos, pois, em on, um rapsodo fora de sua situao de
representao entrando no espao de competio ao qual alheio.
1RPGXORVXEVHTHQWHDSVHVVHVSUHOLPLQDUHVDWRVRHPSDUHOKDmento dos agentes alterado. Scrates ocupa uma posio mais focal, expressa por bloco de falas mais contnuo e extenso. A partir desse momento, Scrates ter as maiores falas do dilogo e determinar
DVDHVGHRQ$FRQWUDFHQDRDVVLPWULFDYDLLQYHUWHUDVTXDOLcaes primeiras presentes no mdulo inicial de contato: o vencedor
on vai se constituir em objeto de zombaria.
Em sua primeira longa fala, Scrates situa seu encontro com o rapsodo em termos de rivalidade e falso elogio do adversrio. A inveja que
6FUDWHVDUPDSRVVXLUTXDQWRDUWHSURVVRGHRQQRYHPGH
DJRUD0DLVGHXPDYH]PXLWDVYH]HVLVVRVHGHX7DOIUHTQFLDSRVWD
Scrates como um familiar membro da audincia dessas competies,
um observador contumaz de performances. Ao mesmo tempo, tal freTQFLDUHYRFRQWDWRLQLFLDO2DFDVRGRHQFRQWURFHGHOXJDURFDVLRSUHPHGLWDGD(PIXQRGLVVRWRGDVDVDUPDHVYRJDQKDQGR
contexto. As perguntas de Scrates, desde a saudao, melhor se compreendem.Como Scrates j observava as performances competitivas
de rapsodos, o encontro com um rapsodo fora de seu espao de competio e exibio possibilitar a performance mesma de Scrates. Um
adversrio preparado e um outro desavisado se entrevem.
58
$VVLPDVSHUJXQWDVGH6FUDWHVVHXLQWHUURJDWULRSRLVDQDOTXDLV
so as armas, as habilidades de Scrates alm das palavras? partem
de algum j em situao de disputa. Dessa maneira, a performance
verbal de Scrates um desempenho competitivo que se caracteriza
por entremear negao e seduo de seu oponente, testando, por
aproximaes e sobreposio de ordens valorativas, o saber que este
possui ou no do que est acontecendo. A inveja de Scrates quanWRVKDELOLGDGHVGRUDSVRGRDTXLHQFRQWUDVXDGHQLRHWHQVR
Pois, ao mesmo tempo em que Scrates se coloca como que afetado
pelo que os rapsodos fazem quando atuam, o prprio Scrates no
VUHGX]HVVHLPSDFWREDQDOLGDGHGHJXULQRGDVURXSDVHGDFRPpostura que o performance como tambm ele mesmo age como um
rapsodo, seguindo um modelo competitivo e de impacto sobre sua
audincia. on agora deixa de ser o encantador de multides para se
converter em platia e escada de Scrates.
A forte admirao, que Scrates tem pelos rapsodos o posiciona em
XPDFRPSOHPHQWDUUHFXVDHUHDUPDRGHVVDWUDGLRSHUIRUPDWLva. Scrates, de fato, argumenta contra a performance a partir da performance. Tal mistura de rivalidade e admirao se torna mais claro
na coordenao que Scrates faz das duas coisas que mais ele inveja
dos rapsodos: a bela aparncia fsica e o tempo passado com as obras
de grandes poetas. Igualando a arte dos rapsodos a cuidados constantes com roupas\compostura e ocupao com poetas, Scrates
manifesta uma juno aristofnica de coisa diversas, apontando, em
um primeiro momento, nessa cmica metfora, para uma identidade
HQWUHVXSHUFLDOLGDGHHSHUIRUPDQFHUDSVGLFD
Mas a metfora se amplia se examinamos seu contexto de remisso,
seu endereamento. Antes de se isolar em sua fala, Scrates interagia com seu interlocutor, tornando-o alvo de suas falas, citando on,
dirigindo-se diretamente ao rapsodo em sua frente. A partir do mGXORVHJXQGR6FUDWHVPXGDRIRFRHHQGHUHDVXDIDODSURVVR
do rapsodos, e a todos os performers dos quais on apenas mais um.
Tal incluso e ampliao do referente acontece justamente no momento em que Scrates desliga-se do emparelhamento dialogal inicial
e ocupa o centro hegemnico das performances. H um movimento
complementar entre a mudana da posio dos agentes na cena e os
comentrios sobre a performance produzidos por Scrates. A intensa
LQGLVSRVLRGH6FUDWHVIUHQWHDWRGDSUWLFDSHUIRUPDWLYDGRVUDSsodo leva o grande ironista a igualar caracterizao e tempo gasto com
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62
do conjunto. Mas, como temos uma sucesso de renovadas substituies de pices, h o esvaziamento potencial da srie, a abertura
da posio concludente.
Dessa forma, a cadeia hiperblica, de tanto apresentar novas entradas e novas hegemonias, aponta no mais para os dados dispostos, e sim para sua elaborao, para seu excesso, para o registro de
seu fazer. O mximo dos mximos ao fim da srie nos informa sobre um percurso de negaes, de incluses negativas que iludem
pela abrangncia porque, na sucesso, quase que ilidem o resultado das operaes realizadas. Na verdade, essas incluses hiperblicas, dentro do contexto de contracenao do dilogo, atuam
como uma maneira de defenestrar a atualidade e a presena do
interlocutor, separando on da pertena a essa tradio de artistas
perfeccionados.
$ VHSDUDR H LVRODPHQWR GD JXUD GH RQ HVW SUHVHQWH HP WRGD
a demonstrao de saber quanto ao ofcio rapsdico que Scrates
apresenta nesse mdulo. Entre on e Homero, temos dois no grupos
plurais no pessoais, genricos de classe. on, aquele que atravessa
cidades, encontra-se afastado do rapsodo modelo. Ento a estratgica citao de Homero vem marcar o alheamento de on quanto
tradio que ele se v vinculado em sua atividade performativa. A
srie apresentada por Scrates uma ordenao gentica que vai
FXPXODQGRGHTXDOLFDHVSRVLWLYDVRSRQWRGDFDGHLDTXHPDLVVH
apresenta distante de Homero, o ponto-origem.
Em outras palavras, bom no voc, on, rapsodo de agora. Em geral, os
rapsodos parecem bons, at que se mostre bem quem so. Mas bons mesmo so os poetas que eles performam, e melhor ainda de todos Homero,
TXHQRHVWDTXL2ORXYRUGH+RPHURDGHVTXDOLFDRGHRQ
Essa habilidade de vincular referncias excludentes em uma atualidade enunciativa produzida durante sua fala por coordenaes, por
adies, que vo deixando para trs algo que poderia ser recusado,
debatido. para um resultado discursivo que as coisas vo se encaminhando. Quando se v, o espao entre o primeiro e ltimo elo da cadeia
to grande, ou no relevante agora, que no se pode ou no se decide
recuperar o que se passou. Scrates movimenta-se por outra ordem de
LWLQHUQFLDTXHRQ2HVSHFFRQRPHGH+RPHURHQFDL[DGRGHQWUR
de uma coordenao de adjetivos que gravitavam em torno do genrico nome de poetas. Homero, dessa maneira, , ao mesmo tempo,
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Aps muito observar, aps por muito tempo ter sido platia desses
eventos, Scrates rompe com os nexos entre o rapsodo e sua audincia, para efetivar uma outra modalidade performativa. Scrates
inverte e subverte a lgica rapsdica e seus vnculos receptivos. No
comeo do dilogo, Scrates sada o performer. J a partir deste segundo mdulo h o reposionamento dos interlocutores, e on ocupa
o lugar da audincia. Dessa maneira, o recurso para o pensamento,
para o racional que podemos ver no socrtico comando somente se
compreende quando o inserimos no contexto reativo dentro do qual
se forma o antagonismo entre corpo e mente. A possibilidade de afastar-se de um contexto de performance efetiva tal oposio. Scrates,
pois, no parte de e nem advoga um pensamento puro, completo em
si mesmo. O que ele est fazendo inserir, a partir de uma srie atos
atribudos aos rapsodos - atos esses negativamente caracterizados
- um tipo de habilidade que no necessariamente torna um rapsodo
um melhor performer, como Homero foi.
Essa habilidade consiste de um exame atento no contedo das falas,
exame este que, em virtude de nfase em operaes mentais, desligase, afasta-se de habilidades e exigncias que se tornam necessrias
durante o desempenho. justamente a partir da performance que
essa habilidade mental se desenvolve e se singulariza. A abertura de
um espao intelectual entre a hegemonia da cultura da performance
o que consiste o desempenho socrtico. Tanto que em sua realizao, a abertura concretizada a partir do modelo performativo da
tradio relao performer\ audincia.
A dissociao entre contedo das falas e seu desempenho j havia
sido proposto a partir do momento em que a presena, a atualidade
da performance, fora relegada a um segundo plano, seja pela desvalorizao da itinerncia e das conquistas de on, seja pela reduo
da corporeidade do performer a uma pura presena desligada de seu
processo criativo. Ora se, segundo Scrates, no importa aquilo que
aparece, se aquilo que aparece em si mesmo no se sustenta, em
outra direo que se torna necessrio buscar o entendimento do que
est acontecendo. O evento de agora deve ser entendido por outro
fator que no se apresenta perceptvel durante seu acontecer. Na verGDGHHVVHPHVPRDFRQWHFHUHGHVHPSHQKDUTXHGLFXOWDPDSHUcepo de seu fator explicativo. Por isso, preciso romper com o nexo
imediato entre recepo e performance, mover o pensamento daquilo que aparece para algo alm disso, atravessar a apario, tornar o
pensamento independente daquilo que se mostra pelo desempenho.
67
Logo, tal operao, a habilidade de dissociar exame acurado do conWHGRGDVIDODVHSHUIRUPDQFHTXHDRPGDVULHGHDWRV TXH RV
rapsodos executam, deve ser o primeiro, o melhor, o fundamento da
formao do performer.$VULHPHVPRFXOPLQDQHVVDKDELOLGDGHJXrando um afastamento das habilidades em situao de apresentao.
(HVVHDIDVWDPHQWRDTXLVHFRQJXUDFRPRXPDSUHYHQRFRQWUDR
ilusionismo que a prpria performance desencadeia em seu executor.
O executor, imerso nos desempenhos, pode tornar-se apenas algum
que performa, e que no entende, no conhece, no controla o que
faz, nem conhece a si mesmo.
Da o a enftico comando de examinar o pensamento, logo em seguida ao enftico destaque a Homero. Tudo isso consagra a habilidade de abstrair, da multido de acontecimentos e procedimentos,
o melhor, o que mais dista e se afasta da contextura variacional e
hipntica da performance.
$ HVVD UHGXQGDQWH DUPDR GH VXD SUSULD GHQLR GH KDELOLGDde para a excelncia performativa, Scrates justape a seguinte exclamao conclusiva encaixada: isso invejvel! Pela segunda vez,
marcando partes desse mdulo, Scrates insere em sua fala referncia explcita a uma disposio que determinou a sua transformao
de platia de eventos performativos em performer que recusa tais
eventos. O que invejvel nesse segundo momento no o que os
rapsodos fazem, mas sim o que Scrates faz e advoga em frente a
um rapsodo. Tanto que, em seguida, Scrates dirige-se novamente ao
ofcio dos rapsodos para determinar uma condio exclusiva da existncia desse mesmo rapsodo, segundo a habilidade que o ironista
mesmo acabara de defender e invejar.
Todas as noes que Scrates tem trabalhado at aqui encontram seu
esclarecimento em um modelo que justape o melhor e o pior, ou um
movimento que se baseia em restringir a multiplicidade em prol de um
estado separado, consumado e excelente, estado esse fruto de esforos de diferenciao e afastamento. Esse no comum e extraordinrio
no se atinge por meio das prticas desempenhadas pelos rapsodos. O
consumado rapsodo s existe no plano da virtualidade, do condicional.
Assim, Scrates reafirma um conhecimento, uma habilidade que
os rapsodos no possuem, limitando o ofcio e a performance destes. Essa operao fundamental para compreender o alcance da
recusa socrtica da performance. Pois, de qualquer forma, Scra-
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69
Por isso, para Scrates, que inseriu sua modalidade performantivoargumentativas durante o processo de parodia do ofcio dos rapsodos, a audiovisualidade da presena do msico-poeta-performer
DSUHVHQWDGDFRPRGHSHQGHQWHGHRXWUDLQVWQFLDSDUDVHGHQLUR
vesturio, a maquilagem. So as coisas postas sobre o corpo, que encobrem o corpo, que mostram o que o rapsodo faz e no seus gestos,
seus movimentos, sua musicalidade, sua expresso facial, sua destreza em correlacionar o ritmo e as referncias das palavras, entre
outros procedimentos. Porque o rapsodo no transfere explicitamente um saber nem sobre o que performado, nem sobre seu desempenho mesmo. E, desse modo, consegue agir sobre uma audincia
mesmo sem colocar em questo o conhecimento utilizado para efetuar tamanho impacto sobre ela. De forma que contra o ilusionismo,
contra o autofechamento da performance, Scrates estabelece um
PRGHORHXPDKLHUDUTXLDGHQWURGHLQWHUDRDXUDOPHQWHFRQJXUDda, centrando em uma atividade cognitiva predominantemente no
VLFL]DGD R IXQGDPHQWR GH WRGR R SURFHVVR $VVLP R FRQKHFLPHQto do contedo no atualizado em performance da obra dos poetas
deve ser apreendido em toda sua extenso pelo rapsodo. E, aps o
tempo envolvido nesse esforo cognoscente, tal conhecimento deve
ser disponibilizado para a audincia.
A partir do modelo socrtico, vrias oposies entre os membros
do interao so efetivadas. Em um primeiro momento, podemos
notar como rapsodo\poetas se encontram dissociados e hierarquizados. O foco da atividade do rapsodo uma ao voltada para os
poetas. Inversamente, h um hiato entre ouvintes\poeta, de forma
a no haver contato entre eles a no ser pela mediao do rapsodo. Assim, simetricamente, rapsodo e ouvintes ocupam extremos
pontos desse circuito, sempre mantendo uma incompletude frente ao conjunto que os rene. Enfim, a oposio rapsodo\ouvintes
retoma a primeira oposio e a hierarquia que os correlaciona. Em
todos os casos, presente ou ausente, o rapsodo determinado,
circunscrito, confinado.
Contudo, para Scrates o modelo coloca o ironista no centro de convergncia da tradio e da plis. No h Scrates sem interlocutores e um
mundo a ser pensado em seus nexos. De maneira que podemos conFOXLUTXHHVVHPRGHORWHPDSOLFDHVHFRQVHTQFLDVGLYHUVDVSRUTXH
seu pressuposto socrtico, advm do exame atento das condies
dos acontecimentos, e no do acontecimento em sua efetividade.
70
71
72
73
ORJRGRPHVPRPRGRDFDULFDWXUDGHRQQHPUDWLFDDSURSRVLR
socrtica nem muito menos se remete ao mero confronto entre os
interlocutores. O que se torna necessrio no desperdiar a oporWXQLGDGHQDTXDOVHDSOLFDWUDGLRXPUDGLFDODWRUHH[LYRTXH
GLYHUVLFDGRHSUREOHPDWL]DGRSHODVDSURSULDHVHDWRVUHFHSWLYRV
dos membros do dilogo. Dessa forma, o rapsodo que quer continuar a embelezar, chegando at aos pensamentos, e um ironista que
quer ridicularizar, mas que se veste com as vestes daquele a quem se
imputa descrdito, faculta-nos uma prodigiosa ocasio para ir alm
da inalterabilidade de atividades cognitivas, e ver como a situao de
representao mesma no s altera pressuposies como tambm
VHGHQHHPIXQRGHVVDVVLJQLFDWLYDVPRGLFDHVHPWXGRTXH
vem cena. Para alm de nossa monomania racional, o dilogo on
coloca a nossa disposio um espetculo onde vrias habilidades so
H[SRVWDVHHQIDWL]DGDV$WSLFDGDMXVWLFDRUDFLRQDOGRUDSVRGR
d lugar amplitude dos atos performativos.
BIBLIOGRAFIA
BREMER, J. Platos Ion. Philosophy as Performance. Bibal Press, 2005.
LORD, A . The Singer of Tales+DUYDUG8QLYHUVLW\3UHVV
MILLER, A. Platos Ion.%U\Q0DZU
MURRAY, P. Plato on Poetry&DPEULGJH8QLYHUVLW\3UHVV
NAGY, G. Platos Rhapsody and Homers Music +DUYDUG 8QLYHUVLW\
Press,2002.
74
APROXIMAES
A UMA
DRAMATURGIA
FLMICA A
PARTIR DO CASO
EISENSTEIN
10
10.1
Essa pureza recalcitrante cria
as ambivalentes definies de
extra-cinematogrfico, atravs
das quais o monoplio tcnico
de produo de filmes exclui
uma dimenso composicional
mais integral. O argumento
da pureza da linguagem cinematrogrfica, ao fim, aplica-se
a questes no estticas. Em
razo disso, a aproximao de
obras cinematrogrficas a outras estticas e processos criativos questiona este purismo e
sua exclusividade narrativa.
Para maior agilidade da leitura,
uso as notas referncia bibliogrfica e siglas seguidas do nmero da pgina. Refiro-me aqui
ao livro O cinema (So Paulo,
Brasiliense, 1991) pela sigla OC..
TEATRO
CINEMATOGRFICO
10.1.1 MOMENTO 1
Resumido na rubrica o teatro acode o cinema, postula que a tradio multissecular do texto teatral pode enriquecer intelectualmente os roteiristas. Provocativamente, quanto mais o cinema se
SURSRUSRUVHUHODRWH[WRHVVXDVH[LJQFLDVWHDWUDLVPDLVQHFHVVDULDPHQWHDSURIXQGDVXDOLQJXDJHP2&
76
10.1.2 MOMENTO 2
Ssob a rubrica O cinema salvar o teatro, Bazin argumenta que,
por meio da explorao da teatralidade operada pelo cinema em escalas massivas, renova-se a concepo de mise-en-scne teatral. O
teatro v-se confrontado com suas origens populares, repensando o
divrcio entre palco e pblico;
10.1.3 MOMENTO 3
$UXEULFDGRWHDWUROPDGRDRWHDWURFLQHPDWRJUFRQDOPHQWH
aparece como uma sntese onde a cinemtica correlacionada a uma
teatralidade proporciona a emergncia de uma performance desse
tempo, uma mise-en-scne contempornea. Mais que mdias diferentes, Bazin aponta para uma forma de espetculo integral que rompa com a oposio entre teatro e cinema. Modernidade e tradio se
conjugam nessa mise-en-scne contempornea na qual o dispositivo
flmico modelado por suportes teatrais.
0DVRTXHHVVHWHDWURFLQHPDWRJUFR"$FRPSRQHQWHFQLFDGHVVHWHDWURFLQHPDWRJUFRUHVWULQJHVHDRTXH%D]LQFKDPDGHYLUWXDOLGDGHVHVWUXWXUDV FQLFDV2& 2 HVSHWFXOR SRUP GD
competncia da componente flmica. O foco de anlise de Bazin o
TXHVHSRGHFKDPDUOPHGHDUWH2FLQHPDFRPRDUWHGLYLVDGRQD
incorporao de tradies representacionais histricas como pintura
e teatro. PARA CONTRIBUIR COM O TEXTO DO FILME QUE A INCORPORAO DA TRADIO TEATRAL REIVINDICADA. O TEATRO CINEMATOGRFICO DE BAZIN UM CINEMA CUJO ROTEIRO DIGNIFICADO
COM VIRTUALIDADES CNICAS.
Correlativamente, o teatro visto pelas lentes de Bazin como teatro
literrio, no qual h a primazia do texto sobre o espetculo. O idealismo esttico desta postura, contrria mesmo renovao contempornea da linguagem para a cena, deixa em aberto a concretizao do
WHDWURFLQHPDWRJUFRQRTXDODFRPSRQHQWHFQLFDXPDHYLGQcia no discutida.
77
10.2
O caso Eisenstein foi sugerido
por uma releitura da dissertao de mestrado de Maria
Maia (UnB 1998) A escritura
flmica dramaturgia do enredo
e dramaturgia da forma. Segundo ela, retomando como
modelo as mudanas de foco
nos ensaios de Eisenstein, o
filme nasce do conflito entre
os elementos constitutivos
plano/montagem e argumento ou enredo. Uma linguagem
especfica interagindo com
uma narratividade especfica
marcam a textualidade flmica.
Em minhas consideraes, porm, ressalto um fator extracinematogrfico mais efetivo,
pouco comentado e anterior
narratividade: a dramatizao,
concentrando-me em problemas de composio ao invs
da analogia lngua/filme.
78
O CASO EISENSTEIN
Coube a um homem de teatro e posteriormente cineasta e terico do cinema interrogar mais detidamente estes elementos. As difceis relaes
HQWUHFLQHPDHWHDWURRFXSDUDPQRVDDUWHFRPRWDPEPDELRJUDD
de S.Eisenstein. Antes de se notabilizar como cineasta, no s foi aluno de
XPGRVUHQRYDGRUHVGDVDUWHVGHFHQD90H\HUKROGFRPRWDPEPGLrigiu e encenou peas experimentais. Um detido exame de sua passagem
GDFHQDSDUDDWHODHTXDQGRGDHPHUJQFLDGROPHVRQRURXPUHWRUno ao drama, pode nos auxiliar na superao do idealismo esttico que
HORJLDDFRPSRQHQWHWHDWUDOGDDWLYLGDGHFLQHPDWRJUFDPDVFRQWXGR
no efetivamente determina o contexto de produo dessa componente.
O teatro para Eisenstein surge no contexto de renovao da linguagem para a cena teatral que a tradio antinaturalista (e antimimtiFDPRGHUQDHPSUHHQGHX2GHEDWHHQWUH&RQVWDQWLQ6WDQLVODYVNLH
VHXDOXQR9HVHYRORG0H\HUKROGVLWXDQD5VVLDHVWDWUDGLRGHUXStura. Eles divergiam, principalmente, quanto preparao de atores.
6WDQLVODYVNLUHDJLQGRFRQWUDDIDOWDGHSURVVLRQDOLVPRHFRQVFLQcia dos atores de seu tempo, procurou desenvolver um conjunto de
princpios para a atuao, atravs do qual os pensamentos e as emoHVGRLQWUSUHWHDGTXLULDPXPDFRHUQFLDHOLQGLYLGXDOLGDGHGH
uma personagem criado por um autor. Centrado na anlise do texto
e no isolamento da personagem frente ao pblico - reao contra s
concesses do teatro comercial das companhias- , este conjunto de
princpios parecia, em um primeiro momento, dar menor ateno
exteriorizao da aes. A preparao intelectual do ator e a internalizao de uma imagem textual eram mais focalizados .
0H\HUKROG, diferentemente, orienta-se para pensar e produzir aes
fsicas. Ele parte das aes fsicas para estruturar a representao.
Esta inverso uma verdadeira subverso no s na preparao de
atores como na construo do espetculo. Coloca-se em evidncia o
contexto realizacional da performance cnica. Ao invs de o espetculo ser um veculo para comunicar idias do autor, a exposio
um acontecimento fsico sujeito materialidade de sua efetivao.
A audincia um fato fsico concreto inerente a essa exposio. A
observncia de um espetculo a interao com os movimentos no
espao realizados por corpos expressivos.
Aqui est o ponto-origem das produes flmicas e tericas de Eisenstein: uma dramaturgia que singulariza a experincia de observncia produzida por procedimentos que exploram essa experincia.
A representao no a atualizao de uma idia sem o contexto
material de sua realizao. Na prpria representao este contexto
explorado. O que mostrado no a reproduo de uma realidade,
mas a exibio de uma analtica tempo-espacial, que torna factvel a
compreenso do que se observa.
Ao basear a representao em aspectos fsicizados e materiais a Biomecnica forneceu para Eisenstein o embasamento de um mtodo
HVSHFFRGHSURGX]LULPDJHQVTXHDJHPVREUHRHVSHFWDGRU$RUganizao do movimento - explorada no rendimento de seu efeito
- exibida em cena fornece os parmetros pelos quais o observador
coopera em sua observncia do o espetculo.
Dessa forma, o que antes pareceria um contra-senso, em um teatro
onde s se comunicam idias, um teatro de cabeas falantes, agora
fundamenta o espetculo: precisamente o movimento expressivo,
construdo sobre um fundamento orgnico correto que capaz de
orientar a recepo. O espectador atrado pela forma do movimento
executado diante dele. H uma complexa mmesis na qual os movimentos expressivos exibidos atravs do apelo muscular dos moviPHQWRVGRDWRUVRUHHODERUDGRVSHODDXGLQFLD0(%
Movimento expressivo um
conceito-sntese da Biomecnica. A decomposio dos
movimentos e sua conexo
entre eles como forma de agir
sobre o espectador amplifica
em termos corporais o que Eisenstein pensa sobre a montagem.
79
Com o cinema, o forte contexto antimimtico vanguardista da Biomecnica e o controle da representao visual poderiam melhor ser efetiYDGRV&LQHPDDQWHVGHWXGRSDUD(LVHQVWHLQXPDFRH[SORUDWULD
que, por meio da integrao das contingncias espao-temporais, posVLELOLWDRHVWXGRHDJXUDRGHLPDJHQVTXHRWHDWUROLPLWDYD
De A forma do filme ( Rio de
Janeiro, Zahar, 1990). Sigla FF
Basta ver que em 1939 sobre
esta poca Eisenstein afirma eu
estava crescendo, saindo do teatro para o cinema(FF 168).Em
1928 mesmo ele proclama que
estou convencido que o cinema
o nvel de hoje do teatro. De
que o teatro em sua forma mais
antiga morreu e continua a existir apenas por inrcia(FF 33)
80
81
HERINGTON 1985
Em 1926 Eisenstein, em um
manifesto conjunto com V.I
Pudovkin e G.V.Alexandrov a
respeito do futuro do cinema
sonoro, argumentava que a
utilizao do som uma faca
de dois gumes pois poderia,
ao invs de melhoria na representao, causar inrcia
composicional e recepcional.
Advoga a no sincronizao
do som e das imagens. Claro
se v nessa recusa o no emparelhamento do cinemtico
com o dramtico em funo
da palavra e suas articulaes
em cena. Pudovkin (Argumento e realizao, Lisboa, Editora
Arcadia 1961- sigla AR) temia
que o filme sonoro fosse uma
variedade fotogrfica de peas
teatrais e bradava que nunca
deveria mostrar o homem e
reproduzir ao mesmo tempo
sua fala exatamente sincronizada com o mover de seus
lbios(AR 196). 5
(VWDUHLQVHURGRWHDWURDOLQKDVHFRPDHVFULWXUDFLQHPDWRJUFD
O elemento no flmico requisitado para a expanso do flmico. A
OXWDSHODDOWDTXDOLGDGHGDFXOWXUDGROPHSDVVDSHODTXHVWROLWHUULDGDHVFULWXUDFLQHPDWRJUFDDRVHLQFRUSRUDUHVXSHUDUDWUDGLR
de textualidade artstica existente. O cinema transparece como uma
mquina transformadora de tradies artsticas, como a tragdia
grega o fora 2500 anos atrs.
Eisenstein v nessa mudana um desvio e uma correo de percurso
no qual a forma no negada, e sim realada com o aprofundamento
e ampliao das formulaes temticas e ideolgicas que as quesWHVGHFRQWHGRWUD]HPDRFLQHPD))$JRUDRRUJQLFRHR
pattico interligados podem fornecer a possibilidade da total apreenso de todo o mundo interior do homem, da reproduo total do
PXQGRH[WHULRU))
$PXGDQDVHLQWHQVLFDDLQGDPDLVFRPRDGYHQWRGRFLQHPDVRnoro. Eisenstein, que havia sido pioneiro no cinema mudo, hesitou
GLDQWHGDQRYLGDGH6HXSULPHLUROPHVRQRUR$OH[DQGUH1LHYVNL
de 1938. Sua dvida residia em como coordenar som e imagem produtivamente. Perguntava-se se nessa modalidade de composio:
RTXHYRFYTXDQWRHVWRXYLQGRQRPHUHFHDWHQR"))
- preocupao inerente a quem tinha mtodos estritamente formais,
TXDQGRWRGDH[SOLFDRWHPXPDMXVWLFDWLYDWFQLFD
A sincronizao e igualdade rtmica entre som e movimento representados se oferecem no s como problema compositivo-tcnico,
como tambm aproximao da atividade cognitiva da obra. Com a
complexidade de nveis da realizao flmica - agora no s ver, e
sim avaliar vendo e ouvindo avaliaes - mobiliza-se a inteligibilidade
GHVVDFRPSOH[DHVWUDWLFDR2inter-relacionamento criativo das
82
bandas sonoras e visuais a proposio de sua prpria compreenVR6HQRVXFLHQWHDSHQDVYHUalgo tem de acontecer com a
representao, algo mais tem de ser feito com ela, antes que deixe de
VHUSHUFHELGDFRPRDSHQDVXPDVLPSOHVJXUDJHRPWULFD6)
coloca-se em questo a imagem total da obra e sua receptibilidade.
SUHFLVRTXHROPHVHUHYHOHFRPRFRQVWUXRGLDQWHGRHVSHFWDGRU
6)
83
10.3
Francesco Casetti em Inside
the Gaze (Indiana University Press,1998- original de
1988)procura investigar o
modo como o filme designa
seu espectador estruturando
sua presena(p 15).Mas o mbito de sua criteriosa pesquisa
est na enunciao flmica e
a possibilidade de formalizar
essa estruturao da audincia, e no na efetividade composicional da realizao flmica. O dramtico ainda uma
analogia..
84
UMA DRAMATURGIA
FLMICA POSSVEL
O percurso rico e hesitante de Eisenstein diante da tradio dramtica nos situa diante dos problemas compositivos da atividade audiovisual cinemtica. O domnio e explorao da projeo de imagens
apelam para a correlao dessa atividade de manipular o que mostrado em um espetculo com problemas de dramatizao. O diferencial compreensivo e formativo da totalidade da imagem da obra cinePDWRJUFDVHID]VH[SHQVDVGHSURFHGLPHQWRVGHGHWHUPLQDR
do modo como o visto integrado a uma apropriao recepcional.
A descontinuidade dos materiais expostos submete-se continuidade de um projeto interacional executado. A presena irremovvel de
uma audincia pagante e determinada a avaliar e entender o que
v direciona a representao a singularizar sua forma na medida
em que promove a situao interpretativa do espectador. A durao
do visvel se d proporcionalmente orientao da audincia. A reSUHVHQWDRFLQHPDWRJUFDVHYOLPLWDGDDFRQVLGHUDUHQWUHVHXV
problemas composicionais o horizonte integrante e completador da
exposio audiovisual
'HDFRUGRFRP0LWU\IRL7KRPDV,QFHTXHPPDLVVLVWHPDWLFDPHQWH
resolveu essa liberao da concentrao dramtica ao dissociar teatro e dramaticidade, buscando no drama no mais sua estrutura
teatral e observacional transposta para a tela, e sim uma estrutura
GUDPWLFDFLQHPWLFD$3&,QFHUHMHLWDDDGHTXDRGRSDOFR
tela mas generaliza a dinmica representacional dramtica como coerncia da inteligibilidade emocional do espectador. A concentrao
dramtica o paradigma para o controle do que mostrado na tela.
Tal transcendncia operacional da teatralidade frente ao teatro se d
ao se considerar a construtividade do drama como um conjunto de
procedimentos de singularizao tanto do que representam como da
orientao desta representao para uma audincia.
$ SRVLWLYD DUWLFLDOLGDGH GR GUDPD QR VHQWLGR GH DUWLIFLR DWUDYV
da qual a sucesso e simultaneidade do que mostrado se faz em
funo de escolhidos eventos dispostos em uma pr-ordenada concluso, como no caso da tragdia, faz com que tudo contribua conjuntamente para a revelao tanto do modo de expresso quanto
GRTXHUHSUHVHQWDGR$3&'UDPDWL]DUGHYHVHUXPDLQVWQFLD
antepredicativa da construo flmica onde se pensa e se resolve a
estruturao de eventos inteligveis e receptveis.
Ouvir e ver no se reduzem a uma tcnica audiovisual. Ouvir e ver
LPDJHQVHVRQVFRPSUHHQGHUVXDQLWDDUWLFXODRHPXPDHVWUXtura que torne possvel suas distines relacionadas modalidades
diversas e mutuamente implicadas de compreender um espetculo
em sua totalidade. De forma que a dessincronizao da palavra e da
85
86
6H R GUDPWLFR VH UHYHOD QD HVWUXWXUD GR OPH TXDQGR R OPH GHmonstra esta estrutura em sua exibio, o processo de dramatizao
D FRPSUHHQVR GR OPH HP VXD HVWUXWXUD ( VHQGR HVWD HVWUXWXUDUHYHODGDSHODGUDPDWL]DRGUDPWLFDDHVWUXWXUDGROPH'H
PRGRTXHRHVSHFFROPHVHID]HPYLUWXGHGHVXDGUDPDWL]DR
A dramaturgia flmica, hesitante em Eisenstein, elogiada por Bazin e
UHLQVHULGDSRU0LWU\XPDFKDYHGHDFHVVRFRPSUHHQVRGRHVSHWFXORFLQHPDWRJUFRHVXDWH[WXDOLGDGH
10.4
ERWIN PISCATOR E
O FIM DA ILUSO
DA ILUSO TEATRAL
-RKQ+HDUWHOGFRQWUDUHJUDHQFDUUHJDGRGHSUHSDUDUXPWHORSDUD
O mutilado, atrasado como sempre, aparece porta de entrada da
sala quando a pea j estava na metade do primeiro ato,com o telo
enrolado e metido debaixo do brao,.
HEARTFIELD
Erwin, pare! Estou aqui!
Atnitos, todos voltam-se para aquele homenzinho, de rosto fortemente avermelhado que acabara de entrar. No sendo possvel continuar o trabalho, Piscator levanta-se e abandona por um instante o
seu papel de mutilado e grita:
PISCATOR
Por onde voc andou? Esperamos quase meia hora (murmrio de
DVVHQWLPHQWRGRSEOLFRHFRPHDPRVVHPRVHXWUDEDOKR
HEARTFIELD
9RFQRPDQGRXRFDUUR$FXOSDVXDFUHVFHQWHKLODULGDGHQRSEOLFR
PISCATOR
,QWHUURPSHQGR R )LTXH TXLHWR -RKQQ\ SUHFLVDPRV FRQWLQXDU R
espetculo.
HEARTFIELD
([WUHPDPHQWHH[FLWDGR1DGDGLVVRDQWHVYDPRVHUJXHURWHOR
87
PISCATOR 1968:53.
Como HEARTFIELD no cede, PISCATOR volta-se para o pblico, perguntando-lhe o que deveria ser feito: continuar o espetculo ou pendurar
o telo. A grande maioria decide pela ltima alternativa. Cai o pano,
monta-se o telo e, para contentamento geral, espetculo recomea.
PISCATOR 1968:53.
88
Ora este espetculo dentro do espetculo amplia os nexos recepcionais ao mesmo tempo em que amplia o mundo representado e a prpria representao. O pblico quer tudo, o telo e o espetculo.
E para esta ampliao da cena que ruma a proposta de Piscator.
Se a descontinuidade pode produzir tanto novos atos recepcionais
quanto actanciais, ampliando a cena, isso s se torna possvel em virtude de haver o descentramento do centro de orientao do espetFXORTXDQWRDXPSRQWRXQLFDGRUGRTXHPRVWUDGR
2UDDH[SDQVRHGLYHUVLFDRGRVQH[RVDJHPGLUHWDPHQWHVREUH
uma proposta de homogeneidade. Se se considera imprescindvel coRUGHQDUDWRVHHYHQWRVKHWHURJQHRVHPVHTQFLDHVLPXOWDQHLGDde, ento volta-se a totalidade desses procedimentos contra o totalitarismo da cena fechada sobre sua forma de apresentao.
Assim, a proposio de uma cena expandida reage diretamente contra procedimentos redutores da cena.
Contudo, a diferena de Piscator no est na substituio de formas.
Para ele, o critrio no est no formal, est no problemtico .
PISCATOR 1968:53.
Como ento compreender esta diferena que tem um parmetro composiocional, mas que ao mesmo tempo no se limita composio?
Justamente, quando se inserem questes composicionais que controlam opes formais em questes outras no puramente estticas
que comeamos a nos aproximar da amplitude que Piscator advoga.
H, pois, uma estreita conexo entre procedimentos de composio e
UHDOL]DRHDGHQLRGHHVSHWFXOR
O impulso para esta conexo reivindica um contexto reativo, um claro posicionamento contra o conluio entre esteticismo e subjetivismo
que permeava a cultura teatral alem dos primeiro decnios do sculo
XX. Conquistas tcnicas do teatro, como luz eltrica e palco giratrio
so incorporadas, por Max Reinhardt, por exemplo, no fortalecimento
do lirismo dramtico, em uma naturalizao do mundo representado
como registro e clausura da alma individual.
89
idem, 156
idem, 51
Idem, idem
Idem, 53.
90
A pedagogia do espectador impulsionada pela diferenciao dos materiais que lhe so apresentados. Simultaneamente, a economia dos
meios de expresso efetivava tanto o rigor da aplicao desses meios
quanto o controle e a compreenso de seus efeitos. Aquilo que se mostra no mais algo apenas para se contemplar. A contiguidade entre
objetos, aes e situaes em cena com as fora de cena acarreta uma interao palco/platia que concretiza este deslocamento da esfera subjetiva/ilusionista do teatro para uma arena interindividual dos eventos
UHSUHVHQWDGRVHFRQVHTHQWHH[FLWDRFRJQLWLYRDIHWLYDGRSEOLFR
Alterando-se o que se mostra a partir dos nexos recepcionais, fundamenta-se um conjunto de metas e procedimentos que podem ser
explorados e se tornar operacionalizveis, e que no mais se circunscrevem ao lugar e ao pblico onde foram utilizados e testados. Como
a interao palco/platia relaciona-se com os meios empregados na
realizao do espetculo e com o deslocamento da cena individual
para a cena scio-histrica, vemos que a mtua implicao desses
HOHPHQWRVRTXHUDWLFDDDPSOLWXGHGRTXHVHUHSUHVHQWDHQR
apenas um somatrio ou escolha aleatria dos meios empregados. A
cooperao entre meios tcnicos, referncias transubjetivas e nexos
recepcionais mais cognitivos providencia um programa de atividades
representacionais que transcendem o ponto origem de seu encontro
e manipulao. Eis os procedimentos e parmetros do processo criativo de Piscator rumo a uma cena expandida e ampla.
No espetculo BandeirasHVWDPRVORQJHGDVDVVHPEOLDVGH
VHXVRGRUHVHGRVDWRUHVQRSURVVLRQDLV'HDFRUGRFRP3LVFDWRU
pela primeira vez tinha eu em mos um teatro moderno, o teatro
mais moderno de Berlim, com todas suas possiblidades, e eu estava
resolvido a aproveit-las em funo do sentido da pea, a qual, no
tema, correspondia a minha atitude polcia fundamental
Idem 67,68
Idem, 69
91
Idem, ibdem
Essa situao do escritor homloga ao do diretor. Piscator com este material narrativo tinha a oportunidade de efetivar no palco o seu romancedrama, o seu teatro pico. E no que consistia sua atividade de diretor?
ampliao da ao e do esclarecimento dos seus segundo planos; uma
continuao da pea para alm da moldura da coisa apenas dramtica.
2X VHMD IUHQWH HOLPLQDR GH XPD SHUVSHFWLYD FHQWUDO TXH XQLca toda a representao no prprio mundo apresentado, no mundo
da mensagem autoral e sua interpretao restrita do que se mostra,
3LVFDWRUGLYHUVLFDDVUHIHUQFLDVSURGX]LGDVHPFHQDYDOHQGRVHGH
meios e procedimentos que dilatam o horizonte atual. Os atores conWUDFHQDYDPFRPWHOHVTXHH[LELDPRUDIRWRJUDDVRUDWH[WRV
'HVVDPDQHLUDRHVSHFWDGRUVLPXOWDQHDPHQWHLQWHUDJLDFRPDVJXUDV
em cena e com os meios. A visibilidade dos meios no se limitava duplicao redundante do mundo representado. Antes, no mesmo espao
e ao mesmo tempo o espetculo se desdobrava em nveis de referncia
pertencentes a mdias e performances diversas que expandiam o presente de cena. A presena dos meios tcnicos fornecia uma abertura
imaginativa da representao , contrariando o pressuposto do apagaPHQWRGDVPDUFDVGHFRSUHVHQWHVQRXVRLOXVLRQLVWDGRVQRYRVUHcursos cnicos. A exibio tanto dos meios quanto de seus efeitos in loco,
frente s personagens e platia, proporcionava um recrudescimento da
pluralidade representada e da pluralidade de atos receptivos. A heterogeneidade dos nveis referenciais co-presentes em cena faculta o mtuo
aprofundamento dos horizontes da representao e da audincia.
Assim, retome-se o episdio da pea O mutilado: a interrupo da representao, a descontuinuidade provocada pela presena dos meios
produtora de uma nova continuidade que atravessa o espetculo a continuidade da metareferncia. O espetculo demonstra-se como
espetculo para assegurar o vinculo entre os materiais que disponibiliza e os extensos contextos que busca apresentar para a audincia.
Esse uso da metareferncia, incorporando-a atividade representacional, favorece a construtividade da cena, a orientao da seleo,
combinao e distribuio dos meios em funo dos atos de entendimentos da recepo. A inteligibilidade da cena conjuga-se inteligibilidade da audincia.
Idem, ibdem.
92
Idem, 80.
93
Idem, 80.
O xito do espetculo Apesar de tudoPDQLIHVWDRPSHWRGHVRluo de problemas impostos pela forma revista. Em destaque temos o
XVRGHOPHVHPFHQD$VLQFURQL]DRGHPGLDVGLYHUVDVHUDRSUREOHma a ser enfrentado. Nas palavras de Piscator SHODSULPHLUDYH]DWD
de cinema se ligaria organicamente aos fatos desenrolados no palco.
3RLVDIRUPDGHUHYLVWDQRGL]UHVSHLWRDSHQDVDRVHTHQFLDPHQWRGH
partes diferentes, mas sim estruturao mesma de cada parte.
Idem, 81.
2VOPHVHVWDYDPGLVWULEXGRVSRUWRGDDSHD(UDPLPDJHQVGHDUTXLvos, OPDJHQVTXHDSUHVHQWDYDPEUXWDOPHQWHWRGRRKRUURUGDJXHUUD
ataques com lana-chamas, multides de seres esfarrapados, cidades
LQFHQGLDGDVDLQGDQRVHHVWDEHOHFHUDDPRGDGRVOPHVGHJXHUUD
Idem, 82.
Idem, 83.
94
-XQWRVFRPRVOPHVHUDPDSUHVHQWDGRVDRSEOLFRGLVFXUVRVUHFRUWHVGHMRUQDOFRQFODPDHVIROKHWRVIRWRJUDDV7XGREHPGLVSRVWR
com os atores em um palco giratrio, efetivando uma unidade da
construo cnica, um desenrolar ininterrupto da pea, comparvel a
uma nica corrente de gua
Assim, essa unidade advinda da montagem e da sucesso de eventos miditicos diversos era o espetculo mesmo de sua possbilidade
de realizao e compreenso. Piscator tinha uma dupla ansiedade:
primeiro, de que modo resultaria a mtua ao condicionadora dos
elementos empregados no palco; segundo, se realmente se chegaria
a realizar-se algo do que forma projetado
A dupla perplexidade frente composio e realizao do espetculo foi resolvida pelo papel ativo da recepo em dar acabamento s
FHQDV'XUDQWHDSHUIRUPDQFHGDSHD3LVFDWRUDUPDTXHa massa
LQFXPELXVHGDGLUHRDUWVWLFD2WHDWURSDUDHOHVWUDQVIRUPD
se em realidade. Em pouco tempo cessou de haver um palco e uma
platia, para comear a existir uma s grande sala de assemblia, um
QLFRJUDQGHFDPSRGHOXWDIRLHVVDXQLGDGHTXHQDTXHODQRLWH
SURYRXGHQLWLYDPHQWHDIRUDGHLQFLWDPHQWRGRWHDWURSROWLFR
Idem, 83-84.
Note-se que ao se expor os meios e materiais em cena, incrementouse a interao palco-platia. A comum-unidade dessa interao difere
de uma projeo emotiva do pblico mensagem do individualismo
esttico e o ilusionismo de sua representao. A motivao afetiva foi
impulsiona pelo esforo cognitivo. A contracenao das mdias entre si facultou a magnitude da apreenso recepcional. A audincia
podia conjugar fatos diversos no diferencial tanto miditico quanto
referencial e disto compreender e reunir a totalidade do que era exibido. A tenso do espetculo estava na disparidade dos meios e dos
contextos e no modo como esta disparidade enfrentada em prol de
nexos recepcionais. A contracenao entre mdias concretizava a contracenao entre palco e platia. A resoluo da disparidade, pois,
no a sua anulao, o mero cancelamento do heterodoxo, mas o
provimento de atos vinculantes, de nexos.
Assim, o espetculo atua em funo de sua interao ao invs de ser
um veculo para idias autorais. A realidade multimiditica da cena
o que possibilita a interpretao de contextos de ao extremos. Atos
representacionais e atos da audincia colaboram. O projeto composicional culmina no acabamento recepcional. Nas palavras de Piscator: no palco tudo calculvel, tudo se entrosa organicamente. Para
mim, igualmente, o ator que eu vejo no efeito total do meu trabalho
deve, sobretudo, exercer uma funo, tal qual a luz, a cor, a msica o
cenrio, o texto.
Idem, 98.
95
Idem, 83.
96
10.5
TRADIO E RAZO:
MODERNIDADE E
MITO EM RUMBLE
FISH
97
98
vistos. Desdobra-se a pea agora contempornea de seu processo enformador. Ver e imaginar no so incompatveis, mas atividades interdependentes que experimentam a problematizao dos modos e dos
meios da efetividade do afetivo, da doao de um logos para o pathos.
Tempo, espao, linguagem, pessoa nutrem-se dessa descontinuidade
pluralizante assumida estruturalmente na arte cnica. No se trata de
LGHQWLFDUDPELJLGDGHVQDVIDODVGRVSHUVRQDJHQVGHQRWDUFRPR
VXDVDHVSHUWHQFHPDGLIHUHQWHVRUGHQVVLPEOLFDVGHYHULFDUD
arquitetura multifacetada dos personagens elaborados na contracenao e partipantes de nexos interindividuais que proporcionam um
estatuto metafrico a seu ser.
No se trata de perceber esses elementos isoladamente e sim de passar do plano do contedo para o plano da expresso e ver que tais
tcnicas de elaborao do evento cnico so processos que demonstram a singularidade do dramtico.
O dramtico no se guia pelos ditames da organicidade da obra de
arte que o condenariam a assumir total dependncia do esttico a
uma dimenso extra-artstica ocupada na mmesis de uma unidade.
7DOFRGLFDRORVFDGRIDWRDUWVWLFRLQVWUXPHQWDOL]DRHVWWLFR
ID]HQGRFRPTXHHOHUHVSRQGDFDUWLOKDGRVOVRIRVGRQLFRXQR
XQLFDQWHH[SXUJDQGRSRUPHLRGHHVTXHPDVDEVWUDWRVGHHTXLObrio e normatividade, o contraditrio do seio do mundo.
$RFRQWUULRDDWLYLGDGHFQLFDFKDPDSDUDVLRFRQWUDGLWULRHRFRQLtivo. Contrariando as generalizaes formalistas de Aristteles, que viam
na tragdia certa mquina de efeitos emocionais reforada pelas causalidades determinantes do enredo, o que se constata o vertiginoso aprofundamento do contraditrio como forma de se atingir a integratividade
e diferenciao de nveis da realidade. O dramtico a dupla fenomenologia da compreenso, pois interpreta os acontecimentos concretizandoos no horizonte existencial e imaginativo de sua efetivao.
Em Rumble Fish, de Francis-Ford Coppola, os suportes cnicos se fa]HP SUHVHQWHV FRQGLFLRQDQGR R HQWHQGLPHQWR GR OPH (QWUHFUXzam-se dois planos narrativos bsicos. Dois irmos e suas duas vidas
aproximam-se e afastam-se ao mesmo tempo. O irmo mais novo,
5XVW\ -DPHV SURFXUD FRQFUHWL]DU R LGHDO FRPSRUWDPHQWR GH VHX LUmo mais velho, cognominado de o garoto da motocicleta. O que temos a representao do herosmo nos tempos modernos.
99
5XVW\-DPHVKHUGDRJHUHQFLDPHQWRGRFRQLWRTXHRKHULSRVVLELOLWD&RQWXGR5XVW\-DPHVH[SXOVDDDPELYDOQFLDRQGHTXHUTXHHOD
possa estar, nivelando os acontecimentos ao satur-los com o modelo
QLFR GH UHVSRVWD TXH R UHH[R UHLWHUDGR GH VHX LQGLYLGXDOLVPR
(PWRGRVLQVWDQWHVGHVHXSHUFXUVRDFWDQFLDOQRGHVDRGHJDQJXHV
na famlia, na escola e no amor, permanece ele inclume, imune aos
contextos diferenciados, agindo do mesmo modo e reagindo da mesma maneira, impondo o saciar de sua presena.
5XVW\-DPHVHQFDUQDRSOHQRRWXGRDRPHVPRWHPSRDJRUDXOWUDSDVVDQGR DV VLQJXODULGDGHV FRQJXUDQGRDV QD REHGLQFLD GH XP
YLWDOLVPRFHJR5XVW\-DPHVQRVRIUHQRKSHUGDVRXJDQKRVSDUD
ele. Feito imortal, entidade olmpica, cultiva o ilimitado, em uma razo cativa de sua egolatria. Seu saber o da esperteza, um reduzido
ORJRVGH8O\VVHVTXHVHFRPSUD]QDPDQXWHQRGHXPDWUDQVFHQdncia vazia que se perpetua para alm das diferenas.
Esse heri de uma presena atual, pontual, sem memria, confrontase com a serenidade do irmo mais velho, antigo lder de gangues,
TXHYLXWRGRHVVHJHUHQFLDPHQWRGHFRQLWRVQRUHQGHUPDLVVHQWLdo para sua existncia. O garoto da motocicleta vai embora para Califrnia e volta, dinmica de entradas e sadas cnicas que proliferam
DDEUDQJQFLDGHVXDJXUD1HJDQGRRKHURVPRDSROQHRGRHWHUQR
retorno do mesmo, mmesis extempornea da supresso dos limites,
HOHLQWHUYPQRVGLYHUVRVPRPHQWRVGDJHVWDGH5XVW\-DPHVLQVXDQGRDGHUHH[RHSHUFHSRVREUHRREWXVRGHVXDSHUVSHFWLYD
Com ele, pensar e sentir no se encontram separados. O garoto da
motocicleta pergunta e difunde saber. Os contextos so assimilados
GHQWURGRKRUL]RQWHFRPSUHHQVLYRTXHRVHPROGXUD$VHVSHFLFLGDdes dos momentos se integram na lgica subjacente que os constri.
Para alm das categorias de exibio e atemporalidade, a vida no
EDUJDQKDFRPRLPHQVRHWHGLRVRPRYLPHQWRGHXQLFDRGDVVLWXaes existenciais.
Na grande cidade onde os irmos vivem, o plural reala o unvoco.
Dia e noite se sucedem na ciclomitia da nvoa que habita todos os
espaos e todos instantes, desvanecendo e dessubtancializando os
contornos e as formas do mundo. Viver aqui sobreviver em meio
ao que j se orienta entre carcaas de coisas. preciso o rigoroso vigor aplainador das diferenas para permanecer na grande cidade. Os
nexos interindividuais, seja no amor seja na lealdade, expressam-se
100
em estratgias comportamentais que asseguram seu enquadramento em um circuito padro de referncias. Indivduo e grupo, mesmo
e outro, todo e parte se associam em unidade orgnica que se apresenta como representao globalizadora do parcial, circunscrio do
diverso ao monolgico.
5XVW\-DPHVRKDELWDQWHHKHULGHVVDFLGDGH6HXLUPRRTXHQHgou tal envoltrio rumando para a utopia que ela aponta (Califrnia,
a imagem do prazer sem limites, a imensa prostituta maquiada e doHQWHYROWD,UHYLUHVWDUHQRHVWDUSHUWHQFHUHQRSHUWHQFHUREMHtivam a complexa rtmica de disperso, cujo emblema de integrar e
GLYHUVLFDU
$PERVFRQWUDFHQDPXPFRQLWRGHVDEHUHVTXHXOWUDSDVVDDGLIHUHQa de opinies.
Em determinado momento da narrativa, os irmos discutem sobre
uma mulher denominada Cassandra, homloga da personagem da
pea AgamenonGHvVTXLOR5XVW\-DPHVRTXHVFRQKHFHRTXHVH
UHFRQKHFH LPHUVR HP VXD OJLFD XQLFDQWH GHVFRQKHFH D WUDGLR
Interroga-se, realando sua instncia descontextualizadora: E o que
os gregos tm a ver com isso ?
Cassandra era a profetisa que previu a prpria morte e que, em sua
agonia, recuperava a morte do rei Agamenon. Longe da exposio contempornea da morte, preocupada no quantitativo e no informativo da
PRUWDQWDGHHGRPRUWIHURPRVWUDVHHVHGHPRQVWUDDQLWXGHFRPR
possvel expressivo, como palco outro que dramatiza a estrutura da sensibilidade relacionada a uma estrutura da imaginao, para que se registre o acontecimento do limite como limiar compreensivo. A morte no
regio ltima e intransponvel, que s se doaria em feitos irracionalizveis, depsito sedimentado de emoes. Ao invs de resduo transcendental do nada, a morte comparece em sua plasticidade originante,
FRPRGHVDRDRVPHLRVGHFRQVWUXRGHVLJQLFDGRV3RULVVRQXWUHGH
agonias, esperas, dvidas, incertezas, desconhecimentos - momentos cnicos que, em sua entreabertura mediadora de contrrios, possibilitam,
HPVLPHVPRVDVIRUPDVHRVFRQWHGRVGHVXDUDWLFDR
O que os gregos tm a ver com isso ? Passados dois mil e quinhentos
DQRVHQWUHDSHUJXQWDGH5XVW\-DPHVPRGHODUKHULGDVXEMHWLYLGDGHPRGHUQDHDJXUDGH&DVVDQGUDDFRQWHFHUGDPRUWHQDWUDJGLD
grega, recupera-se uma pergunta que repe um saber transhistrico.
101
Sempre diante daquilo que ultrapassa o horizonte comum da experincia humana, diante de signos que retomam uma ausncia que nada
mais que desvinculao com os pressupostos cristalizados e com o
imediato, sempre a hesitao ante a ambivalncia do desconhecido irrompe: ou interdita-se o ignaro pelo conhecido, ou se assume as frinFKDVHDVEUHFKDVGHLQGHWHUPLQDR+XVVHUOGRVIHQPHQRVFRPR
tempos prprios da compreenso e ruma-se para dinamizar o cgito
em sua saciedade de sombras, no lascinante jogo espectral multiforme
do claro-escuro da conscincia.
O que os gregos tm a ver com isso ? H dois mil e quinhentos anos
o teatro ateninense produzia uma arte-conhecimento que prope
o descontnuo, o contraditrio como modo de concretizao dessa
conscincia. Naquele tempo tambm surgiu a pergunta E o que Dioniso tem a ver com isso ? , diante da incompreenso do fundo mtico
agente e subagente na arte dramtica. Veja-se a transhistoricidade
da questo, pois aqui se assenta a Modernidade, a Modernidade de
todas as pocas. Em determinado momento, h uma crise de ordens
na cultura. J no se percebe mais o horizonte de tudo o que ou
existe. Agora h somente a urgncia de se interrogar pelo nexo das
coisas, pelos vnculos que situam os encontros entre as diferenas.
Tradio x razo - eis a problemtica que encampa tal interrogar (GadaPHU'HQWURGHXPHVSDRWHPSRDVFHQGHPRVSOXUDOLGDGHGHQYHLV
estruturantes dos acontecimentos, sendo que esses nveis so percebidos como no pertecentes ao mesmo fenmeno. So to divergentes
as ordens de sentido que no mais convergem para o intervalo nodal
que os consagra. Consequentemente, engendra-se uma tradio, um
pretrito como imagem de algo que perdeu seu vigor e seu valor, e
uma modernidade que hospeda o que pode ser racionalizvel e pertencente urgncia fulcral do necessrio e do caracterstico. Relega-se
ao museu de formas passadas tudo o que refora a atualidade coesa e
coerente do que faz sentido em sua clareza e harmonia estabelecidas.
A temporalidade aqui constituda e cifrada em atitudes de excluso e
interdio que patenteiam um processo de referenciao ocupado em
PDQWHUFRQVWDQWHVGHVHQWLGR$OJRQRSRVVXLPDLVVLJQLFDRSRLV
no obedece mais ao esquema cannico de representao. Repercutese certa Razo, certa estratgia interpretativa que uniformiza as percepes agora como reprodutoras do modelo-base e no como aproximaes ao diferencial da diferena dos eventos. Pensar aqui conduzir
a compreenso para entronizar o j sabido, o j sentido, o j desejado.
102
5XVW\ -DPHV R WHDWUR YLYR TXH HOLPLQD R GUDPWLFR 2 FRQWUDditrio no pertence sua esfera de ao. Quando no sabe de
algo, seu no saber apenas concluso de que esse algo no faz
parte e nunca far daquilo que ele de antemo conhece. Quando
no percebe, seu no perceber a reposio do mesmo esquema
cognitivo que expulsa tudo e todos que escapam desse esquema.
Por isso pergunta, desdenhando da prpria pergunta. Por isso o
que os gregos tm a ver com isso? No interrogao, mas afirmao que capitula diante do que no previamente determinado
por suas respostas j automatizadas. No questionar j no h mais
questo, mas a pergunta j diz de si o que procura como resoluo
da dvida, que dvida com o necessrio meio de sobrevivncia
na grande cidade - o espetaculoso crepsculo da razo frente
eliminao de suas virtualidades.
5XVW\-DPHVSRGHUVHIHULUQDEULJDGHJDQJXHVPDVQRYDLPRUUHU
poder perder a namorada, mas no sofrer; ser expulso da escola
e ainda continuar senhor de sua pessoa. Negar o que est prximo
de si e sair inclume da vida - como entrou, saiu.
No entanto, o garoto da motocicleta vai morrer, vai morrer, pois
se arriscou muito mais. Viver muito perigoso quando se atinge
RV OLPLWHV GD H[SHULQFLD KXPDQD *XLPDUHV 5RVD (OH TXH IRL
e voltou, que saiu da grande-pequena cidade, realiza a transviagem, que visagem da transcendncia maior. O mais importante
sempre est perto de ns. Transcender tornar imanente, mais
consciente e partcipe daquilo o que no jogo entre proximidade
e distncia acusa a essncia variacional dos seres e dos acontecimentos. Ser heri ultrapassar a arena de vitoriosos e perdedores
e repor o conflito, a descontinuidade impressa e inerente a tudo
que ou existe. Alm e aqum se complementam na intensificao
de suas disponibilidades.
2JDURWRGDPRWRFLFOHWDHPXPOPHHPSUHWRHEUDQFRFRUHVDQWLJDVSDUDHWHUQRVSUREOHPDVQRYRVHYHOKRVWHPSRVVHUHXQLQGR
vai morrer, pois todo heri morre. Morre para libertar os animais
de suas jaulas, para fazer voar os pssaros, para retornar ao mar os
peixes briguentos. Coloridos, azuis e vermelhos, so os peixes que
OXWDULDP LQQLWDPHQWH HWHUQDPHQWH DW FRQWUD VL PHVPRV FRPR
azuis e vermelhos, contraditoriamente, so as cores que vm do carro da polcia, logo para ele, daltnico, que no percebe as cores, mas
FRPSUHHQGHRVFRQLWRV
103
104
105
106
CINEMA E
TEATRALIDADE:
O BEB (SANTO)
DE MCON,
DE PETER
GREENWAY
11
11.1
PRELIMINARES
108
11.2
O FILME
109
O imenso galpo que se abre em novos tablados abrange e no completa as tenses entre f e cincia, que logo descambam para manobras de
interesses particulares. Ningum escapa dessa nivelao dos valores. A
cidade faminta, rodeada pela praga, converte-se no teatro de sua autofagia, na necessidade de fomentar mitos e de literalmente os devorar.
2WHDWURQRFLQHPDFRPSDUHFHQRVQDFODUDLGHQWLFDRGRGLVSRsitivo tcnico-cnico.3DUDRPXLWRH[LELUROPHH[SORUDXPDWHDWUDOLGDGHJHQHUDOL]DGD$TXLORTXHVHPRVWUDQRVHFRQQDDSDULR
GRVHOHPHQWRV$PROGXUDWHDWUDODFRQWLQXLGDGHGROPHLQWHUIHrindo na percepo do espao das aes e dos comportamentos. Essa
interferncia intensifica a sensao de que tudo ali construdo, um arranjo para sua recepo. Da os fatos mais cruentos,
na exorbitncia de sua oferta, do estupro ao despedaamento ritual,
organizarem-se como eventos teatralizados, e manifestando a sua
FRQJXUDRHPFHQD
&RPDVPXGDQDVGHSODQRHGRVSDOFRVQDFRUHRJUDDGDFPHUD
que vai do centro da cena aos bastidores, rompe-se com a clausura do
PXQGRUHSUHVHQWDGRHPXPOPHFRPRXPDSHDOPDGDFRPRXP
texto ilustrado por imagens. A trama narrativa contrape-se trama
multimiditica, como espetculos dentro do espetculo. A histria sucumbe ao mito, ao encenar o acontecer da crena, do como acreditar
em algo sem fundamento que se torna o fundamento dos atos.
Em Mcon preciso acreditar. Seus habitantes precisam crer. E ns,
que tudo vemos, tambm. O terrvel e o sublime grotescamente se
encontram, e a mentira assumida como verdade depois se completa
no desmascaramento vingativo.
Quando tanto o omitir, a mentira, quanto o revelar so modos recprocos e falhados, a existncia da comunidade se articula nessa pletra do vazio, na superabundncia do limite. No h nada a esconder.
7RGDDPTXLQDGH*UHHQDZD\IDEULFDHHUJXHXPDFLGDGHTXHQRV
devolve seus escombros, seu cotidiano de sobreviver mngua, nessa
fome de mais vida, nessa misria da manipulao, dos embustes, do
auto-engano, do gozo dos simulacros.
2VKDELWDQWHVGDFLGDGHHYLGHQFLDPVHFRPRJXUDVFRPRWLSRV1R
KMXVWLFDWLYDVGHFRPSRUWDPHQWRVHSRUPHLRGHVXDVIDODVRXWUDV
YR]HVSRGHPRVRXYLU(OHVQRVRSHUVRQDJHQVGHQLGRVDSDUWLUGH
110
11.3
POR UM
CINEMA NO
EXCLUSIVAMENTE
NARRATIVO
3HWHU*UHHQDZD\HPVXDVREUDVHVIRUDVHSHODH[SORUDRGHKLEULGLVPRVGHPRGRDHQIDWL]DUFRPRWDQWRVRXWURV]HUDPTXHDUWHFLQHPDWRJUFDQRVHUHVXPHDFRQWDUKLVWULDV$FLPDGHWXGRROPHPRVWUD
ROPHGHPRQVWUDVHFRPRHYHQWRRUJDQL]DGRHSHUFHSWYHO$RUHFXVDU
DH[FOXVLYLGDGHGLHJWLFD*UHHQDZD\SUREOHPDWL]DDKLVWULDGRFLQHPD
HQRVVRVPRGRVGHFRQFHEHUHGHQLUHYHQWRVPXOWLGLPHQVLRQDLV2TXH
est em jogo so nossas estratgias para compreender obras cuja espeFLFLGDGHVHH[SUHVVDQDDPSOLWXGHGHVHXVPHLRVHHIHLWRV
Da a importncia da teatralidade: na cultura ocidental a situao de
performance, o ato de dispor para uma audincia materiais e habilidades in loco, encontra-se inseparvel de sua inteligibilidade. Tanto
que pode ser ensinada, comunicada, reconhecida. Esta tecnologia das
representaes implicada em uma situao performativa tem como
correlato nocional uma abertura ao simultneo, ao mltiplo, ao heterogneo. &RQWUD D LOXVR GR XQR QLFR XQLFDQWH WDO WHFQRORJLD
oferece-se a processos criativos os mais diversos. As decises em um
processo criativo atualizam o drama da expresso, a encenao de
suas possibilidades, o roteiro de suas escolhas e excluses.
111
Por meio de uma generalizada situao de observncia, de uma moldura cnica, O beb de MconGHVPRQWDQRVVRVKELWRVGHDVVLVWLUD
REUDVFLQHPDWRJUFDVSRUHVWPXORVGLYHUVRVHFRQWUDDQDUUDWLYD
para que se veja que h diversos modos de se contar uma histria,
como aquela com pedaos, os nacos de carnes de um anjo, nosso desejo por um cu.
Este teatro que se abre em outros teatros, que se dobra sobre si mesmo, e se destri, ruminando espaos mltiplos, alm da pea sobre a
pea, expande a contingncia de sua espetacularidade, oferecendo
JXUDVIDQWDVPDJULFDVHQWUHOX]HVRPEUDVTXHDSHQDVVXEVLVWHP
no refazer suas verdades, em um cotidiano de aderir intensamente
quilo que as fascina, sem conseguir ir alm daquilo que em frente
delas cresce de valor pelo sopro do desejo.
Ver Marcus Mota, O teatro
como metaesttica: subjetividade e jogo segundo H-G. Gadamer, em ReVISta (Braslia,
2005, p. 86-94).
Ver Wolfgang Iser, What is literary anthropology? The difference between explanatory and
exploratory fictions, em Michael
P. Clark (ed.), The revenge of the
aesthetic: the place of literature
in theory today (Berkeley/Los
Angeles: University of California,
2000, p. 157-179).
Mise-en-scne, mise-en-cadre, mise-en-abyme. Mcon a cidade-caverna em que se celebra o esteticismo cruel, nica instncia em que
se engendram os sons e as imagens da tribo, as quais so a comida
e moeda, o que se quer e o que existe. Pois estamos e no estamos
em um teatro. O beb e no divino. Tudo no passa de encenaes, no sentido de que tudo exibido, inclusive sua construtividade:
do teatro teatralidade. O recurso a molduras cnicas manifesta a
PDWHULDOLGDGHGRLPSXOVRPHWDFFLRQDOTXHUHJHDVREUDVGH3HWHU
*UHHQDZD\TXHVRDRPHVPRWHPSRREUDVHWHRULDVVREUHDWLYLGDdes representacionais.
(QP LPSORGLQGR D SUHWHQVD XQLGDGH UHSUHVHQWDFLRQDO GR FLQHPD
HDQRUPDWLYDRUWRGR[LDGDHVSHFLFLGDGHGDREUDFLQHPDWRJUFD
DGLYHUVLGDGHPDWHULDOHHVWWLFDGRFLQHPDGH*UHHQDZD\UDWLFDD
busca por paradigmas pluralizados na compreenso e realizao de
eventos multidimensionais.
112
11.4
O MELHOR DO PIOR:
HIPER-REALISMO E
REPRESENTAES
Marcus Mota
2004
Revisto em Abril de 2006
1RLQWHUYDORGHDSHQDVXPPVHPWLYHPRVHVWULDVGHOPHV
baseados em duas principais fontes da cultura ocidental: Cristo, em A
paixo de Cristo, de Mel Gibson, e A Ilada/Odissia, em Tria, de WolIJDQJ3HWHUVHQ(YHPPDLVSRUDFRPR$OH[DQGHUGH2OLYHU6WRQH
Esta feliz ocasio, entretanto, s pode parcialmente ser comemorada. E o motivo da comemorao reside em razo diversa daquilo
TXHSRGHULDKDYHUHQRKTXDQGRHVWDVKLVWULDVFRQXHP9DPRV
por separado, pois as diferenas de tratamento do material excluem
qualquer tentativa de comparao. Por enquanto.
1
Primeiro A paixo de Cristo. Antes de tudo, preciso adiantar que, independentemente das polmicas religiosas, A paixo de Cristo no
XPOPH&RPRUHDOL]DRFLQHPDWRJUFDQRVSVVLPRFRPR
tambm um fracasso e desperdcio do material utilizado, desde a parte tcnica, e seus inmeros e evidentes problemas de acabamento
- cenas mal iluminadas, cenrios mal construdos, focos trmulos e
embaados - at a dramaturgia, que sofrvel no h personagens,
QRKLQWHUSUHWDHVDOPGDJXUDGH3LODWRV&ULVWRORJRGHLQFLR
surrado no rosto, tem seu olhar eliminado, eliminando, desse modo,
VHXQH[RFRPRHVSHFWDGRU(DVJXUDVTXHVHVHJXHPRXVXVSLUDP
e choram ou so esteretipos de viles, rindo quando agem mal ou
quando espancam. A alternncia entre cenas presentes e as memrias frouxa, no havendo qualquer relao entre estes grandes planos e contraplanos, a no de ser o de produzir um enxerto bizarro e
sem sentido na continuidade. Nem continuidade temos.
(VVD FRLVD TXH QR XP OPH SDUHFLD FRPHDU EHP $ HVFROKD GD
FHQDQRMDUGLPGR*HWVPDQLFRPRDEHUWXUDHDSRGHURVDJXUDGH
Jim Carvizel dando concretude potencialidade dramtica daquele
momento prenunciavam isso. Mas logo vieram 1- um pobre efeito de
113
mquina de fumaa e 2- uma melodiazinha de atmosfera, uma musiquinha to bvia, padro de momentos climticos, que fez tornar
SHUFHSWYHORWUDEDOKRGHGHVGUDPDWL]DRGDVHTQFLDHPSUROGH
objetivos bem tangveis e imediatistas. Dali para frente, a representao de Cristo no teria nenhuma outra prerrogativa seno a prevalncia dessa interveno explcita e detectvel de quem manipula
a histria, de quem faz ver o que deve ser visto: o diretor, com sua
sensibilidade de marombeiro.
E no h mais enganos. Cristo sem rosto e sem qualquer relao com
VHXFRQWH[WRQDUUDWLYRHKLVWULFRXPSUHWH[WRSDUDH[HPSOLFDR
GHXPHVTXHPDLQH[YHOGHFDUDFWHUVWLFDVTXHFRPELQDDWUDMHtria pop GR KHUL TXH DSDQKD DSDQKD H DSDQKD FRPR QRV HP Omes dos brutamontes como Silvester Stalone e do prprio Mel Gibson
(lembre-se o indefectvel Pay BackDWRUPHQWRVDvia crucis catlica
e seus quadros e contabilidade de quedas e injrias e participantes. A
via crucis e o herosmo pop convergem e mutuamente se alimentam
formando a coerncia e a coeso de tudo o que exibido na tela.
Essa viragem do Cristo para o esquema pop-religioso fundamentalista
explicitamente apresentada e explorada durante a primeira tortura
de Jesus. Soldados romanos se revezam nos golpes diante de um Jesus
DPDUUDGRDRFHSR$SVXPDH[WHQVDHHVWSLGDVHTQFLDGHYLROHQWD
pancadaria, com a platia j enfastiada diante de tanto sangue, Jesus
cede, rendido e aparentemente desmaiado. Mas no assim. No em
uma obra como esta. Para perplexidade do pblico e dos soldados romanos, Jesus recobra vigor e quer mais, mais porrada, como que provocando, exigindo que batam nele. Da para frente a mesma porcaria,
at a cruz, tudo metodicamente exposto, chegando ao anticlimax bizarro-cmico dos corvos comendo o ladro que ofendeu Jesus. A partir
dessa provocao, as portas da estupidez esto abertas e o pseudoretratismo de Gibson torna-se sem pudor algum um livre exerccio de
suas limitaes intelectuais, uma equivocada transposio do falso heURVPRTXHYHPRVHPRXWURVOPHVGRSUSULR*LEVRQCorao Valente e O patriota. A partir desse ponto, no h mais lugar para a platia. A
saturao da violncia expulsa, denuncia e nega qualquer constrangimento. O que temos ali ento seno um corpo mutilado cada vez mais,
um corpo em remendos, o corpo-hematoma, o no-corpo como veculo
para essa este espetculo pop-fundamentalista? No h nada o que fa]HUDJRUD9HPERUDRXTXHDWRQDO$IXQGHVHQDFDGHLUDHHVSHUH
essa cansativa reiterao da mesmice passar.
114
O mais estranho ver gente, gente de verdade chorando, se emocionando com um negcio que foi feito para saturar a sensibilidade, para
de(in)senbilizar. Mas no deveria haver estranheza. Por sculos o cristianismo dominante tem se valido dessa abstrao sentimental, desse racionalismo da representao para eliminar qualquer vnculo do
crente com uma dimenso maior que a imagem. Presos ao epidrmico,
pele esfolada, sofremos a impossibilidade da ao, a impossibilidade
de pensar e agir alm do esquema imposto. Por isso o pop-religioso.
Diante da via crucis, no h nada o que fazer seno chorar por no fazer
nada. O que realmente lamentvel que o drama da morte de Cristo
tenha se renovado secularmente nesse repugnante amortecimento de
nossas capacidades de pensar, sentir e agir. Todos nos transformamos
em uma massa annima de incapazes e brutos, vivendo da contemplao e autopunio diante do sofrimento inocente. E isso nos acusa
e por sculos vai continuar a nos acusar: a omisso, o deixar de agir,
primeiramente conosco mesmo, o tornar invivel uma mudana que
pode acontecer com qualquer um, individualmente, quando o fascnio
da inrcia rompido e por livre e espontnea vontade um contato pessoal e nico com esta histria realizado sem as muletas de sempre,
sem a cegueira e a lepra de agora.
$QDOSDUDHVVHFRQWDWRFRQFUHWRSDOSYHOTXHDQDUUDWLYDGH&ULVWR
se dirige. E. Auerbach, em sua bsica obra Mimeis, ao fazer uma histria
da representao da realidade no ocidente, atribui s narrativas em
YROWDGDJXUDGH&ULVWRDUXSWXUDFRPUHJUDVHSURLELHVHVWLOVWLFDVH
ideolgicas que limitavam a apario do cotidiano comicidade, nunca
ao sublime. A presena de Cristo, em seus encontros nos caminhos e nas
casas e suas conversaes com as pessoas das mais variadas classes sociais, fez explodir distines, reunindo paradoxos e contrrios na carne
viva e pulsante do mundo. Cessou a perspectiva privilegida que dividia
o mundo em atores e contempladores. Todos agora so personagentes.
O evangelho para todos, no no sentido de um rebanho tangido pela
dependncia psquica a um sofrimento inoculado na semana santa e
nos natais. Para todos, porque no h uma instncia prvia que nos
usurpe o valer-se de nossas prprias prerrogativas.
Ao invs disso, temos A paixo de Mel Gibson, sua obsesso em sodomizar todo mundo com essa reciclada porcaria de uma mesma atitude diante da narrativa de Cristo. Pssima montagem e acabamento,
perda de oportunidade e recursos, tudo para reperpetuar uma emocionalidade sem objeto, um sentir sem vnculo, um sofrer sem porqu
alm do prprio sofrer. Sofrendo o sofrimento, validando a invalidez,
115
2
Tria, por sua vez, um grato presente. A quase impossvel misso de
dispor na tela os milhares de versos de Ilada e outras mais de OdisVLDHQFRQWURXQHVWHOPHXPDIHOL]VROXR3ULQFLSDOPHQWHQRTXH
diz respeito atitude antiblica que atravessa essas obras. A confederao liderada pelo chefe aqueu Agamenon para conquistar o povo
troiano e sua cidadela uma oportunidade que, por meio de paraleOLVPRVGHPRQVWUDDFRUUHODRHQWUHRVPXQGRVHPFRQLWR2HQWUH-
116
117
118
119
3
Enfim, a impossvel comparao. Mesmo sendo complicado discutir coisas j feitas, pois a discusso revolve-se sem a menor
alternativa de o produto venha a ser revisto, ou ainda, mesmo
sendo extremamente arriscado colocar em debate obras midiolgicas, como veremos, a resoluo de olhar mais atentamente
para estes dois filmes e para outros mais pode ser usada de outra
forma que a nossa familiar rede de breves-comentrios-aps-ocinema-com-o-objetivo-de-no-dizer-nada-j-falando-algumacoisa. Complicado e arriscado comentar obras e no fazer
obras, porque o melhor comentrio de uma obra uma outra
obra, assim como complicado e arriscado discorrer contemplativa ou intelectualmente sobre produtos de consumo preso ao
circuito produto-consumidor.
7DQWRXPDHRXWUDUHVSRVWDDRVOPHVSRGHPUHVXOWDULQVDWLVIDWULDV2FRPXPDLVVRWXGRDVHQVDRTXHXPOPHDSHQDVXP
OPHHQDGDPDLV1HVVHSRQWRLOXGHPVHDVFUWLFDVTXHDSHQDVYLsam desideologizar atos de consumo, apontar pressupostos de maQLSXODRGDUHDOLGDGHFRPRVHVRPHQWHOPHVIRVVHPLQWHUSUHWDes distorcidas do mundo. Armados de uma artilharia conceptual,
at um simples conto infantil d margem a tratados e artigos e
SXEOLFDHVHPWRGRVSDUDLGHQWLFDUHDQLTXLODUSHQVDPHQWRVGH
dominao. muita artilharia para discutir to pouca coisa. Notabiliza-se o crtico e no a crtica.
Em nosso caso, no estamos diante de grandes obras para fazer
uma anlise to multidimensionada. A paixo de Cristo uma porcaria, e TriaXPOPHFRUUHWR+YDOLGDGHGHVHIDODUGHDOJRTXH
QRVHMDXPDREUDSULPD"0DVFRPRLGHQWLFDULVVRSURGXHVTXH
se distingam esteticamente? Obras audiovisuais colocam em xeque
muitas das prticas analticas tradicionalmente vlidas. Diante disso, muitas vezes nada resta ao intrprete isolar-se em seu gosto
tido como particular ou desconsiderar a validade de se defrontar
com esses produtos de consumo. Entretanto, o que fazer quando
SURYRFDGRVVHTXHSRGHPRVDLQGDLGHQWLFDUXPDSURYRFDR
- quando solicitados por realizaes que se apropriam de materiais
historicamente fundamentais ? O que fazer quando algo que nos
pertence referido e utilizado?
120
4
A histria da guerra de Tria e a vida e morte de Cristo atravessaram sculos sendo oralmente transmitidos, desencadeando variaes e apropriaes diversas em diversas situaes. A situao
mesma de se ouvir estas histrias permaneceu durante muito
tempo como a nica possibilidade de concretizao dessas histrias. Contar essa guerra e essa vida permeava atos e eventos
especiais de audincia e performance. Os filmes de Mel Gibson
e Wolfgang Petersen pertencem a essa longa tradio de apropriao e transformao desses relatos. Mas assim como h uma
longa histria de apropriaes, h tambm de orientaes dessas retomadas. Cada retomada nica, pois faz vir cena o relato
e sua orientao receptiva. Quando essas antigas histrias so
revistas, quem as apresenta hoje quer mostrar o que so essas
histrias hoje.
Para Mel Gibson o tempo de agora isso o que ele exibe na tela: a
nfase no que importa para as pessoas que vem o que ele mostra. A
opo do hiper-realismo, na estranha atrao e repulsa pela violncia
fsica se complementa na perspectiva de platia que domina o conservadorismo emergente, conservadorismo esse alheio a qualquer
forma mais complexa de pensar ou representar.
11.5
SOBRE O FILME
CAPOTE, DE BENETT
MILLER
Marcus Mota
3/4-maro-2006
121
FLQHPDWRJUFRFRORFDQRVGLDQWHGHXPDVLWXDRTXHXOWUDSDVVDD
JODPRXUL]DRGRELRJUDIDGR)RLRTXHRURWHLURGROPHFRQVHJXLX
realizar com muita qualidade.
1D YHUGDGH PDLV TXH H[LELU D YLGD GH 7 &DSRWH WHPRV QR OPH R
modo como o escritor T. Capote envolveu-se, em seu processo criatiYRFRPDVUHODHVHQWUHYLGDHFR
A obsesso pela histria, por uma histria escabrosa - o assassinato
de uma famlia que pertenceria mais s pginas policiais dos jornais
transformou-se, ao mesmo tempo, tanto em um dos grandes livros
PRGHUQRV TXH PXGRX R MRUQDOLVPR H XP SRXFR D SURVD GH FR
quanto praticamente sepultou a carreira do autor.
Durante o filme somos apresentados figura de um escritor que
demonstra um gosto enorme por suas prprias performances em
ambientes sociais - comportamento que lembra O. Wilde - expresso em comentrios chistosos para agradar uma platia sedenta por novidades e jogos de civilidade. Em contraponto a
esse ambiente elitista e superficial, acompanhamos o escritor
em sua arquiviagem em torno de um acontecimento terrvel. Das
rodas sofisticadas de Nova York a uma cela de priso, Capote desdobra-se entre procurar acomodar estes ambientes diferidos ao
encanto de sua personalidade e sobreviver ao impacto que estas
realidades lhe ocasionam.
Em um primeiro momento, parecemos ver um anjo no lodo, um escritor na sarjeta. As rodas artsticas de Nova York em nada se parecem
com os lugares relacionados com o crime: uma cidadezinha do interior do Kansas, o lar provinciano do delegado da cidade, a priso.
Entre esses mundos, est o afamado homossexual T. Capote, amigo de artistas famosos, ele mesmo uma afamada estrela. Ao procurar submeter estes mundos aos ditames de sua escritura, Capote nos oferecer um outro drama, que coloca a prpria situao de
escritura em xeque.
Investigando os personagens envolvidos no crime, Capote detm-se
QDJXUDGRDVVDVVLQR1HVWHPRPHQWRGROPHGHVGHRHQFRQWURQD
delegacia at a srie de encontros da priso, desloca-se a relevncia
do crime para o envolvimento de Capote com o criminoso. A perspectiva de Capote altera a realidade. O espectador chega at acreditar
122
123
atravs do enfrentamento e negao daquilo que esse mesmo esteticismo refora: o eu. Para ganhar, ter de perder, perder-se. Porque,
quando a base de tudo, da glria, do reconhecimento, do fazer artsWLFRVHIXQGDPHQWDQDUHDUPDRGDVXEMHWLYLGDGHDPDLRUUDGLFDlidade, a maior conquista, a maior recompensa justamente pr em
ULVFRVDFULFDUORJRHVWDEDVHHVWHIXQGDPHQWRRHX$UXSWXUDGH
Capote acontece dentro do horizonte daquilo em que ele acredita.
Realizada a ruptura, dissolve-se o mundo e seu horizonte, abatem-se
os limites da mesma estrutura. Para o mundo de Capote chegar ao
seu clmax, o mundo de Capote, Capote mesmo ter de ruir. E a runa
psicolgica de Capote est em contraponto aceitao de morte por
parte do assassino. Capote, que comea como um ardiloso manipulador dos outros, acabar por fugir deles, a tentar recusar a presena de
algum alm de si mesmo. Mas, de tanto invadir os outros, de tanto
ampliar sua forte presena, agora no consegue se esvaziar, no conVHJXHLPSHGLUDGHVDJUHJDRGDSUHWHQVDXQLGDGHGHVXDUPHVXEjetividade. Porque Capote est na priso junto com o assassino. Est
na priso de suas crenas, de suas certezas. O assassino, por um lado,
vai se livrar da priso morrendo; j Capote, de outro, ele completar
um longo ciclo de agonia, sem nunca mais terminar um livro.
Mais que a questo da tica entre entrevistador/pesquisador/escritor e pesquisado, temos justamente esse ncleo duro de uma cultura
que se autocelebra atravs do culto personalidade. Capote deseja
ardentemente terminar seu livro para entrar no panteo dos grandes
HVFULWRUHV3DUDUDWLFDUVXDDPELRHOHWDQWRHVWHQGHRWHPSRGD
execuo dos assassinos para obter relatos e informaes para seu
livro quanto abrevia este mesmo tempo para se livrar de suas fontes
HGDUXPQDODVXDREUD$JLQGRFRPR'HXVHOHDEUHYLDRXGLVWHQGH
GHVWLQRV$H[LELOLGDGHQRWUDWRFRPDYLGDGRVRXWURVSDUHFHUHDUmar a rigidez do plano escritural. Justamente a que se encontra o
grande problema esta adequao entre obra e vida.
Antes, o homossexualismo. Aberto em Nova York, contido em Kansas.
Tanto que alguns dias depois, na cidade do interior, o prprio Capote
comea a se vestir menos espalhafatosamente. Para conseguir informaes em uma entrevista, ele fala dos preconceitos quanto aos homossexuais. Alguns olhares, o jeito de Capote falar, andar e se vestir...
Essa esperteza, essa inteligncia, manipulao... Em muitos casos tais
caractersticas, como se v em O talentoso Ripley, perpetuam esteretipos, baseados na pretensa identidade entre argcia, homossexualismo e maldade.
124
1R OPH R PHOKRU QR R IDWR GH &DSRWH DPDU KRPHQV PDV VLP
de ele no gostar tanto de pessoas. E isso no tem sexo. Projetando
para o ofcio de escritor algumas prerrogativas estritas, Capote v-se
se cercado por gente, precisa de gente para fazer seu livro, precisa
de gente para o acompanhar, mas nunca adere a elas com o mesmo
entusiasmo e presena. No h reciprocidade. Ele ama conhecer, bisbilhotar, saber, possuir o melhor e o pior dos outros, contudo recusa
conhecer a si ou mostrar-se com a mesma intensidade. Capote no
homossexual, pan-sexual, no sentido de estar eternamente insatisfeito com coisas que no se reduzem ao circuito de seu controle e
,disso, parte para devorar tudo o que pode. Ele est em todos os lugares, nas festas em Nova York, em uma casa de vero na Espanha, em
presdios, alimentando-se insaciavelmente de tudo e todos. Faz tudo
isso porque pensa que a arte engloba o mundo, que o mundo nasceu
para aparecer nas pginas de um livro - o seu. E por isso no vai ter
sossego, no vai ter paz, e a realidade que no se deixa dominar por
quem quer que seja, a realidade pulsante e plural vai explodir em sua
cabea porque o mundo no se limita idia que se venha a ter dele,
porque ns mesmos somos essa matria viva e pulsante, a qual no
se pode pr em parnteses e para a qual impossvel estabelecer um
espao absoluto de atuao.
A falaciosa afetividade dessa subjetividade ditatorial e em colapso de
&DSRWHFRPHDDFDUHPHYLGQFLDDSDUWLUGRPRPHQWRHPTXHR
assassino resiste em contar detalhes da fatdica noite. Diante dessa
GLFXOGDGHTXHDWUDSDOKDWDQWRDDFRPRGDGDLQWLPLGDGHGH&DSRWH
com seu namorado quanto, pior, o prosseguimento do livro, o escritor
encontra um limite para seus propsitos. O outro ao mesmo tempo
a fonte e obstculo para a obra.
Quando pressionado, o assassino confessa o crime. As fronteiras entre
o mundo da obra e o mundo da vida so devassadas. A preocupao
em escrever um livro, que at aqui tinha dominado o relacionamento
entre Capote e o assassino, choca-se com a faticidade do crime. At
certo momento, com a seduo de Capote se manifestando, o assassino era um homem, algum digno de ser amado. No era um malfeitor. Atraindo o mundo para a sua obra, Capote nos proporciona certa
sublimao do terrvel. Porque aquilo que ele experimenta, aquilo
que ele quer ver, aquilo que ele prova ganha autoridade em funo
da qualidade de intensa expresso. A uma vivncia obsessiva parece
corresponder uma escrita delirante. Pois em uma e outra sempre nos
DPRVDVVRPEUDGRVSHODJXUDGHXPJUDQGHHPDUDYLOKRVRDXWRU
125
126
11.6
CAPOTE E A
MARCHA DO
IMPERADOR?
QUE ESTRANHA
APROXIMAO...
Marcus Mota
13-03-2006
Mas a auto-destrutiva subjetividade da personagem Capote partilha e muiWRGDLQDRGDVXEMHWLYLGDGHYLVWDHPA marcha do Imperador. Negativa
ou positivamente, acompanhamos essa luta contempornea em pessoalizar todos os atos, em marcar todos os valores e julgamentos sob o signo
GDJXUDKXPDQD$$FDGHPLDPHVPDVHWRUQRXXPFast food, com teorias
TXHSDUHFHPMXVWLFDWLYDVGHRSHVSDUWLFXODUHV&RPDTXHGDGRVJUDQdes ideais, a cultura ocidental optou por naturalizar tudo em torno de um
centro de orientao: emoes pessoais, a intimidade devassada.
Se no, vejamos. A marcha do Imperador seria um documentrio soEUHELFKRV0DVROPHGH/XF-DFTXHWHVWRXFRPHQWDQGRRRULJLQDO
IUDQFVTXLVH[WUDSRODULVVR3DUDTXHID]HUPDLVXPGRFXPHQWULR"
O material riqussimo e surpreendente da expedio de Jrome Maison, que passou 13 meses nas geleiras da Antrtida observando os
SLQJLQVLPSHUDGRUHVHQWUHPHDGRSRUFDQHVHQDUUDHVHPoff.
Cincia e entretenimento so conjugados.
127
128
(VWDLGHQWLFDRDQWURSLGHDQWLJD2SHQVDGRUMQLFR;HQIDQHV
no sculo VI a.C. , censura aqueles no sabiam distinguir as fronteiras entre o humano e o no humano. Para ele, Homero e Hesodo
atriburam aos deuses tudo quanto entre os homens desonroso e
repreensvel como roubo, adultrio e mentiras uns com os outros.
2VPRUWDLVDFKDPTXHRVGHXVHVQDVFHPHTXHWPURXSDVYR]H
corpos como os mortais tm. Esse trao semita encontra-se no Gnesis bblico com a um Jav dizendo que criou o homem sua imagem
e semelhana.
Bastou um sculo com duas guerras mundiais e dezenas de outros
fatores para que se implodisse esse humanismo e que no lugar dele
se colocasse a globalizao, a mundializao do sujeito consumidor,
alheio a um mundo maior que o de sua residncia, sentado em seu
sof, comendo e contemplando as coisas em sua tv. Este esvaziamento de grandes perspectivas, de perspectivas maiores que o ato de pagar com o carto de crdito ou clicar um boto acarreta uma nostalgia
de um lugar seguro, de uma referncia. Quando Deus, Estado e Indivduo soobram diante das desgraas repercutidas pelos meios de
comunicao e reproduzidas em largas escalas nos produtos culturais
massivos, preciso encontrar um lugar estvel, uma segurana.
Porque o que est ameaado, o que est marchando para a sua extinRQRRSLQJLPLPSHUDGRU$SVWDQWRVVFXORVFHOHEUDQGRDVL
mesma, nossa cultura defrontas-se com seu esgotamento ou com seu
GHQLWLYR TXHVWLRQDPHQWR VHU TXH H[LVWH DOJR DOP GR KXPDQR"
(VVDKLSHULQDRGDLQWLPLGDGHH[SRVWDQRLQWHUFXUVRHQWUHPDPH
HSDSDLSLQJLPQRVHULDXPDGHPRQVWUDRGHQRVVDDJRQL]DQWH
falta de plasticidade. Com o mesmo barro h sculos forjamos uma
imagem nossa em tudo que nos cerca. Contra este envoltrio, forjamos uma autoimagem capaz de estar em todos os lugares o tempo
inteiro. E agora s vemos isso ns.
Capote nos mostra a extino do homem por ele mesmo, sua morte
em vida, sua desrealizao. O mpeto de uma pessoa s em conformar
vidas alheias acaba por desvitalizar a sua prpria vida. E como autor
e como pessoa, Capote deixa de ser para se perder no labirinto que
reagiu contra seu arquiteto.
O estrondoso sucesso da novelinha-documentrio A marcha dos
pingins nos aponta para aceitao da saturao da pessoa. Tudo
pessoal, tudo foi feito para voc, porque voc importante. Essa re-
129
130
11.7
SYRIANA!!! ENTO
HOLLYWOOD
ADULTA AGORA?
Marcus Mota
21-03-2006
Novamente a questo da dramaturgia. A tentativa de abarcar culturasdiversas por meio de um roteiro frouxo coloca diante de ns a
descontinuidade entre bons propsitos e sua resoluo. H tempos
preciso que se tenha em mente que no com boas intenes que se
ID]XPERPOPH6HIRVVHDVVLPDPDLRULDGHREUDVGHQRPLQDFLRnais teria alguma qualidade.
3ULPHLURYHMDPRVDVLQWHQHV$VYULDVKLVWULDVDSUHVHQWDGDVQROPH
procuram mostrar como a questo do petrleo e suas implicaes econmicas interferem na vida de pessoas das mais variadas culturas megacorporaes, pequenas empresas, gente simples, agente secretos, um emir
reformista, um garoto paquistans convertendo-se em homem-bomba...
Essa busca pelo global, esse didatismo marxista, contudo, esbarra
nas limitaes de sua organizao. O importante no englobar o
mundo, para mostrar quo importante isso o que se est defendendo. O problema falhar nisso. A entra a dramaturgia. Pois a transposio de uma aguda cartilha marxista para a tela o que poderia ser
uma coisa inteligente, adulta constitui aqui um despropsito, uma
perda de oportunidade, o desenvolvimento de expectativas negativas frente a empreendimentos futuros assemelhados, um desservio.
Olha, se voc quer ser srio, voc tem de ser srio em tudo. No basta
delegar a relevncia do tema para o pblico. voc mesmo que tem
de fazer algo relevante. Nisso temos a falha de todos os bons propsitos, de todas as boas intenes. Todos so louvveis, necessrios. Mas
no passam de algo sobre o que a gente apenas fala, perpetuando a
convivncia com questes que no so resolvidas.
A dramaturgia a chave. A amplitude da questo do petrleo veiculada atravs de tramas paralelas. Estas tramas paralelas so exibidas
HPVHTQFLDVGUDPWLFDVTXHQRVHUHODFLRQDPHQWUHVLGXUDQWHD
PDLRUSDUWHGROPH
131
0DV R HTXYRFR PDLRU QR HVW QLVVR 2 HTXLYRFR HVW QDV VHTQcias mesmas. Elas so frouxas demais, muitas vezes informativas em
excesso, com pessoas falando, falando sem que haja realmente ao
alm de dizer palavras e contracenao. Estes papagaios de cartilha
marxista aparecem na tela, vm e vo ao sabor das imagens sem que
retomem ou projetem ou construam alguma presena vlida. A frou[LGRGDVSDUWHVLPSORGHDSHUVSHFWLYDJOREDOL]DQWH$RPUHVWDR
LQYHUVR GDV LQWHQHV 'H OPH GHQQFLD GH OPH DGXOWR GH OPH
VULR6\ULDQDFRQYHUWHVHHPXPDOLPLWDGDJHQHUDOL]DRGHFULDQDV
alimentadas no leito expansionista e imperialista norte americano. O
OPHUHSURGX]HVVDYLVRLPSHULDOLVWDHVVHLQIDQWLOLVPRQDVXWRSLDV
e destruio de utopias das personagens e na ausncia completa e
DEVROXWDGHJXUDVIHPLQLQDV
Ah, sempre o negativismo... Para ser adulto e srio as pessoas preciVDP QHJDU WXGR0DV RV FRZER\V FRQWLQXDP PDOYDGRV $JRUD EULQcam de conspirar, de procurar mostrar que sabem mais que todo
mundo, por que esto envolvidos ativamente nas maiores desgraas
GRV OWLPRV DQRV 1R SRU DFDVR R GLUHWRU GH 6\ULDQD 6WHSKHQ *DJKDQRURWHLULVWDGH7UDIF(8$HDVGURJDV2XVHMDJOREDOL]DR
fruto do provincianismo.
Propondo um filme sem nexos entre as situaes e sem situaes
TXHVHDSURIXQGDP6\ULDQDDWXDOL]DHVVHPXQGRGHQWURPXQGR
esse autismo da cultura norte americana, no qual a informao
mais importante que a real vivncia. A aparente complexidade do
filme e do tema uma iluso fundada na autocelebrao dessa
cultura autista. Na verdade, tudo mais bem simples do que aquilo que o filme apresenta. Bastam certas decises. E essa confuso
tomada por complexidade faz parte de uma mente juvenil que no
consegue deglutir o que devora por que tem medo de se expor,
de participar do que realmente . to infantil esta pretenso de
seriedade do filme que h um enorme esforo em no se recair em
aspectos emocionais, em no haver envolvimento entre os personagens. O que move os personagens so idias. Mas uma coisa
sentimentalismo, outra marcao emocional. Na busca de tentar
VHGLIHUHQFLDUGHRXWURVILOPHVSLSRFD6\ULDQDUHFDLQDPHVPDDUmadilha: uma homogeneidade da resposta da audincia, aqui produzida via um desorganizado painel de alguma coisa que sugere
ser importante, mas que soobra, vira runa diante de seu tratamento cinematogrfico.
132
(QPYHQGRROPHRHVSHFWDGRUFDQDTXHOHLPSDVVHRWHPDGR
OPHLPSRUWDQWHPDVROPHFKDWR6HQRHQWHQGRHQRVRX
LGLRWDRXVXSHUFLDO6HHQWHQGRHGLJRTXHJRVWRHVWRXPHQWLQGR
,PSDVVHIFLOGHVHHVFDSDUYLHVHLSRUTXHROPHQRSUHVWD$VVLP
DRQGDDGXOWDHP+ROO\ZRRGVH[LVWHSDUDTXHPQRTXHUFUHVFHU
(QWUHXPOPHTXDGUDGLQKREHPIHLWRHHVVHGHVDUWLFXODGRHSVHXdointelectual e artstico no h muita diferena. No por falta de
denncia e boas intenes que o mundo continua o mesmo. por se
criar esta moldura, este paraso ou inferno em volta de tudo que as
FRLVDV FRQWLQXDP FRPR HVWR 2 QRPH 6\ULDQD TXH G WWXOR DR Ome traduz isso: refere-se a uma idealizao da realidade, a uma pressuposio por parte dos ocidentais quanto a uma regio do Oriente
Mdio. O Oriente do Ocidente um interesse que se explicita tanto
QDVPDQREUDVSROWLFRPLOLWDUHVTXDQWRVQDVUHSUHVHQWDHV6\ULDQD
DLQGDHIHLWR6\ULDQD
11.8
COMICIDADE:
ADAPTAO
DE PEAS DE
ARISTFANES
NO ESPETCULO
A TICA UMA
COMDIA
Marcus Mota
23-5-2006
Aristfanes vale o ingresso. A adaptao de parte de Um Deus Chamado Dinheiro e de As nuvens produz esta despretenciosa comdia
A tica uma comdia$HFLQFLDGDDGDSWDRHVWHPDOJXQVGH
seus recursos de materializao da comdia. Os senes se encontram
justamente quando trazem Aristfanes sem esses recursos. Eis o paradoxo: a parte mais engraada no Aristfanes, mas por causa de
Aristfanes que as coisas se tornam engraadas.
Tal paradoxo se esclarece: a comicidade est muito relacionada com
a cultura, com as referncias. Rimos do que conhecemos, do que sabemos, mas no queremos discutir. Em parte aquilo que a adaptao
133
134
MFRQVHTQFLD1RDGLDQWD[DUDPHWDDQWHV$WLFDXPDFRmdia, mas a comdia tem sua tica. Um ttulo desses faz parecer que
DVSHVVRDVYRVHUHXQLUSDUDXPDSDOHVWUD3UHUR'XDV;$ULVWIDQHV
ou qualquer outra coisa.
$FLPD GH WXGR WHPRV DOJR FRQFUHWR PVLFD DWXDHV FRP SHUO
SRSXODU WUDGLR QDFLRQDO WHDWUR GH UHYLVWD H XP SDV TXH GHL[RX
de rir para virar platia de eventos mediados pela pauta televisiva.
H muito trabalho pela frente. Este encontro entre o mais antigo e
nossa tradio esculhambadora poder ser rica, se no recair em sua
esquematizao, nos velhos e bolorentos recursos a bordes, intil
e redundante referncia s atualidades, ao xingamento, ao palavro
autoreferente. Viva Aristfanes! Viva ns! Pqp!
11.9
DRAMATURGIA
DE MULHER,
DRAMATURGIA
FEMININA E OUTRAS
DVIDAS, A GAROTA
DA VITRINE
Marcus Mota
1-4-2006
135
XPVRIULPHQWRV1RKKXPRUQHPGHQLRGHDHVHUHVROXHV
que superem os entraves. Em meio a esta convulso que se revolve na
PHQWHGDVJXUDVWHPRVLPDJHQVEEOLFDV(YDVHUSHQWHLPSXUH]D
que reforam uma viso que a estilhaada personagem tem de si a
SDUWLUGR2XWUR$RPFRPRXPDOLEHUDRGLVVRDJXUDUHFODPD
uma nostalgia do passado, uma resposta na infncia: virar criana.
Ora, essa dramaturgia feminina uma dramaturgia masculina, uma
dramaturgia feminina s avessas. Continua presa ao Outro que a deQH$OLEHUWDREDVHDGDHPXPDSXUH]DLQIDQWLOFRQWUULDH[SHrincia, continuidade da experincia. Os encontros causam traumas,
problemas, mas ensinam e no so eternos. E eu no sei por que tudo
tem de ser to sofrido, to doloroso. Sob a imagem-princeps do hmen que toda essa dramaturgia se articula. O contato com o outro
sempre uma ocasio para a dor e decepo. O outro o invasor, o
outro me faz mal. Para me livrar disso, preciso me refugiar, livrar-me
do outro: ser criana.
Mas a gente precisa crescer um dia. Essa idealizao preventiva da reDOLGDGHDXWLVWD$RLQYVGHIDODUIDODUIDODUGHVDQGRRVGHWDOKHV
do rompimento e da desiluso, preciso ir alm da intimidade devassada. preciso ir alm da cerca, sair da janela. A beleza das belas
palavras, esse lirismo consolador, essa poesia de si mesmo muito
juvenil. Por que no uma pica, um avanar, um conquistar, um herosmo de fronteiras ?
$RPRWUDWDPHQWRGHDOJRLPSRUWDQWHIHLWRGHPDQHLUDHTXLYRFDda acaba por proporcionar uma situao para discusso e no para
representao. Acho essa uma armadilha de alguns espetculos temticos. A importncia do contedo discutido supera seu tratamento artstico. Pois, nesse caso, s nos resta nos solidarizar com aquela
mulher que sofre, sofre e vira uma menina. Muita gente coloca dor e
FULDQFLQKDVHPOPHVSDUDTXHKDMDXPDXQDQLPLGDGHXPDSDUWLOKD
de emoes. A gente concorda com tudo. A gente continua na mesma.
Contudo, eu me revolto contra isso. Porque, de outro lado, h uma outra dramaturgia, que no sublima nada: violenta, impactante e sem
QRVWDOJLD/HPEUDUWHUUYHO$JLUPDWDU$FDUQLFLQDGRVKRPHQV
a longa histria do terror ao qual homens submetem outros homens
HWRGRVRVKDELWDQWHVGDWHUUDQRDFDEDVFRPDPHQWHQRVH
deixa aprisionar por belas palavras. O terrvel, o grotesco, a violncia,
o abuso, a desgraa tudo isso precisa ser vencido pelo grito, pelo
136
137
11.10 V DE VINGANA
Marcus Mota
14-04-2006
138
139
11.11
O FILME O CDIGO
DA VINCI: NAO
BASTA FALAR MAL
Marcus Mota
24-05-2006
140
141
11.12
SER? LEVANDO
PARA A CENA
OBRAS DE GRANDES
DRAMATURGOS:
MONTAGEM DE O
PEQUENO EYOLF, DE
IBSEN.
Marcus Mota
16-5-2006
(PYLDJHPIXLDVVLVWLUDPRQWDJHPFDULRFDGH23HTXHQR(\ROIQR
WHDWUR 6HVF &RSDFDEDQD (VWH HVIRUR GH OHYDU FHQD
REUDVTXDVHTXHLQWHJUDLVGHJUDQGHVGUDPDWXUJRVXPGHVDRWDQto para os atores quanto para o pblico. Ainda mais Ibsen. Seu estilo
palavroso quando mal transposto para cena mata a poesia do texto, a
sutiliza da interpretao e a pacincia da audincia. Foi o que infelizmente ocorreu com essa montagem.
Inicialmente temos a beleza do cenrio, um pequeno cais, as guas,
RUGH LPDJHQV IXQGDPHQWDLV GDV QUGLFDV SDUDJHQV GD SHD 0DV
depois tudo acaba. As pessoas no param de falar em cena. Em nome
de realismo de ocasio, verdadeira praga que assola a mdia, vemos
atores submetidos aos ditames de passar adiante frases, conversaes interminveis que no mostram nenhum rosto, nenhuma verve.
([FHRIHLWDDFRQVWUXRGDJXUDGDPXOKHUGRVUDWRVHGHDOJXQV
momentos de Borheim e de Asta Allmers, o resto uma chatice s. A
promessa de uma beleza, de um atrativo espetculo que o cenrio e a
USLGDHPDUFDQWHSUHVHQDGDJXUDGH(\ROIDSUHVHQWDPVRODSDda pela burocrtica performance posterior.
Que uma coisa chata isso no basta. Por qu? Poderia ser diferente?
Primeiro temos as premissas bsicas. Antes de tudo, por que Ibsen,
por que levar uma dramaturgia dessas para cena. Se a motivao
DOJXPDHIHPULGHRXFRQXQFLDGHPDUNHWLQJFXOWXUDODVFRLVDVM
comeam a desandar. Por outro lado, com a presena cada vez mais
regular de cursos superiores de teatro, temos uma demanda quase
escolar de obras e autores, de um repertrio continuamente revisita-
142
143
144
GREGA
11.13 TRAGDIA
EM CENA: O GRUPO
GIZ-EN-SCNE
Marcus Mota
11-06-2006
145
146
H[WUDFXUULFXODUHVLVVRVLJQLFDTXHWHPRVXPDH[LELOLGDGHH[LELOLGDGH
tal que em muito contribui para o tipo de conhecimento que estamos
trabalhando. impossvel lidar com obras fundadas em contextos performativos sem ferramentas performativas. Perguntem a qualquer outro
investigador de qualquer rea se o conhecimento que ele produz no
est associado com as condies materiais efetivas de sua realizao e
veja a resposta. Todo argumento e abordagem antiperformativo uma
prtica redutria. Essa torpe viso de ver espetculos como instrumentos
didticos que ilustram idias no passa de uma recusa da amplitude da
SHUIRUPDQFHHVXDVFRQVHTQFLDVSDUDRHQVLQRHDSUHQGL]DJHP3RLV
muito mais fcil discutir contedos desprovidos de suas implicaes
performativo-contextuais e criar teorias ou um senso comum que elimine as perturbaes performativas que enfrentar tais perturbaes.
Falo de cadeira. A primeira vez que vi o Giz-en-Scne foi em 2001, durante um congresso em Ouro Preto. No simptico teatro da cidade, o
programa cultural do congresso nos brindava com a apresentao de
uma tragdia e de uma comdia.
Naquela poca eu estava escrevendo meu doutorado sobre a dramaturgia musical de squilo e toda hora tinha de me remeter a tradies
artstica outras pera,cinema, teatro - para dar conta do contexto
de realizao da tragdia grega. A interdisciplinaridade no meu caso
era uma questo de sobrevivncia, j que estudava enfrentando a falta de um contato com obras, com uma tradio de obras dramticomusicais que se apropriavam dos clssicos.
Mas aquela noite foi fulgurante para mim. De uma hora para outra
meus olhos se abriram. Durante a leitura dramtica de Antgona, na
FHQDGRWHUUYHOGLORJRHQWUH&UHRQWHHVHXOKR+HPRQPLQKDYLso sobre obras clssicas se alterou profundamente. Antes, eu sabia
o que no queria. Agora, diante de mim, estava o que eu precisava.
Grande parte do imenso material acumulado durante anos de leitura
se esclareceu. Isso podia ter acontecido antes, no durante um doutorado, se eu tivesse a oportunidade, como os jovens em Araraquara,
de ver e ouvir Sfocles em uma noite. Mas antes tarde do que nunca...
Bem, ali, no palco, Creonte esforava-se para manter sua posio
PHVPRGLDQWHGRTXHRVIDWRVPRVWUDYDP6HXOKRVXEOHYDVHFRQWUDHVVHDXWRULWDULVPRUHDUPDQGRTXHDLJQRUQFLDHDDUURJQFLD
no tm idade. Hemon desestrutura a prepotncia do tirano, daquele
que pensa que a cidade o que o homem quer que ela seja.
147
Esta cena desempenhada em um debate verbal verso a verso (esWLFRPLWLD$WURFDVSHUDGHIDODVLQFHQGLRXRWHDWURFRPRVHHVWLvssemos assistindo a uma luta de boxe. Parte do pblico era jovem.
E dele vieram demonstraes sonoras de torcida. No mesmo tempo,
alguns mais velhos, seja surpreendidos com uma resposta corporal
e concreta, seja querendo impor uma certa dimenso polida e sacra
aos eventos, estes vigilantes da ordem comearam a pedir silncio,
FRPSRVWXUD3DUDPLPFRXFODURQDTXHOHPRPHQWRTXHDOXWDHQtre Hemon e Creonte se duplicara no auditrio. Sob os estmulos da
esticomitia, a audincia se dividia entre posies antagnicas e copresentes. O drama de Sfocles se materializava nas perspectivas em
FRQLWRDXGYHLVSUHVHQWHV
Assim, um procedimento dramatrgico de marcar rivalidades, de registrar atuaes em agon, materizava-se na performance e na audincia. Um texto dramatrgico a contextualizao de orientaes para
performances tanto dos agentes dramticos quanto da recepo.
Para alm do texto e a partir do texto, uma compreenso mais ampla
do escrito, do registrado se fazia perceptvel. O som da platia, a platia auralmente dividida que tornou compreensvel o procedimento
que o texto registra. Esse teatro vibrante, de estmulos e respostas,
de atos e interaes, de assimetrias entre seus participantes, isso estava ali diante de ns.
Hemon ou Creonte acho que nessa encruzilhada se distinguem duas
opes interpretativas, duas concepes de ensino-aprendizagem,
duas posturas em relao ao conhecimento e tradio. O Giz-enScne contribui imensamente para que o caminho de Hemon seja
responsavelmente feliz e produtivo. O grupo de professores e alunos
sediado em Araraquara deve se orgulhar dessa nobre e trabalhosa
atividade. Que outros mais possam fazer o mesmo. E tornar cotidiano
HVVDEHQFDDWLWXGHGHVHUHQRYDURFRQWDWRFRPREUDVSHUIRUPDtivas atravs do contato performativo com elas. Tudo exposto em
cena e uma memria das coisas imprime nos coraes e mentes os
fatos da imaginao.
Parabns Giz-en-Scne, pelos seus quase 20 anos. E muito, muito
obrigado.
148
A
11.14 MOLIRE:
COMICIDADE E A
AMPLITUDE DA
CENA CMICA
EM O DOENTE
IMAGINRIO
Marcus Mota
19-6-2006
Braslia teve a oportunidade de assistir montagem de O doente imaginrio GH0ROLUHOWLPDSHDGH0ROLUHRHVSHWFXOR
foi deliciosamente interpretado por Tonico Pereira e companheiros.
A montagem original foi marcada pela sobreposio entre a personagem da pea, um hipocondraco interpretado pelo prprio Molire, e
o homem Molire, o qual, aps a apresentao de O doente Imaginrio, passa mal e morre horas depois.
Na montagem de agora grande parte da dramaturgia cmica de Molire pode ser apreciada. Inicialmente, temos o carter enciclopdico
da pea. As personagens em cena estabelecem referncias com vrias
fontes de conhecimento, seja com a atualidade seja com a cultura
greco-latina. A audincia v-se estimulada por materiais oriundos de
diversos saberes de prticas.
149
150
QRHVSHWFXOR7DOJXUDULYDOL]DFRPDVRXWUDVSHUVRQDJHQVHPFHQD
promove uma relao de aproximao e distanciamento com a platia, esvazia-se, retira-se em vrios momentos do espetculo, costura
SDUWHVGDREUDDRPHVPRWHPSRTXHDWXDQHVVDVSDUWHVHQPHVW
sempre em movimento por estar no centro imvel de tudo. ContraceQD[LQJDGLDORJD]RPEDFDODFHQVXUDDUJXPHQWDORVRID
'HVVDIRUPDUHXQLQGRDWRVHSURFHGLPHQWRVGLYHUVRVDJXUDDEHUrante promove uma imagem ampla do espetculo, sobrepondo nexos
e referncias. Rir e pensar no se opem. Da a dramaturgia cmica
GH0ROLUHSRVVLELOLWDURDFHVVRDXPDGLYHUVLFDRQRVRPHQWHGH
tcnicas, mas de escopo da comicidade.
11.15
TEATRO, MSICA E
RELIGIO EM UNA
MADRE CORAJE...
MARCUS MOTA
26-06-2006
151
Tivemos belssimos quadros, como o da terra adubada pelos cadveres e das rvores com mulheres nuas.
Mas havia uma tenso entre a extenso do quadro e a relao entre
as esculturas e a msica. O que fazer enquanto dura o som? A redistribuio das presenas dos bailarinos muitas vezes descambou
para esteretipos de um musical holliwoodiano, de um vdeo clipe
dos anos 80. A repetio de gestos e passos apenas para que haja
alguma algo enquanto a msica soa ou apenas para que se ocupe o
tempo da durao da msica tornou em alguns momentos descartvel a presena marcada e no marcante dos danarinos. Assim,
escutvamos boa msica e s.
Esta uma questo da audiovisualidade do espetculo. Ora, se se
optou pelo extremo, pelos limites da inteligibilidade, na mistura
de lnguas, no cruzamento intertextual de obras, na descontinuidade da representao,a relao entre som e cena precisaria ser
tambm levada aos mesmos termos que a dramaturgia. como se
existissem duas dramaturgias uma para os quadros e outra para
a amplitude audiovisual dos quadros. E como no possvel separar uma da outra, esta dualidade registra o no acabamento como
indefinio de como enfrentar esta audiovisualidade. Pois a msica avana, perdura, continua o seu movimento de aspirais e sobreposio de massas sonoras e intensidades enquanto que aquilo
que para ser visto, aps ser mostrado, espera seu trmino, sua
concluso, pois acaba antes do fim. A tenso entre as dimenses
do que visto e do que escutado no algo explorado, resolvido
criativamente. Temos boa msica e belos quadros.
O que unifica o espetculo seu pathos, sua busca de uma resposta emocional. O espetculo ruma para o pattico, para a mostra de
um sofrimento, de uma dor excessivos, como se fosse um clamor
que supera a denncia daquilo que apresenta. Cada vez mais
menos uma revolta contra a guerra e nosso cnico humanismo que
o fascnio pelo rastro de destruio que a mortandade deixa. Tanto
que quando repetiram o bordo que proclamava a necessidade de
um novo comunismo frente ao consumismo neo-liberal, algumas
pessoas do pblico se levantaram. Nesse momento ps-ideolgico
suplicar pelas cantilenas dos vencidos no suscita nenhuma piedade. E a experincia atual do socialismo no governo local no tem
dado bons exemplos.
152
11.16
BORAT:
CULTURALISMO,
COMDIA E
BOBEIRA
Marcus Mota
17-janeiro-2007
Enfim Borat um sucesso. O falso documentrio intitulado Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation
of Kazakhstan arrecada milhes nas bilheterias, possui uma entrada
altamente informativa no Wikipedia, os roteiristas do filme do uma
longa entrevista no ltimo nmero de Written By, revista da associao dos roteiristas norte americanos, e o ator Sacha Baron Cohen, que
protagoniza o filme, acaba de ganhar o Globo de ouro como melhor
ator de comdia/musical.
2OPHVHHVWUXWXUDHPHVTXHWHVSRUPHLRGRVTXDLVDFRPSDQKDPRVHQtrevistas e situaes da personagem em sua aventura de conhecer os EUA.
153
154
155
156
11.17 DREAMGIRLS:
MUSICAIS DA
BROADWAY NO
CINEMA
Marcus Mota
11-JANEIRO-2006
Transportar um musical para o cinema um dos constantes recurVRV GH +ROO\ZRRG $ KLVWULD PHVPD GR FLQHPD HVWDGXQLGHQVH HP
SDUWHVHGHQHSRUHVVDHVWUDQKDUHODRPXLWDVYH]HVRPXVLFDO
tido como modelo criativo. Noutras, um antema. De qualquer forma
hoje o teste de audincia e elaborao da dramaturgia que a produo de um espetculo musical efetiva consagra uma fonte de materiais para o cinema. Nos ltimos anos, tivemos os sucessos de ChiFDJR7KH3KDQWRPRI2SHUDIDQWDVPDGDSHUDH7KH
3URGXFHUV&RPRVHSRGHREVHUYDUKMXPDWUDGLR1RVH
WUDWDGHXPDPRGDSDVVDJHLUD7RGRDQRSRGHPRVDVVLVWLUDXPOPH
dramtico-musical.
O que o musical traz para Holliwood , inicialmente, um fazer as pazes com sua histria. Filmes so entretenimento. E grande parte dos
artistas, escritores, produtores e pblico do cinema veio, no primeiro
quartel do sculo passado, justamente dos shows de variedade, dos
157
cabars, das revistas. Nesses lugares, estmulos dos mais variados tipos cativavam freguesses vidos de emoes e ejaculaes intensas.
Ao vivo, cantores, bailarinos, comediantes, atores, msicos surpreendiam platias com a demonstrao de suas habilidades e corpos. A
VLFLGDGHHSUHVHQDGRVLQWUSUHWHVTXHGHPDQGDYDXPDFRQWUDresposta fsica e atual do pblico.
$WRGHFDQWDGDPRUWHGRVPVLFDLVGH+ROO\ZRRGTXHFRPHRXQRV
anos 60 e atingiu o climax nos anos 80 deve-se menos a um esgotamento
do gnero que s mudanas na cultura audiovisual estadunidense. Com a
popularizao de eletrodomsticos reprodutores de msica e programas
televisivos de auditrio, a cano deixou de ser algo relacionado a um
grande evento preparado e passou a ser consumida independetemente
de uma situao de performance. Por outro lado, com o Rock, as pessoas foram danar, curtir, livrar-se da dana marcada, da reproduo. Os
romnticos casais, as duplas em cena deram lugar aos diretos ritos de
acasalamento. Era muita palavra, muita discreo para pouca ao.
O incrvel que foi durante essa morte que o musical atingiu uma
maturidade artstica sem precedentes, como o caso de West Side
6WRU\(VVHGUDPDPXVLFDORFRPHRGRP$FRQMXQRHQWUHXPD
proposta realista,contempornea e as metareferncias do espetculo
DVSHVVRDVGDQDPHFDQWDPFRPRVHIDODVVHPHVHORFRPRYHVVHP
VLWXDEHPDWHQVRUHSUHVHQWDFLRQDOGHOPHVPXVLFDLV
Hoje, quando celulares baixam clipes de msicas, a presena de musicais uma lembrana de que aquilo que est to facilmente disposio, ao alcance de um toque, no algo to fcil. Programas como o
American Idol tm, mesmo com suas mazelas oportunistas,comerciais
e novelsticas, mostrado que cantar diante de um pblico no uma
atividade simples. A trajetria de pessoas com boa voz, mas sem presena de cena, para vencedores possibilita o educativo contato com
os parmetros da performance.
E foi justamente desse programa, dessa nova cultura audiovisual, que
YHLRXPDGDVDWUL]HVVXSRUWHVGROPH'UHDPJLUOV-HQLIIHU+XGVRQ
de eliminada do American Idol para brilhar em Dreamgirls, como se o
OPHUHFRQWDVVHDSUSULDKLVWULDGH+XGVRQ
4XHPDVVLVWLUDROPHQRYDLSRGHUFDULQHUWHJUDQGHFHQDTXDQdo Hudson canta And Im Telling You Im Not Going. A intensidade
da performance de Hudson dissolve todos os manuais de atuao
158
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160
E AS
11.18 APOCALYPTO
AVENTURAS DA
VEROSSIMILHANA:
QUANDO AS
LNGUAS NO
SIGNIFICAM MUITA
COISA
Marcus Mota
19-fevereiro-2007
161
e homossexuais, possuindo apenas indicaes tcnicas, como melhor maquiagem e som. Apocapypto bem melhor que a porcaria de A paixo de
Cristo2URWHLURDTXLPDLVIHFKDGRFRPDVXUSUHVDQDOWUDEDOKDGDHP
IRUPDGHSURIHFLDGHVWUEXGDPDUJLQDOPHQWHQROPH$VVLPHPFRQWUDSRQWRFHJDSHUVHJXLRWHPRVRXWUDWUDPDTXHHFORGHDRPHGXPD
apreenso maior aos eventos mostrados. Quando os caminhos do heri se
estreitam, irrompe uma outra posssibilidade.
8PGRVWUDRVPDUFDQWHVGH$SRFDO\WRTXHHOHIDODGRHP<XFDteque, uma lngua maia. Mas isso no um grande problema, pois,
DOPGDVOHJHQGDVHPJUDQGHSDUWHGROPHQRKIDOD(TXDQGR
se fala, predomina a trivialidade. Assim, o uso de uma outra lngua, de
uma lngua extica, funciona como atmosfera, como um elemento de
FDUDFWHUL]DRWDOTXDORJXULQRDPDTXLDJHPHRVREHMWRVHPFHQD
1DGDGHPXLWRVLJQLFDWLYRGLWR$LQIRUPDRPDLVUHYHODQWHHVW
naquilo que se v e na moldura sonora dos eventos.
'HVVD PDQHLUD R XVR GH OQJXDV RXWUDV TXH R LQJOV HP OPHV GD
LQGVWULDFLQHPDWRJUFDKHJHPQLFDQRDFDUUHWDQHQKXPDPRGLFDR QR PRGR FRPR D YLVR UHGX]LGD GHVVD LQGVWULD UHSUHVHQWD
outras culturas. impressionante como a desculpa de mostrar os outros como os outros so um marketing, o culturalismo apropriado como uma maneira de vender. Nisso o culturalismo acadmico se
aproxima do miditico: os outros agora so palatveis, so produtos.
A tradio de normalizar a referncia a pessoas de outras culturas
atravs da seleo de traos caractersticos formando esteretipos
antiqussima. Trata-se de uma renovada experincia no qual aquilo
que difere do que eu sou interpretado atravs daquilo que eu julgo
conhecer. O contato intercultural refora a identidade. Os desiguais
so assimtricos e rivais.
No cinema estadunidense, em prol de uma verossimilhana, tais esteretipos abundam no modo como os imigrantes so apresentados.
$VVLPRFRQWDWRFRPHVVHVLPLJUDQWHVQDYLGDUHDOSODQLFDGRQRV
OPHV&RPLGDVJHVWRVPRGRVGHYHVWLUIDODVWXGRH[LELGR(VVD
riqueza de aspectos confere aos estrangeiros o seu exotismo. Mas tal
riqueza reduzida a uma mesma resposta - eles no so como ns,
eles so diferentes de ns. E da diferena, o valor: eles so piores que
ns. E exuberncia do outro demonstra sua fraqueza, seu desperdcio, seu excesso, esquemas esses presentes em uma pea como Os
persas, escrita h dois mil e quinhentos anos atrs por squilo.
162
Diante dessa imposio do caracterstico no campo das artes representacionais, h dezenas de manuais que ensinam os atores a
falar com marcas de diversas culturas. muito engraado. O cara
fala em ingls, mas ingls com sotaque. Para colocar o mundo na
tela, todo mundo tem que falar ingls. Mas um ingls ruim, cmico, o que desde j desvaloriza o falante. Os estrangeiros continuam como estrangeiros, no inseridos. As diferenas so mantidas
como margens de um centro. H manuais para os sotaques dentro
do Eua, dentro de outros pases que falam ingls. E, enfim, para
linguas germnicas, eslavas e romnicas. E os manuais vm com
cds, para voc treinar. Uma delcia.
Como se pode observar, a prpria lngua inglesa j varivel, em funo do grupo que a fala. Esse movimento de diferenciao do uso
remete-se inicialmente para as comunidades falantes. Entre eles j
h uma disperso. H uma pluralidade de falas dentro do mundo anglfono, seja motivada pelas diversidades histricas,seja decorrente
da histrica expanso colonialista. Pases do Caribe, da frica e da
Polinsia possuem seu ingls. E quem aprende a falar ingls para se
comunicar, tambm.
$VROXRFLQHPDWRJUFDSDUDHVVDEDEHOVLPSOHV7RGRVVRYHUdes, mas h um verde mais fundamental. Os outros so matria para
divertimento. Por mais srio que seja aquilo que voc diz com esse
seu sotaque, aquilo que voc diz no tem o mesmo status de algo dito
por um nativo, pelo verdadeiro ingls.
A situao parece se complicar quando vemos produes faladas em
outras lnguas, como o foram A Paixo de Cristo e este Apocalyto. No
caso do primeiro, tivemos lnguas mortas, lnguas de livros, faladas
por pessoas em movimento, vivas. No segundo, uma lngua diferente
GDVOQJXDVGHFXOWXUDVFRPSURGXRFLQHPDWRJUFD
Em ambos os casos, o que importa no a lngua, nem o que se fala.
Tudo apenas som. O roteiro de Apocalyto foi escrito em ingls, depois traduzido. As bobagens e a perspectiva de Mel Gibson passaram
de um registro para outro. No caso, a repercusso de uma proposta,
de uma viso primitivista e exageradamente brutal dos maias. Serve
mais como lema classe mdia cuide de sua famlia, proteja os seus.
o mesmo lema que faz Bush detonar o Oriente Mdio e quem vier.
Em nome da casa, do lar, da minha famlia, eu destruo voc.
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