Teoria Do Teatro

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TEORIA DA

ARTE E DO
TEATRO
MARCUS MOTA

FOTO CAPA:
OLHOS DE TOURO
DIR. MARCIA DUARTE
CRED. MILA PETRILLO

MARCUS MOTA

Marcus Mota professor de Teoria e Histria do Teatro da Universidade de Braslia e na Ps-Graduao em Arte,na mesma
instituio.
Entre suas realizaes, dirigiu e produziu Bodas de Fgaro,
de Mozart (Teatro Ulysses Guimares, Braslia, 2004);Carmen, de Bizet (Teatro Nacional de Braslia, 2005); O telefone, de Menotti (Teatro Nacional de Braslia, 2005); Cavalleria
Rusticana(CCBB-Braslia e Teatro Nacional de Braslia,2006) O
empresrio, de Mozart (Teatro Nacional de Braslia, 2006). Elaborou o texto e as canes dos seguintes musicais: As Partes
Todas de um benefcio (Dirigido por Hugo Rodas, apresentado
no Teatro do Departamento de Artes Cnicas, da Universidade
de Braslia, 2003; Um dia de festa (Dirigido por Jesus Vivas,
apresentado no Departamento de Artes Cnicas, da Universidade de Braslia, 2003). Dirigiu e elaborou o texto e as canes
de Saul. Drama Musical ( Teatro Nacional de Braslia, 2006),
com arranjos e orquestrao de Guilherme Girotto; Caliban
(Teatro do Departamento de Artes Cnicas, Universidade de
Braslia, 2007), com arranjos e orquestrao de Ricardo Nakamura. Alm disso, teve os seguintes textos encenados: Idades.
Lola. (Direo Hugo Rodas, Departamento de Artes Cnicas
UnB,2002; Docenovembro (CCBB-Braslia, 2001); Iago(Dirigido
por Nitza Tenenblat,CCBB-Braslia, 2004), Salada para trs (Dirigido por Hugo Rodas, Teatro Departamento de Artes Cnicas,
2003); Elaborou textos para os espetculos Olhos de Touro.
Dana teatro.(Direo Mrcia Duarte, apresentado em vrias
cidades do Brasil, pelo Palco Giratrio-SESC 2001-2002); e As
quatro caras do mistrio(Direo Hugo Rodas, CCBB-Braslia,
2003);). Ganhador do Edital Eletrobrs 2008, comps, junto
com Plnio Perru, o drama musical No Muro. pera Hip-Hop,
com direo de Hugo Rodas, apresentado na Funarte-Braslia,
2009. Em 2010 a mesma obra recebeu o Prmio Nacional de
Expresses Afro-Brasileiras, e foi reapresentada no Teatro da
Caixa Braslia, em 2010.
Ainda, Marcus Mota recebeu meno honrosa no Prmio Cidade de Literatura Cidade de Belo Horizonte, categoria Dramaturgia, em 2003, com o texto Rdio-maior, o qual foi apresentado na Funarte-Braslia em 2004 .

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Como pesquisador, alm de inmeros artigos e comunicaes


em revistas e congressos nacionais e internacionais, publicou:
A dramaturgia musical de squilo: Investigaes sobre comSRVLRUHDOL]DRHUHFHSRGHFHVDXGLRYLVXDLV(GLWRra Universidade de Braslia, 2009, que foi agraciado no mesmo
ano com o 2o. lugar no tradicional Prmio Mrio de Andrade de
Ensaios Literrios, promovido pela Biblioteca Nacional. Este
ano foi contemplado em edital de pesquisa do CNPQ para produzir material de udio e visual sobre a musicalidade a partir
GDVFRQJXUDHVPWULFDVSUHVHQWHVQRVWH[WRVUHVWDQWHVGD
tragdia grega. Traduziu e publicou pela Editora UnB as obras
de Lorca: Yerma, Assim que passarem cinco anos, A casa de
Bernarda Alba e Conferncias em 2006.
Alm disso, publicou, A idade da terra e outros escritos (Texto&Imagem, 1997), A imaginao dramtica
(Texto&Imagem, 1998), Rdio Maior,Iago (Arte&Contexto,2004).
Dirige, desde 1997, o LADI (Laboratrio de Dramaturgia e Imaginao Dramtica), no Departamento de Artes Cnicas na
Universidade de Braslia.
Entre 2008 e 2009 foi professor visitante na Flrida University
State, ensinando dramaturgia.
Site: www.marcusmota.com.br.
contato:[email protected].

Teoria da Arte e do Teatro

Curso de Especializao em Teatro Distncia

SUMRIO
1.1 COMPOSIO .............................................................................................. 16
1.2 REALIZAO................................................................................................ 18
1.3 RECEPO ................................................................................................... 19
1.4 PRODUO.................................................................................................. 20
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................74

10.1 TEATRO CINEMATOGRFICO ................................................................. 76


10.1.1 MOMENTO 1.............................................................................................................76
10.1.2 MOMENTO 2.............................................................................................................77
10.1.3 MOMENTO 3.............................................................................................................77

10.2 O CASO EISENSTEIN................................................................................ 78


10.3 UMA DRAMATURGIA FLMICA POSSVEL ........................................... 84
10.4 ERWIN PISCATOR E O FIM DA ILUSO DA ILUSO TEATRAL ....... 87
10.5 TRADIO E RAZO: MODERNIDADE E MITO EM RUMBLE FISH 97
11.1 PRELIMINARES .......................................................................................108
11.2 O FILME.....................................................................................................109
11.3 POR UM CINEMA NO EXCLUSIVAMENTE NARRATIVO ...............111
11.4 O MELHOR DO PIOR: HIPER-REALISMO E REPRESENTAES..113
1 .........................................................................................................................................113
2 .........................................................................................................................................116
3 .........................................................................................................................................120
4 .........................................................................................................................................121

11.5 SOBRE O FILME CAPOTE, DE BENETT MILLER ..............................121


11.6 CAPOTE E A MARCHA DO IMPERADOR? QUE ESTRANHA
APROXIMAO..........................................................................................127
11.7 SYRIANA!!! ENTO HOLLYWOOD ADULTA AGORA?...................131
11.8 COMICIDADE: ADAPTAO DE PEAS DE ARISTFANES NO
ESPETCULO A TICA UMA COMDIA ............................................133
11.9 DRAMATURGIA DE MULHER, DRAMATURGIA FEMININA E OUTRAS
DVIDAS, A GAROTA DA VITRINE ........................................................135
11.10 V DE VINGANA....................................................................................138

Teoria da Arte e do Teatro

11.11 O FILME O CDIGO DA VINCI: NAO BASTA FALAR MAL.............140


11.12 SER? LEVANDO PARA A CENA OBRAS DE GRANDES
DRAMATURGOS: MONTAGEM DE O PEQUENO EYOLF, DE IBSEN. ....
142
11.13 TRAGDIA GREGA EM CENA: O GRUPO GIZ-EN-SCNE ............145
11.14 MOLIRE: A COMICIDADE E A AMPLITUDE DA CENA
CMICA EM O DOENTE IMAGINRIO .................................................149
11.15 TEATRO, MSICA E RELIGIO EM UNA MADRE CORAJE............151
11.16 BORAT: CULTURALISMO, COMDIA E BOBEIRA ...........................153
11.17 DREAMGIRLS: MUSICAIS DA BROADWAY NO CINEMA ..............157
11.18 APOCALYPTO E AS AVENTURAS DA VEROSSIMILHANA:
QUANDO AS LNGUAS NO SIGNIFICAM MUITA COISA ................161

INTRODUO: O TEATRO E SUAS MLTIPLAS


FORMAS DE ACESSO .................................................... 15
ATOS INTEGRADOS NO FAZER TEATRAL ..................... 23
PENSANDO O ESPAO CNICO .................................... 27
CONSTRUINDO CONFLITOS .......................................... 33
PERPECTIVAS E INTERPRETAES .............................. 39
METATEATRALIDADE ................................................... 43
ARTES EM CONTATO .................................................... 47
TICA E ESTTICA ........................................................ 51
A PERFORMANCE COMO ARGUMENTO: A CENA
INICIAL DO DILOGO ON, DE PLATO ....................... 55
APROXIMAES A UMA DRAMATURGIA FLMICA A
PARTIR DO CASO EISENSTEIN ..................................... 75
CINEMA E TEATRALIDADE: O BEB (SANTO) DE
MCON, DE PETER GREENWAY ................................. 107

Curso de Especializao em Teatro Distncia

A P R E S E N T A O
Neste curso vamos nos aproximar de conceitos bsicos em ArWHV&QLFDVDSDUWLUGDGLVFXVVRGHREUDVFLQHPDWRJUFDV
Teatro e cinema possuem uma histria de ntimas relaes. A
HVFROKDGHOPHVSDUDDPSOLDUFHUWRVWSLFRVHPWHULFRV
HVWUDWJLFRRVOPHVQRLOXVWUDPRVFRQFHLWRV&DGDOPH
XPDREUDMXVWLFYHOHPVLPHVPD
(MXVWDPHQWHSRULVVRTXHRSWDPRVSRUQRVYDOHUGHOPHV
preciso ver, analisar, estudar entender a obra para ento
FRPSUHHQGHU RV FRQFHLWRV ( QR  TXDOTXHU OPH TXH VHUve para o nosso propsito: as obras escolhidas manifestam
GHOLEHUDGDV HVFROKDV HVWWLFDV 6R OPHV TXH QR V DSUHsentam uma histria: so obras que exploram procedimentos
H WFQLFDV FLQHPDWRJUFDV FRQWULEXLQGR SDUD IRUQHFHU XP
contexto extenso para nossas discusses.
O foco do curso, pois, o desenvolvimento da percepo esttica. Ou seja, teorias em artes esto diretamente relacionadas com experincias, com o contato, fruio e entendimento
das obras. O estudo de teorias teatrais no meramente o
FKDPHQWRHWUDQVFULRGHFLWDHVGHWUHFKRVGHOLYURV1RV
OLYURVHVWRUHJLVWUDGDVUHH[HVDSDUWLUGHVVHVFRQWDWRVH
vivncias. As grandes teorias de teatro no sculo 20 foram
elaboradas por diretores, atores, encenadores, dramaturgos,
todos envolvidos diretamente em processos criativos cnicos.
H, muitas vezes, uma falsa concepo do que seja pensar o
WHDWURHODERUDUWHRULDVFRQFHLWRVUHH[HVVREUHRID]HUWHDtro. Temos em mente uma certa separao entre as atividade
de participar de um processo criativo e as de discutir, comentar e analisar tal processo. Este curso parte justamente disso,
desse pretenso dualismo, dessa oposio e excluso de atividades para demonstrar que na capacitao intelectual em
artes cnicas preciso um paradigma global, com a formao
de intrprete que integrem habilidades mltiplas.
(P IXQR GLVVR R FXUVR  GHVHQKDGR QD LGHQWLFDR GH
conceitos operacionais bsicos para tal capacitao. A cada
VHPDQDVRSURSRVWRVXPFRQFHLWRHXPOPH$VWDUHIDVH
atividades durante o curso procuram fazer a mediao entre

Teoria da Arte e do Teatro

RGHVHQYROYLPHQWRGDSHUFHSRHVWWLFDDSDUWLUGRVOPHVH
a discusso e compreenso de conceitos operacionais bsicos
em Artes Cnicas.
Para tanto, este livro do curso assim se organiza: inicialmente voc tem cada uma das oito semanas comentadas, com a
DSUHVHQWDRHGLVFXVVRGRFRQFHLWRHGROPHHPTXHVWR
Em seguida, nos anexos, temos artigos e crticas intimamente vinculadas com as questes aqui colocadas. Ou seja, para
ampliar as discusses das semanas ou para futuros desdobramentos, os textos extras so um material providencial.
Durante o processo criativo da
montagem de Aluga-se(1996),
foram utilizados as comdias
do cinema norte-americano da
dcada de 1920/1930. Alm
desse texto, a dramaturgia de
Uma ltima noite sobre a terra
(1995), Domingo spero (1997),
Acid
House
(1998),Brutal
(1998),Docenovembro(2001),
disponveis no site www.marcusmota.com.br, foi elaborada
a partir de obras cinematogrficas. A partir desse estudo e produo de dramaturgia, fundei
e dirijo o LADI (Laboratrio de
Dramaturgia e Imaginao Dramtica) no Departamento de
Artes Cnicas da Universidade
de Braslia, em 1996.
Lembrar que, por exemplo, o livro Anlise de Espetculos (So
Paulo: Perspectiva), de P.Pavis,
foi publicado no Brasil em 2003.
Desenvolvi parte dessa argumentao no texto Dramaturgia,
colaborao
e
aprendizagem:um
encontro
com Hugo Rodas. In: VILLAR,
F.P e CARVALHO,E.F. (Orgs.)
Histrias do Teatro Brasiliense.
Braslia: IdA/UnB, 2003, v. 1,
p. 198-217.

Potica, 1462 a . Traduo de


Eudoro de Souza. Para comentrio e traduo da Potica, v.

Uma nota sobre a origem dos textos aqui publicados e da


abordagem do curso: desde de minha entrada como professor
no Departamento de Artes Cnicas da Universidade de Braslia, em 1995, venho trabalhando com as relaes entre teatro
e cinema tantos nas aulas quanto em processos criativos. Em
meu livro A Imaginao Dramtica (Texto&Imagem,1998), comecei a desenvolver essa interrelao por meio da apropriaRGHFRQFHLWRVHELEOLRJUDDGRVHVWXGRVFLQHPDWRJUFRV
aos estudos teatrais. Tal atividade se tornou basilar em virtude de grande parte da prtica de anlise de textos teatrais
ainda ser feita, pelo menos no Brasil, da aplicao de estilePDVGDORVRDRXGDOLWHUDWXUDHavia, pois, uma fragrante
contradio entre a teatralidade dos textos e os pressupostos de leitura de anlise.
Estes estilemas privilegiavam o que chamados de leitura imanente das obras: os textos teatrais vistos como objetos fechados em si mesmo, autnomos, como se gerassem seu
prprio sentido, independentemente de produzir interaes em uma concreta atualidade.
Encontramos em Aristteles, na Potica, o modelo dessa concepo: Acresce ainda que a Tragdia pode atingir a sua
QDOLGDGH FRPR D (SRSLD VHP UHFRUUHU D PRYLPHQWRV
pois uma Tragdia, s pela leitura, pode revelar todas as
suas qualidades.

Curso de Especializao em Teatro Distncia

'LDQWHGHWDODUPDRRTXHUHVWDSDUDTXHPDSUHFLDRUHgistro escrito de uma obra teatral? Se, segundo Aristteles,


segundo a experincia de Aristteles, as qualidades da obra
SRGHP VHU LGHQWLFDGDV VHP TXH GHOD VH SDUWLFLSH HP XPD
situao de representao, to-somente pela leitura, so justamente as distines que a leitura revela aquelas que sero
evidenciadas pelo intrprete. Em outras palavras, a reduzida
interao do intrprete com o evento cnico, restrita somente
ao texto, vai circunscrever a percepo a referentes relacionados com a atividade intelectual da leitura. O contato solitrio
do leitor e do texto colocado no lugar do amplo contexto de
trocas entre cena e audincia. A comunal e massiva interao
HQWUHSDOFRHSODWLDDUWLFLDOPHQWHVXEVWLWXGDSHODSURMHo do mentalismo do intrprete s linhas do texto.
Uma obra teatral sem os movimentos a cena sem atores,
como msica sem msica, deslocamento de uma discusso e
anlise do que acontece agora neste local para uma instncia
PDLVJHQULFDQRWRFRPSURPHWLGDFRPDHVSHFLFLGDGHGHVH
propor para uma audincia determinadas escolhas e arranjo de
materiais transformados durante sua performance e apreciao.
Em razo dessa herana aristotlica que interdita os nexos entre obras e sua materialidade temos determinadas prticas de
anlise que se tornaram habituais, como 1- ver nos textos teatrais e nos eventos cnicos um mero campo de aplicao de
metodologias, abordagens e conceitos pr-existentes; 2- transposio sem questionamento para obras teatrais de anlises
textualistas comuns em literatura e em leitura e produo de
textos, enfatizando, entre outros aspectos, temas, unidades de
sentido, idia mais importante, contexto histrico e informaHVELRJUFDVHFDUDFWHUVWLFDVGRHVWLORGRDXWRU
Em todo caso sempre se procede do geral para o particular, de
um a priori (antes da experincia) para a obra.
Para o intrprete tal recurso ao artifcio da reduo de sua
participao em eventos cnicos s idias mais importantes
do texto efetiva um espao cmodo e perigoso: no necessrio entrar em contato com a obra, interargir com ela. O intrprete pode estacionar no acumulado de sua experincia
SUYLDUHSHWLQGRRTXHMVDEHVHPPRGLFDUVH1RKGL-

Teoria da Arte e do Teatro

FXOGDGHVTXDQGRRDWRGDOHLWXUDDFRQUPDRGHLGLDV
e informaes sem o questionamento das fontes. Abre-se o
FDPLQKRSDUDXPRSRUWXQLVPRVXSHUFLDOSRUPHLRGRTXDO
os comentrios da obras no passam de apressadas reprodues de (im)posturas intelectuais.
Com o contnuo recurso a interpenetrao entre obras cinePDWRJUFDVHWHDWUDLVFRPHFHLDREVHUYDUQRVXPDUHVLVtncia a estas prticas descontextualizadoras como tambm
o desenvolvimento uma abordagem que fossem uma iniciao para o aprimoramento da percepo esttica.

L activit rationaliste de la
physique contemporaine.Paris,
P.U.F., 1951.

Seguindo Gaston Bachelard, optei por trabalhar com conceitos


operatrios. Em sua descrio da atividade racionalista da fsica ps-newtoniana, Bachelard destaca o fato que os cientistas
procuram integrar um materialismo tcnico a uma discusso
conceitual. A manipulao da realidade nos laboratrios realiza a interseo entre teoremas e instrumentos de medio
cada vez mais precisos. Ou seja, temos a complementaridade
entre o conhecimento daquilo que se investiga e a elaborao
de conceitos e metodologias a partir desse conhecimento.
Em nosso caso, a experincia de assistir, analisar e discutir os
OPHVSURSRVWRVFRQMXJDVHFRPDLGHQWLFDRGHFRQFHLWRV
que esto diretamente vinculados com a obra estudada. Ao
invs de se discutir idias e conceitos por eles mesmos, procuramos ver as obras, entre outras coisas, como articulaes de
FHUWRVSURFHGLPHQWRVHDUJXPHQWRV'DRGHQLRFRQFHLtos operatrios, pois indicam uma atividade cognitiva orienta a partir de uma interao.
A partir dos conceitos, de uma linguagem cada vez mais espeFFDTXHSRGHPRVPDLVFODUDPHQWHH[SOLFLWDUUHDLVHPDLV
densos contatos com as obras analisadas.
Essa objetivao da subjetividade uma das contribuies desse curso. Os conceitos no so apenas um vocabulrio comum
entre os membros do seminrio de teoria do teatro. Os conceitos operatrios so vias de acesso que no prescindem ou neJDPRFRQWDWRFRPDVREUDV1REDVWDLGHQWLFDURVFRQFHLWRV
ou memoriza-los. A certeza deles no a totalidade da expeULQFLDRTXHPDLVXPDYH]UHDUPDRVHXFDUWHURSHUDWLYR

10

Curso de Especializao em Teatro Distncia

A utopia de se encontrar uma metodologia que antecipe e deQDWRGDVDVDWLYLGDGHVHQYROYLGDVQDFRPSUHHQVRHSDUWLFLpao de obras teatrais sedutora, mas encontra seu limite na
diversidade irredutvel de prticas, estilos e tradies artsticos.
Diante disso, resta para a capacitao intelectual de intrpretes em Artes Cnicas a integrao de habilidades heterogneas
para enfrentar eventos multidimensionais.
1HVVH VHQWLGR D SUHVHQD GH REUDV FLQHPDWRJUFDV FRPR
campo de discusso de conceitos operacionais teatrais se
MXVWLFD &LQHPD H WHDWUR VR PRGDOLGDGHV GH H[SRVLR GH
processos criativos, que distinguem e se aproximam em funo de suas tradies, suportes e materiais. Um arco entre o
primeiro cinema, aquele que freqentava as feiras, os circos,
lugares de uma teatralidade popular, e as contemporneas
instalaes e hibridismo multimiditicos nos impele para a
defesa de um saber interartstico e pluridisciplinar. Se a cena
pode muito, preciso capacitar-se para torn-la possvel.
Bom curso para todos ns.

Teoria da Arte e do Teatro

11

12

Curso de Especializao em Teatro Distncia

O B J E T I V O S
Iniciar os participantes do curso em uma compreenso mais
englobante do fazer e do pensar as Artes Cnicas. Perceber
FRPR FRQFHLWRV H UHH[HV HP $UWHV &QLFDV VR JHUDGRV D
SDUWLUGHXPFRQWH[WRGHSURGXREHPHVSHFFR3URPRYHUD
discusso de teorias como estmulo para compreenso de processos criativos em Artes Cnicas.

E M E N T A
,GHQWLFDRGHSDUPHWURVGHFRQVWUXRGHWHRULDVHP$Utes Cnicas.

P R O G R A M A
Semana 1
Filme Zelig, de W. Allen;
Apresentao do plano do curso e do guia de estudos;
0OWLSODV GHQLHV GH WHRULD HP $UWHV &QLFDV
Avaliao Colles(expectativas);
tarefas:questionrio de avaliao;
construo de glossrio;
Semana 2
Texto Ion, de Plato;
Parmetros bsicos de Teoria em Artes Cnicas:
composio, realizao, recepo e produo.
Tarefa:lio.
Semana 3
Filme Dogville, de Lars Von Trier;
Espacializao, localizao e presena;
Tarefa:questionrio.
Semana 4
Filme O selvagem da motocicleta, F. F. Coppola;
Personagem e assimetrias entre agentes e recepo.

Teoria da Arte e do Teatro

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tarefa:questionrio.
Semana 5
Filmes Verdades e Mentiras, de Orson Welles;
Dinmica de perspectivas e interpretaes.
Tarefa:comentrio escrito.
Semana 6
O beb Santo de Mcon, de P. Greenaway;
Metateatralidade: o espetculo sobre o espetculo;
Tarefa: questionrio.
Semana 7
Filme Bodas de Sangue;
Pea Bodas de Sangue, de F. Garcia Lorca;
O teatro como campo interartstico;
Tarefa: lio.
Semana 8
)LOPH2HOFDPDUHLURGH3<DWHV
tica e esttica: as fronteiras do fazer e do representar;

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Curso de Especializao em Teatro Distncia

INTRODUO:
O TEATRO
E SUAS
MLTIPLAS
FORMAS DE
ACESSO

Nessa semana vamos entrar em contato com uma experincia fundamental em Artes Cnicas: a multiplicidade de aspectos atravs dos
quais um evento cnico pode ser estudado. Este o nosso ponto de
partida. A abertura que essa experincia de pluralizao acarreta vai
nos acompanhar durante todo o curso.
Em primeiro lugar preciso ter em mente a situao bsica do intrprete. Qual a sua participao no espetculo? Voc est assistindo?
Voc atuou? Voc fez o roteiro? Voc est dirigindo? H diversas outras. Por qu? Como se v, h diversos tipos de participao em um
HYHQWRFQLFRFDGDXPDGHODVEHPHVSHFFDHGHWHUPLQDGD8PD
mesma pessoa pode ter vrias participaes no processo criativo.
Mesmo assim cada funo diversa. Voc pode escrever o roteiro e
dirigir e atuar que ainda voc passou por diversas atividades.
Ou seja, aquilo que em um primeiro momento parece uma coisa nica, um produto uma pea apresentada diante de um auditrio comea a se desdobrar em um conjunto de diferentes aes. Uma observao mais atenta vai tornar perceptvel que mesmo o espetculo
em si explicita essa multiplicidade de aes. Voc pode seguir a luz
RXDFHQRJUDDGHXPHVSHWFXORHQRVRPHQWHDVDWXDHV9RF
pode constatar que o espetculo possui vrias partes ou cenas, que
se organiza de alguma forma. Ou seja, as perguntas e anlise aumentam na medida em que voc interage melhor com a obra e comea a
sair de uma posio de apenas aplicar ao que v as coisas que voc
pretensamente conhece.
No aprofundamento de sua participao na obra cnica voc comea
a perceber que h uma heterogeneidade de atividades que so ali
DSUHVHQWDGDVHPFHQD(PWHPRVGLGWLFRVSRGHPRVLGHQWLFDUSHOR
menos quatro grande tipos de atividades.

1.1

COMPOSIO

4XDQGRYRFYXPOPHRXDVVLVWHDXPDSHDKXPDLOXVRGD
ordem, da continuidade. Na maioria das vezes voc permanece ali
sentado, imvel e com o tempo h uma sucesso de entradas e sadas de agentes dramticos, mudanas no espao visvel platia,
novas paisagens sonoras,entre outros procedimentos. Voc consegue

16

Curso de Especializao em Teatro Distncia

LGHQWLFDUVHTQFLDVGHGLIHUHQWHVWDPDQKRVHULWPRVFHQDVFXUWDV
ou longas, acelerao ou desacelerao das cenas. Quando voc l
XPWH[WRWHDWUDORXXPURWHLURFLQHPDWRJUFRSRVVYHOSHUFHEHU
uma diviso do todo em diversas partes: atos, cenas, estaes so conhecidas formas de nomear essas divises. Na verdade se voc parar
SDUDSHQVDUWXGRSDUWH$RPGRHVSHWFXORWHPRVDVHQVDRGH
uma totalidade. Mas essa abrangncia o efeito de como as partes
so organizadas e de como as partes se relacionam entre si. Aquilo
que vemos em um primeiro momento e parece to bem feito, to
exato, to amarrado o resultado de diversas operaes seletivas, as
quais so expostas agora durante a performance. A costura exibida
durante a apresentao. Um espetculo nada mais que a exposio
dos atos de sua organizao.
Essa dimenso de coeso, sinttica, pode ser chamada de composio. Com-por colocar junto, reunir, integrar os dspares. A composio a explorao da heterogeneidade da obra. Uma maneira de
perceber a composio , do ponto de vista do intrprete, perceber o
ritmo estrutural do espetculo, cujo registro est na macro-estrutura,
em um diagrama da quantidade e durao das partes de um espetFXOR3DUDFLQHPDWHPRVDVJUDQGHVVHTQFLDVHVXDPLQXWDJHP
Para textos teatrais, temos a diviso de partes que pode ser percebida no texto.
Por isso essa dimenso construtiva do espetculo muito aproximada
da atividade tradicional da dramaturgia. Uma das atividades da dramaturgia no apenas escrever as falas que as pessoas vo proferir em
cenas. Antes, marcar espaos de performances por meio de blocos de
contracenao, de distribuio dos agentes e dos elementos de cena.
&RPRVHQVDLRVHVVHVURWHLURVGHDHVVRWHVWDGRVPRGLFDGRV1R
WH[WRQDOH[LEHVHRSURFHVVRFULDWLYRGHUHGHQLRGDIRUPDFRPRR
espetculo organizou e distribuiu seus articuladores da cena.
A composio, pois, no se reduz ao planejamento prvio das cenas, a
XPDLQVWQFLDGLVVRFLDGDGHTXDOTXHUVLFLGDGHPDWHULDOL]DR(VVD
tendncia em isolar composio e performance um velho hbito
aristotlico. Na Potica, novamente, temos uma enumerao das partes da tragdia: Prlogo, episdio, xodo e coral.

Potica, 1252 b.

A simples constatao de que o espetculo dividido em partes no


basta. preciso ir alm da enumerao. As partes de um espetculo existem porque necessrio romper com a unidade abstrata do

Teoria da Arte e do Teatro

17

acontecimento para se produzir o evento teatral. No h teatralidade instantnea. O tempo daquilo que se mostra e o tempo para sua
apreciao e compreenso so imprescindveis. Eventos teatrais exSORUDPHPRGLFDPRPRGRFRPRSHUFHEHPRVQRVVDUHDOLGDGH3RU
LVVRYRWHUXPDGXUDRFRQVWUXGDHVSHFFDXPDPDQLSXODRGH
parmetros temporais. A composio, o colocar tudo junto, o modo
como se concretiza a experincia dessa interveno no tempo dos
DFRQWHFLPHQWRV 7UDGX]LPRV HP HVSDRV FHQD VHTQFLDVDWRV   R
tempo novo da obra. E o tempo que se abre em tantos pedaos e
partes o espao das vrias perspectivas de como podemos ver os
acontecimentos representados.
(QPFRPSRVLRQRXPPHURSODQHMDPHQWRSUYLRGRTXHYDL
acontecer. Mais que diagramas e promessas, trata-se de uma exposio da multiplicidade de aspectos dos acontecimentos atualizados
em cena. Entre eles, a prpria organizao da obra.

1.2

REALIZAO

O evento cnico articulado pelos agentes que o viabilizam. Atores,


FHQRJUDD LOXPLQDR REMHWRV GH FHQD  WRGD D PDWHULDOLGDGH GD
cena efetivada. No sculo XX, com o fato de as discusses sobre teatro migrarem de temas estticos gerais para os processos criativos,
PXOWLSOLFDUDPDVUHH[HVSURSRVWDVPDQLIHVWRVHWHRULDVDSDUWLU
da realizao. O treinamento do ator e a discusso sobre o processo
criativo foram e tm sido os tpicos mais presentes. A centralidade
do intrprete cnico na realizao parece corrigir o seu pape secundrio frente ao autor do texto, abordagem muito comum no sculo
XIX. Essa nova fronteira refora a multiplicidade de estilos e tradies
interpretativas disponveis, a recusa de uma ortodoxia baseada na
falsa impresso de haver um conceito nico de teatro. A multiplicidade de estilos e tradies interpretativas o horizonte para quem
se especializa em estudos teatrais, determinando que o intrprete
tenha mais conscincia de sua atividade, que pesquise e experimente
expresses as mais diversas em razo da multiplicidade de tcnicas
e repertrios que vivem a arena das disputas, das sobreposies, dos
mtuos emprstimos e negaes, nas inovaes tecnolgicas, das
mudanas histricas dos conceitos e experincias da teatralidade.

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Curso de Especializao em Teatro Distncia

1.3

RECEPO

As obras no reduzem sua organizao interna nem aos seus articuladores: h um grupo de pessoas que acompanha, avalia, analisa, interpreta, analisa, reage ao que exposto. A audincia o acabamento do espetculo.No est fora dele: a prpria forma de organizao
do espetculo efetivada em funo das expectativas da audincia.
Durante muito tempo no se pensou teoricamente a recepo, pois
havia o privilgio da composio e se achava que a audincia era um
dado, que o povo ali presente simplesmente no acarretaria uma discusso terica. sintomtico que a perda de pblico na contemporaneidade, o esvaziamento das salas de apresentao, a reduo da
audincia a integrantes da casta artstica est em sincronia com o incremento das discusses sobre recepo. Em primeiro lugar, preciso
ter em mente uma distino bsica entre pblico e recepo. Pessoas
reunidas informalmente como testemunhas curiosas de um evento
ocasional algo bem diferente de um grupo de pessoas que saiu de
casa para participar de algo previamente acordado e que demanda
XP WHPSR HP XP HVSDR HVSHFFR H UHVSRVWDV POWLSODV D POWLplos estmulos l apresentados. Um espetculo a transformao
GRSEOLFRHPUHFHSRHPSODWLDGHVWHHYHQWRHVSHFFRTXHIRL
construdo para ser reconhecido no jogo de suas escolhas e efeitos.
H todo um campo de questes e procedimentos de recepo a ser
explorado. Mesmo tcnicas dramatrgicas e atuacionais aparentemente to simples como a personagem-escada so de fato materializaes de questes recepcionais: em cena um agente faz o papel de
que no entende o que est acontecendo. Quando mais ele no sabe,
mais a audincia conhece e participa do espetculo. Assim a construo da recepo, a transformao do pblico em platia comea
em cena:algum ou um grupo de atores no palco atua na posio do
auditrio, como platia. Esses papis so dinmicos: ser platiano
privilgio de um personagem.

Teoria da Arte e do Teatro

19

1.4

PRODUO

Como historicamente eventos cnicos foram apresentados no espao pblico


GDVFLGDGHVRXHPSUGLRVFRQVWUXGRVHDGDSWDGRVSDUDHVVHPKXPDUHlao entre teatro e sua institucionalizao. No se trata apenas de quem paga
a conta. A produo lida tanto com os aspectos econmicos dessa atividade de
SURSRUUHSUHVHQWDHVSDUDDFRPXQLGDGHTXDQWRFRPDUHODRGHVVDVFes com a autorepresentao dos grupos que constituem essa comunidade.
Nesse jogo de foras e poder, a permisso para a apresentao dos espetcuORVHPHVPRRPHFHQDWRVHMDTXDOIRURQDQFLDPHQWRGDSURGXRWXGRLVVR
interfere naquilo que encenado. Seria muito ingnuo pensar que apresentamos para a platia somente nossas idias sem nenhuma negociao sobre o
que vai ser encenado com quem justamente tambm possibilitou essa oportunidade de exposio. Ao se instalar no espao fsico que for, a montagem
acarreta mais que discusses puramente artsticas. Aquilo que se apresenta
est intimamente relacionado com o contexto institucional de sua efetivao.
No se trata de uma equao to simples: eu paguei, eu quero isso. Mas os
FRQLWRVGHLQWHUHVVHVDVQHJRFLDHVGHWRGDRUGHPGHPRQVWUDPTXHK
uma multiplicidade de aspectos envolvidos na chancela e na manuteno de
um evento cnico, a comear pelos prprios integrantes do processo criativo.
2 OPH Zelig uma comdia na qual o tema da multiplicidade de
DVSHFWRVGHXPUHIHUHQWHYDLVHUWUDEDOKDGD1ROPHXPHVWUDQKR
personagem que muda sempre de acordo com quem ele est interagindo a base para uma argumentao irnica sobre as contradies
da mudana mesma. Como um camaleo, Zelig altera sua forma como
um mecanismo de adaptao, sobrevivncia. No caso, algo que parece maravilhoso, altamente positivo, possui suas complicadas conseTQFLDV3RGHUVHUYULRVDWUDLWDQWRSRVLWLYDVHQHJDWLYDVHIHLWRV
$HVFROKDGROPHVHGHXIXQRGHVVDFRQMXQRHQWUHDPELYDOHQWHV
projees que podemos observar na multiplicidade virtual que Zelig
expressa. Inicialmente, atrativa a idia do diverso, do vrio, do heterogneo. Mas a lgica do heterodoxo complexa, pois integra contradies e co-existncia de elementos que poderiam ser excludos ou negados em processos no orientados para a multiplicidade. Assim, recorrer
GLIHUHQDDRPOWLSORUHTXHUTXHVHIDDLVVRQRVVXSHUFLDOPHQte. No adianta defender a diferena, a pluralidade se no h de fato
um enfrentamento de uma realidade em sua diversidade material.

20

Curso de Especializao em Teatro Distncia

O percurso anmalo da personagem faz com que se perceba a mudana como algo que possui um contexto, uma reconhecvel relao
entre o que se altera e algo que j existe. As diversas faces de Zelig
VHGRDWUDYVGDLQWHUDRGHOHFRPRXWUDVJXUDV(OHDRPHVPR
tempo ele mesmo e uma outra pessoa. Cada novo rosto uma fuso
GR LGHQWLFYHO =HOLJ H SDUWH GD QRYD SHVVRD RX FRLVD FRP R TXDO
ele entrou em contato. As alteraes, essa metamorfose em processo,
podem sem percebidas, analisadas e compreendidas. Aquilo que se
transforma explicita a produo das mesclas, das fuses, do material
TXHUHGHQLGRHPRGLFDGR
'LVVR K XPD DOWD WD[D GH WHDWUDOLGDGH HP =HOLJ 3DUD TXH R OPH
faa efeito, preciso que se organize em torno de parmetros de
composio e recepo cnicos. Como um bizarro show de variedades, Zelig se mostra em suas transformaes. Ele o suporte para a
diversidade de aspectos que sucessivamente so exibidos na tela. O
OPHVHDUWLFXODFRPRDWUDHVFRPRTXDGURVGDVVLWXDHVGH=HOLJ
em contato e metamorfose. A personagem coloca em primeiro plano seu potencial variacional, seu de estatuto de mscara. Ao romper
com a identidade estvel entre ator e personagem, e recaindo nesse
FLFORLQFHVVDQWHGHQRYDVJXUDVROPHFRORFDHPTXHVWRROLPLWH
GDFDUDFWHUL]DRHROLPLWHGRLGHQWLFDRSRUSDUWHGDSODWLDGD
identidade do agente. Se Zelig pode ser qualquer coisa, e no consegue impedir essa atualizao do outro em si mesmo, chegamos aos
extremos da plasticidade daquilo que se mostra ao pblico, podemos
atingir e enfatizar o horizonte plural de perspectivas de um evento.
2OPHSRLVH[SORUDHVVDSRVVLELOLGDGHGDJXUDVHDPSOLDUHPPOtiplas concretizaes sendo ao mesmo tempo uma coisa s. E essa
tenso entre Zelig e suas mscaras produz tanto a dramaturgia da
IRUPDGROPHTXDQWRRULHQWDDVH[SHFWLYDVGDUHFHSR
Disso temos a teatralidade de Zelig, o uso de molduras teatrais, a apro[LPDRHQWUHDREUDFLQHPDWRJUFDHDH[SHULQFLDFQLFDDWHQVR
entre os mltiplos aspectos de uma realidade a partir do modo como ela
exposta nos permite associar essa forma plural de representao da
personagem com sua percepo. H o encaixe entre o camaleo Zelig e
nossas estratgias de intelibilidade. Zelig em sua dinmica transformacional s faz sentido se a audincia perceber como essa dinmica efetivada. A teatralidade est nisso: nessa situao na qual algo se expe em
sua organizao e os padres ali dispostos so compreendidos a partir
de um efeito, de uma conscincia em quem percebe. Mais que saber que
=HOLJPXGDGHIRUPDSUHFLVRTXHDDXGLQFLDVHPRGLTXHWDPEP

Teoria da Arte e do Teatro

21

que entre no jogo da obra, correlacionando a tenso da identidade da


JXUDQDWHODFRPDDWHQVRHQWUHHVWUDQKDPHQWRHIDPLOLDGDGHFRPR
que participa. Se a personagem se expe em suas variaes, a audincia
completa o bizarro show por meio da interao com o espetculo.
Com Zelig, ento, temos uma basilar atividade que projeta e antecipa alguns procedimentos desse curso:
 RV OPHV VR REUDV TXH FRUUHODFLRQDP HYHQWRV UHSUHVHQWDGRV H
formas de sua compreenso e fruio.
FDGDOPHHVFROKLGRH[SORUDXPFRQFHLWRH[SORUDWULRTXHGLVFXtido e compreendido a partir da interao com a obra.
Nesse caso, estamos partindo de uma mais ampla e concreta experincia de perceber e entender que uma uma heterogeineidade do ponto de
YLVWDHVWWLFRXPDFRQVWUXRTXHUHVLGHHPRSHUDHVEHPGHQLGDV
HTXHHVWDVRSHUDHVSRGHPVHUFODULFDGDVSRUPHLRGHXPPRGHOR
que se vale de referncias teatrais, de sua teatralidade. A teatralidade
de Zelig est na articulao entre o camaleonismo da personagem e sua
UHFHSRGHQWURGROPHPRGHORGDUHFHSRSRUSDUWHGDDXGLQFLD
( D SDUWLU GLVVR XP OPH TXH VH RUJDQL]D QD KHWHURJHQHLGDGH GD
personagem, em suas mscaras, possibilita uma compreenso mais
concreta de como diversidade de aspectos de um referente poder ser
articulados e conjugados.
Como durante o semestre vamos ter vrias obras e conceitos para discutir e analisar, um bom ponto de partida comear a se exercitar nessa
correlao entre conceitos e experincias, entre percepes e eventos.
No apenas voc percebe conhece algo: a prpria percepo, o prprio
conhecimento um evento. Teorias teatrais precisam dar contar dessa
GLPHQVRUHH[LYDGDVREUDVGHDUWHDLQWHUDRHLQWHUSUHWDRGH
OPHVHSHDVQROLPLWDDH[SRUFRPRHODVVHHIHWLYDP2SURFHVVRGH
sua compreenso abarca o prprio intrprete. As obras nos mostram
algo porque ns somos esclarecidos, expostos por elas.
Em virtude disso, o aparente carter aberto dessa primeira semana sobre o que mesmo que estamos falando? - na verdade a
LQWURGXRDRPRGRGHHVWDUPDLVFRQVFLHQWHGHVVDUHH[LELOLGDGH
fundamental em eventos teatralizados, e que se estender por todo
RFXUVRSDUDQRFDUUHVWULWRDHOH

22

Curso de Especializao em Teatro Distncia

ATOS
INTEGRADOS
NO FAZER
TEATRAL

Nessa semana vamos retomar e ampliar alguns conceitos trabalhados


DQWHULRUPHQWHSRUPHLRGDOHLWXUDHGLVFXVVRGHXPWH[WRORVFR
de grande importncia: o dilogo Ion, de Plato. Nos anexos voc vai
encontrar todo o texto traduzido e um ensaio que comenta questes
que o encontro entre o pensador Scrates e o artista Ion possibilita.
Para usufruir melhor do texto, surgiro que voc busque em livros e na
internet algumas informaes sobre os referentes presentes no texto. Faa uma pesquisa sobre os nomes de pessoas e lugares citados.
Com isso voc comea a desenvolver estratgias de leitura que no
VHOLPLWDPDVLPSOHVPHQWHVHJXLURFRQWHGRGRWH[WRRPGDDUgumentao. E por que fazer isso? Primeiro, como texto de teoria teaWUDOTXHSRVVXLXPDUHH[RDPSODVREUHDDWLYLGDGHGHDWXDRGH
dramaturgia e da audincia, o dilogo no se efetiva em textualidade
muitas vezes esperada como modelo para abstratas consideraes.
Antes, vemos que o dilogo se aproxima muito de uma pea teatral.
Plato se vale de uma forma teatral para argumentar contra o teatro. Ou seja, um dos primeiros documentos de teoria do teatro que
ns conhecemos articulado em torno de uma situao interativa
DVVLPWULFDPXLWRSUHVHQWHHPWH[WRVWHDWUDLVHOPHVWHPRVGXDV
personagens apresentadas em um encontro no qual suas diferentes
perspectivas so confrontadas.
Dessa forma tanto o tema do dilogo quanto sua prpria organizao manifesta o uso de atos e referncias encontradas em eventos performativos.
Por isso nessa semana vamos valer de um texto teatralizado como
chave de acesso para a discusso de ampla considerao: parmetros
de Teorias em Artes Cnicas.
Antes de tudo, notar que o texto escolhido relaciona-se com uma ciGDGHHXPWHPSRHVSHFFRV$WHQDVVFXOR,9DQWHVGH&ULVWR D& 
A cidade, alm de famosa por suas instuies sociais e polticas, destaca-se tambm pelos concursos de tragdias e comdias. H toda
uma fervilhante atividade em torno desses concursos, festivais por
meios dos quais a cidade se revistava e era visitada por estrangeiros,
principalmente no caso das Tragdias.
A personagem Scrates viveu essa poca, essa cultura de espetculo.
um personagem histrico, diferente de Ion, que assinala traos de
uma atividade artistica conhecida como Rapsodo. O rapsodo era um
artista itinerante que intepretava trechos de diversos autores, entre

24

Curso de Especializao em Teatro Distncia

HOHV+RPHUR$VHGXWRUDJXUDGH6FUDWHVYDLLQWHUURJDU,RQVREUHR
conhecimento que o rapsodo tem ou no sobre sua atividade. Fazer e
saber o que faz seriam atos excludentes?
Essa questo atravessa sculos. A resposta de Scrates enfatiza apenas
umdos aspectos da atividade do rapsodo: que o artista cnico no sabe
o que faz, guiado apenas por sua sensibilidade e pelas reaes emoFLRQDLVGRSEOLFR'LGHURW  HPVHXWH[WR2SDUDGR[RGR&Rmediante, apresenta uma outra verso dessa reduo do artista cnico
pura emocionalidade: excessos emocionais demonstram um insenbilidade, um no conhecimento do que se est fazendo, uma disposio em
DGXODUDSODWLD6WDQLVODYVNL  PRVWUDTXHDFRQVWUXRGR
papel pode ser guiada por uma maior conscincia que o ator tem tanto
do contexto imediato das aes presentes na trama e nas rubricas da
obra analisada quanto em laboratrios, em estudos de situaes homlogas as do texto, mas presentes em espaos concretos como hospitais,
DVLORVHQWUHRXWUDV%UHFKW  YDLDGYRJDUXPHVWLORLQWHUSUHtativo por meio do qual o foco da atuao no est na individualidade
isolada da personagem e em reaes e gestos convencionais. Para tanto,
advoga um estudo e insero dos atos em cena no todo social os atores mostrando que esto em um palco fazendo o pblico ver a lgica
econmico-social que movimenta as relaes interpessoais.
Em todos esses casos, e em outros mais, h todo um esforo para
no se idealizar ou restringir a atividade do ator e materialidade do
espetculo a um aspecto s, a algo fcil de se comentar, evidente em
VLPHVPR2UHFXUVRGHQLRDIHWLYDGHHYHQWRVWHDWUDOL]DGRVSDradoxalmente nos fala de parte da experincia por meio da qual a
cena se realiza ao mesmo tempo que no completa a amplitude dos
atos envolvidos em sua concretizao. A fruio do que se est fa]HQGRVHMDUHSUHVHQWDGRVHMDDFRPSDQKDQGRXPDSHDXPOPH
s possvel por h uma pluralidade de agentes e reaes envolvidas. Scrates constata essa heterogeneidade constitutiva do evento cnico, mas, em seguida, a reduz apenas a um trao dominante:
a afetividade. O dilogo explora esse e outros excessos redutores: o
ator Ion construdo ao mesmo tempo como um excelente artista e
um estpido. Mas como pode ele vencer tantos concursos baseados
em vrias habilidades pois so necessrias vrias habilidades para
se apresentar diante de uma multido e encant-la - e no saber de
coisa alguma, como se fosse somente a prpria situao que orquesWUDVVHDHFQFLDGDLQWHUDR"vFRPRVHSXGHVVHPRVIDODUGHXPD
msica sem msicos, de um livro sem leitor.

Teoria da Arte e do Teatro

25

Dentro dessa perspectiva, a estratgia platnica de apresentar a amplitude da teatralidade para depois reduzi-la muitas vezes partilhaGDSRUXPWLSRGHHQYROYLPHQWRVXSHUFLDORXJHQULFRFRP REUDV
teatrais. Sem sabermos, a defesa das artes cnicas por meio dessas
HVWUDWJLFDV VLPSOLFDGRUHV SHUSHWXD D FRQGHQDR SODWQLFD QR
sabem o que fazem, pois no h conhecimento em obras teatrais.
Essa dissociao entre afetividade, conhecimento e teatralidade s
possvel na exata medida em que se privilegia um dos aspectos da
experincia teatral e, apartir disso, temos a reduo de sua complexidade, tanto pelo elogio absoluto do alvo dessa eleio, quanto por
sua desvalorao e, disto, de todos demais elementos.
O que devemos realar nessa semana que assim como a obra teatral
o arranjo de suas escolhas e de seus multiplos aspectos, da mesma
forma teorias teatrais so atos seletivos que partem da complexidade e heterogeneidade do evento cnico. Arranjos de arranjos, as teorias, como as obras, so obras, possuem sua contrutividade.
A seletividade das teoria ocasiona at inesperadas construes como
DWRLQXHQWHDERUGDJHPHP,RQGHVQHYROYLGDGHSRLVHPA Repblica: uma teoria antiteatral do teatro.
Da o tpico dessa semana: parmetros de teorias teatrais. Ou seja,
HVWXGDU H FRPSUHHQGHU R IDWR TXH UHH[HV LGLDV WHRULDV PDQLIHVWRV HVWWLFDV DUWLFXODP XPD GHQLR GR HVSHWFXOR SUHVVXSH
alguma referncia, conhecimento, ou valorizao a respeito do que
pretendem traduzir racionalmente.

26

Curso de Especializao em Teatro Distncia

PENSANDO
O ESPAO
CNICO

Nessa semana vamos trabalhar com os conceitos de Espao, localizaRHSUHVHQDDSDUWLUGRHVWXGRGROPHDogville,de Lars Von Trier.
2OPHGH/DUV9RQ7ULHUH[SORUDHPYULRVQYHLVDDSUR[LPDRHQWUHFLQHPDHWHDWURGHVGHDHVSHFFDFHQRJUDDHGLVWULEXLRGRV
atores at a aplicao da teoria do distanciamento Brechtiniana a
todo o processo criativo.
Sobre as relaes entre teatro e cinema, preciso levar em considerao o modo como DogvilleIRLOPDGR1RGRFXPHQWULRTXHDFRPpanha a edio de colecionador, vemos que o espao de locao era
um galpo na Sucia. Essa reduo e controle de todos os aspectos
GD OPDJHP HP XP HVWGLR GHQLXVH HP WRUQR GH XPD SURSRVWD
minimalista: a cidade que nomeia a obra apresenta com poucos elementos: as poucas casas esto apenas marcadas no cho, assim como
algumas ruas. Nas duas imagens abaixo podemos ver esse cenrio
YHUWLFDO HVVD SODQWDEDL[D GR OPH DV SHVVRDV DQGDP SRU VREUH R
mapa da cidade como se estivesse em uma cidade real.

28

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Ao mostrar a cidade no em seus espaos fechados, completos, acabados, e sim como rascunhos de algo a ser construdo pela audincia,
Lars Von Trier trabalha com as expectativas que temos de espao:
h uma longa tradio de se contextualizar as aes e os agentes
em cena inserindo-os em lugares relacionados com suas atividades.
$PRQWDJHPFLQHWRJUFDYDOHVHGHVVHSUHVVXSRVWRGHYHURVVLPLlhana do universo representado a partir da longa tradio teatral
da quarta parede. A quarta parede, muito criticada diversas prticas
artsticas no sculo XX, refere-se caixa cnica, ao espao onde os
atores contracenam e estabelecem com seus movimentos e relao
com os objetos de cena a perspectiva como se deve observar o que ali
acontece. A quarta parede seria uma conveno: a caixa estaria fechada sobre si mesma, cercada pelos lados e fundo pela estrutura mesPDGRSDOFRTXHUHSUHVHQWDULDRLQWHULRUGHDOJXPHVSDRGHQLGR
e pela frente do palco esta uma barreira imaginria, a quarta parede. Os crticos da quarta parede, entre eles B. Brecht, argumentam
que ela gera um afastamento entre audincia e palco, um apassavivamento da recepo que meramente contempla o que est se desenrolando diante de seus olhos. Pois se caixa est fechada em todos
os lados, o mundo da cena mostrado auto-centrado, no restando
DRHVSHFWDGRUQDGDDOPGHREVHUYDUXPPXQGRTXHMHVWGHQLGR
que no se altera, que no alvo da interveno recepcional. Ou seja,
a separao fsica entre o mundo aprisionado na quarta parede e o
mundo da audincia desdobra-se em uma pedagogia das represenWDHVVHDVFHVLQWHUSUHWDPHVHDSURSULDPGDUHDOLGDGHHVHD
cena mostrada no sujeita a mudanas e participao, o espectador
projetar a imobilidade do teatro imobilidade social.

Sobre Brecht, ver suas peas


publicadas pela Paz&Terra e
pela Cosaic&Naif; os textos
tericos presentes na coletnea Estudos sobre Teatro
(Nova Fronteira,2005); os
dirios de trabalhos em publicao pela Rocco e L&PM;
e os textos sobre Brecht: Brecht: a esttica do teatro(Graal,
1992), de G. Bornheim, Brecht
no Brasil(Paz&Terra,1987), de
W. Bader.
J. Aumont (O Cinema e a Encenao. Texto&Grafia,2008)
afirma que a partir do teatro o
cinema valeu-se desde cedo do
princpio do cubo cenogrfico,
por meio do qual a o ponto de
vista sobre a ao no livre,
mas sim determinado pelo dispositivo do cubo(ou caixa) cenogrfica. AUMONT 2008:33.

A composio, pois, no se reduz ao planejamento prvio das cenas, a


XPDLQVWQFLDGLVVRFLDGDGHTXDOTXHUVLFLGDGHPDWHULDOL]DR(VVD
tendncia em isolar composio e performance um velho hbito
aristotlico. Na Potica, novamente, temos uma enumerao das partes da tragdia: Prlogo, episdio, xodo e coral.

Potica, 1252 b.

contra essa postura apassivadora e ilusionista que Brecht escreveu


e dirigiu suas peas e elaborou seus textos tericos. Para tanto, baseado nas formas populares de teatro, ele colocou os atores se dirigindo diretamente ao pblico; trouxe os msicos do fosso da orquestra
SDUDRSDOFRRULHQWRXRVDWRUHVDH[SORUDUDVWHQVRVHQWUHFRH
realidade, ao enunciar falas em terceira pessoa(Meu nome Hans.
(XIDRRSDSHOGH+DPOHW(HXYRXPRUUHUHVVDQRLWH YDOHXVHGH
de placas e outros sinais indicativos que anunciavam as partes da

Brecht defende que condio necessria para se produzir


o efeito de distanciamento que
, em tudo o que o ator mostre
ao pblico, seja ntido o gesto
de mostrar. A noo de uma
quarta parede que separa ficticiamente o palco do pblico
e da qual provm a iluso de
o palco existir, na realidade,
sem o pblico, tem de ser naturalmente rejeitada, o que, em
princpio, permite aos atores
voltarem-se diretamente para
o pblico(BRECHT 2005:104).

Teoria da Arte e do Teatro

29

pea, as mudanas de local e tempo, o contedo das cenas, entre outros procedimentos. Nessa mistura entre feira, teatro de variedades e
circo, Brecht enfatizava que aquilo que os espectadores viam era um
conjunto de acontecimentos organizados, construdos. Os espectadores participavam da obra ao perceber como ela se efetivava. Tudo era
explcito. O palco a exibio de seus suportes de interpretao.
9ROWDQGRDROPHYHPRVFRPRDRQRWUDEDOKDUFRPLQWHUQDVGHHVSDRVLVRODGRVSHODLPDJLQULDTXDUWDSDUHGHRQGHFDULDDFPHUD
Lars Von Trier conecta todas as casas da cidade, todos os seus habitantes na partilha de uma existncia que para os espectadores
demonstrada como fundada no ar, no vazio de algo que no se v. Da
teatralidade da quarta parede para a teatralidade que trabalha com
uma exposio generalizada temos a amplitude do questionamento
dos nexos interindividuais por meio da explorao dos vrios espaos
FRQVWUXGRV QR OPH 3RLV R PDLV LPSRUWDQWH  TXH DV SDUHGHV DV
portas, os espaos privados permanecem presentes em suas marcas
para os atores, o que vincula essas barreiras a estratgias de disfarce
de ocultamento das aes mais terrveis, tudo isso sob nossos olhos.
DogvilleQRVHXWLOL]DVXSHUFLDOPHQWHGHPROGXUDVWHDWUDLV2OPH
detidamente se empenha em trabalhar com os diversos aspectos e
implicaes do espao de representao e suas expectativas recepFLRQDLV $ GHVFRQWUXR GD TXDUWD SDUHGH QR OPH WHP POWLSORV
efeitos: demonstra que a questo esttica acopla-se a uma dimenso poltica e tica dos acontecimentos. As formas artsticas no so
ideologicamente neutras. Elas acarretam valores e disposies cogQLWLYDVHDIHWLYDV$RPROPHDSUHVHQWDVHFRPRXPDSDUEROD
que transforma uma cidadezinha norte-americana como laboratrio
esttico-existencial.
A mudana no tratamento do espao altera a perspectiva sobre os
eventos expostos na tela. Dessa maneira, comeamos a perceber que
DGLVFXVVRVREUHRHVSDRQRVHFRQQDDXPDHODERUDRGLVFXUVLva sem os limites e possibilidades que a experincia concreta com o
espao efetiva. como contextura observacional que o espao acontece em sua teatralidade. Vemos que a cena e o palco, mais que o
piso onde se colocam coisas e pessoas, um arranjo e distribuio
de elementos, trajetrias e expectativas. A materialidade do espao
FRPSUHHQGHDVDWLYLGDGHVGHVXDFRQJXUDR1XQFDHOHVLPSOHVmente algo como pr-dado.

30

Curso de Especializao em Teatro Distncia

'DDSDUWLUGROPHFRPHDUDUHGHQLURFRQFHLWRGHHVSDRFQLco, de espacializao da atividade representacional. Tudo espacializado, tudo adquire posio, perspectiva e valor quando passa ser
observado. Note-se como com a cmera na mo essa materialidade
que integra atores e espacializao se efetiva:

3HORV IRWRJUDPDV YHPRV TXH D SUHVHQD GR GLUHWRUFLQHJUDVWD QR


mesmo plano que os atores produz o efeito dessa co-presena entre a
perspectiva do observador e da personagem, como se diferentes perspectivas e papis na construo daquilo que visto se alinhassem.
O fato de Lars Von Trier produzir essa ampla reconsiderao das reODHVLQWHULQGLYLGXDLVDSDUWLUGHXPDREUDOPDGDHPXPJDOSR
nos mostra a intensidade da ampliao do conceito e experincia do
espao. Foi somente pela clara compreenso que a espacialidade do
OPH WUDULD FRQVLJR PDLV TXH XPD PDQHLUD QRYD GH DSUHVHQWDU RV
acontecimentos que Lars Von Trier conseguiu problematizar no s o
ID]HUOPHVFRPRDDSUR[LPDRHQWUHOPHVHFLQHPD

Teoria da Arte e do Teatro

31

32

Curso de Especializao em Teatro Distncia

CONSTRUINDO
CONFLITOS

1ROPHGHVWDVHPDQDYDPRVHQWUDUHPFRQWDWRFRPRFRQFHLWRGH
SHUVDVVLPWULFRV(VVHSURFHGLPHQWRIRLEHPGHVHQYROYLGRQDHODborao das tenses entre personagens e entre personagens e pbliFRQD7UDJGLD*UHJD1ROPHO selvagem da motocicleta isso bem
HYLGHQWHQRFRQWUDVWHHQWUHRSHUFXUVRGDSHUVRQDJHP5XVW\-DPHV
que procura seguir os passos de seu irmo e modelo. A tenso entre
o modelo e sua reproduo observada nas diferentes perspectivas
dos dois personagens quanto a um estilo de vida que no faz mais
sentido: o universo das gangues.
Fotogramas disponveis em
http://lashlee71.com/rumblefishsc.html.

$SULPHLUDSDUWHGROPHFHQWUDVHHPH[LELU5XVW\-DPHVHVXDMRUnada como cpia falhada desse universo:


Com a chegada do irmo mais velho, as coisas se alteram.
O inominado personagem retorna
casa, rua, sua cidade, mas no
o mesmo: ele no mais se dedica
rotina de se envolver em brigas
H SHTXHQRV DWRV GH GHOLQTQFLD
(QWRROPHH[SORUDHVVDGLIHUHQa entre os irmos quanto a continuar ou no o ciclo de aes intemSHVWLYDVHLQFRQVHTHQWHV$SDUWLU
disso, h uma afastamento entre
5XVW\-DPHVHVHXLUPR

34

Curso de Especializao em Teatro Distncia


Para que a assimetria seja produzida preciso uma aproximao intensa. Ele so irmos, o que projeta uma identidade mais estreita.
Mas justamente nessa tendncia ao similar, nessa expectativa de
convergncia que se mostra a diferena mais radical.
0XLWDVREUDVWHDWUDLVHFLQHPDWRJUFDVVHRUJDQL]DPWRPDQGRSRU
base linhas de ao de personagens em contraste e oposio. Em virWXGHGHVVDDOWDWD[DGHIUHTQFLDKDGLVSRVLRGHVHSHQVDUTXH
WRGDVDVREUDVVHRUJDQL]DPGRPHVPRPRGRTXHWHDWURFRQLWR
TXHDHVVQFLDGHHYHQWRVGUDPWLFRVDSUHVHQWDUFRQLWRV3RUP
RFRQFHLWRHDH[SHULQFLDGHVHHIHWLYDUUHDOLGDGHVFRQLWXRVDVHP
cena mais que uma generalidade. preciso observar que oposies,
constrates, contradies, lutas e todo o vocabulrio em torno de tenVRHQWUHSHUVSHFWLYDVHDHVFRQLWDQWHVPDLVTXHFRQVWDWDHV
de generalidades. Os nveis de oposio e tenso se distribuem por
todos os aspectos da experincia teatral e de sua organizao. Por
PHLRGDUXEULFDSHUVDVVLPWULFRVYDPRVFRPHDDSHQVDUPHOKRU
como se d o contexto de produo de situaes divergentes que tanto manifestam a construo de personagens quanto de sua recepo.
&RPLVVRSUHFLVRWHUHPPHQWHTXHRFRQLWRLQVWDODGRHPFHQD
no se reduz a uma idia, a uma oposio abstrata, previamente deQLGD&RPRVHYQROPH5XVW\-DPHVVHRSHDRVHXLUPRHGHOH
se distingue em razo do modo como reage e interpreta a vida das
gangues. O entrechoque entre os irmos em relao ao seu conheciPHQWRDDVSHFWRVFRJQLWLYRV5XVW\-DPHVSRVVXLXPDOLPLWDGDSHUVpectiva em relao rotina de autodestruio e perda de tempo da
aventura que sempre, para ele, desventura. Em virtude desse saber
GHPHQRV5XVW\-DPHVVHPSUHSHUGHVHPSUHHVWIHULGRFRPRVHY
nos confrontos entre rivais, nas conquistas amorosas.

Teoria da Arte e do Teatro

35

$SHUVRQDJHPGH5XVW\-DPHVLVVRDH[LELRGH
um conhecimento reduzido frente diversidade
de contextos os quais ele enfrenta. Estamos falando do modo como este personagem construdo.
8PDFULDWXUDFFLRQDODUWLFXODRVDEHUGRVHYHQWRV
TXH SDUWLFLSD 5XVW\ -DPHV SDUWLFLSD FRP UHVWULHVFRJQLWLYDVGDVXFHVVRGHHYHQWRVGROPH
Depois de uma sria de eventos mal sucedidos, o
seu irmo se aproxima dele e pergunta insistentePHQWHSRUTX"3RUTX"2VDEHUGH5XVW\-DPHV
XPDQRVDEHU(HVVDDVXDGHQLRUHSUHVHQtacional: mostrar pelos seus atos que no compreende a amplitude dos acontecimentos.
Assim, a assimetria uma construo: dispe-se em cena agentes
com diferentes tipos de conhecimento quanto aos eventos encenaGRV 5XVW\ -DPHV H VHX LUPR SRVVXHP SHUV DVVLPWULFRV SRU TXH
manifestam perspectivas diversas em relao aos mesmos aconteciPHQWRV5XVW\-DPHVWHQWDYLYHUDYLGDGHVHXLUPR(TXDQWRPDLV
ROPHPRVWUDRVSHTXHQRVLQVXFHVVRVGHVVDMRUQDGDPDLVHPDLV
percebemos em que a assimetria se fundamenta.
2FRQLWRGHSHUVSHFWLYDVH[LELGRQROPHQRVHUHGX]DRPRGRFRPR
RVSHUVRQDJHQVVRHODERUDGRV$DVVLPHWULDFRQMXJDDFRQJXUDR
do que se mostra para orientar as expectativas da recepo. Quanto
PDLV 5XVW\ -DPHV HQIDWL]D VXD OLPLWDR FRJQLWLYD PDLV D DXGLQFLD
percebe essa limitao. O no saber da personagem induz ao increPHQWRFRJQLWLYRGDUHFHSR4XDQWRPHQRV5XVW\-DPHVHQWHQGHR
que est acontecendo, mais a platia compreende o jogo da obra.
Com isso podemos ter acesso a uma viso mais ampla do conceito de
personagem e, disto, de espetculo. Se deliberadamente as personagens
so elaboradas a partir de um conjunto de possibilidades e restries
cognitivas, elas no so simplesmente pessoas, como o hbito de conceb-las. Personagens so um conjunto de determinadas escolhas que
so mostradas em cena. Essas escolhas se traduzem no que elas so capazes de mostrar. Uma personagem no pode tudo: ela se distingue por
certos traos e essa seletividade contribui mais para a compreenso do
espetculo que dela mesma. Antes de saber quem , a personagem exibe
o que preciso entender para compreender e usufruir a obra que se encena. Os agentes dramticos so articuladores da cena e no indivduos
com sua identidade. A identidade da personagem a do espetculo.

36

Curso de Especializao em Teatro Distncia

8PDSURYDGLVVRTXHYRFPHVPRTXHYROPHDJLULDGLIHUHQWHPHQWH HPPXLWDV GDV FHQDV GH 5XVW\ -DPHV H GH VHX LUPR 0DV
no j jeito: eles tm de fazer a mesma coisa sempre. Hamlet tem de
PRUUHUQRPGRTXLQWRDQR6HQRHOHQR+DPOHW3LUDQGHOORHP
Seis Personagens em busca de um ator, mostra como a diferena entre
a existncia de uma personagem e uma pessoa so abissais. Qualquer
pessoa pode mudar sua vida a qualquer hora, se quiser. Personagens
no tm essa opo. Por isso so personagens. Assim, para ns resta
entender a personagem, ou aquilo se se mostra diante de ns. Um
PRGRGHRUJDQL]DUDFHQDSRUPHLRGHSHUVDVVLPWULFRVDPDQLpulao das diferenas entre personagens por meio do entrechoque
entre seus horizontes cognitivos.
2FRQFHLWRHH[SHULQFLDGHWUDJGLDXPDH[SORUDRGRVSHUVDVsimtricos: o desconhecimento do heri, sua cegueira ou suas resolues produzem a ampliao do conhecimento da platia. Quanto
PDLVHOHDYDQDSDUDVXDUXQDDRQHJDUDOWHUQDWLYDVHUHDUPDUVHX
limite cognitivo, mais a audincia conhece outras formas de se agir.
$RPQDGDUHVWDDOPGDPRUWHDSOHQDFHVVRGHSRVVLELOLGDGHV

Teoria da Arte e do Teatro

37

38

Curso de Especializao em Teatro Distncia

PERPECTIVAS E
INTERPRETAES

1HVVD VHPDQD UHWRPDPRV H DPSOLDPRV D UHGHQLR GR FRQFHLWR


e experincia de personagem que vimos na Semana Cinco, aproxiPDQGRWDOUHGHQLRGDVUHH[HVVREUHPXOWLSOLFLGDGHGHDVSHFWRV
envolvidos na organizao e percepo de eventos que exploram a
teatralidade, realizadas na Semana de abertura deste curso.
$ SDUWLU GR OPH Verdades e Mentiras vamos explorar a questo da
dinmica de perspectivas e interpretaes. A obra transita entre gQHURVDXGLRYLVXDLVFRPRRGRFXPHQWULRHROPHGHFR2WWXOR
original F For Fake, palavra que tem se popularizado entre usurios
GDLQWHUQHWSDUDGHQRPLQDUFRQWDVRXSHUVTXHRFXOWDPDYHUGDGHLra identidade do usurio. Como uma mscara, aquilo se mostra no
totalmente o que se , e sim o que se quer exibir.


3DUDWDQWRROPHVHRUJDQL]DHPWRGRVGHHVWLOKDRVGHXPDPXOWLSOLcao de partes, de cortes, reunidos pela edio. Mais que a continuidade
das cenas, o que se destaca a tenso entre os pedaos e sua reunio.
Dos planos-detalhe sucesso de locaes e diversos informantes, o
OPHSULPDSHORFRQVWDQWHUHGLUHFLRQDPHQWRGDLPDJHPH[LELGDHGDV
informaes disponibilizadas. A rapidez com que materiais so apresentados acarreta sua sobreposio: um excesso que se projeta em todas
as direes e que agride o espectador, se lana contra ele, no proporcionando o tempo de assimilao ou questionamento do que se mostra.

40

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Em todo o caso, o espectador reage a essa massa de imagens,sons, a


HVVDDFXPXORGHYHUVHVFRQLWDQWHVGHQDUUDWLYDTXHQRSHUFHELda em seus antecedentes, mas no processo de sua constante mudana, como se estivesse sendo inventada no momento em que proferida ou representada cena como improviso.
'DKXPGHVORFDPHQWRGHFLVLYRDKLVWULDGRIDOVLFDGRUVHWRUQD
a exposio do modo como a narrativa mesma organizada. O virWXRVLVPRGDHGLRGROPHLQWHUIHUHQDDSUHVHQWDRGDELRJUDD
GH(OP\UGH+RU\TXHGHIDWRH[LVWLXWHYHXPDFDUUHLUDFRPRIDOVLFDGRUGHREUDVGHDUWH1RHQWDQWRROPHFKDPDPDLVDWHQRDR
SURFHVVRGHVXDUHDOL]DRFLQHPDWRJUFDTXHQDUUDWLYDGH(OP\U
F for Fake narra a si mesmo, justapondo a colagem de vrios depoimentos com a construtividade da costura dos vrios planos.
Essa aproximao entre narrativa e autoreferencialidade demonstra
que uma obra apresenta diversos nveis de percepo e representao e que, entre esses nveis, h a exposio de seu prprio processo
criativo. Muitas vezes associa-se a essa exibio de sua feitura as valorizaes as mais contraditrias, procurando-se normalizar o referente da obra, reduzir essa pluralidade de nveis e perspectivas a uma
PHUDRSRVLRHQWUHFRQFHLWRVDEVROXWRVGHFRHUHDOLGDGHF for
FakeDRLQWHJUDURGRFXPHQWRHVXDVUHHODERUDRFRQJXUDGRUDLUrompe como uma defesa do falso, da mentira, do fabricado, em uma
provocao a estas oposies absolutas como forma de preconizar a
UHDOLGDGHGDFRVREUHDXQLIRUPLGDGHGRVDEVROXWRV2H[FHVVRGD
REUDPDQLIHVWDDGRFXPHQWDRQRGDYLGDGRIDOVLFDGRUHVLPGD
DWLYLGDGHGRFLQHDVWDGDSRVVLELOLGDGHPHVPDGDFRVHUFRPSUHHQGLGDFRPRSURGXRGHUHIHUHQWHVDSDUWLUGHVXDHVSHFLFLGDGH
LQWHUYLUQRTXHMH[LVWHUHGHQLGRRUHFRQJXUDQGRR
Diante disso, a heterogeneidade radical de aspectos de uma histria
materializada em Verdades e Mentiras nos coloca diante do fato que se
a organizao da realidade que manifesta a sua percepo, a verdadeira mentira no compreend-la ou represent-la na diversidade
GHDVSHFWRVTXHDFRPSHP$VHFXODUTXDOLFDRGHFHVFRPR
IDOVLFDHVGRTXHH[LVWHQDYHUGDGHXPDGHIHVDGHSURFHGLPHQtos que procuram rebaixar procedimentos de problematizao dos
referentes. A entronizao da verdade, da realidade ltima, da nica
verso dos fatos, muitas vezes utilizada como forma de se restringir
o acesso e exposio dos modos como contextos so produzidos e
percebidos em sua elaborao.

Teoria da Arte e do Teatro

41

2OPHSRLVFRQMXJDTXHVWHVHVWWLFDVWLFDVHSROWLFDVDFDEDQGR
SRUFHOHEUDUDJXUDGRFULDGRUGRDXWRUQRSRUXPDDWULEXLRGLvina ou fora da realidade e sim por aquilo que ele faz.
'HVVDPDQHLUDYHUROPHHHQIUHQWDUVXDHVSHFFDFRQVWUXWLYLGDGH
relacionar a experincia de platia ao conceito da dinmica de perspectivas e interpretaes que Verdade e mentiras enfatiza, mas que, em
verdade, est em experincias cotidianas e artsticas as mais diversas.

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Curso de Especializao em Teatro Distncia

METATEATRALIDADE

&RPRYLPRVQDVVHPDQDVDQWHULRUHVREUDVFLQHPDWRJUFDVHWHDtrais partilham tanto a realidade multitarefa de sua preparao, realizao e recepo, quanto chamam ateno para si mesmas, para
seu processo criativo. A amplitude dessas obras faz transparecer seu
apelo para a considerao do modo como so organizadas. o que
podemos chamar de metateatralidade. Explicando: normalmente, ao
DVVLVWLU XP OPH RX XPD REUD WHDWUDO DVVRFLDPRV R PXQGR UHSUHsentado com o mundo tal qual conhecemos. Mas algumas obras, por
meio modo como so organizadas e performadas, evidenciam relaes diferentes da audincia com a encenao. No caso de obras teatrais temos o fato que tudo que apresentado est disposto em um
espao preparado, um arranjo de elementos e movimentos. Quando
o espectador movido a enfatizar em sua percepo que aquilo que
observa a prpria organizao e distribuio dos elementos. Ele se
localiza como estando um lugar chamado teatro vendo uma pea, um
FRQMXQWRGHDWRVHHVFROKDVEHPGHQLGDV'DWHPRVRWHUPRPHWDteatralidade: quando a cena se mostra como cena, quando o foco da
cena a exibio mesma dos materiais e das atividades que possibilita haver um espetculo.
H vrios meios para se produzir esse efeito da obra sobre ela mesma. Em Hamlet, por exemplo: na cena dos atores, temos uma pea
representada para o rei Cludio. Ou seja, temos uma pea dentro de
uma pea. Outro exemplo: o centro do primeiro ato de A gaivota, de
Tchecov, uma pea falhada. Novamente, um espetculo dentro de
outro. Ou seja, temos metateatro.
Quando em alguns momentos os atores fazem referncias ao fato de
estarem em um palco ou se valerem de termos relacionados atividade teatral, como papel, cena, espetculo, a audincia correlaciona
a pea de agora com uma experincia mais conhecida do teatro. Estamos diante de metareferncias teatrais.
Outra variao do procedimento da metateatralidade se encontra na
disposio das partes do espetculo. Quando a forma de organizao
EDVHDGDHPFHQDVLQGHSHQGHQWHVFRPGLYHUVRVWLSRVGHGHQLR
e arranjos, como canes, pantomimas, danas, dilogos, entre tantos, com diversas modalidades de atrao, a nfase na forma e nos
nmeros como partes autnomas tambm orienta a percepo para
o espetculo como conjunto de espetculos, como integrao de formas espetaculares diversas.

44

Curso de Especializao em Teatro Distncia

No caso de O beb santo de MaconWHPRVFRPRQROPHGH/DUV9RQ


7ULHUXPJDOSRXPDOPDJHPFRPSOHWDHPHVWGLRTXHVHRUJDQL]D
mais que Dogville a partir de suportes teatrais. No apenas o espao
IRFDOL]DGR2OPHGH3*UHHQDZD\XPDHQFLFORSGLDGHHVWLORV
e tradies teatrais e teatralizadas, passando pela Tragdia grega,
Missa catlica, cerimnias de cortes reais, circo, pera, entre tantos
outros. A complexidade de O beb Santo de Macon reside justamente
nessa saturao de elementos de diferentes prticas e tradies, fazendo com o que tudo que se mostre exiba essa diversidade de elePHQWRVUHVLJQLFDGRVQRSURFHVVRGHVXDUHXQLRHFROLVR
Note-se tambm o contraste entre o mtodo de organizao de F For
Fake e o de O beb Santo de Macon. Enquanto que a heterogeneidade
do primeiro se relaciona com a edio, o do segundo est mais em
XPD PRQWDJHP GH LGHQWLFYHLV UHODHV HQFRQWUDGDV QD ED GDV
formas teatrais, na experincia mesma de se observar um evento in
loco. A multiperspectivao de F For Fake encontra um contraponto
da reiterada manifestao de uma relao entre palco e platia no
OPHGH3*UHHQDZD\
1HVVH VHQWLGR D PHWDWHDWUDOLGDGH GR OPH DJH FRPR XPD GLVVRnncia cognitiva ao aproximar o mais antigo ao mais novo: formas
WUDGLFLRQDLV GH HQFHQDR UHGHQLGDV D SDUWLU GH XP WUDWDPHQWR
cumulativo e no usual. Pois a moldura cnica redistribuda nas
mais diversas situaes e estilos durante sua recepo, induzindo a
audincia a tanto correlacionar o que v como um teatro ao mesmo
tempo em que, pelos eventos representados e pela saturao efetivada, experimentar uma dissoluo da idia de teatro. Dessa maneira, a
metateatralidade de O beb santo de Macon dupla: por um lado, insere a audincia em uma disposio experincia cnica previamente conhecida; por outro, abole essa mesma experincia ao reiterar e
justapor suas mltiplas atualizaes juntamente quando demonstra
quo impotente e limitada a representao diante da crueldade dos
eventos encenados.

Teoria da Arte e do Teatro

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Curso de Especializao em Teatro Distncia

ARTES EM
CONTATO

(VWD YDL VHU VHPDQD GLIHUHQWH YDPRV WHU XP OPH H XPD SHD
MXQWRV2OPHXPDYHUVRFLQHPDWRJUFDGRWH[WRWHDWUDOBodas
de Sangue. Para melhor compreenso do conceito e a experincia de
campo interartstico, a anlise contrastiva entre as duas obras ser
fundamental. Inicialmente, em um curso que se vale de obras flmicas
para se trabalhar conceitos teatrais o relacionamento entre diversas
artes desde j um pressuposto de trabalho. Ou seja, durante todo
o curso nos valemos do conceito sem nome-lo. Estava explcito, mas
sem sua expresso verbal ou um tempo mais detido em seu exame.
Com isso aprendemos um trao caracterstico da produo de teoria
em artes cnicas: em muitas ocasies no h a formulao prvia de
FRQFHLWRVXPDDEUDQJHQWHUHGHGHGHQLHVHGHVFULRGHSURFHGLmentos quando nos deparamos com tradies, tcnicas ou processos
criativos. Mesmo assim, a ao no interrompida: h sempre a possibilidade de se realizar algo independentemente do pleno conhecimento de uma trama discursiva. Ainda: at quando as palavras no
parecem apropriadas ao que se faz, o ato pode ser efetivado. Este
intervalo entre o conceito e o ato mais que uma abstrata dicotomia.
O esclarecimento conceitual no abrange toda a atividade representacional. No adianta apenas mudar as palavras para se ter a iluso
de saber mais e melhor sobre o que se quer fazer ou pensar.
$ FODULFDR FRQFHSWXDO QR  DXWRVXFLHQWH $QWHV HOD DSRQWD
para tradies interpretativas, para abordagens em confronto, para
UHDOLGDGH DOP GD OQJXD H GDV LGLDV 1HVVH VHQWLGR D FODULFDR
conceptual, como atividade integrante de processos que aproximam
saberes diversos, emerge como uma possibilidade, aplicvel em discusses preparatrias, preliminares ou em outros momentos quando
for oportuno para aquilo que se est investigando.
Em nosso caso, tornou-se uma opo vlida enfrentar explicitamente
a questo da relao entre artes aps termos passado por experincias com a multiplicidade de perspectivas de um evento teatral.
Assim, o campo interatstico das artes da cena se entende no apenas
por um agregado, uma adio de elementos. O pluralismo em teatro
no vem reboque de solues supletivas: h uma estreita correlao
entre a diversidade do evento cnico em sua materialidade e a interrelao entre artes

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Curso de Especializao em Teatro Distncia

(PQRVVRFDVRLVVRFDPDLVSHUFHSWYHOTXDQGRHVWDPRVWUDEDOKDQGR
FRPYHUVHV$HVWUDWJLDQRDFRPSDQKDUTXDLVDVPRGLFDHVROme produziu a partir da obra teatral. No trabalho com verses e adaptaes preciso ter em mente que cada nova obra um obra diferente. A
EXVFDSHORRULJLQDOVLPSOLFDRSURFHVVR no jogo entre similaridades
e diferenas que a atividade de adaptao melhor se compreende. Se
toda obra uma seleo de materiais e sua transformao, impossvel
efetivar um processo criativo sem se valer de algo que j exista. No caso
a relao entre a nova obra e as com as quais h um intercmbio se d
de diversas formas: h a tendncia de se aproximar ou se distanciar mais
das obras anteriores, de parafrasear ou parodi-las. Com isso, no lugar
de uma relao horizontal-causal entre obras a obra A gerou ou foi
gerada pela obra B temos que cada nova obra um novo original. O
passado relido e reinterpretado a partir de uma instncia atual. A qualidade das apropriaes e transformaes no se deve intensidade da
aproximao e/ou dependncia com o que se incorpora ou cita.
.

Sigo neste tpico as idias


de H-G. Gadamer (Verdade
e mtodo. Vozes,1997) e M.
Bakhtin (A potica de Dostoievski. Forense Universitria,1981 ; Cultura Popular
na Idade Mdia e no Renascimento. Hucitec,1999; Questes de Literatura e Esttica.
Hucitec,1988.)
V. Pardia, parfrase & Cia. , de
A. R. SantAnna(tica,2000)

claro que tais noes so melhor compreendidas no processo criativos de eventos cnicos e que de nenhuma forma estabelece o plgio
como regra estilstica. Simplesmente est manifesto que o material
com que trabalhamos em nossos processos criativos est no mundo,
pr-existente. Porm, ao se lidar com este material estamos sujeitos tanto a ordenaes estticas, quanto jurdicas.
O caso da adaptao de Bodas de Sangue bem esclarecedor. A pea
de Garcia Lorca se organiza em trs atos que se subdividem em quadros, com uma progresso bem marcada para a mtua morte entre os
SUHWHQGHQWHVGDQRLYDUDWLFDQGRRWWXORGDREUD$IRUD/HRQDUGRR
amante febril, todas as personagens no tem nome, deslocando o foco
dos acontecimentos das personalidades dos agentes em cena para as
metforas e estrutura social. A poematizao de um universo to rude
e primitivo contextualiza as aes e seus efeitos. Atravessando a obra,
temos canes e falas ritmadas, corroborando o diferencial do espetculo: encenar situaes-limite na apresentao de extremos da linguagem, dos afetos e dos movimentos. O baile durante a festa de casamento, o baile ento interrompido, cifra essa conjuno entre extremo.
2OPHDPSOLDDFRUHRJUDDGDSHDHVFULWD(PVXDYHUVRFLQHPDWRJUFD&DUORV6DXUDFRORFDRVLQRPLQDGRVDJHQWHVGHVVDWUDJGLD
anunciada nos bastidores do ensaio geral da pea homnima, nos camarins e nas nos estdio de dana como que se aquecendo para o
espetculo. Este jogo entre os atores e as personagens, este jogo me-

Teoria da Arte e do Teatro

49

tateatral, torna simultneas as referncias pea e ao quotidiano dos


DWRUHV 7XGR DR P  UHSUHVHQWDR PDV D YLROQFLD VH WRUQD PDLV
violenta quando exibida no amplo acesso de seus meios e agentes:
tudo que necessrio para que ela acontea est disponvel. Os msicos, o tringulo amoroso, a faca e os movimentos com a faca.
1ROPHFDPEHPHYLGHQWHVDVRSHVGH&DUORV6DXUDTXHQRVRDV
mesmas de Garcia Lorca. Porm, o dilogo entre as obras realizado no
apenas a partir dos elementos que permanecem. Carlos Saura amplia a traPDFRUHRJUFDSUHVHQWHQRIRUPDOLVPRSRWLFRGDREUDGH/RUFD1RWH[to de Lorca, as personagens habitam um mundo que se mostra por meio
de escolhas bem ntidas de linguagem, cores, espaos e contracenaes.
2SWDQGRSRUWUDEDOKDUFRPJXUDVFRPSHUVRQDJHQVWLSR/RUFDDGHQVD
a sensao de fatalismo do espetculo por apresentar personagens que
cumprem programas narrativos pr-estabelecidos e se expressam em falas sentenciais e poticas que limitam perspectivas individuais. Como maULRQHWHVDVSHUVRQDJHQVUDWLFDPRTXHGHODVVHHVSHUDHHVWDFHUWH]D
FDGDYH]PDLVHFLHQWHGRTXHYDLDFRQWHFHURULHQWDHFDWLYDDUHFHSR
Carlos Saura, por sua vez, interpreta essa certeza autorefencial no
virtuosismo dos atores-danarinos, que em suas movimentaes e
FRQWUDFHQDHVGLODWDPRWHPSRGRFRQLWRHGDPRUWHH[SORUDQGRD
tenso entre a sucesso de eventos expostos pela trama e pela pea e
DDWXDOLGDGHGRVDUUDQMRVFRUHRJUFRVGRVGDQDULQRVHGDFPDUD
Assim, a tragdia de Lorca cede festa interartstica de Saura. Aquilo
que na pea est em segundo plano, a festa que interrompida
JDQKDRSULPHLURSODQRQROPH'RPHVPRPRGRDFHUWH]DGDPRUWH
e sua progressiva atualizao, no mostradas em cena, mas concreti]DGDVSHODVPHWIRUDVQDSHDFDHPVHJXQGRSODQRQROPHFRP
o foco mais na estranha conjuno entre agressividade, tcnica e beOH]D(PWRGRFDVRTXHODSHDHYROPHFDDWUDGRSHORLPSDFWR
brutal de um tringulo amoroso que se amplia para alm das habituais e verborrgicas ventilaes de sentimentalimos epidrmicos.
1R OPH HVVD DPSOLDR GRV HIHLWRV H UHIHUQFLDV  HIHWLYDGD SRUmeio da interao entre teatro, dana, msica e cinema. A intensidadedaquilo que se mostra est diretamente relacionada com sua
heterogeneidadedos meios. Assim fechamos as pontas de parte dos
conceitos eexperincias deste curso: a idia de pluralidade, de mltiplos aspectose referncias pelos quais um evento cnico construdo
e interpretado encontra uma contrapartida mais concreta no intercruzamento de diversas artes em contato.

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Curso de Especializao em Teatro Distncia

TICA E
ESTTICA

&KHJDPRV DR P SHOR PHQRV GHVWH FXUVR ( SDUD HQFHUUDU YDPRV
LGHQWLFDUVLWXDHVWHDWUDLVEVLFDVHGLVFXWLODVSRUPHLRGROPH2
HOFDPDUHLUR1ROPHWHPRVXPH[SHULHQWHDWRUVKDNHVSHULDQR
em torno do qual gira os integrantes de uma companhia teatral duUDQWHDVHJXQGDJUDQGHJXHUUD  2VFRQVWDQWHVERPEDUGHLRV DOHPHV QR LQWHUURPSHP DV YLDJHQV GD FRPSDQKLD 2 OPH
habilmente capta os bastidores das apresentaes, exibindo como o
velho ator serelaciona com os companheiros, sejam eles atores, tcnicos e auxiliares. Nos extremos das tenses temos o ator principal
e seu ajudante mais prximo Norman. Opostos na hierarquia da
companhia, eles vivenciam uma estranha cumplicidade, aproximando
afetos e mudana de status: ora o camareiro est no comando do inVHJXURHGHVTXLOLEUDGRDWRUSULQFLSDOLGHQWLFDGRDSHQDVFRPR6LU
ora Sir descarrega todo seu dio e frustraes contra o humilhado
HIUJLOFDPDUHLUR1XQFDHVTXHFHUTXHROPHXPDDGDSWDR
FLQHPDWRJUFDGDSHD7KH'UHVVHUHVFULWDSRU5+DUZRRGDSDUtir de suas experincias como camareiro de um ator shakesperiano,
HVWUHRXHP/RQGUHVHPHQD%URDGZD\HPWHQGRGHSRLV
YULDVUHPRQWDJHQV7RP&RXUWHQD\IH]RSDSHOGH1RUPDQQDVPRQWDJHQVDFLPDFLWDGDVHQROPH
Entre os opostos, temos o relacionamento de Sir com os demais
atores e tcnicos, explicitando uma cadeia de relacionamento que expande o que acontece no palco para fora dele. As aes em cena e nos
bastidores se completam, demonstrando a co-pertinncia entre tica
e esttica. Em nome da arte, ou melhor, de si mesmo, Sir realiza as
mais ditatoriais e intempestiva aes, justamente como aquelas que
o chamado mundo ocidental democrtico parecia naquele momento
combater. Ao mesmo tempo, ao revelar-se to terrvel o velho ator
seduz e a todos comove.
Essa associao entre individualismo, carisma e poder no microcosmo de uma companhia teatral nos capacita a no pensar ingenuamente nas representaes, isolando-as de todas as suas implicaes.
2OPHPRVWUDEHPRFRQWUDVWHHQWUHDVEHODVSDODYUDVHPFHQDHRV
negativos atos fora do palco.
$VVLPROPHQRVDOHUWDFRQWUDDLGHDOL]DRGDDWLYLGDGHWHDWUDOFRQtra a separao entre arte e existncia. Em nome da arte, por melhor
que seja, no se pode permitir que barbaridades sejam cometidas. O
OPHDFRPSDQKDEHPHVVDGHFDGQFLDHPRUWHGH6LUHQFDVWHODGR
HPVXDUDGLFDOUHDUPDRGHVLPHVPRSHUGHQGRFRQWDWRFRPRV

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Curso de Especializao em Teatro Distncia

que em volta lhe prestam tantos servios, e concedem tanta ateno.


Do outro lado, est Norman. Para que Sir se agigante, preciso que o
outro se rebaixe. Os excessos desenham uma hierarquia real que se
DYROXPDHPXPDKLHUDUTXLDLPDJLQULDTXHDPSOLFDPHGRVGHVHjos, ambies.
0DVDRPSDUDDPHVPDDUWHTXHUHXQLXGLIHUHQWHVSDUWFLSHVGH
Sir a Norman, temos a celebrao de um fazer em todas as suas contradies: para que haja a cena, todos deixam de ser quem so, todos
deixam suas picuinhas de lado e procuram salvar a cena de A Tempestade.
(LV DV GLYHUVDV OLQKDV GH RULHQWDR GR OPH R HQWUHFKRTXH HQWUH
tica e esttica, no jogo entre Norman e Sir melhor explorado nos
momentos coletivos de trabalho em prol da arte que os aproxima e os
ID]HQWUDUHPFRQLWR'DRVHQVRWUDJLFPLFRGROPHTXDQGRSHUcebemos que a tenso entre palco e bastidores no se completa, que
no a morte do ator principal ou mesmo suas aes em vida, mesmo
reprovveis, no produzem o efeito tanto de acabamento da obra ou
GDH[LVWQFLDTXDQWRGHXPDDUJXPHQWDRHRXDYDOLDRQDOVRbre o que houve. A resposta emocional ambivalente ao percurso qui[RWHVFRGDGXSODLPSHGHTXHVHFRQYHUWDROPHHPFDUWLOKDPRUDO
$RDSUR[LPDUDFRPLFLGDGHGRWHUUYHOROPHQRVFDSDFLWDQRIXQGLU
WLFDHHVWWLFDDGHVFRQDUGHXPDDERUGDJHPGLVFXUVLYDTXHUHGXziria os eventos da tela a modelos comportamentais. Pois o excesso
GHWRGDRUGHPDWXDOL]DGRQROPHSURPRYHRLQWHUYDORUHJHQHUDGRU
entre aes e suas motivaes, entre conceitos e experincias, entre
palco e vida. E pensando este intervalo, essa impossibilidade de total
fuso entre discurso e existncia que nos despedimos deste curso sobre Teorias Teatrais. Como de volta para o comeo, tomamos parte de
uma conscincia sobre as aes, sobre os atos de conhecer e produzir
conhecimento.

Teoria da Arte e do Teatro

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54

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ESTE ARTIGO UMA VERSO


SINTTICA DE COMENTRIO
E TRADUO DE ON.
A TRADUO INTEGRAL
ENCONTRA-SE NO SITE
WWW. MARCUSMOTA.COM.
BR. ARTIGO PUBLICADO NA
REVISTA VIS. REVISTA DO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO
EM ARTES DA UNB. V.5. N.2,
JULHO;DEZEMBRO DE 2006,
80-93.S

A PERFORMANCE
COMO
ARGUMENTO: A
CENA INICIAL DO
DILOGO ON, DE
PLATO

SCRATES
Mas olha se no o famoso on! De onde voc est vindo pra passar
agora um tempo com a gente? De feso, tua terra?
ON
De jeito nenhum, Scrates. Venho de Epidauro, das festas em honra
de Asclpio.
SCRATES
Ento os habitantes de Epidauro tambm organizam concursos de
rapsodos para a divindade?

Mousik.

ON
Isso mesmo, assim como concursos das outras habilidades.
SCRATES
E como foi? Voc competiu? Fale! Como voc se saiu?
ON
Ganhamos o primeiro prmio, Scrates.
SCRATES
Meus parabns! Se continuar desse jeito, vamos ganhar at as Panatenias.
ON
Assim seja, se a divindade quiser.
SCRATES

Techns.

56

Sabe, on, por muitas vezes eu senti inveja do que vocs, os rapsodos,
tm a capacidade de fazer. Por causa do que vocs fazem, vocs sempre precisam tanto estar bem vestidos, com a aparncia o mais esplndida possvel, quanto necessrio que vocs ocupem grande parte
do tempo com as obras de muitos autores excelentes, principalmente
Homero, o melhor e mais divino deles, e examinar a fundo mais seu
pensamento que suas palavras. Como isso invejvel! No h como se
tornar rapsodo de excelncia se no entender o que o poeta disse. Pois
o rapsodo deve ser, para os ouvintes, o intrprete do pensamento do
poeta. E impossvel fazer isso bem sem ter conhecimento do que o
poeta diz. Realmente todas essas coisas so dignas de inveja.

Curso de Especializao em Teatro Distncia

O dialogo platnico on articulado por apenas dois agentes. Inicialmente, como podemos observar, temos uma marcada estrutura de abertura, de comeo da situao de confrontao. Nesse
momento, o contato entre os dois agentes explicitado. Scrates
sada a chegada de on e o interroga seguidamente de modo fazer conhecer 1- quem seu interlocutor; 2- de onde ele vem; 3- o
que ele faz. Ao mesmo tempo, tal analtica, que decompe on,
patenteia que o centro do espao de representao, a hegemonia
da cena j est ocupado. Na abertura, o contato orientado em
funo da assimetria entre os agentes: a reiterada marcao de
posies excludentes em um mesmo espao. O espao de representao o desempenho dessa assimetria.
Alm disso, no s o espao de representao constitudo. Na atualidade do encontro, Scrates interroga o rapsodo on a respeito de
coisas que se deram em outro lugar e em outro tempo. A curta narrativa do que aconteceu no aqui e no agora duplica a no pertena
de on ao tempo e ao espao de Scrates.
Mas, junto com essa assimetria, -nos oferecida tambm a inicial excepcionalidade do estrangeiro. on um vencedor de disputas, um
performer premiado. Por mais que, j desde a abertura, Scrates maQLSXOHRVGDGRVGDVUHVSRVWDVGHRQFLUFXQVFUHYHQGRRVVXDGHQLRGHQLRTXH6FUDWHVDSUHVHQWDGHRQHVWDPRVGLDQWHGH
um rapsodo que chega aps conquista de vitria em concurso (EpiGDXUR SDUDJDQKDURXWUD 3DQDWHQLD RQYHPSDUDJDQKDURIHVWLYDO
de Atenas, festival da cidade para toda a Hlade.
Scrates se posiciona no meio do caminho dessa carreira vitoriosa do
rapsodo on, interrompendo esse vencedor transcurso, de modo a enfatizar que o rapsodo no deste lugar e que suas aes so passadas.
Neste encontro, Scrates aproxima-se de on para rivalizar com ele.
Entre as habilidades de rapsodo, temos sua itinerncia, a capacidade de transpor espaos. Viajando para tantos e diferentes lugares,
seguindo um calendrio de festividades e concursos, um roteiro de
ocasies para competir e demonstrar suas habilidades, on insere-se
em uma tradio de rapsodos cuja mobilidade e performance no se
associam diretamente ao que Scrates valida. Emendando a questo
sobre a origem, Scrates pergunta se on est vindo de sua terra naWDOSURFXUDQGRUHODFLRQDU?LGHQWLFDUSHVVRDHHVSDR

Teoria da Arte e do Teatro

57

As perguntas de Scrates, pois, no visam uma interao com seu


interlocutor. Nesse encontro inicial entre quem havia acabado de chegar e aquele que j ocupa o espao conhecido de suas performances,
h desde j a disputa desempenhada. Ambos so lutadores, competidores, rivais. A partir da saudao inicial a nova competio j comea. O emparelhamento inicial dos litigantes, distribudos em quantiGDGHEDODQFHDGDGHOLQKDVORJRVHUPRGLFDGRHPSUROGH6FUDWHV
O contato somente havia aproximado os dspares. E essa disparidade
ser cada vez mais exibida no restante do dilogo.

As perguntas iniciais de Scrates evidenciam aspectos da


atividade competitiva de on,
como identificao da competio e sua organizao e
sede, habilidades requeridas,
tipos de provas, disputa e premiao.

Primeiramente, on um competidor e vencedor nos espaos espeFFRVGHIHVWLYDLVHRFDVLHVSEOLFDVTXHH[LJHPDVXDGHPRQVWUDo de habilidades. J para Scrates, a arena est nesses encontros
intersubjetivos, de platia reduzida. Scrates habita Atenas, mas se
comporta na contramo da cidade. on est no espao de competio
de Scrates. Para um rapsodo, a relao com um massivo auditrio,
determinante para sua performance, est ausente, contrariamente
a Scrates. Temos, pois, em on, um rapsodo fora de sua situao de
representao entrando no espao de competio ao qual alheio.
1RPGXORVXEVHTHQWHDSVHVVHVSUHOLPLQDUHVDWRVRHPSDUHOKDmento dos agentes alterado. Scrates ocupa uma posio mais focal, expressa por bloco de falas mais contnuo e extenso. A partir desse momento, Scrates ter as maiores falas do dilogo e determinar
DVDHVGHRQ$FRQWUDFHQDRDVVLPWULFDYDLLQYHUWHUDVTXDOLcaes primeiras presentes no mdulo inicial de contato: o vencedor
on vai se constituir em objeto de zombaria.
Em sua primeira longa fala, Scrates situa seu encontro com o rapsodo em termos de rivalidade e falso elogio do adversrio. A inveja que
6FUDWHVDUPDSRVVXLUTXDQWRDUWHSURVVRGHRQQRYHPGH
DJRUD0DLVGHXPDYH]PXLWDVYH]HVLVVRVHGHX7DOIUHTQFLDSRVWD
Scrates como um familiar membro da audincia dessas competies,
um observador contumaz de performances. Ao mesmo tempo, tal freTQFLDUHYRFRQWDWRLQLFLDO2DFDVRGRHQFRQWURFHGHOXJDURFDVLRSUHPHGLWDGD(PIXQRGLVVRWRGDVDVDUPDHVYRJDQKDQGR
contexto. As perguntas de Scrates, desde a saudao, melhor se compreendem.Como Scrates j observava as performances competitivas
de rapsodos, o encontro com um rapsodo fora de seu espao de competio e exibio possibilitar a performance mesma de Scrates. Um
adversrio preparado e um outro desavisado se entrevem.

58

Curso de Especializao em Teatro Distncia

$VVLPDVSHUJXQWDVGH6FUDWHVVHXLQWHUURJDWULRSRLVDQDOTXDLV
so as armas, as habilidades de Scrates alm das palavras? partem
de algum j em situao de disputa. Dessa maneira, a performance
verbal de Scrates um desempenho competitivo que se caracteriza
por entremear negao e seduo de seu oponente, testando, por
aproximaes e sobreposio de ordens valorativas, o saber que este
possui ou no do que est acontecendo. A inveja de Scrates quanWRVKDELOLGDGHVGRUDSVRGRDTXLHQFRQWUDVXDGHQLRHWHQVR
Pois, ao mesmo tempo em que Scrates se coloca como que afetado
pelo que os rapsodos fazem quando atuam, o prprio Scrates no
VUHGX]HVVHLPSDFWREDQDOLGDGHGHJXULQRGDVURXSDVHGDFRPpostura que o performance como tambm ele mesmo age como um
rapsodo, seguindo um modelo competitivo e de impacto sobre sua
audincia. on agora deixa de ser o encantador de multides para se
converter em platia e escada de Scrates.
A forte admirao, que Scrates tem pelos rapsodos o posiciona em
XPDFRPSOHPHQWDUUHFXVDHUHDUPDRGHVVDWUDGLRSHUIRUPDWLva. Scrates, de fato, argumenta contra a performance a partir da performance. Tal mistura de rivalidade e admirao se torna mais claro
na coordenao que Scrates faz das duas coisas que mais ele inveja
dos rapsodos: a bela aparncia fsica e o tempo passado com as obras
de grandes poetas. Igualando a arte dos rapsodos a cuidados constantes com roupas\compostura e ocupao com poetas, Scrates
manifesta uma juno aristofnica de coisa diversas, apontando, em
um primeiro momento, nessa cmica metfora, para uma identidade
HQWUHVXSHUFLDOLGDGHHSHUIRUPDQFHUDSVGLFD
Mas a metfora se amplia se examinamos seu contexto de remisso,
seu endereamento. Antes de se isolar em sua fala, Scrates interagia com seu interlocutor, tornando-o alvo de suas falas, citando on,
dirigindo-se diretamente ao rapsodo em sua frente. A partir do mGXORVHJXQGR6FUDWHVPXGDRIRFRHHQGHUHDVXDIDODSURVVR
do rapsodos, e a todos os performers dos quais on apenas mais um.
Tal incluso e ampliao do referente acontece justamente no momento em que Scrates desliga-se do emparelhamento dialogal inicial
e ocupa o centro hegemnico das performances. H um movimento
complementar entre a mudana da posio dos agentes na cena e os
comentrios sobre a performance produzidos por Scrates. A intensa
LQ GLVSRVLRGH6FUDWHVIUHQWHDWRGDSUWLFDSHUIRUPDWLYDGRVUDSsodo leva o grande ironista a igualar caracterizao e tempo gasto com

Teoria da Arte e do Teatro

59

os poetas. Inversamente, tempo gasto com poetas, com a tradio perIRUPDGDSHORVUDSVRGRVLGHQWLFDGRFRPFDUDFWHUL]DR0RYHQGR


se de um plo ao outro, do rapsodo on a todos os rapsodos, e de todos
rapsodos tradio performativa helnica, Scrates incrementa mais
ainda a aplicao do que est se propondo a dizer em virtude da reduo do escopo da performance a elementos cosmticos.
Contudo, ao revertermos o argumento socrtico, podemos ver que
o exerccio da rapsdia uma atividade que exige certas habilidades, como: domnio de repertrio, fisicidade e prontido de presena, efeito sobre o auditrio e audiovisualidade. Tais habilidades precisam ser efetivadas e testadas em concursos, o que leva
o rapsodo a estar continuamente envolvido na excelncia de seu
desempenho. Dessa forma, o ardor com o qual Scrates se arremessa contra os rapsodos e contra on nos informa sobre aquilo
que negado nesse impulso. O exerccio da rapsdia e ao mesmo
tempo no aquilo que Scrates afirma e degrada. Desde o incio
do encontro, estratgias de restrio de presena foram postas em
ao por Scrates a fim de estabelecer o nexo, o vnculo entre os
membros de uma situao que, aos poucos, vai se tornando a performance de Scrates. O rebaixamento do rapsodo proporcional
assuno plena do ironista. A limitao dos atos e da presena de
on efetivados at aqui, so explicitados verbalmente neste mdulo, e expandidos para todos os rapsodos.
Tais ajustamentos do contato atingem a contingncia mesma do exerccio do rapsodo, demonstrando a diferena entre as performances
de Scrates e dos que performam como on. Ao colocar em excessivo
relevo somente aspectos de exteriorizao da presena do performer,
Scrates interpreta negativamente o corpo e a situao mesma do
rapsodo. Esse esvaziamento do corpo por sua cosmtica exuberante
desvia a ateno dos concretos efeitos e das habilidades de algum
que performa diante de um auditrio obras da tradio ao mesmo
tempo em que, por esse desvio, denigre tambm tais obras como referncia de conhecimento e qualidade. Da podemos observar essa
identidade forada entre corpo ataviado e clssicos da cultura. Se
VHOHYDWDQWRWHPSRHGHGLFDRDSHQDVSDUDVHDGRUQDUHFDUHVWXdando estes autores, tudo isso corpo e autores - no passa de um
desperdcio. Pois a situao mesma de se apresentar diante de um
auditrio massivo no essa coisa to complexa assim como Scrates
parecer mostrar...

60

Curso de Especializao em Teatro Distncia

7RGDVDVRXWUDVFRQVHTHQWHVGHVYDORUL]DHVWUDGLRGRVUDSVRdos, tradio cultural encontram seu fundamento na ao exercida


por parte de Scrates contra a presena e a corporeidade. Desvinculando a excelncia fsica de outras habilidades relacionadas ao desempenho diante de um auditrio, Scrates atinge uma instncia que
acarreta um determinado saber sobre a performance que prescinde
da performance mesma. O corpo apenas um veculo para mostrar
algo que no precisa necessariamente do corpo. E modo excessivo
FRPR LVVR  H[SRVWR QD LQWHQVLFDR GHVVH UHVXOWDGR GH LPDJHP
na qual a performance se transforma, aponta para o mximo ponto
que tal desempenho pode chegar. Toda a preparao, todas as haELOLGDGHVDOFDQDPVRPHQWHLVVRTXHSRGHDJRUDVHUGHQLGRFRP
vantagem por Scrates. como se tudo, essa forma de espetculo,
WLYHVVHFDGRSDUDWUV(6FUDWHVTXHWHPREVHUYDGRRVUDSVRGRV
PXLWREHPSDUHFHGHFUHWDURPGHVVDHUDDFRQFOXVRHVXSHUDR
desse tipo de performance. Por muitas vezes e em vrias ocasies Scrates havia sido afetado pelos rapsodos. Agora no mais. Agora, na
situao representacional em que Scrates desempenha, inverteu-se
o centro atrator, alterou-se regime de fascinao.
Dentro desse mdulo, a atualidade da performance desabonadora
de Scrates reverte para si mesma. Excluindo-se dos outros, ao apresent-los e descreve-los, Scrates expe-se, torna observveis seus
recursos, suas habilidades em situao de performance. A assimetria
entre os partcipes da contracenao ser o foco dos atos de Scrates.
A diferena de conhecimentos entre os que contracenam ser o material mesmo para a constituio do dilogo.
Em funo disso, ironicamente, temos, ao mesmo tempo, a inscrio
mesma de Scrates na interao e a ampliao do destinatrio. Antes,
durante o contato inicial com on, Scrates no se referia a si, mas
exclusivamente a on, juntando-se a on apenas em plural comparWLOKDGR YHQFHUHPRV RQSRUVXDYH]UHIHUHVHDVLD6FUDWHVHD
tudo que este solicita. Agora, quando Scrates mesmo assume mais
explicitamente o comando da performance, ou melhor, quando ele
exibe suas habilidades, no h rplica e passamos deste rapsodo para
todos os outros.
Esta correlao entre atualidade da explorao das habilidades de
Scrates e a generalizao da audincia prxima esclarece o desempenho do ironista. A expanso da presena do performer Scrates efetiva-se no desdobramento das referncias do auditrio, simultanea-

Teoria da Arte e do Teatro

61

mente situado entre alvo e tema do discurso. on um rapsodo para


o qual Scrates fala. Mas Scrates tambm est falando dos outros
rapsodos. E de outros que no so os rapsodos. Com quem e de quem
Scrates fala ento? Para se fazer ouvir e para fazer calar, Scrates
aproxima o interlocutor do tema de seu discurso, transformando o
prprio interlocutor em alvo da performance, em objeto da ao do
performer. A simultaneidade dessa mtua pertena imediatamente
atribui ao destinatrio prximo uma distino, como se ele fosse a
razo de ser do evento. Entre o rapsodo de agora e os rapsodos todos,
on parece inserido em algo mais que a sua posio de agora. Com
isso, Scrates quase que se apaga, impessoaliza-se. Mas justamente
nessa atualidade na qual simultaneamente se efetivam atribuies
sequencialmente excludentes que se manifesta a habilidade de Scrates de saber intervir e modelar a audincia.
Estabelecendo nexos dispostos entre extremos excludentes sincrnicos, Scrates pode movimentar-se entre as concesses que lhe so
dadas. Pois tal complexa abordagem do interlocutor produz a coexistncia de desorientaes e consentimentos apressados, em virtude
GHDVDUPDHVGH6FUDWHVSDUHFHPDFDGDPRPHQWRFRPRFRQFOXses s quais j no se capaz de retornar. Em prol de um efeito cada
vez mais prximo do agora, da atualidade da performance, Scrates
YDL HOLPLQDQGR DV XWXDHV GH FRQWDWR H RV DWULEXWRV PHVPRV GR
interlocutor. Scrates infunde porque confunde.
Falando com uma autoridade no questionada sobre os rapsodos, ao selecionar algumas de suas caractersticas e habilidades, Scrates atinge
o pice da sobrevalorizao depreciativa ao chegar a Homero. De on a
Homero - esse percurso se d por incluso hiperblica, como se cada vez
mais um limite fosse atingido e ultrapassado, reunindo o mais prximo
e o mais distante, tudo pela voz de Scrates. Sem sair do lugar, conhecimentos e referncias so pontuados e englobados pela dico socrtica.
Homero comparece coroando uma cadeia gradativa, um rol que
comeou on, generalizou-se nos rapsodos, ampliou-se nos poetas e encontrou seu pice em Homero. A prtica de correlacionar valores depreciativos e afirmativos em um mesmo sintagma
desdobra-se na ordenao que posiciona um ponto mais alto na
FDGHLDHQXPHUDGDHFRQVHTHQWHQRYDGLVSRVLRKLHUUTXLFDGR
que fora apresentado como primeiro e melhor item da lista. Ao
fim da ordenao, o que ficou para trs est em desvantagem e s
ganha seu status em funo do ltimo elemento citado, o cabea

62

Curso de Especializao em Teatro Distncia

do conjunto. Mas, como temos uma sucesso de renovadas substituies de pices, h o esvaziamento potencial da srie, a abertura
da posio concludente.
Dessa forma, a cadeia hiperblica, de tanto apresentar novas entradas e novas hegemonias, aponta no mais para os dados dispostos, e sim para sua elaborao, para seu excesso, para o registro de
seu fazer. O mximo dos mximos ao fim da srie nos informa sobre um percurso de negaes, de incluses negativas que iludem
pela abrangncia porque, na sucesso, quase que ilidem o resultado das operaes realizadas. Na verdade, essas incluses hiperblicas, dentro do contexto de contracenao do dilogo, atuam
como uma maneira de defenestrar a atualidade e a presena do
interlocutor, separando on da pertena a essa tradio de artistas
perfeccionados.
$ VHSDUDR H LVRODPHQWR GD JXUD GH RQ HVW SUHVHQWH HP WRGD
a demonstrao de saber quanto ao ofcio rapsdico que Scrates
apresenta nesse mdulo. Entre on e Homero, temos dois no grupos
plurais no pessoais, genricos de classe. on, aquele que atravessa
cidades, encontra-se afastado do rapsodo modelo. Ento a estratgica citao de Homero vem marcar o alheamento de on quanto
tradio que ele se v vinculado em sua atividade performativa. A
srie apresentada por Scrates uma ordenao gentica que vai
FXPXODQGRGHTXDOLFDHVSRVLWLYDVRSRQWRGDFDGHLDTXHPDLVVH
apresenta distante de Homero, o ponto-origem.
Em outras palavras, bom no voc, on, rapsodo de agora. Em geral, os
rapsodos parecem bons, at que se mostre bem quem so. Mas bons mesmo so os poetas que eles performam, e melhor ainda de todos Homero,
TXHQRHVWDTXL2ORXYRUGH+RPHURDGHVTXDOLFDRGHRQ
Essa habilidade de vincular referncias excludentes em uma atualidade enunciativa produzida durante sua fala por coordenaes, por
adies, que vo deixando para trs algo que poderia ser recusado,
debatido. para um resultado discursivo que as coisas vo se encaminhando. Quando se v, o espao entre o primeiro e ltimo elo da cadeia
to grande, ou no relevante agora, que no se pode ou no se decide
recuperar o que se passou. Scrates movimenta-se por outra ordem de
LWLQHUQFLDTXHRQ2HVSHFFRQRPHGH+RPHURHQFDL[DGRGHQWUR
de uma coordenao de adjetivos que gravitavam em torno do genrico nome de poetas. Homero, dessa maneira, , ao mesmo tempo,

Teoria da Arte e do Teatro

63

elemento do grupo poetas e superordenador do grupo, reunindo e


ultrapassando os atributos ali arrolados. Entre os inmeros e excelentes artistas que serviram de modelo e material para os rapsodos, h o
que se afasta e separa de todos eles em excelncia Homero. Homero
no s particulariza o geral duplamente anunciado antes, como tamEPVHGLODWDSDUDIUHQWH PHOKRU HSDUDWUV RULJHP MXVWDPHQWHQR
mdulo quando Scrates apresenta-se performando suas habilidades
e restringindo seu interlocutor on. Ao distribuir valores e posies para
seu interlocutor e para as referncias a amplitude do julgamento e do
encadeamento expostos, a presena do nome de Homero remete-nos
para a fonte da voz que tudo ordena Scrates. O ironista assimila as
qualidades do proto-rapsodo.
A posio extraordinria de Homero, pois, somente se efetiva e ganha
seu destaque em virtude da srie. Nela, no apenas se diviniza Homero. Atravs da srie, justape-se o melhor de todos, Homero, com seu
FRQVHTHQWHSLRURQ$VVLPHQFDL[DQGRRUGHQVHTXDOLFDWLYRVTXH
PDLVHPDLVWUDQVIHUHPSDUDRWHUPRVXEVHTHQWHXPDDPSOLDRGH
abrangncia e excelncia, Scrates constri um aparente consenso no
qual a insero dos interlocutores, dos integrantes do dilogo e seu
posicionamento na cadeia exposta somente sero compreendidas
pela conjuno entre o que exibido e o modo como isso articulado.
No entanto, no mesmo modo de se dizer, outras coisas so enunciadas. Primeiro, o cume atrelado queda, pois a excedncia aplicada
a Homero se faz dentro de um crescente que positivo e negativo
ao mesmo tempo. Assim, estar no topo da cadeia ser o melhor em
algo que tanto elogiado, quanto denegrido. O melhor de alguma
coisa que ruim torna-se, pois, o pior de todas essas coisas j arrolaGDV3DUDFDUFODURYHMDPRVQRYDPHQWHHVVDHVWUDQKDVULHDRQ
o rapsodo premiado; b- A classe dos rapsodos, da qual on faz parte,
FDUDFWHUL]DGDSRULPHGLDWDFRQJXUDRHWHPSRGLVSHQVDGRFRPUHSHUWULRF&ODVVHGRVSRHWDV UHSHUWULR PXLWRVHH[FHOHQWHVDRV
quais se entrega o tempo; d- Homero, includo nessa ltima classe,
mas ultrapassando-a completamente. Como se pode observar, h um
constante reprocessamento da instncia anterior, favorecendo um
esquema em que cada instncia no seu momento deixa de se determinar apenas por meio da negatividade que aplica a quem lhe precede. A esquematizao das prticas e das tradies envolvidas na perIRUPDQFHGHXPUDSVRGRLQGLYLGXDOFRPRRQWHPSRUFRQVHTQFLD
eliminar a pluralidade e a complexidade dos nexos e das instncias
em separado. Um rapsodo vencedor destronado pelo esclarecimen-

64

Curso de Especializao em Teatro Distncia

WRTXHVHXSURFHVVRFULDWLYRQRSDVVDGHFRVPWLFDJXULQRHGHVperdcio de tempo. O tempo gasto com estudo desses bons poetas


associado a tal desperdcio e inutilidade. Assim, Homero, como o
PDLRUGHQWUHHVWHVSRHWDVXPDRSRUWXQLGDGHSDUDUDWLFDUFRPRR
exerccio desse ofcio uma inutilidade total e completa.
Homero rene e esclarece o melhor e o pior, o alvo crtico desse mdulo. Scrates vale-se dele como contra-exemplo para on ao mesmo
tempo em que engloba toda essa cultura performativa em uma vanidade s. Scrates faz tudo isso a partir mesmo dessa cultura que ele
nega, mas a qual emprega em sua performance mesma.
Diante disso, torna-se claro at aqui esse tentativa socrtica de exorbitar sua presena, a atualidade da performance diante de algum e
seus efeitos transformadores sobre a audincia. Scrates havia tentado coordenar on a um espao nico de ocorrncia sem contexto
de performance ou tirar do rapsodo o seu lugar de exibio, seja no
festival em honra de Asclpio, seja em honra de Atenas. No obstante
LVVR6FUDWHVDIDVWDVHGRUDSVRGRLQGLYLGXDOHGHVFUHYHVHXRFLR
DWFKHJDUJXUDSURWRWSLFDGH+RPHUR7HQGRHPVXDVPRVXP
panorama do ofcio, Scrates pode, sem ser um rapsodo e sem fazer
o que um rapsodo faz, dizer como o rapsodo deve ser e o que ele tem
de fazer. A presena do rapsodo depende agora do que dele se fale.
Seu corpo agora manifesta aquilo que as palavras de um outro que
QRUDSVRGRGHWHUPLQD2GLWRVXSODQWDDJXUDHDYR]SUHVFLQGH
GHRXWUDVYR]HV+XPSRGHUWUDQVIRUPDGRUQDSDODYUDTXHXQLFD
as diferenas, porque as diferenas perderam seus suportes de expresso e sua pertinncia a situaes e modalidades de realizao. A
GLYHUVLGDGHGHVVDVVLWXDHVHWUDGLHVHPFRQWDWRHFRQLWRHVWR
submetidas, nesse momento, aplicao de um critrio que extrapola seus contextos.
(VVHUHWLUDUVHGRHYHQWRTXHSOXUDOPHQWHGHQLGRSDUHFHVHUXPD
estratgia da performance de Scrates desde o incio do dilogo. A
VULHTXHFXOPLQDHP+RPHUREHPGHPRQVWUDLVVR$QDHVVDD
base da rivalidade entre on, o de muitos lugares, e Scrates. Plurais
esto ao lado de on: ele um rapsodo que passa por cidades, festivais e que se defronta com muitas habilidades. J Scrates v nos
rapsodos um ofcio cuja peculiaridade de seu resultado de produo
redundantemente referido como aparncia. Na preparao para a
performance s se faz uma coisa tambm e, mesmo com tantos autores e obras para se estudar, para preparar somente um importante

Teoria da Arte e do Teatro

65

- Homero. Os duplos atributos coordenados, os muitos conjuntos de


coisas enumeradas, as hiprboles, os plurais tudo recai numa coisa
V2POWLSORLGHQWLFDGRSUHWH[WRSDUDVHXIXQGDPHQWRVHPDOWHrao. Todas as coisas so transformadas em ausncia de movimento
HPRGLFDR2VHQFDL[HVYRFRQVROLGDQGRXPDSDLVDJHPGHGHQLGRVHGHQLWLYRVFRQWRUQRV$H[FOXVRGRPOWLSORFRUUHODWRGDUHduo do corpo do rapsodo mera aparncia, verbalmente indicada
SHODDUPDRTXHORJRVHVHJXHDRORXYRUGH+RPHUR0LVWXUDQGR
selees do que os rapsodos fazem com elementos positivos e negativos, Scrates agora comparece com seu prprio mtodo de produzir
conhecimento, inscrevendo-se, como havia anunciado no plural pesVRDOQDTXLORTXHUHIXWD$RPGDVULHQRYDPHQWHSRUXPHQFDL[H
que se liga descrio do que os rapsodos tm de fazer - e que, por
LVVRFDXVDDGLVSRVLRGH6FUDWHVFRQWUDHOHVWHPRVDDUPDR
que os rapsodos precisam conhecer a fundo o sentido e no as palavras do que estudam.
$DUPDRHPXPSULPHLURPRPHQWRSDUHFHSHUWHQFHUDRFRQMXQWR
de atos que constituiriam a imagem seletiva do que os rapsodos fazem ao se prepararem para a performance e ao executarem-na, como
VHSRGHSHUFHEHUQDVULHGHLQQLWLYRVTXHVHVXFHGHP0DVHQWUHR
ocupar-se\ desperdiar tempo com dos poetas e a nova ordenana
de se aprofundar no sentido e no na performance, h um hiato a
H[RUELWDQWHJXUDGH+RPHUR(QWRDVULHQRUHJXODUOLQHDU$
TXHEUDQDSHUIHLRGRHQFDL[HVLWXDGDQRWUPLQRGDVHTQFLD
(RUHFXUVRDVVLPHWULDQRWUPLQRGDVHTQFLDXWLOL]DGRDTXLHR
fora na srie que vai de on a Homero. E nas duas o elemento desestabilizador o mesmo Homero.
$VVLPSRU+RPHUR6FUDWHVIDODVHPVHULGHQWLFDGRDRTXHIDODDWULbuindo a outros, a uma pretensa validade indiscutvel o paradigma das
aes que acarretar transformaes em seu auditrio prximo.
Contudo, se se observa com cuidado aquilo que dito, podemos concluir que as implicaes disso vo contrariamente ao contexto de produo e ao que os agentes deste contexto efetivamente realizam e vaOLGDP$DUPDWLYDGH6FUDWHVGL]PDLVUHVSHLWRDRTXH6FUDWHVSHQVD
e faz que aos rapsodos e a Homero. uma ao sobre a performance
do rapsodo, sobre a tradio mesma dos rapsodos que determina o
que Scrates faz. a partir de desempenhos que o desempenho de
6FUDWHVVHGHQH2DUGRUFRPSHWLWLYRHPUHODRDRQHVHXRIFLR
uma recusa mesma dessa modalidade performativa e de sua tradio.

66

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Aps muito observar, aps por muito tempo ter sido platia desses
eventos, Scrates rompe com os nexos entre o rapsodo e sua audincia, para efetivar uma outra modalidade performativa. Scrates
inverte e subverte a lgica rapsdica e seus vnculos receptivos. No
comeo do dilogo, Scrates sada o performer. J a partir deste segundo mdulo h o reposionamento dos interlocutores, e on ocupa
o lugar da audincia. Dessa maneira, o recurso para o pensamento,
para o racional que podemos ver no socrtico comando somente se
compreende quando o inserimos no contexto reativo dentro do qual
se forma o antagonismo entre corpo e mente. A possibilidade de afastar-se de um contexto de performance efetiva tal oposio. Scrates,
pois, no parte de e nem advoga um pensamento puro, completo em
si mesmo. O que ele est fazendo inserir, a partir de uma srie atos
atribudos aos rapsodos - atos esses negativamente caracterizados
- um tipo de habilidade que no necessariamente torna um rapsodo
um melhor performer, como Homero foi.
Essa habilidade consiste de um exame atento no contedo das falas,
exame este que, em virtude de nfase em operaes mentais, desligase, afasta-se de habilidades e exigncias que se tornam necessrias
durante o desempenho. justamente a partir da performance que
essa habilidade mental se desenvolve e se singulariza. A abertura de
um espao intelectual entre a hegemonia da cultura da performance
o que consiste o desempenho socrtico. Tanto que em sua realizao, a abertura concretizada a partir do modelo performativo da
tradio relao performer\ audincia.
A dissociao entre contedo das falas e seu desempenho j havia
sido proposto a partir do momento em que a presena, a atualidade
da performance, fora relegada a um segundo plano, seja pela desvalorizao da itinerncia e das conquistas de on, seja pela reduo
da corporeidade do performer a uma pura presena desligada de seu
processo criativo. Ora se, segundo Scrates, no importa aquilo que
aparece, se aquilo que aparece em si mesmo no se sustenta, em
outra direo que se torna necessrio buscar o entendimento do que
est acontecendo. O evento de agora deve ser entendido por outro
fator que no se apresenta perceptvel durante seu acontecer. Na verGDGHHVVHPHVPRDFRQWHFHUHGHVHPSHQKDUTXHGLFXOWDPDSHUcepo de seu fator explicativo. Por isso, preciso romper com o nexo
imediato entre recepo e performance, mover o pensamento daquilo que aparece para algo alm disso, atravessar a apario, tornar o
pensamento independente daquilo que se mostra pelo desempenho.

Teoria da Arte e do Teatro

67

Logo, tal operao, a habilidade de dissociar exame acurado do conWHGRGDVIDODVHSHUIRUPDQFHTXHDRPGDVULHGHDWRV TXH RV
rapsodos executam, deve ser o primeiro, o melhor, o fundamento da
formao do performer.$VULHPHVPRFXOPLQDQHVVDKDELOLGDGHJXrando um afastamento das habilidades em situao de apresentao.
(HVVHDIDVWDPHQWRDTXLVHFRQJXUDFRPRXPDSUHYHQRFRQWUDR
ilusionismo que a prpria performance desencadeia em seu executor.
O executor, imerso nos desempenhos, pode tornar-se apenas algum
que performa, e que no entende, no conhece, no controla o que
faz, nem conhece a si mesmo.
Da o a enftico comando de examinar o pensamento, logo em seguida ao enftico destaque a Homero. Tudo isso consagra a habilidade de abstrair, da multido de acontecimentos e procedimentos,
o melhor, o que mais dista e se afasta da contextura variacional e
hipntica da performance.
$ HVVD UHGXQGDQWH DUPDR GH VXD SUSULD GHQLR GH KDELOLGDde para a excelncia performativa, Scrates justape a seguinte exclamao conclusiva encaixada: isso invejvel! Pela segunda vez,
marcando partes desse mdulo, Scrates insere em sua fala referncia explcita a uma disposio que determinou a sua transformao
de platia de eventos performativos em performer que recusa tais
eventos. O que invejvel nesse segundo momento no o que os
rapsodos fazem, mas sim o que Scrates faz e advoga em frente a
um rapsodo. Tanto que, em seguida, Scrates dirige-se novamente ao
ofcio dos rapsodos para determinar uma condio exclusiva da existncia desse mesmo rapsodo, segundo a habilidade que o ironista
mesmo acabara de defender e invejar.
Todas as noes que Scrates tem trabalhado at aqui encontram seu
esclarecimento em um modelo que justape o melhor e o pior, ou um
movimento que se baseia em restringir a multiplicidade em prol de um
estado separado, consumado e excelente, estado esse fruto de esforos de diferenciao e afastamento. Esse no comum e extraordinrio
no se atinge por meio das prticas desempenhadas pelos rapsodos. O
consumado rapsodo s existe no plano da virtualidade, do condicional.
Assim, Scrates reafirma um conhecimento, uma habilidade que
os rapsodos no possuem, limitando o ofcio e a performance destes. Essa operao fundamental para compreender o alcance da
recusa socrtica da performance. Pois, de qualquer forma, Scra-

68

Curso de Especializao em Teatro Distncia

tes e os rapsodos esto vinculados. na possibilidade de limitar o


alcance da tradio performativa que o desempenho de Scrates
acontece. por ser capaz de condicionar tal tradio a algo que
no a define completamente que Scrates efetiva a abrangncia
de sua atividade. O argumento contra a performance nos coloca
diante da performance como argumento. Logo, Scrates s consegue fazer operar o seu ardor antiperformativo quando pensa
os desempenhos dos rapsodos em termos de condies absolutas
de existncia. S pode haver o rapsodo se e somente se tal e tal
requisito for preenchido. A exclusividade trabalha contra o plural. Mas nos coloca diante da possibilidade ou no de se pensar a
performance. Dentro de seu espao de atuao, a fala de Scrates
modifica-se. Da pardia chegamos ao discurso argumentativo. Os
conectivos coordenativos cedem lugar aos subordinativos. A alternncia entre encaixes de frases e focos personativos substituda
SRUXPIOX[RPDLVFRQWQXRGHDQWHFHGHQWHHFRQVHTHQWH(VVD
rplica interna, que transforma a fala em exibio das habilidades
de exame atento e continuidade do argumento, pode ser vista na
VHTQFLDGHIUDVHVDEHUWDVHFRDQGRFRQMXQHV
Quanto mais avanamos nesse mdulo no qual Scrates se isola de
on e performa suas habilidades, mais se torna perceptvel uma passagem da imagem reduzida do rapsodo para uma outra caracterizao mais prxima do circuito socrtico. A mudana na linguagem
e a sucesso de vocbulos conectados com atividades que exigem
PHQRV VLFLGDGH PDUFD R QRYR FRQWH[WR UHSUHVHQWDFLRQDO 3RUP
mesmo assim, em meio a essa transformao, o que mais digno
de nota o fato que ainda se atribui ao rapsodo tarefa e posicionamento que a ele no se aplicam. Como Scrates havia restringido a
atualidade do rapsodo a uma apario intil e transferido a excelncia desses performers para o repertrio com o qual se familiarizam autores, dentre os quais melhor de todos Homero , nada
mais restou aos rapsodos seno o lugar de intermedirios entre o
repertrio e a audincia. A presena um mdium para outro aconWHFLPHQWR$SHUIRUPDQFHHPVLPHVPDQRVHEDVWD(ODGHQLGD
por outra coisa, que falta. O rapsodo suplementa o entendimento
do repertrio para a audincia. Todavia esse modelo aural aplicado
a Scrates produz distintos efeitos. Ao ironista em situao de mediador conferido, ao invs da restrio, o incremento de suas habilidades. Pois, em suma, tudo consiste em se ater a examinar uma
obra e expor para a audincia esse desempenho, em conhec-la sem
execut-la dentro de sua tradio performativa.

Teoria da Arte e do Teatro

69

Por isso, para Scrates, que inseriu sua modalidade performantivoargumentativas durante o processo de parodia do ofcio dos rapsodos, a audiovisualidade da presena do msico-poeta-performer
DSUHVHQWDGDFRPRGHSHQGHQWHGHRXWUDLQVWQFLDSDUDVHGHQLUR
vesturio, a maquilagem. So as coisas postas sobre o corpo, que encobrem o corpo, que mostram o que o rapsodo faz e no seus gestos,
seus movimentos, sua musicalidade, sua expresso facial, sua destreza em correlacionar o ritmo e as referncias das palavras, entre
outros procedimentos. Porque o rapsodo no transfere explicitamente um saber nem sobre o que performado, nem sobre seu desempenho mesmo. E, desse modo, consegue agir sobre uma audincia
mesmo sem colocar em questo o conhecimento utilizado para efetuar tamanho impacto sobre ela. De forma que contra o ilusionismo,
contra o autofechamento da performance, Scrates estabelece um
PRGHORHXPDKLHUDUTXLDGHQWURGHLQWHUDRDXUDOPHQWHFRQJXUDda, centrando em uma atividade cognitiva predominantemente no
VLFL]DGD R IXQGDPHQWR GH WRGR R SURFHVVR $VVLP R FRQKHFLPHQto do contedo no atualizado em performance da obra dos poetas
deve ser apreendido em toda sua extenso pelo rapsodo. E, aps o
tempo envolvido nesse esforo cognoscente, tal conhecimento deve
ser disponibilizado para a audincia.
A partir do modelo socrtico, vrias oposies entre os membros
do interao so efetivadas. Em um primeiro momento, podemos
notar como rapsodo\poetas se encontram dissociados e hierarquizados. O foco da atividade do rapsodo uma ao voltada para os
poetas. Inversamente, h um hiato entre ouvintes\poeta, de forma
a no haver contato entre eles a no ser pela mediao do rapsodo. Assim, simetricamente, rapsodo e ouvintes ocupam extremos
pontos desse circuito, sempre mantendo uma incompletude frente ao conjunto que os rene. Enfim, a oposio rapsodo\ouvintes
retoma a primeira oposio e a hierarquia que os correlaciona. Em
todos os casos, presente ou ausente, o rapsodo determinado,
circunscrito, confinado.
Contudo, para Scrates o modelo coloca o ironista no centro de convergncia da tradio e da plis. No h Scrates sem interlocutores e um
mundo a ser pensado em seus nexos. De maneira que podemos conFOXLUTXHHVVHPRGHORWHPDSOLFDHVHFRQVHTQFLDVGLYHUVDVSRUTXH
seu pressuposto socrtico, advm do exame atento das condies
dos acontecimentos, e no do acontecimento em sua efetividade.

70

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Concluindo a srie de atribuies ao rapsodo mais auto-aplicveis a


Scrates, o ironista retoma e refora as coisas ditas por meio de uma
hiprbole negativa: e impossvel fazer bem isso quando no se conhece o que poeta diz. Como vimos, as hiprboles tm sido utilizadas
por Scrates para expor a distncia intelectual entre ele e seu interlocutor, pois, nos contextos em que foram proferidas, tornavam sonora
sua aplicabilidade imediata. Nesse caso mais gritante ainda porque
6FUDWHVDOPGHULGLFXODUL]DUDFLQWRVDPHQWHRRFLRGHUDSVRGRGLDQte de um rapsodo excelente, vencedor, Scrates mesmo vestiu-se de
rapsodo e contra o ofcio performou um elogio das habilidades daquele que foi capaz de ridicularizar sem ser percebido. Em meio a esses
mirabolantes disfarces, Scrates, mascarado e difcil de ser controlado,
DUPDTXHTXHPQRHQWHQGHRTXHGLWRQXQFDVHUXPERPUDSVRdo. A comicidade da situao est em dizer a mesma coisa e reforar a
mesma situao em meio a variaes de focos e referncias. Fecha-se
o cerco a on, quando Scrates insistentemente apela para o entendimento como base de tudo, e o rapsodo de agora no se v capaz de
juntar a voz que fala com o saber que se elogia e se requer.
Novamente, o fazer bem, a excelncia, passa por um encontro, uma
prova, uma disputa com Scrates, que se colocou no centro dessa arena e dela no arreda o p. Ao dever saber de antes, temos a ignorncia de agora. Entre um e outro extremo, a mudana de status entre
on e Scrates. O rapsodo passa ento a ouvir o que Scrates assinala.
Assumindo essa centralidade, o ironista encerra o mdulo com a
reafirmao da mesma disposio que abriu seu bloco de fala: realmente tudo isso digno de ser invejado. Se acompanharmos os
momentos em que o ardor competitivo de Scrates enunciado e
o correlacionarmos com a performance de Scrates diante de on,
podemos perceber que a repetio da referncia a essa disposio
um suporte para as viragens, as transformaes que ocorrem no
transcurso da fala. Assim como as sries, as cadeias hierarquizadoras, as hiprboles, Scrates utilizasse de repeties para organizar
a sua performance. E, como se pode bem observar pelo contexto
do desempenho, as sries e ordens e repeties no pertencem
somente a uma instncia exclusiva do pensamento, mas interagem com e se esclarecem a partir da atividade mesma de se propor uma situao de contato. Tudo tem de adquirir sua eficcia in
situ, durante a ocasio mesma em que so efetivados os vnculos e
as transformaes interindividuais.

Teoria da Arte e do Teatro

71

A tentativa do Ironista em descaracterizar seu oponente e, ao mesmo


tempo, de distinguir as performances, acaba por se reverter contra
seu prprio articulador. O desproporcional embate entre o calado on
e o falante Scrates aponta para as razes daquilo que se quer negar
com tanta nfase. Por que Scrates empreende desmesurado esforo
HPVLPSOLFDUEDQDOL]DUULGLFXODUL]DUWDORIFLR"
Examinando com ateno os procedimentos de Scrates notamos
que ele trabalha com: a- transitividade de focos e papis, ocasionando fuses, inverses, impessoalidades que manipulam os posicionaPHQWRVWDQWRGRHQXQFLDGRUTXDQWRGDDXGLQFLDEPRGLFDRGRV
QH[RVGRVHQXQFLDGRVGRULWPRIUDVDORTXHH[LELOL]DDVIURQWHLUDV
entre tradies performativas cmicas e no cmicas, ao mesmo tempo em que possibilita a apropriao e presena de falas e vozes de
variados contextos; c- esquemas e apoios performativos, tais como
UHSHWLHVHVHTQFLDVGHPRGRDVHUYLUFRPRVXSRUWHVHH[SHFWDtivas para o performer e para a audincia d- contextura observacional
da audincia que atravessa o transcurso do desempenho.
Se continuarmos a examinar a performance socrtica, veremos os componentes da descrio que o ironista empresta do ofcio dos rapsodos preparao da performance e sua execuo - tambm se aplicarem a Scrates.
Pois o improviso de Scrates diante de seu atnito interlocutor constituindo de recursos previamente estudados hiprboles, sries, repeties,
que so utilizados em performance. A performance de Scrates diante de
on efetiva-se em funo da interao do momento enunciativo com esse
conjunto de procedimentos de modelao de desempenho.
Acima de tudo, o dilogo socrtico no se consuma ou conforma na
tematizao em torno de um conhecimento ou assunto em si mesmos, independentes de seu contexto de execuo. Scrates age sobre
um auditrio e, para tanto, na atualidade e premncia dessa ao,
explicita os expedientes de seu ofcio.
$R P R VDEHU HVVH H[HUFFLR FRQVWDQWH GH DWHQR VREUH R TXH R
poeta diz, um saber sobre a performance, sobre operacionalidade
dos procedimentos colocados em cena para produo de determinados efeitos. isso que Scrates exige de seu interlocutor, agindo por
meio de tantas mscaras e improvisos. Se voc quer ser um performer consumado, excelente, basta compreender o que um performer
consumado faz. Se no, ocupe o lugar de platia. Essa transmisso
de conhecimento durante a observao das prticas vlida tanto

72

Curso de Especializao em Teatro Distncia

para tradies performativas quanto para o crculo socrtico. Mas


Scrates esfora-se em distinguir as modalidades assemelhadas e
GHVTXDOLFDURUDSVRGR$RPGRPGXORDLQYHMDPXGRXGHREMHWR
Desejvel e digno de louvor e admirao o que Scrates faz.
Assim, temos:
5. o modelo socrtico de excelncia no se aplica em toda sua exWHQVRDRRFLRTXHWUDEDOKDFRPVLFLGDGHV
6. a limitao do modelo socrtico nos remete para particularidades insubstituveis das performances de Scrates e on, relaFLRQDGDVFRPVXDVHVSHFFDVSUWLFDVHKDELOLGDGHVHIHWLYDGDV
durante desempenhos.
7. PHVPR GLDQWH GHVVDV HVSHFLFLGDGHV DV SHUIRUPDQFHV SDUWLlham de habilidades de interao tais que a limitao do modelo socrtico pode ser remetida at para o prprio desempenho
GRLURQLVWDIUHQWHDRXVRGHUHFXUVRVJXUDWLYRVWDLVFRPRHxibilidade de foco e impessoalidade;
8. esse partilha consagra a amplitude e plasticidade da tradio
GDFXOWXUDSHUIRUPDWLYDKHOQLFDFRPRHQJOREDQWHHGHQLGRra at mesmo de performances antiperformativas. Em situao
performativa, tudo ganha a dimenso de evento. O que se diz
se esclarece em funo do que est acontecendo. E o recurso
socrtico a uma instncia maior, outra que a atualidade da performance, na verdade acaba por incrementar a performance
mesma de Scrates e seus efeitos.
Logo, a argumentao, o exerccio verbal-cognitivo determinado
pelo horizonte do desempenho. Aquilo que dito, aquilo que feito,
as escolhas, os recursos, as habilidades tudo se encaminha para
o embate entre os interlocutores. Mesmo que os pressupostos, programas possam ser formulados e discutidos independentemente de
uma situao de contato e interao, no embate, no dilogo, que
HVVHV SURFHGLPHQWRV GLVFXUVLYRV H LQWHOHFWXDLV JDQKDP VXD MXVWLcativa e seu esclarecimento em funo da moldura representacional
que os rene, distribui e escolhe. Da a unilateralidade da premissa
dominante do programa socrtico - o rapsodo no sabe o que faz e
naquilo que faz no h saber pode ser mais bem contextualizada. Assim como esse programa no se explica em si mesmo, mas se
aplica e pode ser discutido e analisado a partir da totalidade do di-

Teoria da Arte e do Teatro

73

ORJRGRPHVPRPRGRDFDULFDWXUDGHRQQHPUDWLFDDSURSRVLR
socrtica nem muito menos se remete ao mero confronto entre os
interlocutores. O que se torna necessrio no desperdiar a oporWXQLGDGHQDTXDOVHDSOLFDWUDGLRXPUDGLFDODWRUHH[LYRTXH
GLYHUVLFDGRHSUREOHPDWL]DGRSHODVDSURSULDHVHDWRVUHFHSWLYRV
dos membros do dilogo. Dessa forma, o rapsodo que quer continuar a embelezar, chegando at aos pensamentos, e um ironista que
quer ridicularizar, mas que se veste com as vestes daquele a quem se
imputa descrdito, faculta-nos uma prodigiosa ocasio para ir alm
da inalterabilidade de atividades cognitivas, e ver como a situao de
representao mesma no s altera pressuposies como tambm
VHGHQHHPIXQRGHVVDVVLJQLFDWLYDVPRGLFDHVHPWXGRTXH
vem cena. Para alm de nossa monomania racional, o dilogo on
coloca a nossa disposio um espetculo onde vrias habilidades so
H[SRVWDVHHQIDWL]DGDV$WSLFDGDMXVWLFDRUDFLRQDOGRUDSVRGR
d lugar amplitude dos atos performativos.

BIBLIOGRAFIA
BREMER, J. Platos Ion. Philosophy as Performance. Bibal Press, 2005.
LORD, A . The Singer of Tales+DUYDUG8QLYHUVLW\3UHVV
MILLER, A. Platos Ion.%U\Q0DZU
MURRAY, P. Plato on Poetry&DPEULGJH8QLYHUVLW\3UHVV
NAGY, G. Platos Rhapsody and Homers Music +DUYDUG 8QLYHUVLW\
Press,2002.

74

Curso de Especializao em Teatro Distncia

ESCRITO EM 1999. TEXTO


PARCIALMENTE PUBLICADO
COMO DRAMATURGIA FLMICA,
COMUNICAO APRESENTADA
IV REUNIO CIENTFICA DA
ABRACE, 2007, BELO HORIZONTE.
AGORA PARTE INTEGRANTE DE
MEU LIVRO RUMO AO DRAMA, EM
PUBLICAO PELA EDITORA UNB.

APROXIMAES
A UMA
DRAMATURGIA
FLMICA A
PARTIR DO CASO
EISENSTEIN

10

10.1
Essa pureza recalcitrante cria
as ambivalentes definies de
extra-cinematogrfico, atravs
das quais o monoplio tcnico
de produo de filmes exclui
uma dimenso composicional
mais integral. O argumento
da pureza da linguagem cinematrogrfica, ao fim, aplica-se
a questes no estticas. Em
razo disso, a aproximao de
obras cinematrogrficas a outras estticas e processos criativos questiona este purismo e
sua exclusividade narrativa.
Para maior agilidade da leitura,
uso as notas referncia bibliogrfica e siglas seguidas do nmero da pgina. Refiro-me aqui
ao livro O cinema (So Paulo,
Brasiliense, 1991) pela sigla OC..

TEATRO
CINEMATOGRFICO

Em 1951, no ensaio Teatro e cinema, Andr Bazin, refutando


D SXUH]D GD OLQJXDJHP FLQHPDWRJUILFD FLQHPD SXUR  H R SUHconceito contra o teatro filmado , prope que se reconsidere
a histria do cinema, no mais em funo dos ttulos e sim das
estruturas dramticas do roteiro e da mise-en-scne. 2&  O
sucesso das adaptaes de obras teatrais para a tela realizadas
por Laurence Olivier ( Hamlet 2UVRQ:HOOHV Macbeth-Reinado de
sangue H:LOOLDQ:\OHU Prfida HQWUHRXWURVH[SXQKDQRVD
fragilidade do apagamento e ocultao do suporte teatral operado pela narrativa cinematogrfica clssica. Exibia, passava para a
tela, a teatralidade do drama, de forma a evidenciar que o tema
da adaptao no o da pea, a prpria pea em sua especificiGDGHFQLFD 2& 
Essa interferncia da teatralidade chama a ateno para os suportes dramticos da linguagem flmica, para aquilo que no deve ser
exposto: a heterogeneidade do cinemtico e sua dependncia a
uma situao extracinematogrfica. As convenes flmicas so
desnudadas pela exorbitncia da teatralidade. O drama a caixapreta do filme.
No mesmo ensaio, ao procurar reorientar mais reflexivamente as
difceis relaes entre teatro e cinema para uma conexo mais
produtiva e reflexiva, Bazin formula trs tempos-situaes dessa
problemtica histria :

10.1.1 MOMENTO 1
Resumido na rubrica o teatro acode o cinema, postula que a tradio multissecular do texto teatral pode enriquecer intelectualmente os roteiristas. Provocativamente, quanto mais o cinema se
SURSRUSRUVHUHODRWH[WRHVVXDVH[LJQFLDVWHDWUDLVPDLVQHFHVVDULDPHQWHDSURIXQGDVXDOLQJXDJHP 2& 

76

Curso de Especializao em Teatro Distncia

10.1.2 MOMENTO 2
Ssob a rubrica O cinema salvar o teatro, Bazin argumenta que,
por meio da explorao da teatralidade operada pelo cinema em escalas massivas, renova-se a concepo de mise-en-scne teatral. O
teatro v-se confrontado com suas origens populares, repensando o
divrcio entre palco e pblico;

10.1.3 MOMENTO 3
$UXEULFDGRWHDWUROPDGRDRWHDWURFLQHPDWRJUFRQDOPHQWH
aparece como uma sntese onde a cinemtica correlacionada a uma
teatralidade proporciona a emergncia de uma performance desse
tempo, uma mise-en-scne contempornea. Mais que mdias diferentes, Bazin aponta para uma forma de espetculo integral que rompa com a oposio entre teatro e cinema. Modernidade e tradio se
conjugam nessa mise-en-scne contempornea na qual o dispositivo
flmico modelado por suportes teatrais.
0DVRTXHHVVHWHDWURFLQHPDWRJUFR"$FRPSRQHQWHFQLFDGHVVHWHDWURFLQHPDWRJUFRUHVWULQJHVHDRTXH%D]LQFKDPDGHYLUWXDOLGDGHVHVWUXWXUDV FQLFDV 2&   2 HVSHWFXOR SRUP  GD
competncia da componente flmica. O foco de anlise de Bazin o
TXHVHSRGHFKDPDUOPHGHDUWH2FLQHPDFRPRDUWHGLYLVDGRQD
incorporao de tradies representacionais histricas como pintura
e teatro. PARA CONTRIBUIR COM O TEXTO DO FILME QUE A INCORPORAO DA TRADIO TEATRAL REIVINDICADA. O TEATRO CINEMATOGRFICO DE BAZIN UM CINEMA CUJO ROTEIRO DIGNIFICADO
COM VIRTUALIDADES CNICAS.
Correlativamente, o teatro visto pelas lentes de Bazin como teatro
literrio, no qual h a primazia do texto sobre o espetculo. O idealismo esttico desta postura, contrria mesmo renovao contempornea da linguagem para a cena, deixa em aberto a concretizao do
WHDWURFLQHPDWRJUFRQRTXDODFRPSRQHQWHFQLFDXPDHYLGQcia no discutida.

Concepo monumentalizante do teatro que, a partir de


leituras da Potica, de Aristteles, defende a subordinao
do espetculo ao texto, como
ilustrao do texto. A partir
das obras de Corneille e Racine
at o Naturalismo,tal concepo determinou um estilo de
interpretar e construir obras,
formando um pblico atento
convencionalidade de uma
representao teatral grandiloqente e verborrgica. Virou
alvo critico bsico do contexto reativo das vanguardas teatrais. Para uma apresentao
crtica de seus procedimentos
consulte-se meu livro Imaginao Dramtica (Braslia,
to&imagem,1998:160-188).

Mesmo assim, as relaes entre texto, teatro e cinema comparecem


como elementos para uma futura coordenao mais esclarecedora.

Teoria da Arte e do Teatro

77

10.2
O caso Eisenstein foi sugerido
por uma releitura da dissertao de mestrado de Maria
Maia (UnB 1998) A escritura
flmica dramaturgia do enredo
e dramaturgia da forma. Segundo ela, retomando como
modelo as mudanas de foco
nos ensaios de Eisenstein, o
filme nasce do conflito entre
os elementos constitutivos
plano/montagem e argumento ou enredo. Uma linguagem
especfica interagindo com
uma narratividade especfica
marcam a textualidade flmica.
Em minhas consideraes, porm, ressalto um fator extracinematogrfico mais efetivo,
pouco comentado e anterior
narratividade: a dramatizao,
concentrando-me em problemas de composio ao invs
da analogia lngua/filme.

V. primeira parte deste livro.


Com a divulgao de documentos, sabemos que a questo dos atos fsicos em Stanislavski fora ampliada. No
entanto, a questo decisiva
ainda reside no ponto de partida e na nfase de orientao
de um processo criativo.

Sigo aqui em profuso o livro


de Alma La e Mel Gordona
Meyerhold, Eisenstein and Biomechanics (Londres, Mcfarland
Company, 1998) no s pela
riqueza de informaes,como
tambm pelos textos sobre a
biomecnica traduzidos do
original russo, texto de discpulos de Meyerhold e textos
pouco conhecidos da obra de
Eisenstein. Dou-lhe a sigla
MEB.

78

O CASO EISENSTEIN

Coube a um homem de teatro e posteriormente cineasta e terico do cinema interrogar mais detidamente estes elementos. As difceis relaes
HQWUHFLQHPDHWHDWURRFXSDUDPQRVDDUWHFRPRWDPEPDELRJUDD
de S.Eisenstein. Antes de se notabilizar como cineasta, no s foi aluno de
XPGRVUHQRYDGRUHVGDVDUWHVGHFHQD 90H\HUKROG FRPRWDPEPGLrigiu e encenou peas experimentais. Um detido exame de sua passagem
GDFHQDSDUDDWHODHTXDQGRGDHPHUJQFLDGROPHVRQRURXPUHWRUno ao drama, pode nos auxiliar na superao do idealismo esttico que
HORJLDDFRPSRQHQWHWHDWUDOGDDWLYLGDGHFLQHPDWRJUFDPDVFRQWXGR
no efetivamente determina o contexto de produo dessa componente.
O teatro para Eisenstein surge no contexto de renovao da linguagem para a cena teatral que a tradio antinaturalista (e antimimtiFD PRGHUQDHPSUHHQGHX2GHEDWHHQWUH&RQVWDQWLQ6WDQLVODYVNLH
VHXDOXQR9HVHYRORG0H\HUKROGVLWXDQD5VVLDHVWDWUDGLRGHUXStura. Eles divergiam, principalmente, quanto preparao de atores.
6WDQLVODYVNLUHDJLQGRFRQWUDDIDOWDGHSURVVLRQDOLVPRH FRQV FLQcia dos atores de seu tempo, procurou desenvolver um conjunto de
princpios para a atuao, atravs do qual os pensamentos e as emoHVGRLQWUSUHWHDGTXLULDPXPDFRHUQFLDHOLQGLYLGXDOLGDGHGH
uma personagem criado por um autor. Centrado na anlise do texto
e no isolamento da personagem frente ao pblico - reao contra s
concesses do teatro comercial das companhias- , este conjunto de
princpios parecia, em um primeiro momento, dar menor ateno
exteriorizao da aes. A preparao intelectual do ator e a internalizao de uma imagem textual eram mais focalizados .
0H\HUKROG, diferentemente, orienta-se para pensar e produzir aes
fsicas. Ele parte das aes fsicas para estruturar a representao.
Esta inverso uma verdadeira subverso no s na preparao de
atores como na construo do espetculo. Coloca-se em evidncia o
contexto realizacional da performance cnica. Ao invs de o espetculo ser um veculo para comunicar idias do autor, a exposio
um acontecimento fsico sujeito materialidade de sua efetivao.
A audincia um fato fsico concreto inerente a essa exposio. A
observncia de um espetculo a interao com os movimentos no
espao realizados por corpos expressivos.

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Dessa maneira, preciso reduzir a distncia entre palco e platia,


dinamizar formas de espao cnico (espaos simultneos e focos
POWLSORV HH[SORUDUDWULGLPHQVLRQDOLGDGHGRFRUSRKXPDQRHP
VLWXDRGHUHSUHVHQWDR 0(% 
0H\HUKROGLQWHJURXWRGDVHVVDVDWLYLGDGHVHPXPHVWLORLQWHUSUHWDtivo chamado Biomecnica. A preparao fsica do ator, atravs do
conhecimento do corpo e da explorao de suas possibilidades expressivas, determinou a perda de uma absoluta autoimagem do ator
FRPR KRUL]RQWH GH FRHVR GD DWXDR 0(%   $R LQYV GH LQWHUnalizar essa imagem, ele deve aprender tornar factveis movimentos
expressivos. Agora ele se confronta com a continuidade material de
um auditrio. Dessa maneira, todas suas exteriorizaes devem presVXSRUHVVDFRQWLQJQFLDUHFHSWLYD2FRUSRLQWHLUR 0(% HPVXD
muscular presena observado. Por isso, preciso que o movimento
seja expressivo, com uma preciso capaz de predizer e gerar audincia, atraes.

Atraes no sentido de efeito


sobre a platia atravs do movimento fsico de espetculos
tais como circo, boxe, music
hall, acrobacia, teatro chins,
paradas militares foi o que
Meyerhold pensou e Eisenstein aplicou ao cinema em seu
famoso artigo Montagem de
atraes de 1924.

Aqui est o ponto-origem das produes flmicas e tericas de Eisenstein: uma dramaturgia que singulariza a experincia de observncia produzida por procedimentos que exploram essa experincia.
A representao no a atualizao de uma idia sem o contexto
material de sua realizao. Na prpria representao este contexto
explorado. O que mostrado no a reproduo de uma realidade,
mas a exibio de uma analtica tempo-espacial, que torna factvel a
compreenso do que se observa.
Ao basear a representao em aspectos fsicizados e materiais a Biomecnica forneceu para Eisenstein o embasamento de um mtodo
HVSHFFRGHSURGX]LULPDJHQVTXHDJHPVREUHRHVSHFWDGRU$RUganizao do movimento - explorada no rendimento de seu efeito
- exibida em cena fornece os parmetros pelos quais o observador
coopera em sua observncia do o espetculo.
Dessa forma, o que antes pareceria um contra-senso, em um teatro
onde s se comunicam idias, um teatro de cabeas falantes, agora
fundamenta o espetculo: precisamente o movimento expressivo,
construdo sobre um fundamento orgnico correto que capaz de
orientar a recepo. O espectador atrado pela forma do movimento
executado diante dele. H uma complexa mmesis na qual os movimentos expressivos exibidos atravs do apelo muscular dos moviPHQWRVGRDWRUVRUHHODERUDGRVSHODDXGLQFLD 0(% 

Movimento expressivo um
conceito-sntese da Biomecnica. A decomposio dos
movimentos e sua conexo
entre eles como forma de agir
sobre o espectador amplifica
em termos corporais o que Eisenstein pensa sobre a montagem.

Teoria da Arte e do Teatro

79

Com o cinema, o forte contexto antimimtico vanguardista da Biomecnica e o controle da representao visual poderiam melhor ser efetiYDGRV&LQHPDDQWHVGHWXGRSDUD(LVHQVWHLQXPDFRH[SORUDWULD
que, por meio da integrao das contingncias espao-temporais, posVLELOLWDRHVWXGRHDJXUDRGHLPDJHQVTXHRWHDWUROLPLWDYD
De A forma do filme ( Rio de
Janeiro, Zahar, 1990). Sigla FF
Basta ver que em 1939 sobre
esta poca Eisenstein afirma eu
estava crescendo, saindo do teatro para o cinema(FF 168).Em
1928 mesmo ele proclama que
estou convencido que o cinema
o nvel de hoje do teatro. De
que o teatro em sua forma mais
antiga morreu e continua a existir apenas por inrcia(FF 33)

$ FRQWUDSRVLR HQWUH R WHDWUDO H R FLQHPDWRJUFR VH WRUQD PDLV


visvel a partir do momento em que a realidade representada no se
afasta da faticidade material da realidade no representada. Este o
esprito de seu ensaio Do teatro ao cinema, uma variao do Mito
ao logos. O ttulo reivindica um trajeto que assinala certa ultrapassagem , uma medida valorao evolutiva, uma defasagem entre incio
HPGHSHUFXUVR
No teatro, a impossibilidade da mise-en-scne se desenrolar pela platia, fundido palco e platia em um padro em desenvolvimento(FF
 VXDJHRPHWULDFRQYHQFLRQDOGHMXVWDSRUPRYLPHQWRVHPFRQWLJXLGDGHUHGXQGDUDPHPXPDKLSHUWURDGDUHSUHVHQWDR+XPD
impossibilidade fsica do teatro em coordenar os movimentos disjuntivos que se mostrem em uma unidade que supere seu localismo. As
tentativas plsticas (eliminao de painis pintados, utilizao de
objetos cnicos, movimentos corporais, msica, superposio de imaJHQVSURMHWDGDVHDWRUHV GHVXSHUDUHVVDOLPLWDRGDPDWHULDOLGDGH OLPLWDRIUDJUDQWHSHODLPDJHPFLQHPDWRJUFD GHYROYHPWDO
LPSRVVLELOLGDGHUHSUHVHQWDFLRQDO$OLQHDULGDGHVHTHQFLDOGRTXHVH
expe em cena no tem o aprofundamento de detalhe e estrutura
que o plano e suas transies flmicos facultam.
Ento preciso ao invs de uma mise-en- scne, uma mise-en-cadre,
isto , composio pictrica de cadres SODQRV PXWXDPHQWHGHSHQGHQWHVQDVHTQFLDGDPRQWDJHP )) 
O convencionalismo do teatro dominante, avesso aos requisitos tcQLFRVGDPDWHULDOLGDGHFQLFDHODERUDXPDUHDOLGDGHDUWLFLRVDTXH
refutada pela montagem flmica. A montagem possibilita o registro
e exposio de escalas apropriadas para o que enfatizado, tornando
a descrio no proporcional de um movimento um evento organicamente efetivo. Dessa maneira ao desbastar pedaos da realidade
FRP R PDFKDGR GD OHQWH ))   R FLQHPD RSHUD XPD LQWHUYHQR
que explicita seu modus operandiGHPRQVWUDHPRVWUDDUHJXUDR
dos materiais que exibe.

80

Curso de Especializao em Teatro Distncia

As imagens em movimentos do cinema, como uma Biomecnica flPLFDSURYLGHQFLDPXPDFRPSRVLR HVTXHPDJUFR TXHRULHQWD


DUHFHSR HPRHVUD]HVGRHVSHFWDGRU 4XDQWRPDLVKRXYHUXP
rigoroso sistema de relaes na composio maior ser o impacto sobre a recepo.
v QR HQVDLR 'UDPDWXUJLD GD IRUPD GR OPH   TXH R SRVLFLRnamento de Eisenstein quanto superao do teatral encontra-se
fundamentada. Ele j havia realizado duas grandes obras cinematoJUFDV^O encouraado Potemkin  HOutubro  `TXHVHUYLUDP FRPR H[SHULPHQWRV FRQUPDGRUHV GDV SRVWXUDV TXH GHIHQGLD
O ttulo mesmo postula no uma dramaturgia relacionada com uma
situao de observncia teatral e sua concretizao tempo-espacial,
mas a incidncia de ateno sobre obteno de um espetculo visualmusical. A concretude material dentro do plano em suas disposies
e reapropriaes pela montagem geram orientaes associativas
atravs das quais se pode esperar encontrar uma dramaturgia da
IRUPDYLVXDOGROPHWRUHJXODGDHSUHFLVDTXDQGRDH[LVWHQWHGUDPDWXUJLDGRDUJXPHQWRGROPH )) $VLQWD[HYLVXDOSUHYDOHFH
sobre a semntica . A dramaturgia aqui o planejamento do modo
HFLHQWH GH FRPELQDU GLIHUHQWHV H[WHQVHV GH SODQRV H DV WHQVHV
GHFRUUHQWHVFRPRIRUPDGHLPSDFWDUDDXGLQFLDID]HQGRDLGHQWLFDURVFRQLWRVGRVPDWHULDLVH[SRVWRVFRPRDWXDOL]DHVDYDOLDWLYDV
GRVFRQLWRVTXHVRFRQFHSWXDOL]DGRVQRUHIHUHQWHGRVPDWHULDLV
O processo mecnico e tcnico da montagem se transforma em princpio
construtivo. Planos independentes e at opostos colidem e, quando previamente arranjados e planejados, destinam seu confronto para a garanWLDGDKRPRJHQHLGDGHGRUHSUHVHQWDGR3RULVVRSDUDPDLRUHFLQFLD
do processo de montagem, preciso uma metodologia da forma desprovida de referncia ao contedo ou enredo. Mas a dramaturgia da forma
GROPHFRQWLQXDDSDJDUGLYLGHQGRVSDUDIDWRUHVWHDWUDLV
Eisenstein foi perceber, depois, que somente o design GROPHQR
HUDVXFLHQWHSDUDXPDH[SHULQFLDFLQHPDWRJUFDFRPSOHWD$WHoria do cinema intelectual, que transforma conceito abstrato em forma visvel na tela revelava haver uma descontinuidade entre idia e
YLVXDOLGDGH$VXEVWLWXLRH[DXVWLYDGRFRQWHGR )) H[LELDVHX
VXFHVVRHPXPDHFLQFLDUHGXWRUD$YLVXDOLGDGHQRXPDHYLGQcia, mas o registro de uma situao observacional. As imagens fazem
ver quem as observa. Surge ento a questo de se retratar uma atiWXGHHPUHODRFRLVDUHWUDWDGD )) 

Essa centralidade da montagem, explicitando sua motivao reativa prticas representacionais


mimticas,
abunda no exerccio especulativo de diferenciar modalidades de montagem, como se v
no artigo de 1929 Mtodos
de montagem (FF 77-84),
no qual temos a definio
de montagens mtrica, rtmica, tonal, atonal e intelectual.
Tudo agora montagem, mas
em diferentes nveis qualitativos de sua utilizao.

Teoria da Arte e do Teatro

81

Tal viragem tornou-se mais palpvel inicialmente quando de suas


DWLYLGDGHVGLGWLFDVQR,QVWLWXWR(VWDWDOGH&LQHPDWRJUDD  (P
XPFXUVRQHVVHPHVPRDQR(LVHQVWHLQDUPDTXHFRQVWUXLUDFLQHPDWRJUDDDSDUWLUGDLGLDGHFLQHPDWRJUDDHGHSULQFSLRVDEVWUDWRV
brbaro e estpido. Apenas atravs da comparao crtica com as formas primitivas bsicas do espetculo possvel dominar criticamente
DPHWRGRORJLDHVSHFFDGRFLQHPD )) $LQGDSHQVDQGRHPWHUPRVGHXPDGLIHUHQDWFQLFD IRUPDVSULPLWLYDV KHVLWDRTXHSRsiciona a perspectiva e a valorao do cineasta - Eisenstein reinsere o
estudo do teatro como algo inseparvel do estudo do cinema.

HERINGTON 1985

Em 1926 Eisenstein, em um
manifesto conjunto com V.I
Pudovkin e G.V.Alexandrov a
respeito do futuro do cinema
sonoro, argumentava que a
utilizao do som uma faca
de dois gumes pois poderia,
ao invs de melhoria na representao, causar inrcia
composicional e recepcional.
Advoga a no sincronizao
do som e das imagens. Claro
se v nessa recusa o no emparelhamento do cinemtico
com o dramtico em funo
da palavra e suas articulaes
em cena. Pudovkin (Argumento e realizao, Lisboa, Editora
Arcadia 1961- sigla AR) temia
que o filme sonoro fosse uma
variedade fotogrfica de peas
teatrais e bradava que nunca
deveria mostrar o homem e
reproduzir ao mesmo tempo
sua fala exatamente sincronizada com o mover de seus
lbios(AR 196). 5

(VWDUHLQVHURGRWHDWURDOLQKDVHFRPDHVFULWXUDFLQHPDWRJUFD
O elemento no flmico requisitado para a expanso do flmico. A
OXWDSHODDOWDTXDOLGDGHGDFXOWXUDGROPHSDVVDSHODTXHVWROLWHUULDGDHVFULWXUDFLQHPDWRJUFDDRVHLQFRUSRUDUHVXSHUDUDWUDGLR
de textualidade artstica existente. O cinema transparece como uma
mquina transformadora de tradies artsticas, como a tragdia
grega o fora 2500 anos atrs.
Eisenstein v nessa mudana um desvio e uma correo de percurso
no qual a forma no negada, e sim realada com o aprofundamento
e ampliao das formulaes temticas e ideolgicas que as quesWHVGHFRQWHGRWUD]HPDRFLQHPD )) $JRUDRRUJQLFRHR
pattico interligados podem fornecer a possibilidade da total apreenso de todo o mundo interior do homem, da reproduo total do
PXQGRH[WHULRU )) 
$PXGDQDVHLQWHQVLFDDLQGDPDLVFRPRDGYHQWRGRFLQHPDVRnoro. Eisenstein, que havia sido pioneiro no cinema mudo, hesitou
GLDQWHGDQRYLGDGH6HXSULPHLUROPHVRQRUR$OH[DQGUH1LHYVNL
de 1938. Sua dvida residia em como coordenar som e imagem produtivamente. Perguntava-se se nessa modalidade de composio:
RTXHYRFYTXDQWRHVWRXYLQGRQRPHUHFHDWHQR" )) 
- preocupao inerente a quem tinha mtodos estritamente formais,
TXDQGRWRGDH[SOLFDRWHPXPDMXVWLFDWLYDWFQLFD
A sincronizao e igualdade rtmica entre som e movimento representados se oferecem no s como problema compositivo-tcnico,
como tambm aproximao da atividade cognitiva da obra. Com a
complexidade de nveis da realizao flmica - agora no s ver, e
sim avaliar vendo e ouvindo avaliaes - mobiliza-se a inteligibilidade
GHVVDFRPSOH[DHVWUDWLFDR2inter-relacionamento criativo das

82

Curso de Especializao em Teatro Distncia

bandas sonoras e visuais a proposio de sua prpria compreenVR6HQRVXFLHQWHDSHQDVYHUalgo tem de acontecer com a
representao, algo mais tem de ser feito com ela, antes que deixe de
VHUSHUFHELGDFRPRDSHQDVXPDVLPSOHVJXUDJHRPWULFD 6) 
coloca-se em questo a imagem total da obra e sua receptibilidade.
SUHFLVRTXHROPHVHUHYHOHFRPRFRQVWUXRGLDQWHGRHVSHFWDGRU
6) 

Conf. O sentido do filme (Rio


de Janeiro, Zahar , 1990) Sigla SF.

o que acontece no por uma justaposio mecnica de nveis, mas


quando tudo plenamente desenvolvido e resolvido em um avano
simultneo de uma srie mltiplas de linhas, cada qual mantendo um
curso de composio independente e cada qual contribuindo para o
FXUVRGHFRPSRVLRGDVHTQFLD 6) (VVHPRYLPHQWRHPGLreo a uma totalidade integrada traa a trajetria de movimentos
futuros, gerando a atratividade do espectador, o qual experimenta o
SURFHVVRGLQPLFRGRVXUJLPHQWRHUHXQLRGDLPDJHP 6) 
Ao invs de ser oferecido ao espectador o que Eisenstein chama de
distoro de nossa poca, - possibilidades de justaposio e no
anlise do material justaposto, imprescindvel a necessidade da
exposio coerente e orgnica do tema, do material, da trama, da
DRGRPRYLPHQWRLQWHUQRGDVHTQFLDFLQHPDWRJUFDHGHVXD
DRGUDPWLFDFRPRXPWRGR 6) 
Contudo, a correo de percurso transformada em nova recusa. J
em 1939 esta sntese e totalizao do cinema contraposta s limitaes das artes como a pintura, escultura, literatura, msica e, claro,
teatro. Sobre esta ltima, como no poderia deixar de ser, Eisenstein
mais incisivo. Aps se congratular com a riqueza da representao
DXGLRYLVXDOTXHRFLQHPDSURSRUFLRQDDJRUDPDLVHFD]DWUDYVGD
QDUUDWLYDHOHDUPDTXHHVVDULTXH]DQRSDUDRWHDWURHVWHXP
nvel acima de suas possibilidades. E quando quer superar os limites
dessas possibilidades, no menos do que a literatura, tem de pagar o
preo de suas qualidades naturais e realistas.... Que entulho de antirealismo o teatro inevitavelmente despeja no momento em que se
HVWDEHOHFHPHWDVVLQWWLFDV 6) 2WHDWURSDUDDPSOLDUVXDUHpresentao, desmaterializa-se, explicitando nesse movimento seu
prprio suporte fsico negado. O anti-realismo, pensado como expanso da linguagem de cena, converte-se na reduo de sua atividade
representacional.

Nesse sentido tambm o fracasso, fracasso formal, de


D.W.Griffth em Intolerance
analisado por Eisenstein, em
virtude de o cineata americano ter justaposto materiais
sem integrao dramtica j
no intraplano, no levando
em conta o contedo dos
fragmentos, a natureza real
dos fragmentos (FF 203).
Ironicamente, as realizaes
de Griffth haviam desconectado o cinema do teatro,
produzindo uma tenso e
vigor dramticos flmicos, ao
movimentar a cmera , antes
fixa, sugerindo a viso do espectador em uma platia, e ao
utilizar mais integralmente a
montagem paralela, interrompendo o registro ininterrupto
da cena antes do comeo de
outra cena.

Teoria da Arte e do Teatro

83

Note-se que a sntese das artes


enfatiza o projeto concorrencial do cinema de Eisenstein
com o drama, posto que a
prtica da tragdia grega se
tornou ideal esttico para o
Ocidente.
Nessa mudana, recrudesce a obliterao do teatro.
A dramaturgia integral do
filme,prpugnada por Eisenstein
vai buscar suas comprovaes
em romancistas( Dickens, Tstoi), pintores(El greco) e at em
poetas ( Pukhin), mas nenhum
autor teatral utilizado como
modelo. A ruptura com o teatro
literrio duplica-se na ruptura
com a cena teatral. Pelo menos
na defesa da linguagem cinematogrfica.

Esta certeira crtica de Eisenstein parte do vanguardismo teatral


que ele prprio recusou, porm, manobrada para notabilizao da
OLQJXDJHP FLQHPDWRJUFD 6RPHQWH FRP R FLQHPD pela primeira
vez alcanamos uma arte genuinamente sinttica- uma arte de sntese orgnica em sua prpria essncia, no um concerto de artes
coexistentes, contguas, ligadas, mas na realidade independentes
  'HIRUPDTXHRPWRGRGRFLQHPDTXDQGRWRWDOPHQWHFRPSUHendido nos capacita a revelar uma compreenso do mtodo da arte
HPJHUDO 6) 2FLQHPDVHFRQYHUWHHPXPDSRWLFDGDUHSUHsentao. Seu realizar a visibilidade do modo como se constituem
SURFHGLPHQWRVLQWHJUDGRVGHFFLRQDOL]DRGDUHDOLGDGH2FLQHPD
exibe a formatividade do mundo. A liberao do teatral, s expensas
da narrativa, transforma as capacidades tcnicas e representacionais
do cinema em uma arte total.

10.3
Francesco Casetti em Inside
the Gaze (Indiana University Press,1998- original de
1988)procura investigar o
modo como o filme designa
seu espectador estruturando
sua presena(p 15).Mas o mbito de sua criteriosa pesquisa
est na enunciao flmica e
a possibilidade de formalizar
essa estruturao da audincia, e no na efetividade composicional da realizao flmica. O dramtico ainda uma
analogia..

84

UMA DRAMATURGIA
FLMICA POSSVEL

O percurso rico e hesitante de Eisenstein diante da tradio dramtica nos situa diante dos problemas compositivos da atividade audiovisual cinemtica. O domnio e explorao da projeo de imagens
apelam para a correlao dessa atividade de manipular o que mostrado em um espetculo com problemas de dramatizao. O diferencial compreensivo e formativo da totalidade da imagem da obra cinePDWRJUFDVHID]VH[SHQVDVGHSURFHGLPHQWRVGHGHWHUPLQDR
do modo como o visto integrado a uma apropriao recepcional.
A descontinuidade dos materiais expostos submete-se continuidade de um projeto interacional executado. A presena irremovvel de
uma audincia pagante e determinada a avaliar e entender o que
v direciona a representao a singularizar sua forma na medida
em que promove a situao interpretativa do espectador. A durao
do visvel se d proporcionalmente orientao da audincia. A reSUHVHQWDRFLQHPDWRJUFDVHYOLPLWDGDDFRQVLGHUDUHQWUHVHXV
problemas composicionais o horizonte integrante e completador da
exposio audiovisual

Curso de Especializao em Teatro Distncia

2 FRQLWR HQWUH R GLVSRVLWLYR IOPLFR H D LQWHJUDWLYLGDGH GUDPWLFD


tem sua Histria. 3DUD-HDQ0LWU\SRUPPDLVGHWLGDPHQWHTXH%Dzin, antes da dissociaoROPHLQVWLWXLXVHFRPRHVSHWFXORLPLWDQGRDFHQDWHQWDQGRVHWRUQDUHVSHWFXOR $3& 
O ideal da concentrao dramtica, fornecendo os padres de dispoVLRGRTXHVHYWDQWRGDVJXUDVUHSUHVHQWDGDTXDQWRGRPRGRGH
H[LELRSDUHFLDQRUPDVDVHUHPVHJXLGDVVHQGRROPHRUHJLVWUR
GRHVSHWFXOR $3& 
$SVDVUHDOL]DHVGH*ULIIWKFRPRIRLYLVWRDH[LELOLGDGHGDUHSUHsentao flmica chocou-se com a rigidez da concentrao dramtica
e suas convenes tempo-espaciais.

Marc Ferro em Cinma et histoire (Paris, Editions Denol/


Gothier, 1977), propondo
uma leitura histrica do filme
e uma leitura cinematogrfica
da Histria, chama as imagens
do filme de imagem-objeto
cujas significaes no so
s cinematogrficas. Em meu
caso, mais modesto, opto por
uma outra historicidade, a de
uma imaginao dramtica de
longa durao concretizada
nos modos como o espetculo
composto e realizado. Conf.
meu livro Imaginao dramtica op. cit.
Sigo aqui as colocaes de Mitry
em The Aesthetics and Psychology of the Cinema, Indiana
University Press, 1997.(O original de 1963) Sigla APC.5

'HDFRUGRFRP0LWU\IRL7KRPDV,QFHTXHPPDLVVLVWHPDWLFDPHQWH
resolveu essa liberao da concentrao dramtica ao dissociar teatro e dramaticidade, buscando no drama no mais sua estrutura
teatral e observacional transposta para a tela, e sim uma estrutura
GUDPWLFDFLQHPWLFD $3& ,QFHUHMHLWDDDGHTXDRGRSDOFR
tela mas generaliza a dinmica representacional dramtica como coerncia da inteligibilidade emocional do espectador. A concentrao
dramtica o paradigma para o controle do que mostrado na tela.
Tal transcendncia operacional da teatralidade frente ao teatro se d
ao se considerar a construtividade do drama como um conjunto de
procedimentos de singularizao tanto do que representam como da
orientao desta representao para uma audincia.
$ SRVLWLYD DUWLFLDOLGDGH GR GUDPD QR VHQWLGR GH DUWLIFLR DWUDYV
da qual a sucesso e simultaneidade do que mostrado se faz em
funo de escolhidos eventos dispostos em uma pr-ordenada concluso, como no caso da tragdia, faz com que tudo contribua conjuntamente para a revelao tanto do modo de expresso quanto
GRTXHUHSUHVHQWDGR $3& 'UDPDWL]DUGHYHVHUXPDLQVWQFLD
antepredicativa da construo flmica onde se pensa e se resolve a
estruturao de eventos inteligveis e receptveis.
Ouvir e ver no se reduzem a uma tcnica audiovisual. Ouvir e ver
LPDJHQVHVRQVFRPSUHHQGHUVXDQLWDDUWLFXODRHPXPDHVWUXtura que torne possvel suas distines relacionadas modalidades
diversas e mutuamente implicadas de compreender um espetculo
em sua totalidade. De forma que a dessincronizao da palavra e da

Teoria da Arte e do Teatro

85

imagem transformada em ponto de partida para a dramatizao


TXHSURFXUDVLJQLFDULPDJHQVFRPSDODYUDHSDODYUDVFRPLPDJHQV
DSDUWLUGDGHQLRGRWHPSRVXFHVVRHGXUDRHLQWHUHVVHGHVXD
H[SRVLR$VVLPDLPDJHPGROPHDWXDQRFLQHPDH[DWDPHQWHD
PHVPDIXQRGDVSDODYUDVQRWHDWUR8POPHSRGHVHUFRQVLGHUDGR
como uma pea, seu contedo pode ser baseado na concentrao de
diferentes tempos e espaos. De outro lado, o papel da imagem no
OPHVLPLODUDRGRSDSHOGDVSDODYUDVQDSHD $3& 
A passagem do teatro para o dramtico, advista como instituidora
GDOLQJXDJHPFLQHPDWRJUFDDVROXRSURSRVWDSRU0LWU\SDUD
VHWRUQDULQWHOLJYHOROPHWDPEPSDUDRUHDOL]DGRU2OPHFRPR
pea mais que uma analogia. Expe determinadas atividades relacionadas com composio do espetculo e sua inteligibilidade. Uma
dramaturgia flmica toma do dramtico o princpio esttico para exSORUDURWHPSRFLQHPDWRJUFRSDUDDEHUWXUDGHSRVVLELOLGDGHVUHpresentacionais roteirizveis. O dramtico se apresenta como modo
transformar referncias em orientaes de um espetculo, estabelecendo parmetros de compreenso do que se representa ao levar em
conta os efeitos da extenso e durao do que se exibe.
Dessa maneira, a visualidade reestruturada como campo de emerJQFLD GH XPD VLWXDR LQWHUSUHWDWLYD EHP HVSHFLFDGD 2 YHU 
integrado a um saber que se confronta com a marcao dos eventos representados. A focalizao dramtica, emoldurando a tela, vai
constituindo uma experincia de interpretar essa marcao.
Op cit. Na verdade, a concepo de roteiro de Pudovkin
extenso da montagem.
Segundo ele, o argumento
divide-se em seqncias, estas
em cenas, e as cenas em tomadas separadas (planos) que
compreendem os pedaos isolados que ligados firmemente
formaro o filme(AR 106)
sua fala exatamente sincronizada com o mover de seus
lbios(AR 196). 5

86

Seguindo Pudovkin, o clculo e o contedo de cada plano e a ordenaRGDVXFHVVRHULWPRGDVVHTQFLDVDSDUWLUGRHVWXGRSUHOLPLQDU


e detalhado do argumento com objetivo de mostrar que deve ser visto parece caracterizar o que nos d a totalidade flmica.
Segmentao e busca de totalizao parecem ser dois procedimentos
interligados na composio flmica. A aplicao de uma dramaturgia
ao roteiro de representao do que deve ser apresentado em espeWFXORFLQHPDWRJUFRHIHWLYDDLQWHJUDRGHSDUPHWURVFRPSUHHQVLYRVTXHHYLWDPDFRQIXVRHQWUHHVSHFLFLGDGHHUHGXFLRQLVPR
A dissecao do argumento no estrutura a recepo do que se v,
pois o contexto de recepo no se alcana por uma ttica de controle e monitoramento da representao apenas.

Curso de Especializao em Teatro Distncia

6H R GUDPWLFR VH UHYHOD QD HVWUXWXUD GR OPH TXDQGR R OPH GHmonstra esta estrutura em sua exibio, o processo de dramatizao
 D FRPSUHHQVR GR OPH HP VXD HVWUXWXUD ( VHQGR HVWD HVWUXWXUDUHYHODGDSHODGUDPDWL]DRGUDPWLFDDHVWUXWXUDGROPH'H
PRGRTXHRHVSHFFROPHVHID]HPYLUWXGHGHVXDGUDPDWL]DR
A dramaturgia flmica, hesitante em Eisenstein, elogiada por Bazin e
UHLQVHULGDSRU0LWU\XPDFKDYHGHDFHVVRFRPSUHHQVRGRHVSHWFXORFLQHPDWRJUFRHVXDWH[WXDOLGDGH

10.4

ERWIN PISCATOR E
O FIM DA ILUSO
DA ILUSO TEATRAL

Explorando as tenses entre


cinema e teatro, temos, mais
recentemente, a publicao
de AUMONT 2008.

Parte integrante de meu livro


Rumo ao drama,em publicao pela Editora UnB.

-RKQ+HDUWHOGFRQWUDUHJUDHQFDUUHJDGRGHSUHSDUDUXPWHORSDUD
O mutilado, atrasado como sempre, aparece porta de entrada da
sala quando a pea j estava na metade do primeiro ato,com o telo
enrolado e metido debaixo do brao,.
HEARTFIELD
Erwin, pare! Estou aqui!
Atnitos, todos voltam-se para aquele homenzinho, de rosto fortemente avermelhado que acabara de entrar. No sendo possvel continuar o trabalho, Piscator levanta-se e abandona por um instante o
seu papel de mutilado e grita:
PISCATOR
Por onde voc andou? Esperamos quase meia hora (murmrio de
DVVHQWLPHQWRGRSEOLFR HFRPHDPRVVHPRVHXWUDEDOKR
HEARTFIELD
9RFQRPDQGRXRFDUUR$FXOSDVXD FUHVFHQWHKLODULGDGHQRSEOLFR
PISCATOR
 ,QWHUURPSHQGR R  )LTXH TXLHWR -RKQQ\ SUHFLVDPRV FRQWLQXDU R
espetculo.
HEARTFIELD
 ([WUHPDPHQWHH[FLWDGR 1DGDGLVVRDQWHVYDPRVHUJXHURWHOR

Teoria da Arte e do Teatro

87

PISCATOR 1968:53.

Como HEARTFIELD no cede, PISCATOR volta-se para o pblico, perguntando-lhe o que deveria ser feito: continuar o espetculo ou pendurar
o telo. A grande maioria decide pela ltima alternativa. Cai o pano,
monta-se o telo e, para contentamento geral, espetculo recomea.

PISCATOR 1968:53.

O trecho acima adaptao de um episdio que, segundo E. PisFDWRU  MRFRVDPHQWHIRLDIXQGDRGR7HDWURUSLFR


Concluindo o relato, Piscator afirma: Considero John Heartfield o
fundador do teatro pico.
Em nossa adaptao, convertemos a nota de rodap, que apresenta o
episdio, em um roteiro teatral, com o objetivo de tornar mais compreensveis os procedimentos relativos a este Teatro pico.
Seguindo o roteiro, notamos que a interrupo de uma representao
proporciona o contexto para diversas aes do ator, do pblico e do
agente invasor. a partir da ampliao dessa interrupo que temos
estes diversos atos estritamente vinculados entre si.
A extenso da durao do que se interrompe vai formando um novo
momento dentro do espetculo, providenciando novos nexos, outro
padro de interao entre cena e platia, revisando o padro anterior. frontalidade da cena - manifesta na unidirecionalidade entre o
mundo dos atores e o mundo do pblico - contrape-se a correlao
entre o cnico e o no cnico, simultaneamente.
'HVVD PDQHLUD D LQWUXVR GH +HDUWHOG SRVVLELOLWD QR VRPHQWH D
ruptura com a iluso do que se representa. A unidade da representao e seu padro de interao so colocados em xeque.
Mas, ao mesmo tempo e irreversivelmente, esta intruso integrada a uma continuidade que redefine tanto a unidade da representao quanto seu padro de interao. diferenciao de
eventos representados corresponde uma diversificao das respostas da audincia.
Os chamados prejuzos causados pela interrupo da representao
- a disperso recepcional e a falha na continuidade actancial - so
incorporados pelo curso subsequente das novas participaes do pblico no espetculo. Ou seja, a ruptura com o espetculo, a descontinuidade, produz uma nova continuidade.

88

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Ora este espetculo dentro do espetculo amplia os nexos recepcionais ao mesmo tempo em que amplia o mundo representado e a prpria representao. O pblico quer tudo, o telo e o espetculo.
E para esta ampliao da cena que ruma a proposta de Piscator.
Se a descontinuidade pode produzir tanto novos atos recepcionais
quanto actanciais, ampliando a cena, isso s se torna possvel em virtude de haver o descentramento do centro de orientao do espetFXORTXDQWRDXPSRQWRXQLFDGRUGRTXHPRVWUDGR
2UDDH[SDQVRHGLYHUVLFDRGRVQH[RVDJHPGLUHWDPHQWHVREUH
uma proposta de homogeneidade. Se se considera imprescindvel coRUGHQDUDWRVHHYHQWRVKHWHURJQHRVHPVHTQFLDHVLPXOWDQHLGDde, ento volta-se a totalidade desses procedimentos contra o totalitarismo da cena fechada sobre sua forma de apresentao.
Assim, a proposio de uma cena expandida reage diretamente contra procedimentos redutores da cena.
Contudo, a diferena de Piscator no est na substituio de formas.
Para ele, o critrio no est no formal, est no problemtico .

PISCATOR 1968:53.

Como ento compreender esta diferena que tem um parmetro composiocional, mas que ao mesmo tempo no se limita composio?
Justamente, quando se inserem questes composicionais que controlam opes formais em questes outras no puramente estticas
que comeamos a nos aproximar da amplitude que Piscator advoga.
H, pois, uma estreita conexo entre procedimentos de composio e
UHDOL]DRHDGHQLRGHHVSHWFXOR
O impulso para esta conexo reivindica um contexto reativo, um claro posicionamento contra o conluio entre esteticismo e subjetivismo
que permeava a cultura teatral alem dos primeiro decnios do sculo
XX. Conquistas tcnicas do teatro, como luz eltrica e palco giratrio
so incorporadas, por Max Reinhardt, por exemplo, no fortalecimento
do lirismo dramtico, em uma naturalizao do mundo representado
como registro e clausura da alma individual.

Idem notas pg. 77 Essa


arte dramtica lrica, quer
dizer no dramtica. So
obras lricas dramatizadas.
Na misria da guerra, que foi,
na realidade, uma guerra da
mquina contra o homem,
procurou-se , pela negao,
pesquisar a alma do homem.

Dessa forma, o dispositivo cnico magnetiza o observador, isolando-o, ao


JXUDUDHVSHQVDPHQWRVHHPRHVTXHQRXOWUDSDVVDPDLQVWQFLD

Teoria da Arte e do Teatro

89

do prprio sujeito que as performa. O incremento tcnico da cena, ou


este uso da tcnica, consagra a apresentao de referncias desprovidas
de situaes que no se reduzem a aes/reaes individuais.

idem, 156

Mas h outras maneiras de se efetivar as aplicaes do dispositivo


FQLFR$VPRGLFDHVWFQLFDVDRLQYVGHQDWXUDOL]DUHPXPDFHQD
subjetiva podem capacitar um deslocamento do indivduo com seu
destino particular pessoal para uma amplitude histrico-social. A
FULDWXUDQRSDOFRWHPSDUDQVRVLJQLFDGRGHXPDIXQRVRFLDO1R
ponto central no est sua relao consigo prprio, nem sua relao
com Deus, mas sim a sua relao com a sociedade.
Mas que histrico-social este? A mera adoo de uma perspectiva
poltica capacita este teatro multidimensional que Piscator objetiva?

idem, 51

Idem, idem

'HYROWDDRHSLVGLR$VFRQIXVHVHQWUH3LVFDWRU+HDUWHOGHRSEOLco durante a pea O mutilado, de K.A. Wittfogel aconteceram dentro


das limitaes do Teatro Proletrio. Sindicatos e centrais trabalhistas
apoiavam um palco de propaganda, determinado em promover apelos para se intervir no fato atual e fazer poltica
Este teatro popular, performado em salas e locais de assemblia,
distinguia-se tanto dos teatros comerciais quanto dos teatros socialistas de seu tempo: no se tratava de um teatro que pretendia proporcionar arte aos proletrios, e sim uma propaganda consciente.
Um outro espao, um outro nexo entre a cena e o auditrio: estes
dois parmetros de composio, realizao e recepo teatrais proMHWDPVHFRQWUDDGHQLRGHDUWHH[LVWHQWHHUDWLFDPXPDGLYHUVD
GHQLR GH HVSHWFXOR 'RV HVSDRV IHFKDGRV VXQWXRVRV H FRQVDgrados, para as salas e ambientes acanhados com cheiro de cerveja
velha e urina, com cenrios de teles simples, pintados s pressas
H[SOLFLWDVHXPDYHUGDGHLUDVLPSOLFDRGRVPHLRVHGDVSRVWXUDV
que proporciona o foco naquilo mesmo que deveria ser a atividade de
representao dramtica: a interao entre cena/audincia.

Idem, 53.

90

(P FRQGLHV PQLPDV HP GLFXOGDGHV DJUDQWHV WHPRV R WHDWUR


mnimo: o teatro no devia mais agir apenas sentimentalmente no
espectador, no devia especular apenas a sua disposio emocional;
pelo contrrio, voltava-se para a razo do espectador. No devia to
somente comunicar elevao, entusiasmo, arrebatamento, mas tambm esclarecimento, saber, reconhecimento

Curso de Especializao em Teatro Distncia

A pedagogia do espectador impulsionada pela diferenciao dos materiais que lhe so apresentados. Simultaneamente, a economia dos
meios de expresso efetivava tanto o rigor da aplicao desses meios
quanto o controle e a compreenso de seus efeitos. Aquilo que se mostra no mais algo apenas para se contemplar. A contiguidade entre
objetos, aes e situaes em cena com as fora de cena acarreta uma interao palco/platia que concretiza este deslocamento da esfera subjetiva/ilusionista do teatro para uma arena interindividual dos eventos
UHSUHVHQWDGRVHFRQVHTHQWHH[FLWDRFRJQLWLYRDIHWLYDGRSEOLFR
Alterando-se o que se mostra a partir dos nexos recepcionais, fundamenta-se um conjunto de metas e procedimentos que podem ser
explorados e se tornar operacionalizveis, e que no mais se circunscrevem ao lugar e ao pblico onde foram utilizados e testados. Como
a interao palco/platia relaciona-se com os meios empregados na
realizao do espetculo e com o deslocamento da cena individual
para a cena scio-histrica, vemos que a mtua implicao desses
HOHPHQWRVRTXHUDWLFDDDPSOLWXGHGRTXHVHUHSUHVHQWDHQR
apenas um somatrio ou escolha aleatria dos meios empregados. A
cooperao entre meios tcnicos, referncias transubjetivas e nexos
recepcionais mais cognitivos providencia um programa de atividades
representacionais que transcendem o ponto origem de seu encontro
e manipulao. Eis os procedimentos e parmetros do processo criativo de Piscator rumo a uma cena expandida e ampla.
No espetculo Bandeiras  HVWDPRVORQJHGDVDVVHPEOLDVGH
VHXVRGRUHVHGRVDWRUHVQRSURVVLRQDLV'HDFRUGRFRP3LVFDWRU
pela primeira vez tinha eu em mos um teatro moderno, o teatro
mais moderno de Berlim, com todas suas possiblidades, e eu estava
resolvido a aproveit-las em funo do sentido da pea, a qual, no
tema, correspondia a minha atitude polcia fundamental

Idem 67,68

O texto de Bandeiras, de Paquet, era escrito em forma intermediria


entre conto e drama onde um frio sentimento do autor o probe de
participar intimamente da sorte de suas personagens e do curso da
ao. Assim, a impessoalidade no tratamento do material narrativo
libera o escritor a trabalhar mais as cenas, descentrando a voz autoral
como guia e condutor da atividade interpretativa do leitor. Concentrando-se mais no que mostra que no que julga ou diz sobre o que
mostra, o narrador aplica-se melhor ao planejamento e concatenao
GDVFHQDVHGRGHVDRGHVXDLQWHOLJLELOLGDGHDRLQYVGHXQLFODV
em prol de uma mensagem prvia autoral.

Idem, 69

Teoria da Arte e do Teatro

91

Idem, ibdem

Essa situao do escritor homloga ao do diretor. Piscator com este material narrativo tinha a oportunidade de efetivar no palco o seu romancedrama, o seu teatro pico. E no que consistia sua atividade de diretor?
ampliao da ao e do esclarecimento dos seus segundo planos; uma
continuao da pea para alm da moldura da coisa apenas dramtica.
2X VHMD IUHQWH  HOLPLQDR GH XPD SHUVSHFWLYD FHQWUDO TXH XQLca toda a representao no prprio mundo apresentado, no mundo
da mensagem autoral e sua interpretao restrita do que se mostra,
3LVFDWRUGLYHUVLFDDVUHIHUQFLDVSURGX]LGDVHPFHQDYDOHQGRVHGH
meios e procedimentos que dilatam o horizonte atual. Os atores conWUDFHQDYDPFRPWHOHVTXHH[LELDPRUDIRWRJUDDVRUDWH[WRV
'HVVDPDQHLUDRHVSHFWDGRUVLPXOWDQHDPHQWHLQWHUDJLDFRPDVJXUDV
em cena e com os meios. A visibilidade dos meios no se limitava duplicao redundante do mundo representado. Antes, no mesmo espao
e ao mesmo tempo o espetculo se desdobrava em nveis de referncia
pertencentes a mdias e performances diversas que expandiam o presente de cena. A presena dos meios tcnicos fornecia uma abertura
imaginativa da representao , contrariando o pressuposto do apagaPHQWRGDVPDUFDVGHFRSUHVHQWHVQRXVRLOXVLRQLVWDGRVQRYRVUHcursos cnicos. A exibio tanto dos meios quanto de seus efeitos in loco,
frente s personagens e platia, proporcionava um recrudescimento da
pluralidade representada e da pluralidade de atos receptivos. A heterogeneidade dos nveis referenciais co-presentes em cena faculta o mtuo
aprofundamento dos horizontes da representao e da audincia.
Assim, retome-se o episdio da pea O mutilado: a interrupo da representao, a descontuinuidade provocada pela presena dos meios
produtora de uma nova continuidade que atravessa o espetculo a continuidade da metareferncia. O espetculo demonstra-se como
espetculo para assegurar o vinculo entre os materiais que disponibiliza e os extensos contextos que busca apresentar para a audincia.
Esse uso da metareferncia, incorporando-a atividade representacional, favorece a construtividade da cena, a orientao da seleo,
combinao e distribuio dos meios em funo dos atos de entendimentos da recepo. A inteligibilidade da cena conjuga-se inteligibilidade da audincia.

Idem, ibdem.

92

Em sua forma de representao, o espetculo Bandeiras era dividido


em numerosas cenas individuais, algo de revista.

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Seguindo o descentramento de uma perspectiva autoral privilegiada,


TXHXQLFDYDRPXQGRUHSUHVHQWDGRHRXQLFDYDHPSDWLFDPHQWH
recepo, vimos que Piscator optara por procedimentos que verticalizavam a interao cena/platia atravs de mltiplos e heterogneos nveis de referncia e de meios. No subjugadao apropriao e
reproduo de uma individualidade restrita ao particularismo de sua
presena e contexto, a forma de revista forneceria um modelo de realizao que poderia efetivar a liberao do processo criativo para a
FHQDGHXPDXQLFDRSHUVRQDWLYDDFWDQFLDO
Assim, a forma revista com seus nmeros diversos compostos de mGLDVHSHUIRUPDQFHGLYHUVDVFXOPLQDULDDGHQLRSOXUDOGRHVSHWculo de Piscator contra a homogeneidade reprodutiva do ilusionismo
individualista anterior.
Note-se que a abertura s possibilidades de representao operada pelo processo criativo de Piscator, ao radicalizar a heterogeneidade da cena como forma de se abarcar contextos de ao mais
amplos, acaba por justapor performances diversas, subvertendo e
refutando uma pretensa unidade miditica do espetculo. Assim,
msica, cano, acrobacia, desenho instantneo, esporte, projeo de cinema, estatsticas, cena de ator alocuo - tudo vem
cena. A diversidade miditica corresponde diversidade dos contextos de ao representados.
2UDHVVDGLYHUVLGDGHPLGLWLFDGDGHQLRGRHVSHWFXORGH3LVFDWRU
em muito ultrapassa a dramaturgia de seu tempo e se converte em um
ponto de partida para a dramaturgia ulterior. A circunscrio da dramaturgia escritura das falas e distribuio das aes e das partes
da pea em funo de um enredo havia reduzido as possibilidades expressivas do espetculo. Sempre tudo convergia para um centro subjetivo, para um hipersujeito arquimodelo de todos atos,pensamentos
os desempenhos em cena e na platia.
Com a diversidade multimiditica do espetculo de Piscator, a dramaturgia se confronta com novas tarefas - a iluso da iluso do centro
subjetivo refutada desde o processo criativo. Ao isolacionismo do
autor, fechado em seu gabinetismo idealtpico, temos agora a insero de seu trabalho em outros trabalhos, um processo criativo coletivo e colaboracionista. os diversos trabalhos de autor, diretor, artstico, msico, cengrafo e ator se entrosavam incessantemente.

Idem, 80.

Teoria da Arte e do Teatro

93

Desse modo, conjugam-se processo criativo, mundo representado e


atos recepcionais na heterogeneidade de referencias e interreferncias que produzem.
A forma revista, dispondo eventos miditicos diversos em sucesso,
apresenta-se como exibio dessa heterogeneidade que abarca tanto a composio quanto a realizao e a recepo do espetculo. Ao
mesmo tempo a forma revista no uma resultante simples de atitudes ou procedimentos. Tal forma aberta delimita o horizonte problemtico de sua realizao: os limites de sua inteligibilidade a partir do
posicionamento dos materiais exibidos. Toda forma que recusa uma
continuidade imediata, atua sobre a continuidade mesma. A expectativa de acabamento do material exposto exige estratgias complexas
de exibio mesmo deste acabamento. Com a abertura da forma, temos a prerrogativa dos suportes recepcionais.

Idem, 80.

O xito do espetculo Apesar de tudo  PDQLIHVWDRPSHWRGHVRluo de problemas impostos pela forma revista. Em destaque temos o
XVRGHOPHVHPFHQD$VLQFURQL]DRGHPGLDVGLYHUVDVHUDRSUREOHma a ser enfrentado. Nas palavras de Piscator SHODSULPHLUDYH]DWD
de cinema se ligaria organicamente aos fatos desenrolados no palco.
3RLVDIRUPDGHUHYLVWDQRGL]UHVSHLWRDSHQDVDRVHTHQFLDPHQWRGH
partes diferentes, mas sim estruturao mesma de cada parte.

Idem, 81.

2VOPHVHVWDYDPGLVWULEXGRVSRUWRGDDSHD(UDPLPDJHQVGHDUTXLvos, OPDJHQVTXHDSUHVHQWDYDPEUXWDOPHQWHWRGRRKRUURUGDJXHUUD
ataques com lana-chamas, multides de seres esfarrapados, cidades
LQFHQGLDGDVDLQGDQRVHHVWDEHOHFHUDDPRGDGRVOPHVGHJXHUUD

Idem, 82.

Idem, 83.

94

-XQWRVFRPRVOPHVHUDPDSUHVHQWDGRVDRSEOLFRGLVFXUVRVUHFRUWHVGHMRUQDOFRQFODPDHVIROKHWRVIRWRJUDDV7XGREHPGLVSRVWR
com os atores em um palco giratrio, efetivando uma unidade da
construo cnica, um desenrolar ininterrupto da pea, comparvel a
uma nica corrente de gua
Assim, essa unidade advinda da montagem e da sucesso de eventos miditicos diversos era o espetculo mesmo de sua possbilidade
de realizao e compreenso. Piscator tinha uma dupla ansiedade:
primeiro, de que modo resultaria a mtua ao condicionadora dos
elementos empregados no palco; segundo, se realmente se chegaria
a realizar-se algo do que forma projetado

Curso de Especializao em Teatro Distncia

A dupla perplexidade frente composio e realizao do espetculo foi resolvida pelo papel ativo da recepo em dar acabamento s
FHQDV'XUDQWHDSHUIRUPDQFHGDSHD3LVFDWRUDUPDTXHa massa
LQFXPELXVHGDGLUHRDUWVWLFD  2WHDWURSDUDHOHVWUDQVIRUPD
se em realidade. Em pouco tempo cessou de haver um palco e uma
platia, para comear a existir uma s grande sala de assemblia, um
QLFRJUDQGHFDPSRGHOXWD  IRLHVVDXQLGDGHTXHQDTXHODQRLWH
SURYRXGHQLWLYDPHQWHDIRUDGHLQFLWDPHQWRGRWHDWURSROWLFR

Idem, 83-84.

Note-se que ao se expor os meios e materiais em cena, incrementouse a interao palco-platia. A comum-unidade dessa interao difere
de uma projeo emotiva do pblico mensagem do individualismo
esttico e o ilusionismo de sua representao. A motivao afetiva foi
impulsiona pelo esforo cognitivo. A contracenao das mdias entre si facultou a magnitude da apreenso recepcional. A audincia
podia conjugar fatos diversos no diferencial tanto miditico quanto
referencial e disto compreender e reunir a totalidade do que era exibido. A tenso do espetculo estava na disparidade dos meios e dos
contextos e no modo como esta disparidade enfrentada em prol de
nexos recepcionais. A contracenao entre mdias concretizava a contracenao entre palco e platia. A resoluo da disparidade, pois,
no a sua anulao, o mero cancelamento do heterodoxo, mas o
provimento de atos vinculantes, de nexos.
Assim, o espetculo atua em funo de sua interao ao invs de ser
um veculo para idias autorais. A realidade multimiditica da cena
o que possibilita a interpretao de contextos de ao extremos. Atos
representacionais e atos da audincia colaboram. O projeto composicional culmina no acabamento recepcional. Nas palavras de Piscator: no palco tudo calculvel, tudo se entrosa organicamente. Para
mim, igualmente, o ator que eu vejo no efeito total do meu trabalho
deve, sobretudo, exercer uma funo, tal qual a luz, a cor, a msica o
cenrio, o texto.

Idem, 98.

Mais importante: o documento exposto, difundido estava em mesmo


nvel com o documento examinado, fraturado, reordenado. A montaJHPFRORFDYDHPPHVPRSODQRRGRFXPHQWRHRJXUDWLYRGHPRGR
a possibilitar a interveno recepcional no que era representado e
no simplesmente a parfrase de um original, de uma fonte autoral da informao. Nesse entrelugar, nessa regio limtrofe onde os
limites do objetivo e do subjetivo projetam reas impessoais e desconhecidas que a pea executada. A imponderabilidade dos extre-

Teoria da Arte e do Teatro

95

mos absolutos converte esse entrelugar em um choque contra toda e


qualquer ortodoxia.
A obra total que o processo criativo de Piscator realizava exigia um
teatro total. O sucesso de pblico determinou a abertura do Teatro
e Estdio Piscator, nos quais espetculos e pesquisas sobre a arte
WHDWUDOVHULDPHIHWLYDGRV&RP:*URSLXV  RWHDWURWRWDO
pode ser construdo.

Idem, 83.

3LVFDWRUMXVWLFDYDHVVDPTXLQDWHDWUDOQRYDXPDSDUHOKDPHQWRGRtado dos meios mais modernos de iluminao, de remoo e rotao


no sentido vertical e horizontal, com um sem nmero de cabines cinePDWRJUFDVLQVWDODHVGHDOWRIDODQWHV como algo que possibilitasse tecnicamente a execuo do novo principio dramatolgico.
Esta mquina teatral refutava a cmara tica que por meio do pano
e cova da orquestra mantinha o espectador separado do palco. Ao
invs de nico centro de ateno, multiplicavam-se os palcos em cena
XP FHQWUDO H GRLV ODWHUDLV  H HQJUHQDJHQV TXH HQYROYLDP H FHUFDvam o pblico distribudo em torno desses palcos. Assim, de todas
as direes as performances se abatiam sobre o pblico. A audincia
pertence espacialmente ao palco, e v-se confrontada e tomada pelas
performances, meios mecnicos e projees luminosas.
Assim, na atividade exercida sobre a recepo que este teatro total
encontra sua efetividade.
Posteriormente, a cena expandida e multimiditica de Piscator se deIURQWDULDFRPDUHSUHVHQWDRGHJXUDVLVRODGDVFRPDUHSUHVHQWDo do heri, como em As aventuras do bravo soldado Schwejk. Seria
um recuo, como disseram de Alexander Nieviski, de S. Eisenstein ? Ora
QD DPSOLWXGH GR HVSHWFXOR GH 3LVFDWRU D GHVFRQVWUXR GD JXUD
individual no se torna a revalidao de centro subjetivo. Antes, h o
UHIRURGDVPDJQLWXGHVWHDWUDLVTXDQGRGDGHVFRQVWUXRGHVVDgura. O isolacionismo do heri e o recurso mquina da faixa correnWHQDTXDOGHVODPDVSDUWHVWRGDVGHXPHVFUQLRFRPSOHPHQWDVH
na globalidade do que foi mostrado.
$VVLPDVUHH[HVHRVSURFHGLPHQWRVGRWHDWURSROWLFRGH3LVFDWRU
ultrapassam as motivaes ideolgicas e conjuntura histrico-poltica de sua ocorrncia. Mas a, temos uma nova histria.

96

Curso de Especializao em Teatro Distncia

10.5

TRADIO E RAZO:
MODERNIDADE E
MITO EM RUMBLE
FISH

Publicado na Revista Humanidades 40(1996), 28-33. Republicado em Imaginao Dramtica. Texto&Imagem,1998.

No novidade ou redundncia, mas urgncia estreitar os vnculos


HQWUHDUWHFLQHPDWRJUFDHGUDPDWXUJLD7DODSUR[LPDRXOWUDSDVVD
DVPHUDVUHIHUQFLDVWHPWLFDVTXHVHFRQQDPHPHOHQFDUVLPLOLWXdes sem o questionamento a respeito da natureza mais fundamental
dessa proximidade. Ora, como processos de construo da realidade,
SHUWHQFHPDFRQWH[WRVFXOWXUDLVGLVWDQFLDGRVQRWHPSR $QWLJLGDGH
H0RGHUQLGDGH $VVLPVHQGRSRGHUVHLDDUPDUTXHDPDQHLUDPDLV
DGHTXDGD SDUD FRQJXUORV QXP PHVPR SODQR VHULD QHXWUDOL]DU D
diferena epocal e fazer falar um pelo outro.
&RQWXGRDUHH[RSDXWDGDSHORVGLWDPHVGDDGHTXDRVVHVXVtenta na provisria instncia predicativa que apresenta o que discute
por meio de estratgias de entendimento normalizadoras. Ou seja,
discute-se com o objetivo de tornar indiscutida a estrutura e o signiFDGRGRIHQPHQRYLVDGR LPDJLQDHVSDUDDFHQDGLIHUHQFLDGDV 
Teatro e cinema comparecem como momentos-luminares da tradio
ocidental quanto apreenso e interpretao dos eventos. Mais que
ilusionismos estticos reprodutores de ordens histricas localizadas,
ambos so atualizaes do dramtico - experincia humana de compreenso dos acontecimentos.
Estranho que se pense assim, que se medite medeando passado e
presente sem as sempre vlidas comparaes. A arte cnica e a atividade flmica possuem narrao, atuaes personativas, representaes englobantes que envolvem jogos intersemiticos (cor, som,
PRYLPHQWR JHVWR SDODYUD  HVWDEHOHFHP SDUWLFLSDHV HQWUH R TXH
se mostra e quem v. Pertencem, resumidamente, s contingncias
da visualidade. E encontram-se na dinmica das recepes: a passagem dos grandes pblicos para as pequenas platias no transcurso
WHPSRUDOGRWHDWURH RLQYHUVRQRFLQHPD FRPRVHXPDDUWHGHVVH
a senha para a outra.
Continuando as similitudes, passaramos das informaes pulveUL]DGRUHV SDUD VLJQLFDGRV PDLV LQWHJUDGRUHV $PERV RV PRGRV GH

Teoria da Arte e do Teatro

97

representao da realidade surgem em contextos de excessos de


XWLOL]DRGDYLVXDOLGDGHFRPRPHLRVGHUHVROXRGRVFRQLWRVFRJQLWLYRVDIHWLYRVHYROLWLYRV1RPRPHQWRJUHJRDDQWURSRPRU]DR
GRVGHXVHVLQWHQVLFDGDSHODUHIRUPDKRPULFDHGHQXQFLDGDSRU
Xenfanes -, atribua aos deuses, aos terrveis-desconhecidos-ausentes, formas humanas to evidentes, imputando-lhes desejos, crimes
e vcios - o que acarretava a indistino entre divinos e mortais. O
apagamento da diferena contemporneo do arrefecimento do sagrado, instaurando uma crise religiosa sem precedentes que a crise
das relaes com a verdade, motivo depois utilizado no debate entre
FRHUHDOLGDGH
O teatro ateniense desenvolve-se nesse drama da cultura. Cultura
XQLGDGH GH FXOWR (XGRUR GH 6RXVD  UHYHUHQFLDPRV DTXLOR HP TXH
acreditamos. Quando essa crena situa-se no limite de sua possibilidade, necessita a reelaborao interpretativa desse limite.
E eis o teatro. Encena-se, dentro das festividades dionisacas, o heri
homrico, corrigindo, pela curva do destino, o mpeto de sua desvitalizao. Vive o personagem a arquiviagem de seu deus. O heri
imolado no sacrifcio aos ausentes.
Temos, ento, uma dupla disposio dos eventos. Na sua estrutura
DSDUHQWHGHVODRSHURGRKHULFRJUHJRHPVXDHVWUXWXUDSURIXQGD
acena-se para a dimenso mtica que subliminarmente emoldura o
que se encena.
Desse modo, o que se apresenta mais do que uma mera presena
mimtica que se reduz atualidade do visto. Registra-se uma totalizao que supera o isolacionismo das partes dramatizadas.
'XSORGHXPVHUGHVGREUDGRHQFRQWUDPRVQDFRQJXUDRPHVPDGR
espetculo dramtico, essa pluralidade de nveis recuperada por meio
da iluso cnica. Nessa, pblico e palco passam a existir conjuntamente em um jogo de distncias e proximidades, dentro do qual cada momento atual do teatro investe-se da construtividade do tempo. Aqum
e alm das marcas de referenciao estereotipadas, distende-se o ritmo de representao, no encontro e no mtuo envio de realidades pertencentes a contextos diversos de ao, mas reunidas em diversa teleologia que se utiliza do descontnuo como linguagem compatvel com
o modo atravs do qual nos inserimos em outra factualidade. Tanto
FFLRQDLVFRPRFRUSRUL]DGRVVHHQFRQWUDPRVTXHYHPHRVTXHVR

98

Curso de Especializao em Teatro Distncia

vistos. Desdobra-se a pea agora contempornea de seu processo enformador. Ver e imaginar no so incompatveis, mas atividades interdependentes que experimentam a problematizao dos modos e dos
meios da efetividade do afetivo, da doao de um logos para o pathos.
Tempo, espao, linguagem, pessoa nutrem-se dessa descontinuidade
pluralizante assumida estruturalmente na arte cnica. No se trata de
LGHQWLFDUDPELJLGDGHVQDVIDODVGRVSHUVRQDJHQVGHQRWDUFRPR
VXDVDHVSHUWHQFHPDGLIHUHQWHVRUGHQVVLPEOLFDVGHYHULFDUD
arquitetura multifacetada dos personagens elaborados na contracenao e partipantes de nexos interindividuais que proporcionam um
estatuto metafrico a seu ser.
No se trata de perceber esses elementos isoladamente e sim de passar do plano do contedo para o plano da expresso e ver que tais
tcnicas de elaborao do evento cnico so processos que demonstram a singularidade do dramtico.
O dramtico no se guia pelos ditames da organicidade da obra de
arte que o condenariam a assumir total dependncia do esttico a
uma dimenso extra-artstica ocupada na mmesis de uma unidade.
7DOFRGLFDRORVFDGRIDWRDUWVWLFRLQVWUXPHQWDOL]DRHVWWLFR
ID]HQGRFRPTXHHOHUHVSRQGDFDUWLOKDGRVOVRIRVGRQLFRXQR
XQLFDQWHH[SXUJDQGRSRUPHLRGHHVTXHPDVDEVWUDWRVGHHTXLObrio e normatividade, o contraditrio do seio do mundo.
$RFRQWUULRDDWLYLGDGHFQLFDFKDPDSDUDVLRFRQWUDGLWULRHRFRQLtivo. Contrariando as generalizaes formalistas de Aristteles, que viam
na tragdia certa mquina de efeitos emocionais reforada pelas causalidades determinantes do enredo, o que se constata o vertiginoso aprofundamento do contraditrio como forma de se atingir a integratividade
e diferenciao de nveis da realidade. O dramtico a dupla fenomenologia da compreenso, pois interpreta os acontecimentos concretizandoos no horizonte existencial e imaginativo de sua efetivao.
Em Rumble Fish, de Francis-Ford Coppola, os suportes cnicos se fa]HP SUHVHQWHV FRQGLFLRQDQGR R HQWHQGLPHQWR GR OPH (QWUHFUXzam-se dois planos narrativos bsicos. Dois irmos e suas duas vidas
aproximam-se e afastam-se ao mesmo tempo. O irmo mais novo,
5XVW\ -DPHV SURFXUD FRQFUHWL]DU R LGHDO FRPSRUWDPHQWR GH VHX LUmo mais velho, cognominado de o garoto da motocicleta. O que temos a representao do herosmo nos tempos modernos.

Teoria da Arte e do Teatro

99

5XVW\-DPHVKHUGDRJHUHQFLDPHQWRGRFRQLWRTXHRKHULSRVVLELOLWD&RQWXGR5XVW\-DPHVH[SXOVDDDPELYDOQFLDRQGHTXHUTXHHOD
possa estar, nivelando os acontecimentos ao satur-los com o modelo
QLFR GH UHVSRVWD TXH  R UHH[R UHLWHUDGR GH VHX LQGLYLGXDOLVPR
(PWRGRVLQVWDQWHVGHVHXSHUFXUVRDFWDQFLDOQRGHVDRGHJDQJXHV
na famlia, na escola e no amor, permanece ele inclume, imune aos
contextos diferenciados, agindo do mesmo modo e reagindo da mesma maneira, impondo o saciar de sua presena.
5XVW\-DPHVHQFDUQDRSOHQRRWXGRDRPHVPRWHPSRDJRUDXOWUDSDVVDQGR DV VLQJXODULGDGHV FRQJXUDQGRDV QD REHGLQFLD GH XP
YLWDOLVPRFHJR5XVW\-DPHVQRVRIUHQRKSHUGDVRXJDQKRVSDUD
ele. Feito imortal, entidade olmpica, cultiva o ilimitado, em uma razo cativa de sua egolatria. Seu saber o da esperteza, um reduzido
ORJRVGH8O\VVHVTXHVHFRPSUD]QDPDQXWHQRGHXPDWUDQVFHQdncia vazia que se perpetua para alm das diferenas.
Esse heri de uma presena atual, pontual, sem memria, confrontase com a serenidade do irmo mais velho, antigo lder de gangues,
TXHYLXWRGRHVVHJHUHQFLDPHQWRGHFRQLWRVQRUHQGHUPDLVVHQWLdo para sua existncia. O garoto da motocicleta vai embora para Califrnia e volta, dinmica de entradas e sadas cnicas que proliferam
DDEUDQJQFLDGHVXDJXUD1HJDQGRRKHURVPRDSROQHRGRHWHUQR
retorno do mesmo, mmesis extempornea da supresso dos limites,
HOHLQWHUYPQRVGLYHUVRVPRPHQWRVGDJHVWDGH5XVW\-DPHVLQVXDQGRDGHUHH[RHSHUFHSRVREUHRREWXVRGHVXDSHUVSHFWLYD
Com ele, pensar e sentir no se encontram separados. O garoto da
motocicleta pergunta e difunde saber. Os contextos so assimilados
GHQWURGRKRUL]RQWHFRPSUHHQVLYRTXHRVHPROGXUD$VHVSHFLFLGDdes dos momentos se integram na lgica subjacente que os constri.
Para alm das categorias de exibio e atemporalidade, a vida no
EDUJDQKDFRPRLPHQVRHWHGLRVRPRYLPHQWRGHXQLFDRGDVVLWXaes existenciais.
Na grande cidade onde os irmos vivem, o plural reala o unvoco.
Dia e noite se sucedem na ciclomitia da nvoa que habita todos os
espaos e todos instantes, desvanecendo e dessubtancializando os
contornos e as formas do mundo. Viver aqui sobreviver em meio
ao que j se orienta entre carcaas de coisas. preciso o rigoroso vigor aplainador das diferenas para permanecer na grande cidade. Os
nexos interindividuais, seja no amor seja na lealdade, expressam-se

100

Curso de Especializao em Teatro Distncia

em estratgias comportamentais que asseguram seu enquadramento em um circuito padro de referncias. Indivduo e grupo, mesmo
e outro, todo e parte se associam em unidade orgnica que se apresenta como representao globalizadora do parcial, circunscrio do
diverso ao monolgico.
5XVW\-DPHVRKDELWDQWHHKHULGHVVDFLGDGH6HXLUPRRTXHQHgou tal envoltrio rumando para a utopia que ela aponta (Califrnia,
a imagem do prazer sem limites, a imensa prostituta maquiada e doHQWH YROWD,UHYLUHVWDUHQRHVWDUSHUWHQFHUHQRSHUWHQFHUREMHtivam a complexa rtmica de disperso, cujo emblema de integrar e
GLYHUVLFDU
$PERVFRQWUDFHQDPXPFRQLWRGHVDEHUHVTXHXOWUDSDVVDDGLIHUHQa de opinies.
Em determinado momento da narrativa, os irmos discutem sobre
uma mulher denominada Cassandra, homloga da personagem da
pea AgamenonGHvVTXLOR5XVW\-DPHVRTXHVFRQKHFHRTXHVH
UHFRQKHFH LPHUVR HP VXD OJLFD XQLFDQWH GHVFRQKHFH D WUDGLR
Interroga-se, realando sua instncia descontextualizadora: E o que
os gregos tm a ver com isso ?
Cassandra era a profetisa que previu a prpria morte e que, em sua
agonia, recuperava a morte do rei Agamenon. Longe da exposio contempornea da morte, preocupada no quantitativo e no informativo da
PRUWDQWDGHHGRPRUWIHURPRVWUDVHHVHGHPRQVWUDDQLWXGHFRPR
possvel expressivo, como palco outro que dramatiza a estrutura da sensibilidade relacionada a uma estrutura da imaginao, para que se registre o acontecimento do limite como limiar compreensivo. A morte no
regio ltima e intransponvel, que s se doaria em feitos irracionalizveis, depsito sedimentado de emoes. Ao invs de resduo transcendental do nada, a morte comparece em sua plasticidade originante,
FRPRGHVDRDRVPHLRVGHFRQVWUXRGHVLJQLFDGRV3RULVVRQXWUHGH
agonias, esperas, dvidas, incertezas, desconhecimentos - momentos cnicos que, em sua entreabertura mediadora de contrrios, possibilitam,
HPVLPHVPRVDVIRUPDVHRVFRQWHGRVGHVXDUDWLFDR
O que os gregos tm a ver com isso ? Passados dois mil e quinhentos
DQRVHQWUHDSHUJXQWDGH5XVW\-DPHVPRGHODUKHULGDVXEMHWLYLGDGHPRGHUQDHDJXUDGH&DVVDQGUDDFRQWHFHUGDPRUWHQDWUDJGLD
grega, recupera-se uma pergunta que repe um saber transhistrico.

101

Teoria da Arte e do Teatro

Sempre diante daquilo que ultrapassa o horizonte comum da experincia humana, diante de signos que retomam uma ausncia que nada
mais que desvinculao com os pressupostos cristalizados e com o
imediato, sempre a hesitao ante a ambivalncia do desconhecido irrompe: ou interdita-se o ignaro pelo conhecido, ou se assume as frinFKDVHDVEUHFKDVGHLQGHWHUPLQDR +XVVHUO GRVIHQPHQRVFRPR
tempos prprios da compreenso e ruma-se para dinamizar o cgito
em sua saciedade de sombras, no lascinante jogo espectral multiforme
do claro-escuro da conscincia.
O que os gregos tm a ver com isso ? H dois mil e quinhentos anos
o teatro ateninense produzia uma arte-conhecimento que prope
o descontnuo, o contraditrio como modo de concretizao dessa
conscincia. Naquele tempo tambm surgiu a pergunta E o que Dioniso tem a ver com isso ? , diante da incompreenso do fundo mtico
agente e subagente na arte dramtica. Veja-se a transhistoricidade
da questo, pois aqui se assenta a Modernidade, a Modernidade de
todas as pocas. Em determinado momento, h uma crise de ordens
na cultura. J no se percebe mais o horizonte de tudo o que ou
existe. Agora h somente a urgncia de se interrogar pelo nexo das
coisas, pelos vnculos que situam os encontros entre as diferenas.
Tradio x razo - eis a problemtica que encampa tal interrogar (GadaPHU 'HQWURGHXPHVSDRWHPSRDVFHQGHPRVSOXUDOLGDGHGHQYHLV
estruturantes dos acontecimentos, sendo que esses nveis so percebidos como no pertecentes ao mesmo fenmeno. So to divergentes
as ordens de sentido que no mais convergem para o intervalo nodal
que os consagra. Consequentemente, engendra-se uma tradio, um
pretrito como imagem de algo que perdeu seu vigor e seu valor, e
uma modernidade que hospeda o que pode ser racionalizvel e pertencente urgncia fulcral do necessrio e do caracterstico. Relega-se
ao museu de formas passadas tudo o que refora a atualidade coesa e
coerente do que faz sentido em sua clareza e harmonia estabelecidas.
A temporalidade aqui constituda e cifrada em atitudes de excluso e
interdio que patenteiam um processo de referenciao ocupado em
PDQWHUFRQVWDQWHVGHVHQWLGR$OJRQRSRVVXLPDLVVLJQLFDRSRLV
no obedece mais ao esquema cannico de representao. Repercutese certa Razo, certa estratgia interpretativa que uniformiza as percepes agora como reprodutoras do modelo-base e no como aproximaes ao diferencial da diferena dos eventos. Pensar aqui conduzir
a compreenso para entronizar o j sabido, o j sentido, o j desejado.

102

Curso de Especializao em Teatro Distncia

5XVW\ -DPHV  R WHDWUR YLYR TXH HOLPLQD R GUDPWLFR 2 FRQWUDditrio no pertence sua esfera de ao. Quando no sabe de
algo, seu no saber apenas concluso de que esse algo no faz
parte e nunca far daquilo que ele de antemo conhece. Quando
no percebe, seu no perceber a reposio do mesmo esquema
cognitivo que expulsa tudo e todos que escapam desse esquema.
Por isso pergunta, desdenhando da prpria pergunta. Por isso o
que os gregos tm a ver com isso? No interrogao, mas afirmao que capitula diante do que no previamente determinado
por suas respostas j automatizadas. No questionar j no h mais
questo, mas a pergunta j diz de si o que procura como resoluo
da dvida, que dvida com o necessrio meio de sobrevivncia
na grande cidade - o espetaculoso crepsculo da razo frente
eliminao de suas virtualidades.
5XVW\-DPHVSRGHUVHIHULUQDEULJDGHJDQJXHVPDVQRYDLPRUUHU
poder perder a namorada, mas no sofrer; ser expulso da escola
e ainda continuar senhor de sua pessoa. Negar o que est prximo
de si e sair inclume da vida - como entrou, saiu.
No entanto, o garoto da motocicleta vai morrer, vai morrer, pois
se arriscou muito mais. Viver muito perigoso quando se atinge
RV OLPLWHV GD H[SHULQFLD KXPDQD *XLPDUHV 5RVD  (OH TXH IRL
e voltou, que saiu da grande-pequena cidade, realiza a transviagem, que visagem da transcendncia maior. O mais importante
sempre est perto de ns. Transcender tornar imanente, mais
consciente e partcipe daquilo o que no jogo entre proximidade
e distncia acusa a essncia variacional dos seres e dos acontecimentos. Ser heri ultrapassar a arena de vitoriosos e perdedores
e repor o conflito, a descontinuidade impressa e inerente a tudo
que ou existe. Alm e aqum se complementam na intensificao
de suas disponibilidades.
2JDURWRGDPRWRFLFOHWDHPXPOPHHPSUHWRHEUDQFR FRUHVDQWLJDVSDUDHWHUQRVSUREOHPDVQRYRVHYHOKRVWHPSRVVHUHXQLQGR 
vai morrer, pois todo heri morre. Morre para libertar os animais
de suas jaulas, para fazer voar os pssaros, para retornar ao mar os
peixes briguentos. Coloridos, azuis e vermelhos, so os peixes que
OXWDULDP LQQLWDPHQWH HWHUQDPHQWH DW FRQWUD VL PHVPRV FRPR
azuis e vermelhos, contraditoriamente, so as cores que vm do carro da polcia, logo para ele, daltnico, que no percebe as cores, mas
FRPSUHHQGHRVFRQLWRV

Teoria da Arte e do Teatro

103

A Histria no se escreve com os heris, mas com o dramtico. A aversivaYHUVREUDVLOHLUDGRWWXORGROPHHYRFDXPWUDJLFPLFROWURURPQWLFRHKLSHUUHDOLVWD2OPHLQWLWXODVHRULJLQDOPHQWHRumble Fish,


referncia singular espcie de peixes briguentos, mas foi batizado
aqui como O selvagem da motocicleta. O tom apelativo da nova embalagem comercial traduz o que hoje se entende por dramtico e por
artstico. Revela-se nessa verso traidora um problema cultural bsico.
No embate histrico entre Tradio e Razo, instrumentalizou-se o
contraditrio em prol do unvoco, racionalizou-se a Tradio a ponto
de esquematiz-la em conceitos tornados clssicos.
Complementar a esse direcionamento do passado por um olhar meGXVDQWH R GUDPWLFR TXH DOLPHQWD R FRQLWREDVH GD FXOWXUD IRL
negativado. Por isso o acrscimo do epteto selvagem ao garoto
da motocicleta. Tal emblema verdadeira legenda que reduz o fenmeno ao seu valor abstratamente atribudo e no sua realidade
efetiva. O selvagem evoca e provoca a esfera irracionalizavel a qual
pertenceria o dramtico. L, nessa regio que deve ser obstruda e
esquecida, as ambivalncias e as contradies, o catico e o amorfo, as potncias misteriosas e o sagrado habitam. Somente l, nessa
regio-licena-parntesis pode existir. Negativar o drama, situando-o
na derrocada das estratgias cognitivas do mundo, eliminar todo
saber que se defronte com a compreenso de seus limites. subordinar todo pensamento, toda ao, todo desejo mmesis distributiva
de uma normalidade perene, exclusiva e absoluta.
Contra essa modernidade de todas as eras, existe a premente recusa
de no aceitar a perda da dimenso plural dos acontecimentos de
sentido aquilo que muitas vezes o teatro encena e para a qual o
cinema, em certos momentos, aponta.
7RGD REUD GH DUWH IDOD GH VL PHVPD (P FDGD OPH HP FDGD SHD
exibe-se uma realidade como linguagem das escolhas assumidas, de
SRVVYHLV FRQFUHWL]DGRV $ DUWH FLQHPDWRJUFD H D DUWH WHDWUDO VH
aproximam como vigilantes perpetuaes do dramtico, da capaciGDGHGDFRPSUHHQVRHPHIHWLYDUDFRQVWUXWLYLGDGHGRVFRQLWRVDR
invs do gerenciamento metafsico e conclusivo destes.
Num palco, numa tela o que se apresenta mais do que se representa. V-se uma fatal combinao de presenas e ausncias sobredeterminadoras do imaginrio, que se faz no momento de sua recepo.

104

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Ver aqui dinamizar a compreenso na assimilao dos diversos, em


uma lgica outra que mantm a pluralidade do que se concretiza. Ver
aqui contextualizar o processo de referenciao na construtividade
GH VXD LQVWQFLD IRUPDWLYD 9HU  FRQJXUDU  WUDQVFHQGHU R YLVWR
para patentear o horizonte construtivo do que se apreende. Eis a experincia do dramtico: concretizar no intervalo entre o real e o imaJLQULRPHGHDURLQQLWRQRQLWRPDWHULDOL]DURWHPSRGDRULJHP
na experincia originria da estrutura da compreenso conectada
estrutura da criatividade.
A cena e a tela, meus amigos, ainda podem vencer a arena.

Teoria da Arte e do Teatro

105

106

Curso de Especializao em Teatro Distncia

ESTE TEXTO PARTE


INTEGRANTE DO LIVRO O
CINEMA E SEUS OUTROS,
ORGANIZADO POR RENATO
CUNHA, A PARTIR DE UMA SRIE
DE DODECACINE, UMA SRIE DE
CONFERNCIAS REALIZADAS NO
SEBINHO (SQN 206), BRASLIA,
EM 2008. AGRADEO AO RENATO
CUNHA POR SUA LEITURA
ATENTA DO TEXTO.

CINEMA E
TEATRALIDADE:
O BEB (SANTO)
DE MCON,
DE PETER
GREENWAY

11

11.1

PRELIMINARES

Ver partes dessa histria em


Andr Bazin, O cinema (So
Paulo: Brasiliense, 1991).

Cinema e teatro, atividades espetaculares, co-participam de um hisWULFRGLORJRTXHUHGHQHFRQFHLWRVHSUWLFDVGHDPERV. Para alm


GDVDQDORJLDVDSUHVVDGDVHSRQWXDLVXPDUHH[RDSDUWLUGDGUDPDturgia flmica de O beb de Mcon  GH3HWHU*UHHQDZD\HIHWLYD
o esclarecimento do jogo de apropriaes e transformaes existente
em eventos interartsticos e multidimensionais.

Ver Marcus Mota, Dramaturgia flmica (Belo Horizonte:


Anais da IV Reunio Cientfica
da Abrace, 2007) e Damiana
Cerqueira Rodrigues, O cinema
teatral de Eisenstein: dcada de
20 (dissertao de mestrado,
Universidade de Braslia, 2007).

Inicialmente, bom se ter em mente que as relaes entre teatro e


cinema nem sempre foram assim amistosas. H paradigmas antiteatrais em alguns momentos do percurso do cinema. Eisenstein (1898 SRUH[HPSORDRORQJRGHVXDFDUUHLUDYDOHVHGHUHIHUQFLDV
ao teatro, concebendo-o como modelo esttico e dispositivo tcnico
que precisa ser ultrapassado. Desse modo, a ampliao das possibilidades do cinema passaria pela ultrapassagem de sua moldura cnica.

Ver Laurent Mannoni, A grande arte da luz e da sombra (So


Paulo: Unesp/Senac, 2003) e
Flvia Cesarino da Costa, O
primeiro cinema (Rio de Janeiro: Azougue, 2005).

(QWUHWDQWR R FKDPDGR SULPHLUR FLQHPD   DSUHVHQWD


se marcado por fortes laos a eventos performativos: a exibio de
imagens em movimento para uma audincia em espaos de exibio
prprios de eventos circenses, de magia, pantomimas e aberraes
atraes que tanto maravilhavam o espectador. O teatro de variedades, o vaudeville, e sua localizao da audincia e do lugar de exibio
cedo foram modelo para o registro cinemtico de performances, com
a cmera em posio frontal a um proscnio e autonomia dos planos.

Ver Erwin Piscator, Teatro


poltico (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968). Para
as contemporneas experincias entre cinema e teatro, ver
Hans-Thies Lehmann, Teatro
ps-dramtico (So Paulo: Cosac Naify, 2007)..

108

(DLQGDHVWWLFDVWHDWUDLVUHYROXFLRQULDVGH0H\HKROGD3LVFDWRUYDleram-se de projees de imagens em movimento em suas encenaes.


Assim, esse frtil intercampo de realizaes estimula mtuos esclaUHFLPHQWRVHUHGHQLHVGRTXHYHQKDDVHUFLQHPDRXWHDWUR
Diante da estreita conjugao entre tecnologia e espetculo, nem
teatro mais aquela forma de expresso baseada em dilogos ilustrados por cenrios inertes, nem muito menos cinema uma histria
ilustrada por imagens. Nos dois casos, por meio de uma aproximao
mais enriquecedora e exploratria, cinema e teatro seduzem o espectador pela explicitao da heterogeneidade de efeitos e recursos que
organizam a elaborao e recepo de obras audiovisuais.

Curso de Especializao em Teatro Distncia

11.2

O FILME

0FRQXPDFLGDGHDRQRUWHGH/\RQDNPGH3DULVFRQFUX]GHFDminhos, foi palco de guerras sangrentas entre catlicos e protestantes


no sculo 16. De sede da antiga diocese, Mcon integrou o Sacro Imprio
5RPDQRSHUODQGRXPDORQJDKLVWULDUHODFLRQDGDFRPUHOLJLRHSRGHU

A poltica de Mcon reinterpretada pela dramaturgia flmica de PeWHU*UHHQDZD\SRUPHLRQRVGDLQWHUSHQHWUDRGHLQVWLWXLHVH


JUXSRVVRFLDLVYULRV LJUHMDFRUWHLQWHOHFWXDLVSRYRDUWLVWDV FRPR
WDPEPGDFRQMXJDRGHDUWHV PVLFDSHUDSLQWXUDIRWRJUDD
OLWHUDWXUDWHDWURFLQHPD $DPSOLWXGHGRXQLYHUVRUHSUHVHQWDGRPDterializa-se na diversidade interartstica. Tal determinao de reunir
dspares e tornar simultneos os diferentes multiplica os nexos, as
referncias, as associaes produzidas .
Como horizonte dessa heterogeneidade, temos a moldura teatral dos
eventos expostos. Se tudo mostrado, se tudo vem superfcie do
mundo, do sexo morte, tudo ganha um status de coisa exibida e
percebida em sua exorbitncia cnica: o excesso das coisas dispostas
para se ver e ouvir acopla-se ao excesso de sua observao, pois atravessa a sucesso dos acontecimentos a marcada presena de uma
platia in loco. Em alguns momentos chegamos ao extremo de no
saber se assistimos ou no a uma pea diante do acmulo do emolduramento teatral dos eventos.

Giovana Dantas, Trnsito de imagens no cinema de Peter Greenaway: cinema, teatro,


artes visuais, em Leituras contemporneas (Salvador: Faculdades Jorge Amado, v. 1,
n. 2, 2003), p. 94: O beb santo de Mcon (1993) uma pelcula que tambm leva o
cinema a dialogar com o teatro. O filme trata de uma encenao, com platia, em que
toda a iluso desmistificada no final, quando a cmera recua e vai inserindo os espectadores da pea no enquadramento. Enquanto isso, os atores agradecem os aplausos, ao
tempo em que retiram seus adereos e a maquiagem. Apesar de utilizar uma composio
de plano extremamente simtrica e ordenada, com uma perspectiva acentuada que enfatiza a iluso espacial das pinturas renascentistas, ele desmonta essa mesma iluso, ao
se deter na natureza teatral do filme.

Maria Esther Maciel, Peter Greenaways encyclopaedism, em Theory, culture


& society (UK: Nottingham
Trent University, vol. 23,
2006), p. 53: To call Peter
Greenaways cinema encyclopaedic is to recognize it as
this web of knowledge fields, languages, metaphors,
allegories, literary references,
organized according to some
rigorous principles of order
even if provisional and arbitrary to deal with a disorderly, ultimately absurd world.
Art History, Literature, Music,
Theatre, Dance, Cookery,
Architecture,
Cartography,
Mythology, Electronics, Zoology, Botany, Landscape,
Gardening,
Psychoanalysis,
History, Calligraphy, Engineering, Aeronautics, Geometry,
Anatomy, Astronomy, Philosophy, among other fields
of knowledge, compose this
cinema that, more and more,
moves away from the limits
of the screen to expand itself
into several other artistic spaces. Para outras tentativas
de definio da obra de Peter
Greenaway, ver Rosa Cohen,
Motivaes pictricas e multimediais na obra de Peter Greenaway (So Paulo: Ferrari,
2008); Wilton Garcia, Introduo ao cinema intertextual
de Peter Greenaway (So Paulo: Annablume, 2000); Joo
Carlos Gonalves, Banquete
dos signos: o estranhamento
da recepo em Peter Greenaway, em Revista nexos (So
Paulo, 2001, p. 41-56); Maria
Esther Maciel (org.), O cinema
enciclopdico de Peter Greenaway (So Paulo: Unimarco,
2004); Cllia Mello, O cinema
em cena: uma aproximao
hipertextual encenao de
Peter Greenaway (Edio de
autor, 2001, hipermdia em
CD-ROM); Gilberto Alexandre
Sobrinho, Espao e sentido
em O beb santo de Mcon,
em Cadernos da ps-graduao Instituto de Artes/Unicamp (Campinas, v. 4, n. 1,
2000, p. 175-180).

Teoria da Arte e do Teatro

109

Ivana Bentes, Greenaway e a


estilizao do caos, em Ivana
Bentes (org.), Ecos do cinema
(Rio de Janeiro: UFRJ, 2007),
p. 175: A tela vira um palco
medieval e um tableaux vivant,
a histria do beb santo encenada dentro de uma catedral
e a platia participa ativamente do espetculo no papel do
coro que narra e comenta a
histria ao mesmo tempo. O
filme tem a estrutura de uma
pera ou farsa cheia de simbolismos.
Comparar abordagem de Greenaway com a de Orson Welles,
em Citizen Kane (1941), a de
Fassbinder, em Querelle (1982), e
a de Lars von Trier, em Dogville
(2003).
Sobre o conceito de molduras, ver Erving Goffman, Frame analysis: an essay on the
organization of experience (2
ed., Boston: Northeastern University, 1986; 1 ed. em 1974).

O imenso galpo que se abre em novos tablados abrange e no completa as tenses entre f e cincia, que logo descambam para manobras de
interesses particulares. Ningum escapa dessa nivelao dos valores. A
cidade faminta, rodeada pela praga, converte-se no teatro de sua autofagia, na necessidade de fomentar mitos e de literalmente os devorar.

2WHDWURQRFLQHPDFRPSDUHFHQRVQDFODUDLGHQWLFDRGRGLVSRsitivo tcnico-cnico.3DUDRPXLWRH[LELUROPHH[SORUDXPDWHDWUDOLGDGHJHQHUDOL]DGD$TXLORTXHVHPRVWUDQRVHFRQQDDSDULR
GRVHOHPHQWRV$PROGXUDWHDWUDODFRQWLQXLGDGHGROPHLQWHUIHrindo na percepo do espao das aes e dos comportamentos. Essa
interferncia intensifica a sensao de que tudo ali construdo, um arranjo para sua recepo. Da os fatos mais cruentos,
na exorbitncia de sua oferta, do estupro ao despedaamento ritual,
organizarem-se como eventos teatralizados, e manifestando a sua
FRQJXUDRHPFHQD
&RPDVPXGDQDVGHSODQRHGRVSDOFRVQDFRUHRJUDDGDFPHUD
que vai do centro da cena aos bastidores, rompe-se com a clausura do
PXQGRUHSUHVHQWDGRHPXPOPHFRPRXPDSHDOPDGDFRPRXP
texto ilustrado por imagens. A trama narrativa contrape-se trama
multimiditica, como espetculos dentro do espetculo. A histria sucumbe ao mito, ao encenar o acontecer da crena, do como acreditar
em algo sem fundamento que se torna o fundamento dos atos.
Em Mcon preciso acreditar. Seus habitantes precisam crer. E ns,
que tudo vemos, tambm. O terrvel e o sublime grotescamente se
encontram, e a mentira assumida como verdade depois se completa
no desmascaramento vingativo.
Quando tanto o omitir, a mentira, quanto o revelar so modos recprocos e falhados, a existncia da comunidade se articula nessa pletra do vazio, na superabundncia do limite. No h nada a esconder.
7RGDDPTXLQDGH*UHHQDZD\IDEULFDHHUJXHXPDFLGDGHTXHQRV
devolve seus escombros, seu cotidiano de sobreviver mngua, nessa
fome de mais vida, nessa misria da manipulao, dos embustes, do
auto-engano, do gozo dos simulacros.
2VKDELWDQWHVGDFLGDGHHYLGHQFLDPVHFRPRJXUDVFRPRWLSRV1R
KMXVWLFDWLYDVGHFRPSRUWDPHQWRVHSRUPHLRGHVXDVIDODVRXWUDV
YR]HVSRGHPRVRXYLU(OHVQRVRSHUVRQDJHQVGHQLGRVDSDUWLUGH

110

Curso de Especializao em Teatro Distncia

um programa de ao e verossimilhana. Eles so objetos mostrados


dentro dessa saturao antiperspectivista. No h como haver identiFDRHPRFLRQDOFRPHOHVSRLVDVJXUDVHPFHQDVRSDUWHVGHVVD
cidade, como o movimento da cmera e as coisas que se mostram. O
OPHXPDH[SHULQFLDDXGLRYLVXDOTXHQRVHFRQQDQDVFDWHJRULDVDULVWRWOLFDVRXQHRDULVWRWOLFDVGHXQLFDUDUHSUHVHQWDRSRU
meio de uma narrativa .

11.3

POR UM
CINEMA NO
EXCLUSIVAMENTE
NARRATIVO

Um esboo de defesa de um cinema no exclusivamente narrativo pode ser encontrado em Mrcio


Carneiro dos Santos, O paradigma no-narrativo: do cinema de atraes realidade virtual (So
Lus: Intercom, X Congresso de Cincias da Comunicao na Regio Nordeste, 2008). Seguindo Tom
Gunning, vemos que o repertrio para a esta defesa no se reduz ao early cinema. As implicaes de
um cinema heterogneo no se restringem ao efeito sobre o espectador (atrao). Temos questes
de dramaturgia, ideologia e operacionalizao tcnica, entre outras. J Andr Parente, em Narrativa
e modernidade: os cinemas no-narrativos do ps-guerra (Campinas: Papirus, 2000), ressalta outro
repertrio (ps-guerra) e diverso arcabouo conceptual (Deleuze).

Roberto Tietzmann, Leituras


mltiplas de filmes plurais:
interpretando o cinema de
Peter Greenaway, em Sesses
do imaginrio (Porto Alegre:
Famecos/PUCRS, vol. 1, n.
17, 2007), p. 14: Para Greenaway os realizadores teriam
se acomodado ao basearem
seus filmes em arquitramas
textuais vindos de outros
suportes, ao invs de experimentarem jogos experimentais de imagem e contedo
que permanecem segundo
ele amplamente inexplorados no cinema. Portanto
o diretor afirma que provavelmente no vimos nenhum
cinema ainda, vimos um prlogo de 100 anos, sendo que
o que teramos visto agora
apenas texto ilustrado. Para
uma crtica do aristotelismo
como modelo dramatrgico
e pressuposto interpretativo
de obras multidimensionais
ver Florence Dupont, Aristote
ou Le Vampire du thtre occidental (Paris: Flammarion/
Aubier, 2007).

3HWHU*UHHQDZD\HPVXDVREUDVHVIRUDVHSHODH[SORUDRGHKLEULGLVPRVGHPRGRDHQIDWL]DUFRPRWDQWRVRXWURV]HUDPTXHDUWHFLQHPDWRJUFDQRVHUHVXPHDFRQWDUKLVWULDV$FLPDGHWXGRROPHPRVWUD
ROPHGHPRQVWUDVHFRPRHYHQWRRUJDQL]DGRHSHUFHSWYHO$RUHFXVDU
DH[FOXVLYLGDGHGLHJWLFD*UHHQDZD\SUREOHPDWL]DDKLVWULDGRFLQHPD
HQRVVRVPRGRVGHFRQFHEHUHGHQLUHYHQWRVPXOWLGLPHQVLRQDLV2TXH
est em jogo so nossas estratgias para compreender obras cuja espeFLFLGDGHVHH[SUHVVDQDDPSOLWXGHGHVHXVPHLRVHHIHLWRV
Da a importncia da teatralidade: na cultura ocidental a situao de
performance, o ato de dispor para uma audincia materiais e habilidades in loco, encontra-se inseparvel de sua inteligibilidade. Tanto
que pode ser ensinada, comunicada, reconhecida. Esta tecnologia das
representaes implicada em uma situao performativa tem como
correlato nocional uma abertura ao simultneo, ao mltiplo, ao heterogneo. &RQWUD D LOXVR GR XQR QLFR XQLFDQWH WDO WHFQRORJLD
oferece-se a processos criativos os mais diversos. As decises em um
processo criativo atualizam o drama da expresso, a encenao de
suas possibilidades, o roteiro de suas escolhas e excluses.

preciso que algumas posturas e equaes sejam revistas,


como, por exemplo, cinema =
narrao, teatro = emoo, personagem = pessoa. Ver Marcus
Mota, A dramaturgia musical
de squilo (Braslia: UnB, 2008)
Da, seguindo Deleuze, a tentativa de se definir o cinema de
Peter Greenaway como cinema
barroco. Ver Susana Dobal, Peter Greenaway and the baroque:
writing puzzles with images
(tese de doutorado, The City
University of New York, 2003).

Teoria da Arte e do Teatro

111

Por meio de uma generalizada situao de observncia, de uma moldura cnica, O beb de Mcon GHV PRQWDQRVVRVKELWRVGHDVVLVWLUD
REUDVFLQHPDWRJUFDVSRUHVWPXORVGLYHUVRVHFRQWUDDQDUUDWLYD
para que se veja que h diversos modos de se contar uma histria,
como aquela com pedaos, os nacos de carnes de um anjo, nosso desejo por um cu.
Este teatro que se abre em outros teatros, que se dobra sobre si mesmo, e se destri, ruminando espaos mltiplos, alm da pea sobre a
pea, expande a contingncia de sua espetacularidade, oferecendo
JXUDVIDQWDVPDJULFDVHQWUHOX]HVRPEUDVTXHDSHQDVVXEVLVWHP
no refazer suas verdades, em um cotidiano de aderir intensamente
quilo que as fascina, sem conseguir ir alm daquilo que em frente
delas cresce de valor pelo sopro do desejo.
Ver Marcus Mota, O teatro
como metaesttica: subjetividade e jogo segundo H-G. Gadamer, em ReVISta (Braslia,
2005, p. 86-94).
Ver Wolfgang Iser, What is literary anthropology? The difference between explanatory and
exploratory fictions, em Michael
P. Clark (ed.), The revenge of the
aesthetic: the place of literature
in theory today (Berkeley/Los
Angeles: University of California,
2000, p. 157-179).

Mise-en-scne, mise-en-cadre, mise-en-abyme. Mcon a cidade-caverna em que se celebra o esteticismo cruel, nica instncia em que
se engendram os sons e as imagens da tribo, as quais so a comida
e moeda, o que se quer e o que existe. Pois estamos e no estamos
em um teatro. O beb e no divino. Tudo no passa de encenaes, no sentido de que tudo exibido, inclusive sua construtividade:
do teatro teatralidade. O recurso a molduras cnicas manifesta a
PDWHULDOLGDGHGRLPSXOVRPHWDFFLRQDOTXHUHJHDVREUDVGH3HWHU
*UHHQDZD\TXHVRDRPHVPRWHPSRREUDVHWHRULDVVREUHDWLYLGDdes representacionais.
(QP LPSORGLQGR D SUHWHQVD XQLGDGH UHSUHVHQWDFLRQDO GR FLQHPD
HDQRUPDWLYDRUWRGR[LDGDHVSHFLFLGDGHGDREUDFLQHPDWRJUFD
DGLYHUVLGDGHPDWHULDOHHVWWLFDGRFLQHPDGH*UHHQDZD\UDWLFDD
busca por paradigmas pluralizados na compreenso e realizao de
eventos multidimensionais.

112

Curso de Especializao em Teatro Distncia

11.4

O MELHOR DO PIOR:
HIPER-REALISMO E
REPRESENTAES

Publicado no livro Rdio Maior. Esperanas de um Homem. Braslia,


Arte&Contexto, 2005.

Marcus Mota
2004
Revisto em Abril de 2006

1RLQWHUYDORGHDSHQDVXPPVHPWLYHPRVHVWULDVGHOPHV
baseados em duas principais fontes da cultura ocidental: Cristo, em A
paixo de Cristo, de Mel Gibson, e A Ilada/Odissia, em Tria, de WolIJDQJ3HWHUVHQ (YHPPDLVSRUDFRPR$OH[DQGHUGH2OLYHU6WRQH
Esta feliz ocasio, entretanto, s pode parcialmente ser comemorada. E o motivo da comemorao reside em razo diversa daquilo
TXHSRGHULDKDYHUHQRKTXDQGRHVWDVKLVWULDVFRQXHP9DPRV
por separado, pois as diferenas de tratamento do material excluem
qualquer tentativa de comparao. Por enquanto.

1
Primeiro A paixo de Cristo. Antes de tudo, preciso adiantar que, independentemente das polmicas religiosas, A paixo de Cristo no
XPOPH&RPRUHDOL]DRFLQHPDWRJUFDQRVSVVLPRFRPR
tambm um fracasso e desperdcio do material utilizado, desde a parte tcnica, e seus inmeros e evidentes problemas de acabamento
- cenas mal iluminadas, cenrios mal construdos, focos trmulos e
embaados - at a dramaturgia, que sofrvel no h personagens,
QRKLQWHUSUHWDHVDOPGDJXUDGH3LODWRV&ULVWRORJRGHLQFLR
surrado no rosto, tem seu olhar eliminado, eliminando, desse modo,
VHXQH[RFRPRHVSHFWDGRU(DVJXUDVTXHVHVHJXHPRXVXVSLUDP
e choram ou so esteretipos de viles, rindo quando agem mal ou
quando espancam. A alternncia entre cenas presentes e as memrias frouxa, no havendo qualquer relao entre estes grandes planos e contraplanos, a no de ser o de produzir um enxerto bizarro e
sem sentido na continuidade. Nem continuidade temos.
(VVD FRLVD TXH QR  XP OPH SDUHFLD FRPHDU EHP $ HVFROKD GD
FHQDQRMDUGLPGR*HWVPDQLFRPRDEHUWXUDHDSRGHURVDJXUDGH
Jim Carvizel dando concretude potencialidade dramtica daquele
momento prenunciavam isso. Mas logo vieram 1- um pobre efeito de

Teoria da Arte e do Teatro

113

mquina de fumaa e 2- uma melodiazinha de atmosfera, uma musiquinha to bvia, padro de momentos climticos, que fez tornar
SHUFHSWYHORWUDEDOKRGHGHVGUDPDWL]DRGDVHTQFLDHPSUROGH
objetivos bem tangveis e imediatistas. Dali para frente, a representao de Cristo no teria nenhuma outra prerrogativa seno a prevalncia dessa interveno explcita e detectvel de quem manipula
a histria, de quem faz ver o que deve ser visto: o diretor, com sua
sensibilidade de marombeiro.
E no h mais enganos. Cristo sem rosto e sem qualquer relao com
VHXFRQWH[WRQDUUDWLYRHKLVWULFRXPSUHWH[WRSDUDH[HPSOLFDR
GHXPHVTXHPDLQH[YHOGHFDUDFWHUVWLFDVTXHFRPELQDDWUDMHtria pop GR KHUL TXH DSDQKD DSDQKD H DSDQKD FRPR QRV HP Omes dos brutamontes como Silvester Stalone e do prprio Mel Gibson
(lembre-se o indefectvel Pay Back DWRUPHQWRVDvia crucis catlica
e seus quadros e contabilidade de quedas e injrias e participantes. A
via crucis e o herosmo pop convergem e mutuamente se alimentam
formando a coerncia e a coeso de tudo o que exibido na tela.
Essa viragem do Cristo para o esquema pop-religioso fundamentalista
explicitamente apresentada e explorada durante a primeira tortura
de Jesus. Soldados romanos se revezam nos golpes diante de um Jesus
DPDUUDGRDRFHSR$SVXPDH[WHQVDHHVWSLGDVHTQFLDGHYLROHQWD
pancadaria, com a platia j enfastiada diante de tanto sangue, Jesus
cede, rendido e aparentemente desmaiado. Mas no assim. No em
uma obra como esta. Para perplexidade do pblico e dos soldados romanos, Jesus recobra vigor e quer mais, mais porrada, como que provocando, exigindo que batam nele. Da para frente a mesma porcaria,
at a cruz, tudo metodicamente exposto, chegando ao anticlimax bizarro-cmico dos corvos comendo o ladro que ofendeu Jesus. A partir
dessa provocao, as portas da estupidez esto abertas e o pseudoretratismo de Gibson torna-se sem pudor algum um livre exerccio de
suas limitaes intelectuais, uma equivocada transposio do falso heURVPRTXHYHPRVHPRXWURVOPHVGRSUSULR*LEVRQCorao Valente e O patriota. A partir desse ponto, no h mais lugar para a platia. A
saturao da violncia expulsa, denuncia e nega qualquer constrangimento. O que temos ali ento seno um corpo mutilado cada vez mais,
um corpo em remendos, o corpo-hematoma, o no-corpo como veculo
para essa este espetculo pop-fundamentalista? No h nada o que fa]HUDJRUD9HPERUDRXTXHDWRQDO$IXQGHVHQDFDGHLUDHHVSHUH
essa cansativa reiterao da mesmice passar.

114

Curso de Especializao em Teatro Distncia

O mais estranho ver gente, gente de verdade chorando, se emocionando com um negcio que foi feito para saturar a sensibilidade, para
de(in)senbilizar. Mas no deveria haver estranheza. Por sculos o cristianismo dominante tem se valido dessa abstrao sentimental, desse racionalismo da representao para eliminar qualquer vnculo do
crente com uma dimenso maior que a imagem. Presos ao epidrmico,
pele esfolada, sofremos a impossibilidade da ao, a impossibilidade
de pensar e agir alm do esquema imposto. Por isso o pop-religioso.
Diante da via crucis, no h nada o que fazer seno chorar por no fazer
nada. O que realmente lamentvel que o drama da morte de Cristo
tenha se renovado secularmente nesse repugnante amortecimento de
nossas capacidades de pensar, sentir e agir. Todos nos transformamos
em uma massa annima de incapazes e brutos, vivendo da contemplao e autopunio diante do sofrimento inocente. E isso nos acusa
e por sculos vai continuar a nos acusar: a omisso, o deixar de agir,
primeiramente conosco mesmo, o tornar invivel uma mudana que
pode acontecer com qualquer um, individualmente, quando o fascnio
da inrcia rompido e por livre e espontnea vontade um contato pessoal e nico com esta histria realizado sem as muletas de sempre,
sem a cegueira e a lepra de agora.
$QDOSDUDHVVHFRQWDWRFRQFUHWRSDOSYHOTXHDQDUUDWLYDGH&ULVWR
se dirige. E. Auerbach, em sua bsica obra Mimeis, ao fazer uma histria
da representao da realidade no ocidente, atribui s narrativas em
YROWDGDJXUDGH&ULVWRDUXSWXUDFRPUHJUDVHSURLELHVHVWLOVWLFDVH
ideolgicas que limitavam a apario do cotidiano comicidade, nunca
ao sublime. A presena de Cristo, em seus encontros nos caminhos e nas
casas e suas conversaes com as pessoas das mais variadas classes sociais, fez explodir distines, reunindo paradoxos e contrrios na carne
viva e pulsante do mundo. Cessou a perspectiva privilegida que dividia
o mundo em atores e contempladores. Todos agora so personagentes.
O evangelho para todos, no no sentido de um rebanho tangido pela
dependncia psquica a um sofrimento inoculado na semana santa e
nos natais. Para todos, porque no h uma instncia prvia que nos
usurpe o valer-se de nossas prprias prerrogativas.
Ao invs disso, temos A paixo de Mel Gibson, sua obsesso em sodomizar todo mundo com essa reciclada porcaria de uma mesma atitude diante da narrativa de Cristo. Pssima montagem e acabamento,
perda de oportunidade e recursos, tudo para reperpetuar uma emocionalidade sem objeto, um sentir sem vnculo, um sofrer sem porqu
alm do prprio sofrer. Sofrendo o sofrimento, validando a invalidez,

Teoria da Arte e do Teatro

115

pode-se continuar vendo e consumindo essa droga, sem precisar ler


RWH[WRYHURTXHHVWHVFULWRPXGDU$UHH[LELOLGDGHGXSOLFDDDEVtrao: anulando a ocasio, opta-se pelo mergulho em si mesmo. Da
o conforto ao se rever as mesmas imagens da paixo. Pois o Cristo l
da tela no outro seno eu, euzinho, um corpo pisado e oprimido,
o incompreendido annimo sem rosto. Ou, melhor, o Cristo l da tela
no sou eu, um outro que no quero, por isso piso e oprimo qualquer possibilidade dele pode vir a me falar. Entre um e outro plo, a
mesma excluso. Entre o sofredor e o agente da tortura renova a disposio de por pancadas e golpes simular um contato com algo que
no se quer contactar, por recusa, receio e omisso de acontecer algo
diferente do que vinha acontecendo.
E para piorar, o Cristo das pancadas, esse corpo modo e esquadrinhado, o detalhamento da violncia, a violncia generalizada torna-nos
contemporneos e perpetradores de um saber e de uma habilidade
em conhecer o corpo para destru-lo, uma cincia contra o corpo, para
faz-lo calar, cincia essa elaborada durante a Inquisio. Os modernos contempladores da tortura na tela tornam-se adoradores da violncia praticada. Pensam que no hiper-realismo da representao, no
detalhamento dos golpes insaciveis podem adentram na intimidade do sofrimento do mestre. Mas na verdade a nica intimidade que
essa desmedida brutalidade contra algum sem rosto e sem marcas
GHLGHQWLFDRDFDUUHWDDLQWLPLGDGHFRPRDOKHDPHQWRDLQWLmidade como mutilao e a eliminao da presena. Ferir recusar,
 QHJDU  XP GHVHMR GH QR TXHUHU VDEHU 2 GHVOH VDQJXLQULR H
gratuito dessa via crucisRGHWDOKDGRDIDVWDPHQWRFRPDJXUDGD
tela. nosso modo de abandonar, de dizer adeus: batendo, batendo,
batendo. Vocs, os novos inquisidores.
E tudo isso disfarado, confundindo em uma pseudo-busca de verossimilhana histrica, ao se colocar pessoas falando em aramaico e latim...

2
Tria, por sua vez, um grato presente. A quase impossvel misso de
dispor na tela os milhares de versos de Ilada e outras mais de OdisVLDHQFRQWURXQHVWHOPHXPDIHOL]VROXR3ULQFLSDOPHQWHQRTXH
diz respeito atitude antiblica que atravessa essas obras. A confederao liderada pelo chefe aqueu Agamenon para conquistar o povo
troiano e sua cidadela uma oportunidade que, por meio de paraleOLVPRVGHPRQVWUDDFRUUHODRHQWUHRVPXQGRVHPFRQLWR2HQWUH-

116

Curso de Especializao em Teatro Distncia

choque revela as complementaridades e diferenas. Temos reis como


GHWHQWRUHVGHSRGHUHPGHFLVHVHTXLYRFDGDV $JDPHQRQH3ULDPR 
KHULVWRUQDGRVFDGYHUHV $TXLOHVH+HLWRU UHODFLRQDPHQWRVDPRrosos formando casais entre inimigos, mas que acabam sucumbidos
SHORVDWRVGHJXHUUD 3DULV+HOHQD$TXLOHV%ULVHLGD 'HQWURGRDWXDO
contexto de intolerncia entre os povos e do expansionismo estadunidense, as narrativas de Homero parecem ser reescritas diariamente
nos noticirios.
0DVDSULQFLSDOFRQWULEXLRGROPHGH3HWHUVRQGDU+RPHURV
massas e renovar o contanto com a cultura clssica. Os Estudos da Antiguidade, em virtude do trato com suas complexas fontes e opes
metodolgicas, tm se tornado patrimnio e privilgio de estudiosos
e especialistas. Nenhum problema. Porm, muitas, muitas vezes, em
nome de um purismo seja ideolgico, seja metodolgico, produzida
uma moldura interpretativa em torno da recepo da cultura da Antiguidade, que acaba por controlar e determinar os modos atravs dos
quais se d o acesso a esse conhecimento. Decorre dessa atitude um
certo elitismo nos estudos clssicos, uma predominncia de se achar
que em qualquer lugar que voc estude a Antiguidade as perguntas
devem ser as mesmas. E todo o esforo de dominar os textos em seus
originais torna-se aps, muitas vezes, o vaidoso desempenho de exSORUDUVLJQLFDGRVHFRQFHSHVDVPDLVSURIXQGDVHVXWLV
No entanto, vejamos e ouamos Homero. Tria traz para a tela as grandes
JXUDVLQGLYLGXDLVRVJUDQGHVSODQRVDVFHQDVGRVGXHORVHQDUUDWLYDV
que tornaram principalmente modelar o estilo homrico. A cinematograDSUHVHQWHQRWH[WRGD,ODGDLQWHUSUHWDGDDXGLRYLVXDOPHQWHHP7ULD
A violncia de Aquiles, a chegada das Naus, a sagacidade de Ulisses, a
EHOH]DGH+HOHQD2OPHTria uma antologia homrica.
Realmente h alguns problemas de interpretao, principalmente no
exagero da atuao informal de Brad Prit. Quando ele contracena,
seja com Ulisses, seja com Briseida, e alguns closes nos quais faz seu
famoso biquinho, vemos a estrela internacional e no Aquiles. Nesses
momentos, Brad Prit faz mais o papel de Helena que o de um famigerado guerreiro. Mas na ira e no combate, Aquiles que nos fascina.
2XWURHOHPHQWRGLVFXWYHOWUDPDDPRURVDGROPHTXHVHQWLPHQWDOLza uma cultura que no trabalhava com nossos padres de afetividade.
Mas vivemos em outros tempos. Toda viso do passado feita a partir
do presente e com a mdia de hoje. E o amor nessa guerra apresentado

Teoria da Arte e do Teatro

117

no em si, e sim como contraste ao amor guerra, viabilizando concreWDPHQWHQDWHODDSHUVSHFWLYDDQWLEOLFDGDREUDKRPULFDHGROPH


Note-se como as lutas mesmas no recaem em uma exibio de detalhes sanguinrios so sujas e tumultuadas, como se os membros do
FRQLWRVHLJXDODVVHPOXWDQGRFRQWUDVLPHVPRVFRQWUDVHXVDOLDGRV
confundindo, na loucura da guerra, perdedores e vencedores.
Esse fratricdio em meio a locaes maravilhosas demonstra a estupidez dessa batalha e de todas as outras que viro. A glria, a imortalidade gritada por Aquiles faz ecoar a possibilidade de uma outra vida.
Aquiles, em sua fria assassina, ser lembrado no como o melhor e
PDLVJXHUUHLURFRPR+HLWRU2IDVFQLRGHVXDJXUDSURSRUFLRQDO
quilo que ele perde, ao que ele deixa de ganhar em cada vitria. A
mquina cega de matar esvazia o mundo em sua frente, deixando
uma trilha de cadver da qual ele mesmo vai fazer parte. Quanto mais
DYDQDPDVVHGHVWLQDDRTXHID]PDLVVHDSUR[LPDGHVHXP
( DVVLP VHQGR PDLV R PHOKRU DFDEDQGRVH HP VL PHVPR D JXUD
GH$TXLOHVHDVRXWUDVJUDQGHVVLQJXODUHVJXUDVKRPULFDVDSUHVHQtam-se fora da histria, so mais que a vida. Sua imortalidade provm
desse excesso, dessa continuado realizar atos para alm da experincia comum at que o advento da morte, que interrompe e delimita
esse movimento de excedncia(QWRRHVSHFWDGRUFDFRPDWUDMHWULDHQRFRPRQDOGRSHUFXUVR$PRUWHDSDVVDJHPGDREUDGR
contador da histria para obra do sonhador da histria. Mais que uma
sentena moral, o alm-mundo atua sobre o aqum-sepultura.
'HVVDPDQHLUDDVJXUDVSRGHPVHUHQRYDURFRQWDWRFRPDQDUUDWLva atrativo. Tria captou esse realismo representacional Homrico,
determinando um revitalizado encontro com essa milenar tradio.
E, podemos perguntar, o que fazer com tantas no correspondncias
GROPHFRPDVREUDVKRPULFDV2QGHHVWRRVGHXVHV"2VGHXVHV
no esto presentes em Tria. E Agamenon? Ele no morre em Tria.
Morre quando voltar para casa. E Ptroclo: ele vai para a guerra com o
consentimento de Aquiles, segundo o texto homrico.
Bem, s sabemos da morte de Aquiles e da queda de Tria e o cavalo
de Tria em Odissia, e no na Ilada. Odissia um intertexto, uma
pardia, uma crtica da Ilada. O ato de contar histrias se faz sobre
histrias anteriores. E cada histria feita um original, uma ocasio
QLFDFRPREHPQRVHQVLQDUDP03DUU\H$/RUGLQWUSUHWHVGDWUD-

118

Curso de Especializao em Teatro Distncia

dio homrica, autores que ousaram aproximar a pica clssica de


cantadores modernos. O desaparecimento dos deuses, a morte deles
FRLVDTXH1LW]VFKHMEUDGDYD1ROPHRVKRPHQVHQWUHJXHVDRV
seus negcios, a si mesmos, s piores coisas que eles prprios podem
querer e realizar, os torna destrutivos e carcaas inteis. O desaparecimento dos deuses uma interpretao de muitas de nossas seculares de nossa cultura. E tambm, com a ausncia dos deuses, outras
coisas mais tambm deixam de ter relevncia.
J Agamenon, o modelo do poder poltico beligerante expansionista, valendo-se do sacrifcio de seus homens em prol de realizar um insacivel
GRPQLRSODQHWULRPRUWRQROPHSRUXPDPXOKHU%ULVHLGDFRPR
Clitemnestra, sua esposa e real algoz. E o herosmo por osmose, doentio
HSDUDVLWULRGRMRYHP3WURFORQROPHFDQFHODGRSRUVXDPRUWHFRP
ou sem consentimento de Aquiles, o que refuta, desse modo, o anti-modelo guerreiro duplicado e assimilado pelos mais moos.
Mas no preciso defender Tria. O que preciso felicitar iniciativas
que devolvam para as pessoas a oportunidade de entrar em contato
com narrativas que atravessam nosso envoltrio intelectual, nosso escapismo. E, em virtude disso, um renovado impulso em direo a essas
obras proporcionado. Muitas pessoas saram do cinema com uma incrvel vontade de reler e reler Homero, perplexos ao saber que essa histria foi contada h sculos. E ento se defrontaram com as tradues.
As nossas tradues continuam enquadrando essas obras em um pedantismo elitista ilegvel. Ou transformam textos clssicos em pretextos para experimentalismos estticos descompromissados com a
OHJLELOLGDGHHLQWHOLJLELOLGDGHRXHUXGLWL]DPRWH[WR[DQGRRSRU
meio da sintaxe e do vocabulrio, em um portugus mofado e inspido. As pessoas querem ler, mas no h texto. Pegue-se a recente
traduo da Ilada feita por Haroldo de Campos. H versos isolados
brilhantes. Mas no h texto. O leitor tem de se tornar um catador de
conchas, separando pedras e o que interessa. Essa trans-helenizao
na verdade um neoparnasianismo mais preocupado com recriao
GH GHWDOKHV OLQJVWLFRV TXH FRP R WRGR  D LQWHJUDR GR OHLWRU 
obra. No considerao na narrativa, dos recursos de se envolver uma
audincia na trama que se conta. No somos nem helenos nem do
remanescentes do sculo XIX para sofrer com esse atomismo verbal.
Ora, senhores muito estudiosos, por favor nos dem textos melhores para
ler! Nos dem, como Petersen, um grato presente, no o cavalo de Tria!

Teoria da Arte e do Teatro

119

3
Enfim, a impossvel comparao. Mesmo sendo complicado discutir coisas j feitas, pois a discusso revolve-se sem a menor
alternativa de o produto venha a ser revisto, ou ainda, mesmo
sendo extremamente arriscado colocar em debate obras midiolgicas, como veremos, a resoluo de olhar mais atentamente
para estes dois filmes e para outros mais pode ser usada de outra
forma que a nossa familiar rede de breves-comentrios-aps-ocinema-com-o-objetivo-de-no-dizer-nada-j-falando-algumacoisa. Complicado e arriscado comentar obras e no fazer
obras, porque o melhor comentrio de uma obra uma outra
obra, assim como complicado e arriscado discorrer contemplativa ou intelectualmente sobre produtos de consumo preso ao
circuito produto-consumidor.
7DQWRXPDHRXWUDUHVSRVWDDRVOPHVSRGHPUHVXOWDULQVDWLVIDWULDV2FRPXPDLVVRWXGRDVHQVDRTXHXPOPHDSHQDVXP
OPHHQDGDPDLV1HVVHSRQWRLOXGHPVHDVFUWLFDVTXHDSHQDVYLsam desideologizar atos de consumo, apontar pressupostos de maQLSXODRGDUHDOLGDGHFRPRVHVRPHQWHOPHVIRVVHPLQWHUSUHWDes distorcidas do mundo. Armados de uma artilharia conceptual,
at um simples conto infantil d margem a tratados e artigos e
SXEOLFDHVHPWRGRVSDUDLGHQWLFDUHDQLTXLODUSHQVDPHQWRVGH
dominao. muita artilharia para discutir to pouca coisa. Notabiliza-se o crtico e no a crtica.
Em nosso caso, no estamos diante de grandes obras para fazer
uma anlise to multidimensionada. A paixo de Cristo uma porcaria, e TriaXPOPHFRUUHWR+YDOLGDGHGHVHIDODUGHDOJRTXH
QRVHMDXPDREUDSULPD"0DVFRPRLGHQWLFDULVVRSURGXHVTXH
se distingam esteticamente? Obras audiovisuais colocam em xeque
muitas das prticas analticas tradicionalmente vlidas. Diante disso, muitas vezes nada resta ao intrprete isolar-se em seu gosto
tido como particular ou desconsiderar a validade de se defrontar
com esses produtos de consumo. Entretanto, o que fazer quando
SURYRFDGRVVHTXHSRGHPRVDLQGDLGHQWLFDUXPDSURYRFDR
- quando solicitados por realizaes que se apropriam de materiais
historicamente fundamentais ? O que fazer quando algo que nos
pertence referido e utilizado?

120

Curso de Especializao em Teatro Distncia

4
A histria da guerra de Tria e a vida e morte de Cristo atravessaram sculos sendo oralmente transmitidos, desencadeando variaes e apropriaes diversas em diversas situaes. A situao
mesma de se ouvir estas histrias permaneceu durante muito
tempo como a nica possibilidade de concretizao dessas histrias. Contar essa guerra e essa vida permeava atos e eventos
especiais de audincia e performance. Os filmes de Mel Gibson
e Wolfgang Petersen pertencem a essa longa tradio de apropriao e transformao desses relatos. Mas assim como h uma
longa histria de apropriaes, h tambm de orientaes dessas retomadas. Cada retomada nica, pois faz vir cena o relato
e sua orientao receptiva. Quando essas antigas histrias so
revistas, quem as apresenta hoje quer mostrar o que so essas
histrias hoje.
Para Mel Gibson o tempo de agora isso o que ele exibe na tela: a
nfase no que importa para as pessoas que vem o que ele mostra. A
opo do hiper-realismo, na estranha atrao e repulsa pela violncia
fsica se complementa na perspectiva de platia que domina o conservadorismo emergente, conservadorismo esse alheio a qualquer
forma mais complexa de pensar ou representar.

11.5

SOBRE O FILME
CAPOTE, DE BENETT
MILLER
Marcus Mota
3/4-maro-2006

Dentre tantos aspectos que poderiam ser abordados, destaco neste


comentrio trs: a interpenetrao dos destinos do escritor e do asVDVVLQRDKRPRVVH[XDOLGDGHHUHODRHQWUHYLGDHFR
Capote explora um momento decisivo na trajetria artstica e pessoal
GRHVFULWRUDPHULFDQR7UXPDQ&DSRWH  RVORQJRVDQRV
GHSHVTXLVDHDDJRQLDQDOGHDSDUDHVFULWXUDGROLYUR
A sangue Frio$RPRVWUDURHVFULWRUROPHDSUHVHQWDWDPEPRKRPHP(HVWDUHODRHQWUHDXWRUHVXDELRJUDDPDLVTXHXPJQHUR

Teoria da Arte e do Teatro

121

FLQHPDWRJUFRFRORFDQRVGLDQWHGHXPDVLWXDRTXHXOWUDSDVVDD
JODPRXUL]DRGRELRJUDIDGR)RLRTXHRURWHLURGROPHFRQVHJXLX
realizar com muita qualidade.
1D YHUGDGH PDLV TXH H[LELU D YLGD GH 7 &DSRWH WHPRV QR OPH R
modo como o escritor T. Capote envolveu-se, em seu processo criatiYRFRPDVUHODHVHQWUHYLGDHFR
A obsesso pela histria, por uma histria escabrosa - o assassinato
de uma famlia que pertenceria mais s pginas policiais dos jornais
transformou-se, ao mesmo tempo, tanto em um dos grandes livros
PRGHUQRV TXH PXGRX R MRUQDOLVPR H XP SRXFR D SURVD GH FR
quanto praticamente sepultou a carreira do autor.
Durante o filme somos apresentados figura de um escritor que
demonstra um gosto enorme por suas prprias performances em
ambientes sociais - comportamento que lembra O. Wilde - expresso em comentrios chistosos para agradar uma platia sedenta por novidades e jogos de civilidade. Em contraponto a
esse ambiente elitista e superficial, acompanhamos o escritor
em sua arquiviagem em torno de um acontecimento terrvel. Das
rodas sofisticadas de Nova York a uma cela de priso, Capote desdobra-se entre procurar acomodar estes ambientes diferidos ao
encanto de sua personalidade e sobreviver ao impacto que estas
realidades lhe ocasionam.
Em um primeiro momento, parecemos ver um anjo no lodo, um escritor na sarjeta. As rodas artsticas de Nova York em nada se parecem
com os lugares relacionados com o crime: uma cidadezinha do interior do Kansas, o lar provinciano do delegado da cidade, a priso.
Entre esses mundos, est o afamado homossexual T. Capote, amigo de artistas famosos, ele mesmo uma afamada estrela. Ao procurar submeter estes mundos aos ditames de sua escritura, Capote nos oferecer um outro drama, que coloca a prpria situao de
escritura em xeque.
Investigando os personagens envolvidos no crime, Capote detm-se
QDJXUDGRDVVDVVLQR1HVWHPRPHQWRGROPHGHVGHRHQFRQWURQD
delegacia at a srie de encontros da priso, desloca-se a relevncia
do crime para o envolvimento de Capote com o criminoso. A perspectiva de Capote altera a realidade. O espectador chega at acreditar

122

Curso de Especializao em Teatro Distncia

que Capote afeioou-se ao assassino, o que reforado por alguns


FRPHQWULRVGHRXWUDVJXUDVTXHSDUWLFLSDPGDYLGDSULYDGDGRHVcritor - como o namorado de Capote.
1DYHUGDGHQROPH&DSRWHDWUDGRWDQWRHVWHWLFDPHQWHHTXDQWR
pessoalmente para o criminoso. Esteticamente, por perceber que o
contato com esse material e seu desenvolvimento em livro poderia
lhe abrir as portas de um novo status na literatura americana o de
algum que rompe gneros, inova. Essa busca por inscrever seu nome
no rol da fama determina todas as suas aes. De outro lado, pessoalmente, a histria do criminoso se aproxima da histria do prprio
Capote. Capote no apenas interroga o outro, como tambm narra
sua prpria vida.
A interpenetrao entre o escritor e o personagem tanta que sobreposies tamanhas se acumulam. Como toda histria uma seleo,
uma inveno, Capote mostra e esconde, manipula o contato com seu
interlocutor, agindo do mesmo modo como age em New York. Para
FRQVHJXLUYHQFHUQDDUWH&DSRWHVDFULFDHPSDUWHVXDLQWLPLGDGH
produzindo um jogo perigoso para o escritor. O que importante frisar o fato que Capote inicialmente parece ter controle do que est
fazendo. Mas o prosseguir da histria transforma o autor em personagem dessa trama que maior que ele.
Assim, com um p no esteticismo novaiorquino e outro na dura realidade da vida, Capote, de modo precrio, procura conduzir-se. No entanto,
acaba por sucumbir trama criada em volta dos acontecimentos.
Querer se conservar ileso em um processo radical que no negocia
diferenas e limites entre obra e vida uma tarefa que nem o incrvel
personalismo de Capote consegue. A iluso da neutralidade, de uma
subjetividade que paira por cima dos eventos, arruinada. A manipulao da relao com o assassino demonstra isso. A maldade fsica e
brutal do criminoso, que matou a sangue frio quatro pessoas de uma
famlia, justape-se maldade psicolgica de mentiras, omisses e
sutilezas de Capote. Em ambos os casos, os dois homens mostram
duas culturas de sobrevivncia, suas armas, suas estratgias. E, neste
entrechoque de culturas, Capote pensa que pode vencer valendo-se
apenas de recursos de retrica argumentao e afetividade.
O paradoxo disso que o sedutor escritor seduzido por uma trama
que coloca em sua frente o prmio esttico, a glria, obtida somente

Teoria da Arte e do Teatro

123

atravs do enfrentamento e negao daquilo que esse mesmo esteticismo refora: o eu. Para ganhar, ter de perder, perder-se. Porque,
quando a base de tudo, da glria, do reconhecimento, do fazer artsWLFRVHIXQGDPHQWDQDUHDUPDRGDVXEMHWLYLGDGHDPDLRUUDGLFDlidade, a maior conquista, a maior recompensa justamente pr em
ULVFRVDFULFDUORJRHVWDEDVHHVWHIXQGDPHQWRRHX$UXSWXUDGH
Capote acontece dentro do horizonte daquilo em que ele acredita.
Realizada a ruptura, dissolve-se o mundo e seu horizonte, abatem-se
os limites da mesma estrutura. Para o mundo de Capote chegar ao
seu clmax, o mundo de Capote, Capote mesmo ter de ruir. E a runa
psicolgica de Capote est em contraponto aceitao de morte por
parte do assassino. Capote, que comea como um ardiloso manipulador dos outros, acabar por fugir deles, a tentar recusar a presena de
algum alm de si mesmo. Mas, de tanto invadir os outros, de tanto
ampliar sua forte presena, agora no consegue se esvaziar, no conVHJXHLPSHGLUDGHVDJUHJDRGDSUHWHQVDXQLGDGHGHVXDUPHVXEjetividade. Porque Capote est na priso junto com o assassino. Est
na priso de suas crenas, de suas certezas. O assassino, por um lado,
vai se livrar da priso morrendo; j Capote, de outro, ele completar
um longo ciclo de agonia, sem nunca mais terminar um livro.
Mais que a questo da tica entre entrevistador/pesquisador/escritor e pesquisado, temos justamente esse ncleo duro de uma cultura
que se autocelebra atravs do culto personalidade. Capote deseja
ardentemente terminar seu livro para entrar no panteo dos grandes
HVFULWRUHV3DUDUDWLFDUVXDDPELRHOHWDQWRHVWHQGHRWHPSRGD
execuo dos assassinos para obter relatos e informaes para seu
livro quanto abrevia este mesmo tempo para se livrar de suas fontes
HGDUXPQDODVXDREUD$JLQGRFRPR'HXVHOHDEUHYLDRXGLVWHQGH
GHVWLQRV$H[LELOLGDGHQRWUDWRFRPDYLGDGRVRXWURVSDUHFHUHDUmar a rigidez do plano escritural. Justamente a que se encontra o
grande problema esta adequao entre obra e vida.
Antes, o homossexualismo. Aberto em Nova York, contido em Kansas.
Tanto que alguns dias depois, na cidade do interior, o prprio Capote
comea a se vestir menos espalhafatosamente. Para conseguir informaes em uma entrevista, ele fala dos preconceitos quanto aos homossexuais. Alguns olhares, o jeito de Capote falar, andar e se vestir...
Essa esperteza, essa inteligncia, manipulao... Em muitos casos tais
caractersticas, como se v em O talentoso Ripley, perpetuam esteretipos, baseados na pretensa identidade entre argcia, homossexualismo e maldade.

124

Curso de Especializao em Teatro Distncia

1R OPH R PHOKRU QR  R IDWR GH &DSRWH DPDU KRPHQV PDV VLP
de ele no gostar tanto de pessoas. E isso no tem sexo. Projetando
para o ofcio de escritor algumas prerrogativas estritas, Capote v-se
se cercado por gente, precisa de gente para fazer seu livro, precisa
de gente para o acompanhar, mas nunca adere a elas com o mesmo
entusiasmo e presena. No h reciprocidade. Ele ama conhecer, bisbilhotar, saber, possuir o melhor e o pior dos outros, contudo recusa
conhecer a si ou mostrar-se com a mesma intensidade. Capote no
homossexual, pan-sexual, no sentido de estar eternamente insatisfeito com coisas que no se reduzem ao circuito de seu controle e
,disso, parte para devorar tudo o que pode. Ele est em todos os lugares, nas festas em Nova York, em uma casa de vero na Espanha, em
presdios, alimentando-se insaciavelmente de tudo e todos. Faz tudo
isso porque pensa que a arte engloba o mundo, que o mundo nasceu
para aparecer nas pginas de um livro - o seu. E por isso no vai ter
sossego, no vai ter paz, e a realidade que no se deixa dominar por
quem quer que seja, a realidade pulsante e plural vai explodir em sua
cabea porque o mundo no se limita idia que se venha a ter dele,
porque ns mesmos somos essa matria viva e pulsante, a qual no
se pode pr em parnteses e para a qual impossvel estabelecer um
espao absoluto de atuao.
A falaciosa afetividade dessa subjetividade ditatorial e em colapso de
&DSRWHFRPHDDFDUHPHYLGQFLDDSDUWLUGRPRPHQWRHPTXHR
assassino resiste em contar detalhes da fatdica noite. Diante dessa
GLFXOGDGHTXHDWUDSDOKDWDQWRDDFRPRGDGDLQWLPLGDGHGH&DSRWH
com seu namorado quanto, pior, o prosseguimento do livro, o escritor
encontra um limite para seus propsitos. O outro ao mesmo tempo
a fonte e obstculo para a obra.
Quando pressionado, o assassino confessa o crime. As fronteiras entre
o mundo da obra e o mundo da vida so devassadas. A preocupao
em escrever um livro, que at aqui tinha dominado o relacionamento
entre Capote e o assassino, choca-se com a faticidade do crime. At
certo momento, com a seduo de Capote se manifestando, o assassino era um homem, algum digno de ser amado. No era um malfeitor. Atraindo o mundo para a sua obra, Capote nos proporciona certa
sublimao do terrvel. Porque aquilo que ele experimenta, aquilo
que ele quer ver, aquilo que ele prova ganha autoridade em funo
da qualidade de intensa expresso. A uma vivncia obsessiva parece
corresponder uma escrita delirante. Pois em uma e outra sempre nos
DPRVDVVRPEUDGRVSHODJXUDGHXPJUDQGHHPDUDYLOKRVRDXWRU

Teoria da Arte e do Teatro

125

No entanto, o assassino confessa, narra com detalhes o srdido ato,


que no passou de um hiperblico e intil assassinato, realizado por
descontrole e sem nenhuma recompensa econmica. A inutilidade levada aos extremos no se chocaria com a obra-prima, fruto de tanta
mentira? Ou melhor - ser que as festinhas intelectuais de Nova York
no so como as gaiolas de gente das prises interioranas?
O assassino est confuso. Descobre em Capote um estranho amigo,
um ambivalente ajudador. O interesse por sua histria, por sua vida
louca, consumir essa desgraa toda vai aos pouco surgindo ao assassino quase que como um consolo. O desespero da morte esvai-se
GLDQWHGRGHVHVSHURGHTXHPFD
Porque no houve amor nem sexo. O homossexual aberto a todas
as experincias, o homem fascinante fulgura nu e desolado. Todos
RV SURFHGLPHQWRV HIHWXDGRV SDUD JDUDQWLU D REUD ]HUDP FRP TXH
Capote perdesse sua existncia. A obra, a glria da obra no lhe devolveu todos os esforos, todo o imenso esforo que empregou em
GHL[DUGHVHUDOJXPSDUDVHUXPHVFULWRU$VVLPFRPRDELRJUDDGR
DVVDVVLQRHDGH&DSRWHVHLQWHUSHQHWUDYDPQRLQFLRGROPHFRPR
XPDHVWUDWJLDGHVHGXRDJRUDHVVDVELRJUDDVQRYDPHQWHDSUHsentam paralelas, mas de modo cruel: os dois tiveram infncias, coPHRVGLIFHLVDJRUDWPQVDVVHPHOKDGRV2HQUHGRGRDVVDVVLQR
HPVHXLQFLRPHLRHPDKLVWULDGH&DSRWH&DSRWHTXHUHQGRHVcrever, acaba escrito. A escrita no salvaguarda contra o mundo. Ao
se aproximar do sem sentido da vida, da vida em seus tantos absurdos deve-se ter em mente que no h como se refugiar em si mesmo.
Em ltimo lugar, fechando as pontas, o impressionante que
este filme sobre um escritor, acaba por se mostrar como metaficional, uma discusso mesma sobre as relaes entre fico e
realidade. Pelo exemplo de Capote fica patente que quem quer
que se valha de material cotidiano ou biogrfico para escrever
vai se defrontar com uma pluralidade de questes que se resolvidas apenas por oposies isso pode acarretar dificuldades no
s para a escrita, como tambm para o prprio escritor. Para ns
que vimos o filme, a obsesso com uma vivncia alheia sempre
uma obsesso com a vivncia prpria. Ns nos apropriamos o
tempo inteiro dos outros e da imagem que os outros tm de ns.
E, em algum momento, parece que temos certeza de quem somos. Logo depois um outro que conhecemos ou um outro que diz
algo de ns chega e tudo muda. O que mais impressiona que a

126

Curso de Especializao em Teatro Distncia

agonia final de Capote pode ser entendida como a perplexidade


que nos toma quando queremos definir quem somos. Manipulando relaes interpessoais, submetendo as mais abjetas figuras a
uma convivncia pragmtica - tudo em funo de um resultado
que considerava o melhor e sublime - Capote desrealizou-se, deshumanizou-se. Em um primeiro momento, era bom e doce ver e
ouvir por meio dos olhos de Capote. Aps, o mundo ficou terrvel,
desabitado, morto Capote um assassino, fazendo desaparecer
as pessoas; o mundo de Capote desvanecendo-se... Ao fim do
filme, pelos olhos de Capote, pelos olhos do grande ator Philip
6H\PRXU +RIIPDQ VREUDP DSHQDV DTXHODV SDLVDJHQV LPHQVDV
distantes, fixas que atravessam o filme, aquela sensao de no
haver ningum ali h muito tempo.

11.6

CAPOTE E A
MARCHA DO
IMPERADOR?
QUE ESTRANHA
APROXIMAO...
Marcus Mota
13-03-2006

Mas a auto-destrutiva subjetividade da personagem Capote partilha e muiWRGDLQDRGDVXEMHWLYLGDGHYLVWDHPA marcha do Imperador. Negativa
ou positivamente, acompanhamos essa luta contempornea em pessoalizar todos os atos, em marcar todos os valores e julgamentos sob o signo
GDJXUDKXPDQD$$FDGHPLDPHVPDVHWRUQRXXPFast food, com teorias
TXHSDUHFHPMXVWLFDWLYDVGHRSHVSDUWLFXODUHV&RPDTXHGDGRVJUDQdes ideais, a cultura ocidental optou por naturalizar tudo em torno de um
centro de orientao: emoes pessoais, a intimidade devassada.
Se no, vejamos. A marcha do Imperador seria um documentrio soEUHELFKRV0DVROPHGH/XF-DFTXHW HVWRXFRPHQWDQGRRRULJLQDO
IUDQFV TXLVH[WUDSRODULVVR3DUDTXHID]HUPDLVXPGRFXPHQWULR"
O material riqussimo e surpreendente da expedio de Jrome Maison, que passou 13 meses nas geleiras da Antrtida observando os
SLQJLQVLPSHUDGRUHVHQWUHPHDGRSRUFDQHVHQDUUDHVHPoff.
Cincia e entretenimento so conjugados.

Teoria da Arte e do Teatro

127

O material de observao apresenta a gigantesca faanha desses pinJLQVTXHWRGRDQRFRPRDSUR[LPDUGRLQYHUQRVHGLULJHPSDUDXPD


certa regio da Antrtida para cumprir com os rituais de procriao
que asseguram a continuidade de sua espcie. Os longos percursos
GHPDFKRVHIPHDVSHODEUDQFXUDLQQLWDGRJHORRVSHULJRVRFXLdado com a prole, a luta contra as intempries do tempo tudo isso
fornece para o espectador um painel ao mesmo tempo pico e frgil
de um grupo de animais. Frgil, porque uma drstica mudana do
clima pode exterminar toda a raa.
Agora o tratamento artstico do material. Ao invs do pico, temos
DVDWXUDRGROULFR2VSLQJLQVJDQKDPYR]HVHWULOKDVRQRUD2V
milhares de bichinhos so reduzidos a uma famlia: um papai, uma
PDPHHXPOKLQKR$VYR]HVHPoffDWULEXHPDRVSLQJLQVLGLDV
emoes, reaes tipicamente humanas e classe mdia. O auge dessa afetuosa representao est no clmax audiovisual do intercurso
FDUQDO HQWUH SDSDL H PDPH SLQJLP 6RE D DXUD GH XPD FDQR
bregussima tipo motel, ns vemos aquelas geladeiras ambulantes
fazendo... amor!... E falando, falando, falando, declarando-se. Como
se fala na Frana!
Colocar bicho pra falar uma velha tradio. Mas aqui no h fbula
e sim uma bizarra mistura de um papo conservacionista com uma
novelinha. Essa bizarra mistura no nem uma narrativa dramatizada nem um discurso coerente. No gente falando, nem muito
PHQRVELFKRDJLQGRFRPRELFKR$VFDQHVTXHDWUDYHVVDPROPH
ora relacionam-se com os eventos em cena, ora duplicam o discurso
conservacionista, mas, nesta duplicao, ainda vale-se de recursos de
marcao emocional exacerbada.
2XVHMDDQWHVGDSULPHLUDPHWDGHGROPHWHPRVXPDVDWXUDRGR
KXPDQRHPXPOPHTXHPRVWUDDQLPDLV$IDPOLDYHQFHQGRVREUH
todos os obstculos, contra a natureza mesma, a emblemtica conFOXVRGROPH7XGRWRSHULJRVR7XGRWRDPHDDGRU2XQLYHUso inteiro conspira contra o casal e seu beb. Momentos alegres se
revezam com momentos tristes. Em quase duas horas vemos a vida, a
YLGDWDOFRPRHOD2OPHQRVREUHSLQJLQVVREUHQV
vHVWDGLPHQVRDXWRUHH[LYDGHQRVVDFXOWXUDTXHVHGHVWDFDQHVVH
HPSUHHQGLPHQWRFLQHPDWRJUFR2WHPSRLQWHLURVRPRVQV1R
h nada que ande, voe ou se arraste que no venha adquirir uma moldura daquilo que a comunidade humana conhea.

128

Curso de Especializao em Teatro Distncia

(VWDLGHQWLFDRDQWURSLGHDQWLJD2SHQVDGRUMQLFR;HQIDQHV
no sculo VI a.C. , censura aqueles no sabiam distinguir as fronteiras entre o humano e o no humano. Para ele, Homero e Hesodo
atriburam aos deuses tudo quanto entre os homens desonroso e
repreensvel como roubo, adultrio e mentiras uns com os outros.
 2VPRUWDLVDFKDPTXHRVGHXVHVQDVFHPHTXHWPURXSDVYR]H
corpos como os mortais tm. Esse trao semita encontra-se no Gnesis bblico com a um Jav dizendo que criou o homem sua imagem
e semelhana.
Bastou um sculo com duas guerras mundiais e dezenas de outros
fatores para que se implodisse esse humanismo e que no lugar dele
se colocasse a globalizao, a mundializao do sujeito consumidor,
alheio a um mundo maior que o de sua residncia, sentado em seu
sof, comendo e contemplando as coisas em sua tv. Este esvaziamento de grandes perspectivas, de perspectivas maiores que o ato de pagar com o carto de crdito ou clicar um boto acarreta uma nostalgia
de um lugar seguro, de uma referncia. Quando Deus, Estado e Indivduo soobram diante das desgraas repercutidas pelos meios de
comunicao e reproduzidas em largas escalas nos produtos culturais
massivos, preciso encontrar um lugar estvel, uma segurana.
Porque o que est ameaado, o que est marchando para a sua extinRQRRSLQJLPLPSHUDGRU$SVWDQWRVVFXORVFHOHEUDQGRDVL
mesma, nossa cultura defrontas-se com seu esgotamento ou com seu
GHQLWLYR TXHVWLRQDPHQWR VHU TXH H[LVWH DOJR DOP GR KXPDQR"
(VVDKLSHULQDRGDLQWLPLGDGHH[SRVWDQRLQWHUFXUVRHQWUHPDPH
HSDSDLSLQJLPQRVHULDXPDGHPRQVWUDRGHQRVVDDJRQL]DQWH
falta de plasticidade. Com o mesmo barro h sculos forjamos uma
imagem nossa em tudo que nos cerca. Contra este envoltrio, forjamos uma autoimagem capaz de estar em todos os lugares o tempo
inteiro. E agora s vemos isso ns.
Capote nos mostra a extino do homem por ele mesmo, sua morte
em vida, sua desrealizao. O mpeto de uma pessoa s em conformar
vidas alheias acaba por desvitalizar a sua prpria vida. E como autor
e como pessoa, Capote deixa de ser para se perder no labirinto que
reagiu contra seu arquiteto.
O estrondoso sucesso da novelinha-documentrio A marcha dos
pingins nos aponta para aceitao da saturao da pessoa. Tudo
pessoal, tudo foi feito para voc, porque voc importante. Essa re-

Teoria da Arte e do Teatro

129

DUPDRGDSHVVRDHPXPPXQGRFDGDYH]PDLVPDUFDGRSHODLQtolerncia e conservadorismo um canto de vitria da no mudana,


da restrio ao que vai alm do crculo em volta de ns mesmos. Cada
vez mais tudo particular. a universalizao da coisa prpria pela
expropriao da coisa alheia.
Mas em alguns momentos, quando a imagem captada se descola de
seu aparato, podemos ver o bicho, o bicho mesmo, como ele s vezes .
A montagem das imagens e a redundncia da msica cessam seu imperioso reino de seduzir e podemos ver algo que no nos pertence ou
que nos pertence de uma outra maneira. Essa descontinuidade, esse
estranho lugar vazio na imagem nos mantm em expectativa, uma exSHFWDWLYDTXHGXUDQWHROPHQRVHFRQUPDQRHQFRQWUDVHXREMHWR8POPHPRVWUDPXLWDVFRLVDVHHQWUHHODVFHUWRVYQFXORVTXHQR
VHJXHPDLQH[RUYHORUGHQDRGRX[RGDTXLORTXHH[LELGR
Esse rasgo, essa cova atrai tanto como a novelinha. Junto com a trama
SDSDLPDPHOKLQKRREVHUYDPRVDOJRTXHQRVHQFDQWDHHQWXVLDVPD$UHH[LYLGDGHGDSHVVRDTXHSDUHFHRWHPSRLQWHLURUHSHUFXWLU
em todos os produtos da cultura, ganha aqui seu limite e seu fundamento: ser que expandimos obsessivamente nossa presena na terra como modo de reagir quilo que desconhecemos e que ultrapassa
HPSRGHUDTXLORTXHSRVVXPRV"3RLVDQDOGHFRQWDVGHYHKDYHU
DOJXPDUD]RSDUDFDUPRVQRYHOL]DQGRXUVLQKRVSDQGDVJROQKRV
ces e gatos e, principalmente, ns mesmos.
7DOYH]SRUTXHVHMDLVVRPHVPRTXHVRPRVJXUDVJXUDDJLQGRSRU
JXUDVHVHPWULVWH]DRXDOHJULDVWHPRVXPOLPLWDGRDFHVVRTXLOR
TXHHVFDSDDQRVVDUHDOLGDGHGHJXUDVTXDQGRHPDOJXQVPRPHQWRV EUHYHV GHL[DPRV YHU SDUD QRV FRQUPDU H QRV WUDQVIRUPDPRV
em coisas entre coisas.

130

Curso de Especializao em Teatro Distncia

11.7

SYRIANA!!! ENTO
HOLLYWOOD
ADULTA AGORA?
Marcus Mota
21-03-2006

Novamente a questo da dramaturgia. A tentativa de abarcar culturasdiversas por meio de um roteiro frouxo coloca diante de ns a
descontinuidade entre bons propsitos e sua resoluo. H tempos
preciso que se tenha em mente que no com boas intenes que se
ID]XPERPOPH6HIRVVHDVVLPDPDLRULDGHREUDVGHQRPLQDFLRnais teria alguma qualidade.
3ULPHLURYHMDPRVDVLQWHQHV$VYULDVKLVWULDVDSUHVHQWDGDVQROPH
procuram mostrar como a questo do petrleo e suas implicaes econmicas interferem na vida de pessoas das mais variadas culturas megacorporaes, pequenas empresas, gente simples, agente secretos, um emir
reformista, um garoto paquistans convertendo-se em homem-bomba...
Essa busca pelo global, esse didatismo marxista, contudo, esbarra
nas limitaes de sua organizao. O importante no englobar o
mundo, para mostrar quo importante isso o que se est defendendo. O problema falhar nisso. A entra a dramaturgia. Pois a transposio de uma aguda cartilha marxista para a tela o que poderia ser
uma coisa inteligente, adulta constitui aqui um despropsito, uma
perda de oportunidade, o desenvolvimento de expectativas negativas frente a empreendimentos futuros assemelhados, um desservio.
Olha, se voc quer ser srio, voc tem de ser srio em tudo. No basta
delegar a relevncia do tema para o pblico. voc mesmo que tem
de fazer algo relevante. Nisso temos a falha de todos os bons propsitos, de todas as boas intenes. Todos so louvveis, necessrios. Mas
no passam de algo sobre o que a gente apenas fala, perpetuando a
convivncia com questes que no so resolvidas.
A dramaturgia a chave. A amplitude da questo do petrleo veiculada atravs de tramas paralelas. Estas tramas paralelas so exibidas
HPVHTQFLDVGUDPWLFDVTXHQRVHUHODFLRQDPHQWUHVLGXUDQWHD
PDLRUSDUWHGROPH

Teoria da Arte e do Teatro

131

0DV R HTXYRFR PDLRU QR HVW QLVVR 2 HTXLYRFR HVW QDV VHTQcias mesmas. Elas so frouxas demais, muitas vezes informativas em
excesso, com pessoas falando, falando sem que haja realmente ao
alm de dizer palavras e contracenao. Estes papagaios de cartilha
marxista aparecem na tela, vm e vo ao sabor das imagens sem que
retomem ou projetem ou construam alguma presena vlida. A frou[LGRGDVSDUWHVLPSORGHDSHUVSHFWLYDJOREDOL]DQWH$RPUHVWDR
LQYHUVR GDV LQWHQHV 'H OPH GHQQFLD GH OPH DGXOWR GH OPH
VULR6\ULDQDFRQYHUWHVHHPXPDOLPLWDGDJHQHUDOL]DRGHFULDQDV
alimentadas no leito expansionista e imperialista norte americano. O
OPHUHSURGX]HVVDYLVRLPSHULDOLVWDHVVHLQIDQWLOLVPRQDVXWRSLDV
e destruio de utopias das personagens e na ausncia completa e
DEVROXWDGHJXUDVIHPLQLQDV
Ah, sempre o negativismo... Para ser adulto e srio as pessoas preciVDP QHJDU WXGR0DV RV FRZER\V FRQWLQXDP PDOYDGRV $JRUD EULQcam de conspirar, de procurar mostrar que sabem mais que todo
mundo, por que esto envolvidos ativamente nas maiores desgraas
GRV OWLPRV DQRV 1R SRU DFDVR R GLUHWRU GH 6\ULDQD 6WHSKHQ *DJKDQRURWHLULVWDGH7UDIF(8$HDVGURJDV2XVHMDJOREDOL]DR
fruto do provincianismo.
Propondo um filme sem nexos entre as situaes e sem situaes
TXHVHDSURIXQGDP6\ULDQDDWXDOL]DHVVHPXQGRGHQWURPXQGR
esse autismo da cultura norte americana, no qual a informao
mais importante que a real vivncia. A aparente complexidade do
filme e do tema uma iluso fundada na autocelebrao dessa
cultura autista. Na verdade, tudo mais bem simples do que aquilo que o filme apresenta. Bastam certas decises. E essa confuso
tomada por complexidade faz parte de uma mente juvenil que no
consegue deglutir o que devora por que tem medo de se expor,
de participar do que realmente . to infantil esta pretenso de
seriedade do filme que h um enorme esforo em no se recair em
aspectos emocionais, em no haver envolvimento entre os personagens. O que move os personagens so idias. Mas uma coisa
sentimentalismo, outra marcao emocional. Na busca de tentar
VHGLIHUHQFLDUGHRXWURVILOPHVSLSRFD6\ULDQDUHFDLQDPHVPDDUmadilha: uma homogeneidade da resposta da audincia, aqui produzida via um desorganizado painel de alguma coisa que sugere
ser importante, mas que soobra, vira runa diante de seu tratamento cinematogrfico.

132

Curso de Especializao em Teatro Distncia

(QPYHQGRROPHRHVSHFWDGRUFDQDTXHOHLPSDVVHRWHPDGR
OPHLPSRUWDQWHPDVROPHFKDWR6HQRHQWHQGRHQRVRX
LGLRWDRXVXSHUFLDO6HHQWHQGRHGLJRTXHJRVWRHVWRXPHQWLQGR
,PSDVVHIFLOGHVHHVFDSDUYLHVHLSRUTXHROPHQRSUHVWD$VVLP
DRQGDDGXOWDHP+ROO\ZRRGVH[LVWHSDUDTXHPQRTXHUFUHVFHU
(QWUHXPOPHTXDGUDGLQKREHPIHLWRHHVVHGHVDUWLFXODGRHSVHXdointelectual e artstico no h muita diferena. No por falta de
denncia e boas intenes que o mundo continua o mesmo. por se
criar esta moldura, este paraso ou inferno em volta de tudo que as
FRLVDV FRQWLQXDP FRPR HVWR 2 QRPH 6\ULDQD TXH G WWXOR DR Ome traduz isso: refere-se a uma idealizao da realidade, a uma pressuposio por parte dos ocidentais quanto a uma regio do Oriente
Mdio. O Oriente do Ocidente um interesse que se explicita tanto
QDVPDQREUDVSROWLFRPLOLWDUHVTXDQWRVQDVUHSUHVHQWDHV6\ULDQD
DLQGDHIHLWR6\ULDQD

11.8

COMICIDADE:
ADAPTAO
DE PEAS DE
ARISTFANES
NO ESPETCULO
A TICA UMA
COMDIA
Marcus Mota
23-5-2006

Aristfanes vale o ingresso. A adaptao de parte de Um Deus Chamado Dinheiro e de As nuvens produz esta despretenciosa comdia
A tica uma comdia$HFLQFLDGDDGDSWDRHVWHPDOJXQVGH
seus recursos de materializao da comdia. Os senes se encontram
justamente quando trazem Aristfanes sem esses recursos. Eis o paradoxo: a parte mais engraada no Aristfanes, mas por causa de
Aristfanes que as coisas se tornam engraadas.
Tal paradoxo se esclarece: a comicidade est muito relacionada com
a cultura, com as referncias. Rimos do que conhecemos, do que sabemos, mas no queremos discutir. Em parte aquilo que a adaptao

Teoria da Arte e do Teatro

133

OHYRXSDUDRSDOFRSDUHFHVHUXPSUREOHPDTXHKRMHWDQWRQRVDLge tica -. No entanto, esse no era o alvo crtico de Aristfanes.


A seriedade do tema no torna uma comdia algo relevante. Nesta
montagem, os trechos selecionados de Aristfanes procuram incrementar essa pressuposta postura desmascaradora da comdia, que
denunciaria todos aqueles que querem agir em benefcio prprio em
detrimento de valores e da sociedade.
Mas o melhor est na criativa apropriao da comdia de Aristfanes em
ritmo meio chanchada, meio teatro de revista, tanto com a marchinha
0LQKDWHUUDWHPSDOPHLUDIRUPDQGRDVDEHUWXUDVHQVGHSDUWHVTXDQto nas atuaes caricatas. Os exageros, as caretas, os cacos, os palavres,
as pssimas dancinhas - tudo isso no importa. A esculhambao organizada da pea no veio para agradar classicistas empedernidos.
$OLGLDQWHGDTXHODSREUH]DGHFHQULRVHGHJXULQRVEHPIXQFLRQDLV
HHFD]HVRSEOLFRSRGHULDHVWDUFRPRQD*UFLDGLDQWHGHDOJRIHLWR
para rir e para pensar, mas, antes de tudo, diante de um espetculo
engraado. Nunca um palavro foi to gostoso, como as intervenes
do nosso Strepsades, o Adalberto Nunes. Nunca a bichice atribuda aos
atenienses foi to grotescamente explorada como no nosso Scrates
Roberto Wagner e seu coro de nuvens. Quando no se tem te pagar pedgio, a pista livre, e dessa liberdade advm algo: uma total e preciosa falta de ridculo,de um ridculo como defesa pra agradar intelectual.
Certo que h problemas. A limitao dos comediantes com o texto os
coloca algumas vezes atrs das palavras, expondo no o personagem,
mas o ator e sua falta de preparo para a cena. Mas um comediante no
um ator stanislavskiano. Um comediante no se aprofunda na criao
de personagens, mas sim nas habilidades para enfrentar a situao de
produo de comicidade. E o que um ator da comdia de Aristfanes
fazia seno estabelecer contato com seu pblico, reinterpretando o
que em cena era apresentado? Este tipo de interpretao atravessada,
difusa, enviesada, segue um distinto padro de construo.
Ora, est na hora de julgar e apreciar a comdia pelo que ela . Diretores, comediantes e pblico precisam assumir a comdia em sua total
dimenso. Fazer comdia no vai salvar o mundo, nem revelar o que
MVHVDEH1RYDPRVFDUPDLVVELRVQHPPDLVLEVHQLDQRV(QIUHQtar a disposio comunal que a comdia efetiva j um ato poltico.
Rir, rir junto, rir junto com o que os comediantes realizam esta
uma forma de ultrapassar nosso pobre individualismo. O quedai vier

134

Curso de Especializao em Teatro Distncia

MFRQVHTQFLD1RDGLDQWD[DUDPHWDDQWHV$WLFDXPDFRmdia, mas a comdia tem sua tica. Um ttulo desses faz parecer que
DVSHVVRDVYRVHUHXQLUSDUDXPDSDOHVWUD3UHUR'XDV;$ULVWIDQHV
ou qualquer outra coisa.
$FLPD GH WXGR WHPRV DOJR FRQFUHWR PVLFD DWXDHV FRP SHUO
SRSXODU WUDGLR QDFLRQDO WHDWUR GH UHYLVWD  H XP SDV TXH GHL[RX
de rir para virar platia de eventos mediados pela pauta televisiva.
H muito trabalho pela frente. Este encontro entre o mais antigo e
nossa tradio esculhambadora poder ser rica, se no recair em sua
esquematizao, nos velhos e bolorentos recursos a bordes, intil
e redundante referncia s atualidades, ao xingamento, ao palavro
autoreferente. Viva Aristfanes! Viva ns! Pqp!

11.9

DRAMATURGIA
DE MULHER,
DRAMATURGIA
FEMININA E OUTRAS
DVIDAS, A GAROTA
DA VITRINE
Marcus Mota
1-4-2006

Recentemente assisti a um espetculo que se dizia fundamentado


em uma dramaturgia de mulher. Mulheres contaram suas experincias e a partir disso, uma mulher colocou no papel o roteiro do espetculo. Alguns questionamentos vieram minha mente. Grande
parte de minha dramaturgia procura desconstruir valores atribudos
DRPDVFXOLQR3RUGXDVYH]HV HP,$*2HHP',$'()(67$ SURFXUHL
acercar-me de situaes ditas do universo da mulher. Mesmo lendo
DOJXPD ELEOLRJUDD VREUH TXHVWHV GH JQHUR H DOJXPD SURGXR
orientada por questes, certas solues e concluses dessa provocante temtica no me deixavam satisfeito. O espetculo acima referido por exemplo. Ele todo articulado em fragmentos, fragmentos
TXHPRVWUDPJXUDVHVWLOKDDGDVJXUDVGHDOJXPHPEXVFDGHVL
mesmo, e que sempre se depara com um Outro- o Homem fonte e
mvel dessa busca. A identidade est l fora, no Outro. E todos os estilhaamentos e verborragia em cena so uma luta contra isso. Tudo

Teoria da Arte e do Teatro

135

XPVRIULPHQWRV1RKKXPRUQHPGHQLRGHDHVHUHVROXHV
que superem os entraves. Em meio a esta convulso que se revolve na
PHQWHGDVJXUDVWHPRVLPDJHQVEEOLFDV(YDVHUSHQWHLPSXUH]D
que reforam uma viso que a estilhaada personagem tem de si a
SDUWLUGR2XWUR$RPFRPRXPDOLEHUDRGLVVRDJXUDUHFODPD
uma nostalgia do passado, uma resposta na infncia: virar criana.
Ora, essa dramaturgia feminina uma dramaturgia masculina, uma
dramaturgia feminina s avessas. Continua presa ao Outro que a deQH$OLEHUWDREDVHDGDHPXPDSXUH]DLQIDQWLOFRQWUULDH[SHrincia, continuidade da experincia. Os encontros causam traumas,
problemas, mas ensinam e no so eternos. E eu no sei por que tudo
tem de ser to sofrido, to doloroso. Sob a imagem-princeps do hmen que toda essa dramaturgia se articula. O contato com o outro
sempre uma ocasio para a dor e decepo. O outro o invasor, o
outro me faz mal. Para me livrar disso, preciso me refugiar, livrar-me
do outro: ser criana.
Mas a gente precisa crescer um dia. Essa idealizao preventiva da reDOLGDGHDXWLVWD$RLQYVGHIDODUIDODUIDODUGHVDQGRRVGHWDOKHV
do rompimento e da desiluso, preciso ir alm da intimidade devassada. preciso ir alm da cerca, sair da janela. A beleza das belas
palavras, esse lirismo consolador, essa poesia de si mesmo muito
juvenil. Por que no uma pica, um avanar, um conquistar, um herosmo de fronteiras ?
$RPRWUDWDPHQWRGHDOJRLPSRUWDQWHIHLWRGHPDQHLUDHTXLYRFDda acaba por proporcionar uma situao para discusso e no para
representao. Acho essa uma armadilha de alguns espetculos temticos. A importncia do contedo discutido supera seu tratamento artstico. Pois, nesse caso, s nos resta nos solidarizar com aquela
mulher que sofre, sofre e vira uma menina. Muita gente coloca dor e
FULDQFLQKDVHPOPHVSDUDTXHKDMDXPDXQDQLPLGDGHXPDSDUWLOKD
de emoes. A gente concorda com tudo. A gente continua na mesma.
Contudo, eu me revolto contra isso. Porque, de outro lado, h uma outra dramaturgia, que no sublima nada: violenta, impactante e sem
QRVWDOJLD/HPEUDUWHUUYHO$JLUPDWDU$FDUQLFLQDGRVKRPHQV
a longa histria do terror ao qual homens submetem outros homens
HWRGRVRVKDELWDQWHVGDWHUUD QRDFDEDVFRPDPHQWHQRVH
deixa aprisionar por belas palavras. O terrvel, o grotesco, a violncia,
o abuso, a desgraa tudo isso precisa ser vencido pelo grito, pelo

136

Curso de Especializao em Teatro Distncia

constrangimento e pelo ridculo. E eu espero fora, mais fora, dio


at de mulheres escrevendo, de dramaturgias de mulher. Porque
com fora e violncia que certas coisas se mostram. Quando no h
brisa algum precisa soprar. No espero por pessoas inteligentes e
sutis: quero pessoas objetivas e diretas.
Quando um homem nasce, muito se espera dele. Mesmo que os tempos tenham mudado, um homem um homem, e no h como fugir disso. At que chegue a idade que escolha o que quiser, no h a
criana, o menino. Nesse duro ofcio, em casa e hoje muito mais na
UXDHOHYDLWHUGHVHH[SRU1RYDLFDUQDMDQHODROKDQGRQHPVLmulando outra casa com seus brinquedos. Se chora, vai ter que calar.
Se fraqueja, vai ter que se tornar forte. Para frente, para fora, para
depois, sua meta. Precisa acertar, bater e fazer cair. As pessoas lhe
pedem isso. Seu corpo tambm. E no pode parar. No h descanso
para ser homem. No h paz. Da vem um certo orgulho, da vem a
certeza da recompensa. Ele deve ser recompensado por toda luta, por
todo trabalho. Pode suportar tudo por essa recompensa: cobranas
e exigncias dos familiares, provocaes dos amigos, competies.
Isso o homem: algum que se esfora por um prmio, uma raa que
precisa ser recompensada. Por isso se chamam heris. Por isso toda
essa imensa mquina cultural de violncia e destruio que acompaQKDHVVDHVFDODGDVHWRUQDLQFULYHOPHQWHMXVWLFDGDSRUPDLVWHUUYHO
brutal e injusta que seja.
Acho que as mulheres precisam parar de chorar e sofrer. Precisam
parar de idealizar negativamente os machos, dimensionar um novo
herosmo que as liberte e liberte a ns. Que elas parem de lamentar o
seu sangue derramado e gozem.
Muitas mulheres tm escrito sobre isso, tm vivido assim. So minha
inspirao para essas linhas.
2OPH$JDURWDGHYLWULQH Shopgirl, EUA, 2005) de Anand Tucker, no veio
de um experimentalismo feminino, mas possui algumas solues meOKRUHV$PXOKHUGROPHDOYRGHGRLVVXMHLWRVHFRPRVGRLVGRUPHv
uma mulher como outra qualquer, solitria, trabalhando em um pequeno
emprego, morando em uma espelunca. Sem neutralizar muito diferenas
entre homens e mulheres e mesmo trabalhando com alguns esteretipos
DPXOKHUSUHFLVDVHUFXLGDGD ROPHQRVPRVWUDDOJXPXPDPXOKHU
que decide por sua prpria conta e risco fazer algo de sua vida ao invs de
esperar do Outro alguma soluo. Algumas de suas opes no do cer-

Teoria da Arte e do Teatro

137

to. H sofrimento, mas a vida segue adiante. No h o trauma do hmen


URPSLGR%RDSDUWHGROPHDSUHVHQWDXPDPXOKHUVHQGRIHOL]HQTXDQWR
feliz e triste porque est triste. Nada daquela tristeza metafsica, tristeza
GRJQHURWULVWH]DGHVHUPXOKHU'HSRLVROPHUHFDLHPXPFHUWRUHGHQcionismo via homem da promessa. Porm, a mulher que assumiu risco e
mostrou-se real e no apenas vulnervel porque mulher, isso que produziu em mim algo de bom. Pois me mostrou algum vivo.
Que contraste: a mulher geral, genrica, das idias, e a mulher da
ORMDGRH[SHULPHQWDOFDEHDDROPLQKRWROR
Acho que a questo de gnero no deve se neutralizar pela abstrao
do humano - todos somos humanos e representar o humano o que
deveria motivar as obras.
Entretanto, ao invs do humano, ou dos coitadinhos homem e mulher,
SUHURYHUJHQWHJHQWHHPVLWXDRGHJHQWHJHQWHTXHYLYHHVREUHvive, porque no h como fugir de continuar a existir. Podemos trocar
nossa solidariedade e compaixo na desgraa e dor pela alegria e comunho na persistncia. Persistir ainda no como uma idia, mas um
programa de realizaes, um roteiro a se escrever cada dia.

11.10 V DE VINGANA
Marcus Mota
14-04-2006

A premissa de V de Vingana tentadora, terrorista e utpica: jogar


uma bomba e comear tudo de novo. preciso destruir o mundo para
melhor-lo. E desde que o mundo mundo, reformadores de todas
as espcies tm se dedicado a isso, sem que haja melhora alguma. Na
YHUGDGHDVXSRVLRGHGHVWUXLUWXGRDSHQDVLQWHQVLFDHJORULFDR
projeto e o autor do projeto de renovao.
Mas o que realmente me intriga o estado pr-bomba, pr-destruiRTXHMXVWLFDULDWDODWRH[WUHPR2TXHPRWLYDDOJXPRXXPJUXpo a fazer o que faz?
1ROPHH[LVWHXPDFRDOL]RHQWUH(VWDGRH0GLDTXHVXEPHWHRV

138

Curso de Especializao em Teatro Distncia

cidados aos interesses de uma liderana duvidosa. O Estado que


WHUURULVWDLQVXDQGRPHGRHWHUURUSDUDREWHUKHJHPRQLDHFRQWUROH
Frente a isso, a nica soluo, a nica alternativa jogar uma bomba.
Mas isso mesmo? Pode haver assim esta hegemonia totalitria e exclusivista de um poder? Pode haver esta coalizo to absoluta entre
mdia e Estado de forma que a fabricao da realidade adquira um
status de realidade?
1ROPHWDODQOLVHGRSRGHUFRPRHVSHWFXORPRVWUDXPHVSHWculo pobre em sua articulao. Fatos so mostrados na tv de modo
distorcido, favorecendo sempre aquilo que o Estado apresenta como
YHUGDGH2OPHVHSURSRUDVHUXPH[HUFFLRGHIXWXURORJLDGHFRPR
sero as coisas daqui a algumas dcadas, mas lembra mais Hitler e
seu Estado-nao.
Tal caricata hegemonia do Estado via coalizao miditica fundamenta-se no tipo de domnio que os produtos da cultura de massa exerce
sobre ns. Diferentemente de uma dominao autoritria, esta domiQDRSURPRYHRSUD]HUHQRRVRIULPHQWR$VFRQVHTQFLDVSRGHP
ser terrveis, para o que convence, o que seduz no o argumento da
IRUD1ROPHR&KDQFHOHUSUDWLFDWHUURULVPRHSURYRFDXP(VWDGR
de terror por meio de armas biolgicas. O povo vota no Chanceler
para obter proteo. Depois o Chanceler descobre a cura para a praga
e a vende. Dos lucros e da represso advm a hegemonia.
2HTXYRFRHVWHPVHLGHQWLFDUR0DOHPVHUHGX]LUR0DODXPD
pessoa e a uma posio. Grupos de interesse e uma grande parcela
da populao interessada em seus prprios interesses - isso uma
combinao explosiva. Mais que uma violenta e sanguinria tomada
do poder, temos um acordo, uma combinao de vontades. Mais que
bombas, lutas, desgraas e reviravoltas, as coisas se fazem mais satisfatrias e convenientes e nem por isso mesmo menos terrveis. H
um imenso trabalho de bastidores, de convencimento, de negociao,
de partilha dos lucros e benefcios que imediatos impulsos. Essa contabilidade do poder cautelosa e assassina; invisvel, mas presente.
No uma dinamite.
Assim, os viles caricatos, monomancos, isolados em sua obsesso
de dominar, explicitando todo momento seus comandos e sua egolatria, precisam ser substitudos por algo que escapa ao indivduo,
que mais que uma pessoa, mesmo que seja algum agindo. Essa

Teoria da Arte e do Teatro

139

forte ao annima, partilhada, esta hegemonia operante no se


mata com bombas. Os participantes dessa hegemonia podem vender essas bombas, podem at comprar o detonador. Mas ser preciVR RXWUR PHLR SDUD UHSUHVHQWORV SDUD LGHQWLFORV HOHV RV YHUGDGHLURVGRQRVGRPXQGR(QTXDQWRRVOPHVPRVWUDPFDULFDWXUDV
eles renovam-se em outras formas que no cabem na tela. preciso
uma nova representao para tornar visvel essa nova ordem, cada
YH]PDLVLQVWUXGDHFLHQWHHDQLTXLODGRUD&RPRGHVWUXLURTXHWXGR
destri ? Com escapar de sermos caracterizados de ressentidos, por
falarmos de um modo negativo do poder que desconhecemos? Na
verdade se fssemos includos nessa ordem no faramos a mesma
coisa? Difcil...

11.11

O FILME O CDIGO
DA VINCI: NAO
BASTA FALAR MAL
Marcus Mota
24-05-2006

(HQPDERPEDHVWUHRXO cdigo da VinciROPH


Todo esse rebulio foi por gua abaixo. Ficou parecido com o bug do
milnio: as pessoas e as instituies esperavam algo novo e nada
aconteceu.
Talvez isso mesmo a novidade: tentar fazer algo diferente, mesmo
que um coletivo engano.
Aqui temos trs vrtices: produtos, receptores e produtores.
Sob o ngulo do produto, O cdigo da VinciPXLWRUXLP3DUDXPOPH
que se diz suspense, um thriller, ter como nica coisa ameaadora algum apontando uma arma realmente frustrante. Psicologicamente
no h emoo alguma que efetive tenses e expectativas durante o
OPH8PDFRLVDVRDVH[SHFWDWLYDVSUYLDVIRUMDGDVSHODPTXLQDGH
GLYXOJDRGROPH2XWUDVRDVGDREUDPHVPD'HRXWURODGRWHPRV
muitas cenas mal acabadas, mal resolvidas, como se tudo tivesse sido
feito meio s pressas e sem um conceito orientador da realizao. o
FKDPDGRSURVVLRQDOLVPRFXPSULUXPDVULHGHDWRVHSURQWR$PDLRU
HPHOKRUFHQDGROPHRGHXPEOEOEOVHPPQRTXDOWXGR

140

Curso de Especializao em Teatro Distncia

explicado. Essa pseudo-aula de histria, com alguns recursos visuaisFRPRRVXVDGRVQROPH0HQWHEULOKDQWHGRPHVPRDXWRURQFOHR


GROPHDJUDQGHUHYHODR0DVGHSRLVGHDOJXQVPLQXWRVDJUDQGH
revelao passado. uma idia atrativa que no tem prosseguimenWR TXH ELD QR OPH 7DQWR TXH R SVVLPR QDO  XP P VXVSHQVR
GHQWURGHXPDREUDGHVXVSHQVH"VFRQUPDRTXHHVWDFHQDFHQWUDO
mostrou: a personagem da linhagem de Jesus.
Do ponto de vista da recepo temos duas situaes: uma a do homem
mdio, suscetvel a mdia, aberto a atualidades e tambm a algo que toque a transcendncia, a uma transcendncia que se pode comprar e usufruir. Outra a das instituies religiosas, sentindo-se ameaadas com
a popularizao de frgeis idias. O que de se destacar que toda essa
revolta e polmica religiosa apenas mostra quo frgeis so essas instituies que se arvoram em protetoras da f. Essas instituies que preFLVDPGHFUHGLELOLGDGH6HFDGDEREDJHPSXEOLFDGDHOPDGDSURYRFDU
uma reao desmedida, essas instituies no vo passar de institutos
de medir reaes, opinies e efetivar retaliaes. Entre o Ibope e Procon,
tais protetorados da f valem-se de uma delegao dos crentes para toPDUDWLWXGHVERPEVWLFDVWRVXSHUFLDLVHPLGLWLFDVTXDQWRDTXHOHV
TXHSXEOLFDPOPDPSRUFDULDV$RPHVWRWRGRVQRPHVPRVDFR
O terceiro vrtice um desdobramento deste: j que tanto se pe em
circulao tais produtos quanto quem interdita seu consumo esto
em sintonia, tudo um mercado. As bombsticas revelaes tm a
mesma funo de escndalos polticos, sexuais, esportivos: proporcionar um certo esclarecimento que nada esclarece. Toneladas de liYURVHOPHVVHDYROXPDPQDVHVWDQWHVHQDVVDODV4XDQGRPDLVVH
publica, quanto mais se torna pblico tal assunto menos ele de fato
conhecido. Pois , tirando os caadores de novidades, ningum est de
fato pesquisando. O cara que compra na banca de revista da esquina
HVVDTXDQWLGDGHGHGYGVHOPHVDFKDTXHSHORYROXPHGRPDWHULDO
que possui ele realmente empreendeu uma investigao. como o
cara que compra livros e nunca os l e pensa que a posse dos livros
lhe d conhecimento. A imensa produo a socializao de nossa
inrcia coletiva. No se trata de Jesus ou Maria Madalena o negcio
FDUQRVRIQDSROWURQD(DVVLPDWRSU[LPRFDSWXOR3ULPHLUR
-HVXVQRPRUUHX'HSRLV-HVXVHUDFDVDGRHWHYHOKRV'HSRLVPDLV
no foi trado. Daqui a pouco torcia pro Flamengo e vai votar no Lula
nas prximas eleies. Esse o nosso Jesus de cada dia, cada vez mais
humano, vendvel, cada vez menos interessante, at que se esgote.

Teoria da Arte e do Teatro

141

11.12

SER? LEVANDO
PARA A CENA
OBRAS DE GRANDES
DRAMATURGOS:
MONTAGEM DE O
PEQUENO EYOLF, DE
IBSEN.

Marcus Mota
16-5-2006

(PYLDJHPIXLDVVLVWLUDPRQWDJHPFDULRFDGH23HTXHQR(\ROIQR
WHDWUR 6HVF &RSDFDEDQD   (VWH HVIRUR GH OHYDU  FHQD
REUDVTXDVHTXHLQWHJUDLVGHJUDQGHVGUDPDWXUJRVXPGHVDRWDQto para os atores quanto para o pblico. Ainda mais Ibsen. Seu estilo
palavroso quando mal transposto para cena mata a poesia do texto, a
sutiliza da interpretao e a pacincia da audincia. Foi o que infelizmente ocorreu com essa montagem.
Inicialmente temos a beleza do cenrio, um pequeno cais, as guas,
RUGH LPDJHQV IXQGDPHQWDLV GDV QUGLFDV SDUDJHQV GD SHD 0DV
depois tudo acaba. As pessoas no param de falar em cena. Em nome
de realismo de ocasio, verdadeira praga que assola a mdia, vemos
atores submetidos aos ditames de passar adiante frases, conversaes interminveis que no mostram nenhum rosto, nenhuma verve.
([FHRIHLWDDFRQVWUXRGDJXUDGDPXOKHUGRVUDWRVHGHDOJXQV
momentos de Borheim e de Asta Allmers, o resto uma chatice s. A
promessa de uma beleza, de um atrativo espetculo que o cenrio e a
USLGDHPDUFDQWHSUHVHQDGDJXUDGH(\ROIDSUHVHQWDPVRODSDda pela burocrtica performance posterior.
Que uma coisa chata isso no basta. Por qu? Poderia ser diferente?
Primeiro temos as premissas bsicas. Antes de tudo, por que Ibsen,
por que levar uma dramaturgia dessas para cena. Se a motivao
DOJXPDHIHPULGHRXFRQXQFLDGHPDUNHWLQJFXOWXUDODVFRLVDVM
comeam a desandar. Por outro lado, com a presena cada vez mais
regular de cursos superiores de teatro, temos uma demanda quase
escolar de obras e autores, de um repertrio continuamente revisita-

142

Curso de Especializao em Teatro Distncia

do. Por outro, por que culturalmente vlido, importante trazer


para o pblico este repertrio. Ou seja, em todos os casos, questes
estticas esto em segundo plano. A necessidade de se satisfazer ou
HVWLPXODUXPDGHPDQGDSDUHFHVHUDQLFDMXVWLFDWLYD
Assim, encena-se Ibsen porque ele tem um nome, tem a fora de um nome
HFRPLVVRQDQFLDPHQWRVHVSDRVDWRUHVSEOLFRWXGRFDPDLVIFLO
Mas e a obra mesma: o que ela tem a ver com esse pragmatismo?
Ora, O pequeno Eyolf, como se sabe, integra uma fase de maturidade
da carreira de Ibsen. O questionamento mesmo do intelectual, o homem de idias por um dramaturgo que se pautou por idias determina essa produo. Lembre-se Quando despertamos dentre os mortos, pea to similar a essa, com mesmo questionamento do homem
de idias, com a mesmo quadrado- os dois casais.
Como podemos ver, o prprio Ibsen entrou em crise com a cultura que
gravitava em torno do intelectualismo, da idia de civilizao que grande parte de sua dramaturgia ajudou a construir. H sempre um rano
de presbtero, de reformador moralista em Ibsen. Muitas vezes resvala
para um certo discursivismo, como se o teatro fosse uma tribunal. Ibsen luta contra essa mo de tribuna, contra esse impulso loquaz.
$R P  XPD OXWD FRQWUD DV SDODYUDV FRP DV SDODYUDV 'L]HU VHU
preciso fazer isso o tempo inteiro? Ser preciso enunciar o que est
acontecendo, o que houve?
(VWHGHEDWHHQWUHDSDODYUDHDFHQDQDSDUWHQDOGRWHDWURGH,EVHQ
contribuiu para a modernidade teatral, para emancipar a teatralidaGHGHVXDSURYQFLDGDOLWHUDWXUDHGDORVRD$VVLPRJUDQGHGUDPD
GH,EVHQXPGUDPDGHH[SUHVVRGHUHYHUVHFRPRSDQHWULRSDUD
encontrar-se como dramaturgo. As idias tm uma vida independente. E no se faz teatro s com boas intenes e grandes ideais.
Essa luta com o genrico resvala no texto uma certa poesia, imagens
HUHH[HVFXUWDVVPDUJHQVGDIHUUHQKDPDFURHVWUXWXUDHGDV[DV
linhas dos personagens. Para um homem to sisudo e com to pouco
humor como Ibsen, essa fragilidade inominada, essa explorao de
DOJR DOP GDV UHYLVWDV GH GLYXOJDR FLHQWFD DFDUUHWD PRPHQWRV
de compaixo, de contato com algo alm da enciclopdia. Deixandose levar por algo que est fora dos livros, que no reduz a palavras,

Teoria da Arte e do Teatro

143

Ibsen mostra-nos instantes de um mundo outro, possvel dentro da


organicidade vazia de uma realidade que ele tenta abolir com palavras pra todos.
Como se pode ver, h uma enorme disparidade entre o pragmatismo
TXH LQVXD PXLWDV DWXDLV FHOHEUDHV GH JUDQGHV GUDPDWXUJRV H D
problemtica dramaturgia desses autores teatrais. Tudo vem cena,
mas a cena no se deixa mostrar completamente nas coisas vistas.
O que se mostra nesta montagem de Ibsen no a pea, mas o tipo
de processo criativo, ou sua falta, o tipo de opes que foram feitas,
as preocupaes que motivaram a montagem. E, infelizmente, dentre
essas preocupaes, a maior foi decorar o texto, pura e simplesmente, sem uma escuta sensvel aos detalhes, quilo que a palavra no
diz, ao drama expressivo de Ibsen.
Um amigo meu disse que faltou emoo. Algum poderia responder
TXHLVVRQRSUSULRGDHVWWLFDGH,EVHQ6VHLTXHSUHURXPIDlatrio do qual eu participo e saio do que uma verborragia que nem
mesmo seus articuladores se entendem ou interagem.
Assim, montar um grande autor somente porque ele grande sem
HQIUHQWDUHPXPSURFHVVRFULDWLYRDHVSHFLFLGDGHGHVVHDXWRUDFKR
que isso faz currculo, pe o circuito cultural em movimento, emprega
gente, mas perpetua um fordismo, uma linha de montagem industrial
TXHVRFLDOL]DHVWHUHWLSRVHDERUGDJHQVVXSHUFLDLVGHVVHVJUDQGHV
DXWRUHVTXHVRWRGRVLJXDODGRVQREOEOEOVHPPVHPFDOGR
mediano de ilustrao civilizatria.
Quando li O pequeno Eyolf TXHL FKRFDGR SHUSOH[R FKRUHL DW 2Qtem oscilei entre isolados belos momentos e uma imensa vontade de
ir jantar. Com atores presos ao texto, sem esboar reaes aos terrveis
eventos em cena, no restava platia mais nada que esperar o tempo
SDVVDU8PFDVDOTXHRWHPSRLQWHLURYLYHHPGLIFLOUHODRXPDJXUD
estranhssima que causa repulsa e atrao, um menino que morre entre tantas coisas e todos em cena inertes, jorrando palavras. E no me
venham dizer que na Europa, que na Noruega assim!
6HDLVVRXQVTXHUHPFKDPDUUHDOLVPRGHUHVSHLWRDRDXWRUSUHUR
crer que se trata de pressa...

144

Curso de Especializao em Teatro Distncia

GREGA
11.13 TRAGDIA
EM CENA: O GRUPO
GIZ-EN-SCNE

Marcus Mota
11-06-2006

GHMXQKR4XLQWDIHLUDKRUDV$QWHDWURORWDGRPDLVGHWUH]HQtas pessoas, na sua maioria jovens estudantes. Todos reunidos para


ver e ouvir Filoctetes, de Sfocles. No, voc no est em Atenas. Estamos em Araraquara, interior de So Paulo, no campus da Unesp,
diante de leitura dramtica realizada pelo grupo Giz-en-Scne. H 19
anos professores universitrios seguidos por alunos colaboradores
tm se dedicado a levar ao pblico obras clssicas gregas, latinas e
sanscrticas. Especialistas em suas reas, estes professores escolhem,
traduzem e adaptam os textos, com muita percia e cuidado. Para melhor tirar proveito da situao de apresentao, aliam a este trabalho
WH[WXDORGHSURGXRFHQULRREMHWRVGHFHQDJXULQRGLYXOJDR
programas, ensaios. As leituras acontecem normalmente durante
eventos acadmicos, quando o grupo convidado no para ilustrar
RVGHEDWHVLQWHOHFWXDLVPDVVLPSDUDPRVWUDUDHFFLDGHVWDVREUDV
mesmo aps sculos de releituras e desleituras.
Com isso, o Giz-en-Scne efetiva uma imensa contribuio cultural ao nosso pas. A democratizao do contato com a performance
dos clssicos promove uma reviso de uma srie de mal entendidos
quanto funo e transmisso dessas obras. Infelizmente, na maioria
das vezes, perdura ainda um certo elitismo diletantista em relao
ao legado clssico. Como saber poder, o ter acesso a essas obras
muitas vezes acarreta uma certa aura mstica, uma infeliz vaidade
que posiciona o investigador fora do tempo e da realidade do fazer
pesquisa em um pas como o Brasil. Os que sabem, os se familiarizam
FRPWH[WRVFOVVLFRVVROWURVGHFRQKHFLPHQWRV'HYHPDJLUFRPR
facilitadores e no como obstculos. O carssimo custo de se manter a
HVWUXWXUDXQLYHUVLWULDH[LJHSURVVLRQDLVJHLVHLQWHUDWLYRV
3ULPHLUDPHQWHSRLVR*L]HQ6FQHGHVPLVWLFDRSURVVLRQDOFRPHUXdio nos clssicos. Grande parte dos textos dessa afortunada tradio
se relacionava a contextos performativos. Performar saber. A performance produz conhecimento. No s as condies materiais de performance mas o ato mesmo de propor eventos para uma audincia difun-

Teoria da Arte e do Teatro

145

GHP XPD H[SHULQFLD TXH PRGLFD TXHP GHOD SDUWLFLSD )HUUDPHQWDV


performativas nos ajudam no s a materializar estas obras mas a comSUHHQGODVHPVHXVHVFRSRVUHIHUQFLDVHPDUFDVHVSHFFDV7UD]HQGR
estas obras para a realidade audiovisual, muitas de nossos pressupostos
so corrigidos. Os membros do Giz-en-Scne no so atores, assim como
ns no somos gregos. O que importa que uma cuidadosa realizao
e produo, mesmo com suas limitaes performativas, esclarece muito
mais sobre uma tragdia grega que certas especulaes completamente
divorciadas da concretude de um espetculo.
Segundo, o centro de orientao no est somente em um saber livresco. A platia precisa participar, acompanhar, fazer um esforo.
Olha, Filoctetes e suas longas falas em uma quinta feira noite sendo
aplaudido isso rarssimo. No mais apenas o que o professor diz,
e sim aquilo que voc como observador pode captar. A construo de
expectativas, o reconhecimento das partes do espetculo, o cruzamento das referncias, entre outras atividades, ativa um acabamento
do espetculo, uma apropriao da obra por parte da audincia. As
palavras ditas so mais que palavras, mais que feitos de lngua. Pois,
por mais que muito seja dito, h pessoas, h contextos, h atos, um
mundo que ultrapassa a linguagem o mundo a ser compreendido. A
SHUIRUPDQFHGHVFHQWUDRWH[WRDLGHRORJLDGDSDODYUDQDOGDLQWHUSUHWDRQDOGHVHXSRUWDGRU$SHUIRUPDQFHIDFXOWDXPDH[SHULQcia ampla, multiforme e ao mesmo tempo partilhada de um evento.
No estamos sujeitos ao certo e ao errado, reproduo de uma idia
e de seus decorrentes privilgios. Todos esto assistindo. O espetculo para todos. No h uma voz privilegiada, uma instncia superior
que autoriza, valida ou canoniza interpretaes. Aqui o comentrio
no predomina sobre a apreenso da obra em sua globalidade.
Terceiro, com esta operao de descentramento, a situao de aprendizagem melhor enfrentada. H uma homologia entre compreenso
e performance. Normalmente nos informamos de coisas que no conhecemos nem experimentamos. Muitos estudam tragdia grega exclusivamente lendo textos, decompondo-os. Nunca tm um contato com
sua realizao audiovisual. como aprender a mecnica de automveis
e nunca dirigir um carro. como sobrevoar uma cidade e nunca morar
nela. Os espetculos que o Giz-en-Scne performa unem conhecimentos
que so separados, habilidades foram dissociadas pela nossa tradio de
ensino, que privilegia a transmisso verbal de conhecimento, a homogeneidade dos contedos e a centralidade do professor. Ora, se um professor pode dar suas aulas e ao mesmo tempo engajar-se nessas atividades

146

Curso de Especializao em Teatro Distncia

H[WUDFXUULFXODUHVLVVRVLJQLFDTXHWHPRVXPDH[LELOLGDGHH[LELOLGDGH
tal que em muito contribui para o tipo de conhecimento que estamos
trabalhando. impossvel lidar com obras fundadas em contextos performativos sem ferramentas performativas. Perguntem a qualquer outro
investigador de qualquer rea se o conhecimento que ele produz no
est associado com as condies materiais efetivas de sua realizao e
veja a resposta. Todo argumento e abordagem antiperformativo uma
prtica redutria. Essa torpe viso de ver espetculos como instrumentos
didticos que ilustram idias no passa de uma recusa da amplitude da
SHUIRUPDQFHHVXDVFRQVHTQFLDVSDUDRHQVLQRHDSUHQGL]DJHP3RLV
muito mais fcil discutir contedos desprovidos de suas implicaes
performativo-contextuais e criar teorias ou um senso comum que elimine as perturbaes performativas que enfrentar tais perturbaes.
Falo de cadeira. A primeira vez que vi o Giz-en-Scne foi em 2001, durante um congresso em Ouro Preto. No simptico teatro da cidade, o
programa cultural do congresso nos brindava com a apresentao de
uma tragdia e de uma comdia.
Naquela poca eu estava escrevendo meu doutorado sobre a dramaturgia musical de squilo e toda hora tinha de me remeter a tradies
artstica outras pera,cinema, teatro - para dar conta do contexto
de realizao da tragdia grega. A interdisciplinaridade no meu caso
era uma questo de sobrevivncia, j que estudava enfrentando a falta de um contato com obras, com uma tradio de obras dramticomusicais que se apropriavam dos clssicos.
Mas aquela noite foi fulgurante para mim. De uma hora para outra
meus olhos se abriram. Durante a leitura dramtica de Antgona, na
FHQDGRWHUUYHOGLORJRHQWUH&UHRQWHHVHXOKR+HPRQPLQKDYLso sobre obras clssicas se alterou profundamente. Antes, eu sabia
o que no queria. Agora, diante de mim, estava o que eu precisava.
Grande parte do imenso material acumulado durante anos de leitura
se esclareceu. Isso podia ter acontecido antes, no durante um doutorado, se eu tivesse a oportunidade, como os jovens em Araraquara,
de ver e ouvir Sfocles em uma noite. Mas antes tarde do que nunca...
Bem, ali, no palco, Creonte esforava-se para manter sua posio
PHVPRGLDQWHGRTXHRVIDWRVPRVWUDYDP6HXOKRVXEOHYDVHFRQWUDHVVHDXWRULWDULVPRUHDUPDQGRTXHDLJQRUQFLDHDDUURJQFLD
no tm idade. Hemon desestrutura a prepotncia do tirano, daquele
que pensa que a cidade o que o homem quer que ela seja.

Teoria da Arte e do Teatro

147

Esta cena desempenhada em um debate verbal verso a verso (esWLFRPLWLD $WURFDVSHUDGHIDODVLQFHQGLRXRWHDWURFRPRVHHVWLvssemos assistindo a uma luta de boxe. Parte do pblico era jovem.
E dele vieram demonstraes sonoras de torcida. No mesmo tempo,
alguns mais velhos, seja surpreendidos com uma resposta corporal
e concreta, seja querendo impor uma certa dimenso polida e sacra
aos eventos, estes vigilantes da ordem comearam a pedir silncio,
FRPSRVWXUD3DUDPLPFRXFODURQDTXHOHPRPHQWRTXHDOXWDHQtre Hemon e Creonte se duplicara no auditrio. Sob os estmulos da
esticomitia, a audincia se dividia entre posies antagnicas e copresentes. O drama de Sfocles se materializava nas perspectivas em
FRQLWRDXGYHLVSUHVHQWHV
Assim, um procedimento dramatrgico de marcar rivalidades, de registrar atuaes em agon, materizava-se na performance e na audincia. Um texto dramatrgico a contextualizao de orientaes para
performances tanto dos agentes dramticos quanto da recepo.
Para alm do texto e a partir do texto, uma compreenso mais ampla
do escrito, do registrado se fazia perceptvel. O som da platia, a platia auralmente dividida que tornou compreensvel o procedimento
que o texto registra. Esse teatro vibrante, de estmulos e respostas,
de atos e interaes, de assimetrias entre seus participantes, isso estava ali diante de ns.
Hemon ou Creonte acho que nessa encruzilhada se distinguem duas
opes interpretativas, duas concepes de ensino-aprendizagem,
duas posturas em relao ao conhecimento e tradio. O Giz-enScne contribui imensamente para que o caminho de Hemon seja
responsavelmente feliz e produtivo. O grupo de professores e alunos
sediado em Araraquara deve se orgulhar dessa nobre e trabalhosa
atividade. Que outros mais possam fazer o mesmo. E tornar cotidiano
HVVDEHQFDDWLWXGHGHVHUHQRYDURFRQWDWRFRPREUDVSHUIRUPDtivas atravs do contato performativo com elas. Tudo exposto em
cena e uma memria das coisas imprime nos coraes e mentes os
fatos da imaginao.
Parabns Giz-en-Scne, pelos seus quase 20 anos. E muito, muito
obrigado.

148

Curso de Especializao em Teatro Distncia

A
11.14 MOLIRE:
COMICIDADE E A
AMPLITUDE DA
CENA CMICA
EM O DOENTE
IMAGINRIO

Marcus Mota
19-6-2006

Braslia teve a oportunidade de assistir montagem de O doente imaginrio  GH0ROLUH  OWLPDSHDGH0ROLUHRHVSHWFXOR
foi deliciosamente interpretado por Tonico Pereira e companheiros.
A montagem original foi marcada pela sobreposio entre a personagem da pea, um hipocondraco interpretado pelo prprio Molire, e
o homem Molire, o qual, aps a apresentao de O doente Imaginrio, passa mal e morre horas depois.
Na montagem de agora grande parte da dramaturgia cmica de Molire pode ser apreciada. Inicialmente, temos o carter enciclopdico
da pea. As personagens em cena estabelecem referncias com vrias
fontes de conhecimento, seja com a atualidade seja com a cultura
greco-latina. A audincia v-se estimulada por materiais oriundos de
diversos saberes de prticas.

Jacqueline Laurence, diretora do espetculo. Traduo e


adaptao de Joo Bethencourt. No elenco esto ainda
Glucia Rodrigues, como Antonieta; Nedira Campos, interpretando Belinha; Flvia Fafis,
que vive Anglica; Marcio Ricciardi, que faz o Dr. Purgante;
Paulo Carvalho e Gustavo Ottoni como pai e filho, os mdicos Thomas Laxante e Thomas
Laxante Filho; Frank Borges,
como Cleanto; e Andr Frazzi,
que interpreta o Tabelio. A
pea tem a participao especial de Nildo Parente, na pele
de Beraldo

Por outro lado, toda essa gama de referncias armada dentro de


uma trama Argan, um rico hipocondraco explorado por mdicos
HIDUPDFXWLFRV0RQVLHXU'LDIRLUXVHVHXOKR0RQVLHXU3XUJRQH
pela nova esposa, Bline. A trama o horizonte da ao, um amplo
contexto que coloca em confronto um homem que desconhece ou
no quer conhecer o que realmente est acontecendo ou importa.
Este autoengano, como uma automedicao, contudo, revertido
pelas artimanhas da empregada Toinette e Bralde, irmo do doenWH8PHL[RSDUDOHORGDSHDVRDVGLFXOGDGHVLPSRVWDVDRDPRU
GH $QJOLTXH OKD GH $UJDQ 'XSOR LQYHUWLGR GR SDL HOD IXQFLRQD
como um lado positivo de Argan, os bons valores que se preservam
em meio ao mundo corrompido.

Teoria da Arte e do Teatro

149

A contribuio de Molire est justamente em articular essa trama de


longo curso com as cenas, com os esquetes. H uma tendncia na dramaturgia cmica para o esquete, para a intensidade, para um tempo
mais breve porque mais tomado de convergncias e simultaneidades.
Note-se que tais disposies esto inscritas na formatao de sries
televisivas, com as dramticas com episdios de 1 hora e as cmicas
de meia hora.
0ROLUHH[LELOL]DDFRPGLDMXVWDPHQWHSRUFRQGX]LURSEOLFRWDQWR
para amplitude da cena, da trama quanto para aspecto pontual, episdico do esquete. Ao invs da tenso entre o esquete e a trama, MoOLUHYDOHVHGHVWDGLQPLFDGHHVFRSRSDUDUHGHQLURHVFRSRPHVmo de obras cmicas na cultura ps antiguidade. A comicidade assim,
inserida em dimenses e nexos mais extensos, ela mesma ganha um
estatuto que a aproxima de valoraes consagradas tragdia.
Por isso estamos alm dos dualismos entre pressuposies restritivas
TXHUHJLVWUDPSDUDDWUDJGLDXPDUHH[RJHUDOVREUHDFRQGLR
KXPDQDHSDUDDFRPGLDXPDIRWRJUDDGHVLWXDHVSDUWLFXODUHV
0ROLUHDSUHVHQWDQHVVHHHPRXWURVHVSHWFXORVUHH[HVHTXHVtionamentos que poderiam estar em qualquer outra modalidade de
UHSUHVHQWDRVHMDHPXPDREUDORVFDVHMDHPXPGUDPD
Contribui para isso o fato de a prpria trama no se tratar de um esquema narrativo como veculo para as habilidades dos comediantes.
Ora, grande parte do material da trama no se reduz aos quiprops,
MRJRVGHGLVIDUFHHUHYHODR$QWHVKXPDJXUDXPFRPSOH[RFRQjunto personativo, cheia de contradies e estranhezas que por si s
j tanto um estmulo para a comicidade quanto um obstculo para
a apressa correria das confuses e trocas de identidade.
(VVDJXUDIXQFLRQDFRPRXPFHQWURDWUDWRUTXHWXGRGHYRUDTXHD
tudo atrai, mas que logo depois tanto perde sua hegemonia quanto
VHUHYVHPRGLFD(VWHFHQWURLPYHOHVVHVROUHDOL]DXPDQWLPRYLPHQWRIUHQWHDRX[RGRHVSHWFXOR(OHWUDEDOKDFRQWUDRHVSHWculo, ele atravessa a moldura da obra, colocando em perigo a representao. Sua recusa em mudar ou aderir a algo, ou o contrrio disso,
RVLWXDFRPRH[FHVVRFRPRDOJRLQFRQWUROYHOSRUPDLVTXHLGHQWLFYHO1RHQFRQWURHQWUHDWUDPDHRHVTXHWHHVWDJXUDDEHUUDQWH
trabalha como um diretor de cena, um participante e comentarista de
tudo o que est acontecendo. O acmulo de referncias e contradies da personagem duplicado no acmulo de suas funes e atos

150

Curso de Especializao em Teatro Distncia

QRHVSHWFXOR7DOJXUDULYDOL]DFRPDVRXWUDVSHUVRQDJHQVHPFHQD
promove uma relao de aproximao e distanciamento com a platia, esvazia-se, retira-se em vrios momentos do espetculo, costura
SDUWHVGDREUDDRPHVPRWHPSRTXHDWXDQHVVDVSDUWHVHQPHVW
sempre em movimento por estar no centro imvel de tudo. ContraceQD[LQJDGLDORJD]RPEDFDODFHQVXUDDUJXPHQWDORVRID
'HVVDIRUPDUHXQLQGRDWRVHSURFHGLPHQWRVGLYHUVRVDJXUDDEHUrante promove uma imagem ampla do espetculo, sobrepondo nexos
e referncias. Rir e pensar no se opem. Da a dramaturgia cmica
GH0ROLUHSRVVLELOLWDURDFHVVRDXPDGLYHUVLFDRQRVRPHQWHGH
tcnicas, mas de escopo da comicidade.

11.15

TEATRO, MSICA E
RELIGIO EM UNA
MADRE CORAJE...
MARCUS MOTA
26-06-2006

Ainda bem que no choveu. Braslia ontem teve a oportunidade de


ver o bom espetculo Uma madre coraje y sus hijos em el purgatrio,
uma parceria criativa das companhias Teatro Del Silencio e Karkik
Dana Teatro,durante o Festival Internacional de Teatro, no CCBB.
Em uma estrutura com arquibancadas, ao ar livre, nuvens negras
no cu, muito frio, pode-se acompanhar srie de quadros em movimento e muita msica que reinterpretavam imagens e cenas das
obras de B. Brecht e Dante.
Inicialmente, estar nas arquibancadas como assistir a um jogo de fuWHERO$GLVWULEXLRGRVMRJDGRUHVFRQJXUDRHVSDRUHYHODRWLPHH
suas tticas. E assim foi. Os quadros em movimentos eram modos de
ocupao do espao, de distribuio para os espectadores de determiQDGDVHVFXOWXUDV(VVDWHQVRHQWUHR[RHRPYHOIRLDUWLFXODGDHP
funo do espao de observao: tornar visveis certas snteses visuais.
Da a iluso do movimento. Era a mesma escultura mudando de lugar
durante a msica. O que realmente estava em movimento era a msica.
E como se utilizou menos melodia, e sim parmetros de intensidade e
repetio ritual de estruturas harmnicas, a reiterada manipulao de
blocos sonoros ampliou e presena pontual dos quadros.

Teoria da Arte e do Teatro

151

Tivemos belssimos quadros, como o da terra adubada pelos cadveres e das rvores com mulheres nuas.
Mas havia uma tenso entre a extenso do quadro e a relao entre
as esculturas e a msica. O que fazer enquanto dura o som? A redistribuio das presenas dos bailarinos muitas vezes descambou
para esteretipos de um musical holliwoodiano, de um vdeo clipe
dos anos 80. A repetio de gestos e passos apenas para que haja
alguma algo enquanto a msica soa ou apenas para que se ocupe o
tempo da durao da msica tornou em alguns momentos descartvel a presena marcada e no marcante dos danarinos. Assim,
escutvamos boa msica e s.
Esta uma questo da audiovisualidade do espetculo. Ora, se se
optou pelo extremo, pelos limites da inteligibilidade, na mistura
de lnguas, no cruzamento intertextual de obras, na descontinuidade da representao,a relao entre som e cena precisaria ser
tambm levada aos mesmos termos que a dramaturgia. como se
existissem duas dramaturgias uma para os quadros e outra para
a amplitude audiovisual dos quadros. E como no possvel separar uma da outra, esta dualidade registra o no acabamento como
indefinio de como enfrentar esta audiovisualidade. Pois a msica avana, perdura, continua o seu movimento de aspirais e sobreposio de massas sonoras e intensidades enquanto que aquilo
que para ser visto, aps ser mostrado, espera seu trmino, sua
concluso, pois acaba antes do fim. A tenso entre as dimenses
do que visto e do que escutado no algo explorado, resolvido
criativamente. Temos boa msica e belos quadros.
O que unifica o espetculo seu pathos, sua busca de uma resposta emocional. O espetculo ruma para o pattico, para a mostra de
um sofrimento, de uma dor excessivos, como se fosse um clamor
que supera a denncia daquilo que apresenta. Cada vez mais
menos uma revolta contra a guerra e nosso cnico humanismo que
o fascnio pelo rastro de destruio que a mortandade deixa. Tanto
que quando repetiram o bordo que proclamava a necessidade de
um novo comunismo frente ao consumismo neo-liberal, algumas
pessoas do pblico se levantaram. Nesse momento ps-ideolgico
suplicar pelas cantilenas dos vencidos no suscita nenhuma piedade. E a experincia atual do socialismo no governo local no tem
dado bons exemplos.

152

Curso de Especializao em Teatro Distncia

1HVVHPRPHQWRFDPFODUDVDVUHIHUQFLDV7RGRHVVHFODPRUQDWHUra devastada modela-se como uma experincia religiosa. A relao


entre a misericrdia divina e a corrupo entre os homens foi outro e
PDLVHFLHQWHERUGRGDQRLWH2VJULWRVDRPLFURIRQHDGDQDIUHQtica, a msica pesada , as imagens de horror toda essa hiperblica
performance procura materializar um apelo a algo que ultrapassa as
fronteiras e limites da experincia cotidiana. Como rituais primitivos,
com nossa maquinaria de agora, cantamos, danamos e clamamos
para alm de ns mesmos.
Assim, das arquibancadas, centenas de pessoas esto para achar bonito ou no os fsseis de uma f perdida, por isso celebrada. Essa mistura de religio e arte em uma sociedade urbana e laica como a nossa
evidencia como ainda ressoam em ns padres bsicos de um impulso ao sagrado, ao mesmo tempo que revela o quanto fazemos para
nos proteger e negar esse impulso estetizando-o. A esttica do horror
da guerra, de todos os horrores de nossa desumanidade so ambivalentes demonstraes de nossa competio com um deus criador e
sanguinrio aniquilador. Louvor e sacrilgio - formas de nossa precria luta contra os cus, contra todos. Ainda bem que no choveu.

11.16

BORAT:
CULTURALISMO,
COMDIA E
BOBEIRA
Marcus Mota
17-janeiro-2007

Enfim Borat um sucesso. O falso documentrio intitulado Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation
of Kazakhstan arrecada milhes nas bilheterias, possui uma entrada
altamente informativa no Wikipedia, os roteiristas do filme do uma
longa entrevista no ltimo nmero de Written By, revista da associao dos roteiristas norte americanos, e o ator Sacha Baron Cohen, que
protagoniza o filme, acaba de ganhar o Globo de ouro como melhor
ator de comdia/musical.
2OPHVHHVWUXWXUDHPHVTXHWHVSRUPHLRGRVTXDLVDFRPSDQKDPRVHQtrevistas e situaes da personagem em sua aventura de conhecer os EUA.

Teoria da Arte e do Teatro

153

O carter tosco, grotesco e preconceituso de Borat elaborado por uma


equipe de roteiristas treinados h anos em sugerir textos e contextos para
RDWRU6DFKD%DURQ&RKHQHPSURJUDPDGHVXFHVVRQDWY,QJOHVD 'D/L
G Show. O ncleo bsico da equipe Dan Mazer e o prprio Sacha Baron,
ambos vindos do humor universitrio e da para a televiso. Dan Mazer foi
roteirista tambm do famoso The Eleven OClock Show que, alm de Sacha
%DURQUHYHORXJXUDVFRPR5LFN\*HUYDLVGR7KH2IFHRULJLQDO
Ou seja, estamos diante de mais uma invaso inglesa ditando moda nos
Eua, e da sendo exportada para o mundo.
Satirizar os poderosos estadunidenses uma ambgua provocao que
tanto revela o status que este pas tem no mundo quanto a dependncia
de outros pases, mesmo pases tidos culturalmente avanados, tm em
relao sua fonte de comicidade.
2OPHGLULJLGRSRU/DUU\&KDUOHVTXHHQWUHVHXVFUGLWRVFRQWDFRPRRX
roteirista e ou diretor de episdios(ou ambos) de episdios de Mad about
You mas principalmente Seinfeld e Curb Your Entuasiasm. Ou seja, temos
assim o encontro entre a criatividade da comdia estadunidense e a inglesa.
7XGRLVVRSURGX]LXXPOPHHVWUDQKRIHLRPDODFDEDGRHHQJUDDGR$V
HQWUHYLVWDVIRUDPFRVWXUDGDVHPXPDKLVWULDPHLRVHPGHQLRHPEXVca da musa Pamela Anderson. Muita ps-produo tenta dar um arranjo
HPXPOPHTXHGRPHLRSDUDIUHQWHVHDUUDVWDSDUDVXDFRQFOXVR
A base da comdia praticada em Boral o insulto e o contrangimento.
Rumando contra a chamada cultura do politicamente correto, obserYDPRVFRPHQWULRVTXHGHQLJUHPMXGHXVPXOKHUHVGHFLHQWHVIVLFRV
alm de situaes mesmas que rebaixam todos os que dela participam.
Pois as pessoas envolvidas, os no atores, participam de uma armao,
XPDSHJDGLQKDHODVQRVDEHPTXHHVWRHPXPOPHTXH]RPEDGHODVQRVDEHUHPTXHHVWRHPXPOPH$JUDDQRVVDYHUHVVDVSHVsoas e seus contrangimentos diante de um estrangeiro que se comporta
fora dos padres.
2 VHU HVWUDQJHLUR QR OPH  XP GLVIDUFH SHOR TXDO %RUDW FRPXQLFDVH
com a platia, toma permisso do pblico para fazer o que quiser. As
SHVVRDVQROPHGRWDPEPHVVDSHUPLVVRSDUD%RUDW&RPRHOHXP
estrangeiro, elas permitem que ele seja bizarro e extico. Pois o estrangeiro assim, caf com leite dentro de nossa cultura, uma criana. H
sempre um senso de superioridade nessa relao. Eu, que estou em meu

154

Curso de Especializao em Teatro Distncia

mundo, sei as coisas, conheo os nomes e os lugares. O estrangeiro est


confuso, no sabe, desconhece.
$VVLPHPXPSULPLHURPRPHQWRDVSHVVRDVGROPHVRFRQYRFDGDVD
HQVLQDURHVWUDQJHLURDHQWUDUHPFRQWDWRFRPDJXUDDOWDHDORSUDGD
de Borat. Sendo estrangeiro, porm, e conversando com a cmera, Borat
reverte essa posio inferiorizado e os nativos que viram piadas. Antes,
a piada era o estrangeiro. Agora, ri quem est do outro lado da cmera.
E no s isso: a seqncia de esquetes faz com que a reverso se torne
o padro. H sempre e renovadas expectativas de os nativos carem novamente na cilada.
Como estrangeiro em terras estadunidenses, eu ou qualquer um outro
se sente nessa situao de Borat. H uma semana atrs, um membro de
uma famlia que j me conhece desde que estou aqui, h sete meses, me
perguntou se eu tinha computador e se sabia baixar uns arquivos. Da,
como se fosse me ensinar, ligou o lap top e comeou narrar tudo o que esWDYDID]HQGR6XDOKDDRPHYHUFRPHQWDQGRDOJRVREUHRVKLVSQLFRV
VREUHVXDVGLIHUHQDVHPUHODRDR%UDVLOFRXDGPLUDGDHGLVVHTXH
pensava que eu era hispnico, aquela velha coisa de a capital do Brasil
ser a Argentina.
Em um pas que atrai a ateno do mundo inteiro, os Eua vm-se diante
de enfrentar sua reao a essa demanda invasiva atravs do politicamente correto, do culturalismo massivo que invade telejornais e univerVLGDGHV 0DV WXGR FD QD HSLGHUPH &RPR -HFDV TXH K SRXFR WHPSR
migraram para a cidade, os praticantes do culturalismo pregam a religio da tolerncia, mas ensinam a insuportvel cartilha de todos somos
iguais, verso new age da disney, onde os sonhos se tornam reais.
Na prtica, h somente o interesse naquilo que interessa aos EUA: as
confuses da poltica externa estadunidenses no oriente mdio basicamente e a questo do judeus e do petrleo, a europa continental (Frana
e Itlia principalmente) como lugares de turismo cultural, a Inglaterra
como ptria me fabricante de factides da realeza e os melhores atores e msicos do mundo, a constante ameaa vinda do Mxico e outros
SDVHV FDULEHQKRV HQP XPD JHRJUDD SDQRUPLFD TXH VH DSUHQGH
em poucas horas, recheada de prevenes contra aqueles que esto de
olhos no pas mais atrativo do planeta.
Assim, a agressividade das piadas de Borat uma clara manifestao de
uma recusa dessa paz pregada na mdia e entre intelectuais. Cada vez

Teoria da Arte e do Teatro

155

mais a cerca que protege os Eua do resto do mundo est cedendo. De


WDQWRRSDVVHDUPDUYHQGHQGRXPDLPDJHPGHVLHQDUHDOLGDGHVHlecionando os benefcos dessa venda agora no h mais como estancar
a torrente. A terra prometida cumpre um percurso que vai de fabricadora
de esteretipos para mais um esteretipo entre tantos.
Para Borat, os Eua sexo. Tudo gira em torno disso. H uma obsesso
em realizar o ato, em possuir Pamela Anderson. A ex- garota do Baywatch e coelhinha da Playboy a coisa mais preciosa para Borat, a sua
Amrica. Como novo Colombo, ele singra os mais diversos estados norteamericanos em busca da oportunidade de alcanar a Amrica Profunda.
Ou seja, o maior e mais poderoso pas do mundo pode ser reduzido uma
pop-quase-porno-star. Nada dos ventos da liberdade e outras incrveis
e pretensas invenes estadunidenses. Os EUA so apenas uma vagina
descolorizada. Por isso, Borat destri lojas, invade casas, defeca e dorme
na rua, o escambau! O ultrage soa a uma rplica. Mas, como em todo
embate das representaes, no h ningum melhor ou pior.
'HVHXODGRROPHFDPLQKDHQWUHHVTXHWHVPDOFRVWXUDGRVFRPRDQWRlogia que busca sua coerncia no acmulo do pior, do mais escatolgico
e chocante. Disseram que Borat tipo um Jackass com crebro. Acertaram em parte. Jackass e suas imitaes a outra cara americana, do
prazer somente com sofrimento, herana puritanista que mata o corpo e
celebra uma desumana pureza.
Em Borat a cena mais chocante para a maioria a pardia das lutas americanas, aquela do bando de adultos pulando em cima dos outros e trocando
golpes de mentirinha, que no Brasil eram chamadas de telequete (de Tele/
&DWFK 3RLVDPDLRUFHQDGROPHDPDLRUVXUSUHVDWDPEPSRLVRHPEDte no mais entre Borat e os americanos e sim entre Borat e seu compatriota. A cena se constri dentro do quarto do hotel, misturando telequete e
posies de sexo. Nunca o cinema foi to fundo! inesquecvel ver o ans do
gordo compatriota na cara de Borat. a viso do inferno. A risada vem do
nojo, do constrangimento, j que a enorme tela do cinema nos coloca face a
face com aquela bunda gorda, enorme, branca e cabeluda.
No sabemos o que pode vir depois. Quando no Brasil surgiu aquela porcaria chamada o Tchan, chegando no meio dos anos 90 a vender mais
de dois milhes de cpias, com uma mulher de shortinhos danando em
FLPDGHXPDJDUUDQKDGL]HQGRQDVHQWUHYLVWDVTXHDPDOGDGHHVW
QRVROKRVGHTXHPYDFKHLTXHHUDRP2PVHPSUHSRVWXODGRH
postergado: nunca chega.

156

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Vendo esse consrcio entre o melhor da comdia da amrica e o melhor


GD FRPGLD LQJOHVD DFDEDU HP XP UDER FLGR H SXSXODQWH HX SRVVR
me dizer vingado, contra minha vontade. Pois rir hoje uma questo de
acmulo de nojeira. Na prxima vez, o gordo poderia cagar na boca de
%RUDW-ID]HPLVVRKWDQWRWHPSRHPDOJXQVOPHVSRUQV-TXHD
comdia tira dos que as pessoas consomem o seu material, por que ento no ir mais adiante dessa porno-cena que domina a mdia? Tudo em
torno do sexo novamente. Essas so as lies culturais que Borat aprendeu em sua ida para os Eua: o que importa mesmo gozar.
Estamos em um tempo estranho para alguns,normal para outros, com similares comportamentos distribudos no planeta, em virtude dos acesso
IFLOHQRWRFRQWURODGRGHLPDJHQV7XGROPYHO(QWRWXGRSRGH
ser mostrado. Nesses tempos ps-policamente correto, a comdia luta
SDUDQRFDUWRODHGHVFDUWYHO%RUDWXPDPDUFRQLVVR

11.17 DREAMGIRLS:
MUSICAIS DA

BROADWAY NO
CINEMA
Marcus Mota
11-JANEIRO-2006

Transportar um musical para o cinema um dos constantes recurVRV GH +ROO\ZRRG $ KLVWULD PHVPD GR FLQHPD HVWDGXQLGHQVH HP
SDUWHVHGHQHSRUHVVDHVWUDQKDUHODRPXLWDVYH]HVRPXVLFDO
tido como modelo criativo. Noutras, um antema. De qualquer forma
hoje o teste de audincia e elaborao da dramaturgia que a produo de um espetculo musical efetiva consagra uma fonte de materiais para o cinema. Nos ltimos anos, tivemos os sucessos de ChiFDJR  7KH3KDQWRPRI2SHUD  IDQWDVPDGDSHUDH7KH
3URGXFHUV  &RPRVHSRGHREVHUYDUKMXPDWUDGLR1RVH
WUDWDGHXPDPRGDSDVVDJHLUD7RGRDQRSRGHPRVDVVLVWLUDXPOPH
dramtico-musical.
O que o musical traz para Holliwood , inicialmente, um fazer as pazes com sua histria. Filmes so entretenimento. E grande parte dos
artistas, escritores, produtores e pblico do cinema veio, no primeiro
quartel do sculo passado, justamente dos shows de variedade, dos

Teoria da Arte e do Teatro

157

cabars, das revistas. Nesses lugares, estmulos dos mais variados tipos cativavam freguesses vidos de emoes e ejaculaes intensas.
Ao vivo, cantores, bailarinos, comediantes, atores, msicos surpreendiam platias com a demonstrao de suas habilidades e corpos. A
VLFLGDGHHSUHVHQDGRVLQWUSUHWHVTXHGHPDQGDYDXPDFRQWUDresposta fsica e atual do pblico.
$WRGHFDQWDGDPRUWHGRVPVLFDLVGH+ROO\ZRRGTXHFRPHRXQRV
anos 60 e atingiu o climax nos anos 80 deve-se menos a um esgotamento
do gnero que s mudanas na cultura audiovisual estadunidense. Com a
popularizao de eletrodomsticos reprodutores de msica e programas
televisivos de auditrio, a cano deixou de ser algo relacionado a um
grande evento preparado e passou a ser consumida independetemente
de uma situao de performance. Por outro lado, com o Rock, as pessoas foram danar, curtir, livrar-se da dana marcada, da reproduo. Os
romnticos casais, as duplas em cena deram lugar aos diretos ritos de
acasalamento. Era muita palavra, muita discreo para pouca ao.
O incrvel que foi durante essa morte que o musical atingiu uma
maturidade artstica sem precedentes, como o caso de West Side
6WRU\(VVHGUDPDPXVLFDORFRPHRGRP$FRQMXQRHQWUHXPD
proposta realista,contempornea e as metareferncias do espetculo
DVSHVVRDVGDQDPHFDQWDPFRPRVHIDODVVHPHVHORFRPRYHVVHP 
VLWXDEHPDWHQVRUHSUHVHQWDFLRQDOGHOPHVPXVLFDLV
Hoje, quando celulares baixam clipes de msicas, a presena de musicais uma lembrana de que aquilo que est to facilmente disposio, ao alcance de um toque, no algo to fcil. Programas como o
American Idol tm, mesmo com suas mazelas oportunistas,comerciais
e novelsticas, mostrado que cantar diante de um pblico no uma
atividade simples. A trajetria de pessoas com boa voz, mas sem presena de cena, para vencedores possibilita o educativo contato com
os parmetros da performance.
E foi justamente desse programa, dessa nova cultura audiovisual, que
YHLRXPDGDVDWUL]HVVXSRUWHVGROPH'UHDPJLUOV-HQLIIHU+XGVRQ
de eliminada do American Idol para brilhar em Dreamgirls, como se o
OPHUHFRQWDVVHDSUSULDKLVWULDGH+XGVRQ
4XHPDVVLVWLUDROPHQRYDLSRGHUFDULQHUWHJUDQGHFHQDTXDQdo Hudson canta And Im Telling You Im Not Going. A intensidade
da performance de Hudson dissolve todos os manuais de atuao

158

Curso de Especializao em Teatro Distncia

para cinema publicados. Tanto que em muitas resenhas crticas do


OPHFDDSHUJXQWDVHDTXLORDWXDRRXXPDUDLYRVDHGHVFRQWURlada descarga de emoes. Outros crticos comparam a performance
GH%H\RQFHFRPDGH+XGVRQPRVWUDQGRTXHDOWLPDHPVXDSULmeira apario nas telas, no sabe cantar ao vivo, e que a primeira,
pela primeira vez, consegue atuar um pouco melhor, ao conter toda
sua aura de superstar.
Ento o choque entre um conceito de atuar, entre uma norma de
atuao que parece ser vlida para todo e qualquer espetculo, e os
fatos. E, no caso, os cantores, sempre tidos como pssimos atores,
esto em julgamento. Contribuindo para isso, temos o comediante
(GGLH0XUSK\PXLWREHPHPXPSDSHOQRFPLFR
&RPRVHSRGHYHUROPH'UHDPJLUOVFRPFDQWRUDVYLVWDVFRPRDWULzes e um comediante como ator, colocam para ns o questionamento
PHVPRGDGHQLRGHDWXDU1DYHUGDGHKPDLVXPDVULHGHH[pectativas que um conceito mesmo. Cada obra tem sua intepretao.
Mas as implicaes deste tipo de abordagem confrontam-se diretaPHQWHFRPRUHJLPHQDQFLVWDGRVOPHVPXLWRGLQKHLURSDUDLQvestir em algo assim extravagante. Contudo, a extravagncia est em
pensar que h uma maneira s de intepretar. Ainda mais em musicais.
4XDQWRGUDPDWXUJLDROPHLUUHJXODUSULQFLSDOPHQWHQDUHODR
entre cenas cantadas e cenas no cantadas. Logo aps a grande e
intensa cena de Judson, temos um canto despropositado, fraco, canto
GHSHUVRQDJHP2SUREOHPDQRTXHROPHWHPFDQHVGHPDLV
A questo usar o silncio, usar cenas com menor tessitura. Seno,
tudo parece igual. Outra problema est nas canes. So irregulares.
H timo material a partir da cultura afro-americana. Mas em alguns
duetos e canes que fecham cenas pode-se ouvir claramente a graPWLFD GD %URDGZD\ H VHXV PDQXDLV GH 6RQJZULWLQJ DTXHOHV VRORV
com partes constrastantes e mudanas de tom obrigatrias. Um saco!
O cara faz aquilo sentado no vaso em uma hora.
Porm, nada se compara exploso de And Im Telling You Im Not
Going. A cena comea com ensaio que interropido pela chegada de
(IH:KLWHSHUVRQDJHPGH+XGVRQ1RSDOFRTXHXPSDOFRPHVmo, estabelece-se uma discusso dramtico- musical entre as persoQDJHQV(IHFRQIURQWDHFRQIURQWDGD$PRYLPHQWDRHDVXFHVso de ataques e respostas cantadas vai ampliando o isolamento de
(IH(QWRHODH[SORGHHWRGRVFDPRVXQVPLQXWRVFRPRFRUDR

Teoria da Arte e do Teatro

159

batendo mais forte e lgrimas nos olhos ao vermos e ouvirmos uma


afro-americana mostrando sua dor.Recusada e trada por todas, ela
treme, bate no peito, ergue os braos, canta como que suplicando.
Lgico que podemos ver que Hudson tem limitaes como atriz.
Muitos de seus gestos so repetitivos, no econmicos. Sua postura
s vezes parece de algum perdido em cena, procurando a cmera,
procurando para onde olhar. Pode quase parecer constrangedor. Em
algums momentos a igualdade entre gesto e canto parece primria.
0DVPLQKDJHQWHHODSRGHQRVHUQHQKXPD0HU\O6WUHHSPDVHVVHV
sete minutos produzem uma sensao de imenso desconforto, pois
ao mesmo tempo atrativo e repulsivo tamanha exposio tanto da
personagem quanto da atriz que o tempo pra, a tela rasga e voc
HVW GLDQWH GH XPD SRGHURVD YR] GH XPD LQHVTXHFYHO JXUD TXH
apela para os teus mais ntimos e profundos sentimentos.
Para alm das marcas, da coisa bem feita, a rusticidade feroz de Hudson me lana para primitivas imagens e ecos de uma poca em que
no ramos to civilizados, e um grito era mais que um grito era um
comando, belo e forte como o perigo da morte.
$VVLPHPXPOPHLUUHJXODUFRPDWUL]HVLQH[SHULHQWHVHPDOJXQVPLnutos temos mais vida que na grande parte da porcaria correta que diariamente lanada em nossos olhos e ouvidos. A cena pode lembrar algo
de exagero operstico ou de dramalho mexicano. Pode at ser. Mas a
nossa recusa de compaixo e nossos hbitos de estetizar a vida sempre
nos fornecem solues para racionalizar situaes to especiais.

160

Curso de Especializao em Teatro Distncia

E AS
11.18 APOCALYPTO
AVENTURAS DA

VEROSSIMILHANA:
QUANDO AS
LNGUAS NO
SIGNIFICAM MUITA
COISA

Marcus Mota

19-fevereiro-2007

Chego em casa 11 e meia da noite aps um sesso de Apocalypto,


de Mel Gibson. No consigo dormir por causa da agitao. como se
eu tivesse tomado uma mistura de caf, coca-cola e guaran. Sem
GYLGDRPHOKRUOPHGRGLUHWRUEUXWDPRQWHV+PXLWRVDQJXH
algumas piadas e comentrios fora de contexto, equvocos em referncias culturais, situaes absurdas como a de um homem ferido
correr a noite inteira, erros bsicos de continuidade, como o de mostrar um caminho de ida e o da volta na mesma orientao, e falta de
conhecimento dos astros, ao mostrar um eclipse aps uma lua cheia.
Mas muitas dessas coisas quem percebeu?
7DLVLQWHUIHUQFLDVQDOJLFDGRPXQGRUHSUHVHQWDGRHQDOPDJHPVR
VXSHUDGDVSHORJLOFLUFXLWRFDDGRUFDDQRTXDOROPHVHEDVHLD(VVH
FLUFXLWRFRPVHXVUHYHVHV RFDDGRYLUDQGRFDDGRU SRVVLELOLWDSDUWHGH
uma ambincia primivista para Apocalypto. Tudo se reduz a atos bsicos
GHQWURGHXPDFXOWXUDGHVREUHYLYQFLD2PULWRGROPHHVWHPHVWHQder ao mximo essa situao. No h poesia nenhuma. Em certas situaHVFRPRQDOPDJHPQDPDWDRXQDWUDQVIRUPDRGRKHULHPIHUD
poderia haver um tempo maior para que as imagens fossem melhor exploradas. Mas no h tempo. A perseguio se impe com todos seus miraERODQWHVHVTXHPDVGHIXJDHDWDTXH*LEVRQTXLVID]HUXPOPHFUX0DV
no porque eu no sei cozinhar que eu tenho de comer bife mal passado.
A monomania do diretor reduz o escopo cinematogrgico da obra. Da asVLVWLUPRVDXPOPHPHLRPDOUHDOL]DGRFXMDPDLRUTXDOLGDGHUHVLGHQHVVD
manuteno de um opressivo vnculo com a platia: a adiada catarse, na
YLWULDGRKHULVREUHVHXVLQLPLJRV&RPFHUWH]DRPHOKRUOPHGH*LEson, esbaldado pelo oscar em virtude de seus comentrios contra judeus

Teoria da Arte e do Teatro

161

e homossexuais, possuindo apenas indicaes tcnicas, como melhor maquiagem e som. Apocapypto bem melhor que a porcaria de A paixo de
Cristo2URWHLURDTXLPDLVIHFKDGRFRPDVXUSUHVDQDOWUDEDOKDGDHP
IRUPDGHSURIHFLDGHVWUEXGDPDUJLQDOPHQWHQROPH$VVLPHPFRQWUDSRQWRFHJDSHUVHJXLRWHPRVRXWUDWUDPDTXHHFORGHDRPHGXPD
apreenso maior aos eventos mostrados. Quando os caminhos do heri se
estreitam, irrompe uma outra posssibilidade.
8PGRVWUDRVPDUFDQWHVGH$SRFDO\WRTXHHOHIDODGRHP<XFDteque, uma lngua maia. Mas isso no um grande problema, pois,
DOPGDVOHJHQGDVHPJUDQGHSDUWHGROPHQRKIDOD(TXDQGR
se fala, predomina a trivialidade. Assim, o uso de uma outra lngua, de
uma lngua extica, funciona como atmosfera, como um elemento de
FDUDFWHUL]DRWDOTXDORJXULQRDPDTXLDJHPHRVREHMWRVHPFHQD
1DGDGHPXLWRVLJQLFDWLYRGLWR$LQIRUPDRPDLVUHYHODQWHHVW
naquilo que se v e na moldura sonora dos eventos.
'HVVD PDQHLUD R XVR GH OQJXDV RXWUDV TXH R LQJOV HP OPHV GD
LQGVWULDFLQHPDWRJUFDKHJHPQLFDQRDFDUUHWDQHQKXPDPRGLFDR QR PRGR FRPR D YLVR UHGX]LGD GHVVD LQGVWULD UHSUHVHQWD
outras culturas. impressionante como a desculpa de mostrar os outros como os outros so um marketing, o culturalismo apropriado como uma maneira de vender. Nisso o culturalismo acadmico se
aproxima do miditico: os outros agora so palatveis, so produtos.
A tradio de normalizar a referncia a pessoas de outras culturas
atravs da seleo de traos caractersticos formando esteretipos
antiqussima. Trata-se de uma renovada experincia no qual aquilo
que difere do que eu sou interpretado atravs daquilo que eu julgo
conhecer. O contato intercultural refora a identidade. Os desiguais
so assimtricos e rivais.
No cinema estadunidense, em prol de uma verossimilhana, tais esteretipos abundam no modo como os imigrantes so apresentados.
$VVLPRFRQWDWRFRPHVVHVLPLJUDQWHVQDYLGDUHDOSODQLFDGRQRV
OPHV&RPLGDVJHVWRVPRGRVGHYHVWLUIDODVWXGRH[LELGR(VVD
riqueza de aspectos confere aos estrangeiros o seu exotismo. Mas tal
riqueza reduzida a uma mesma resposta - eles no so como ns,
eles so diferentes de ns. E da diferena, o valor: eles so piores que
ns. E exuberncia do outro demonstra sua fraqueza, seu desperdcio, seu excesso, esquemas esses presentes em uma pea como Os
persas, escrita h dois mil e quinhentos anos atrs por squilo.

162

Curso de Especializao em Teatro Distncia

Diante dessa imposio do caracterstico no campo das artes representacionais, h dezenas de manuais que ensinam os atores a
falar com marcas de diversas culturas. muito engraado. O cara
fala em ingls, mas ingls com sotaque. Para colocar o mundo na
tela, todo mundo tem que falar ingls. Mas um ingls ruim, cmico, o que desde j desvaloriza o falante. Os estrangeiros continuam como estrangeiros, no inseridos. As diferenas so mantidas
como margens de um centro. H manuais para os sotaques dentro
do Eua, dentro de outros pases que falam ingls. E, enfim, para
linguas germnicas, eslavas e romnicas. E os manuais vm com
cds, para voc treinar. Uma delcia.
Como se pode observar, a prpria lngua inglesa j varivel, em funo do grupo que a fala. Esse movimento de diferenciao do uso
remete-se inicialmente para as comunidades falantes. Entre eles j
h uma disperso. H uma pluralidade de falas dentro do mundo anglfono, seja motivada pelas diversidades histricas,seja decorrente
da histrica expanso colonialista. Pases do Caribe, da frica e da
Polinsia possuem seu ingls. E quem aprende a falar ingls para se
comunicar, tambm.
$VROXRFLQHPDWRJUFDSDUDHVVDEDEHOVLPSOHV7RGRVVRYHUdes, mas h um verde mais fundamental. Os outros so matria para
divertimento. Por mais srio que seja aquilo que voc diz com esse
seu sotaque, aquilo que voc diz no tem o mesmo status de algo dito
por um nativo, pelo verdadeiro ingls.
A situao parece se complicar quando vemos produes faladas em
outras lnguas, como o foram A Paixo de Cristo e este Apocalyto. No
caso do primeiro, tivemos lnguas mortas, lnguas de livros, faladas
por pessoas em movimento, vivas. No segundo, uma lngua diferente
GDVOQJXDVGHFXOWXUDVFRPSURGXRFLQHPDWRJUFD
Em ambos os casos, o que importa no a lngua, nem o que se fala.
Tudo apenas som. O roteiro de Apocalyto foi escrito em ingls, depois traduzido. As bobagens e a perspectiva de Mel Gibson passaram
de um registro para outro. No caso, a repercusso de uma proposta,
de uma viso primitivista e exageradamente brutal dos maias. Serve
mais como lema classe mdia cuide de sua famlia, proteja os seus.
o mesmo lema que faz Bush detonar o Oriente Mdio e quem vier.
Em nome da casa, do lar, da minha famlia, eu destruo voc.

Teoria da Arte e do Teatro

163

$ SUHVHQD GH OPHV HP RXWUDV OQJXDV TXH WUDGLFLRQDLV HXURSLDV


foi um fato marcante no cinema dos anos 90 do sculo passado. O
cinema iraniano e o asitico impulsionaram essa grande revoluo,
trazendo para as telas, no s exotismo linguistico, mas histrias,
pensamentos e comportamentos.
7DOSUHVHQDWUD]SDUDRPHUFDGRFLQHPDWRJUFRPDLVTXHXPSURduto culturalista. A questo o enfrentamento da dramaturgia baseada em convenses estritas de caracterizao. o conceito mesmo de
personagem que est em jogo. Quando a cmera se libera de dilogos
HIDODVH[SOLFDWLYDVHHQFLFORSGLDVHODSRGHHQPPRVWUDUDOJRTXH
no repercute os esquemas de apreenso de realidade que a indstria considera como universais.
Acima de tudo, o enfrentamento da chamada verossimilhana narraWLYDSDUHFHVHURIXQGDPHQWRSDUDGLYHUVLFDUDDUWHFLQHPDWRJUca. Politicamente em nome da verossimilhana o ridculo e absurdo
procedimento de colocar gente sempre falando em ingls, at entre
H[WUDWHUUHVWUHV  XPD DUPDR GD KHJHPRQLD DQJOIRQD 5HSUHsentacionalmente um empobrecimento das possibilidades de construo das referncias e das expectativas da audincia. Educacionalmente uma desgraa, pois basta colocar legendas e enfrenta essa
inrcia e comodismo. O mundo vem minha sala. E eu continuo comendo as mesmas porcarias, achando que estou no melhor lugar. Pra
pensar assim, no precisa falar em ingls. Basta no falar. No pensar
em nada mais que o pacote de pipocas. Novamente, o problema no
a lngua e sim o espetculo.

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Curso de Especializao em Teatro Distncia

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