1. O documento discute dois discursos sobre crime e criminalidade: o discurso jurídico e o discurso criminológico.
2. O discurso jurídico é constituído pela teoria do crime e teoria da pena e tem como objetivo imputar penas aos autores de crimes.
3. O discurso criminológico inclui a criminologia tradicional e crítica e tem como objetivo explicar as causas da criminalidade.
1. O documento discute dois discursos sobre crime e criminalidade: o discurso jurídico e o discurso criminológico.
2. O discurso jurídico é constituído pela teoria do crime e teoria da pena e tem como objetivo imputar penas aos autores de crimes.
3. O discurso criminológico inclui a criminologia tradicional e crítica e tem como objetivo explicar as causas da criminalidade.
1. O documento discute dois discursos sobre crime e criminalidade: o discurso jurídico e o discurso criminológico.
2. O discurso jurídico é constituído pela teoria do crime e teoria da pena e tem como objetivo imputar penas aos autores de crimes.
3. O discurso criminológico inclui a criminologia tradicional e crítica e tem como objetivo explicar as causas da criminalidade.
1. O documento discute dois discursos sobre crime e criminalidade: o discurso jurídico e o discurso criminológico.
2. O discurso jurídico é constituído pela teoria do crime e teoria da pena e tem como objetivo imputar penas aos autores de crimes.
3. O discurso criminológico inclui a criminologia tradicional e crítica e tem como objetivo explicar as causas da criminalidade.
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OS DISCURSOS SOBRE CRIME E CRIMINALIDADE *
Juarez Cirino dos Santos
Contedo. I. O DISCURSO JURDICO SOBRE CRIME. 1. A teoria do crime. 1.1. O tipo de injusto. 1.2. A culpabilidade. 2. A teoria da pena. 2.1. A funo de retribuio. 2.1.1. O discurso oficial. 2.1.2. O discurso crtico. 2.2. A funo de preveno especial. 2.2.1. O discurso oficial. 2.1.2. O discurso crtico. 2.3. A funo de preveno geral. 2.3.1. O discurso oficial. 2.3.2. O discurso crtico. II. O DISCURSO CRIMINOLGICO SOBRE CRIMINALIDADE. A) A Criminologia tradicional: o discurso etiolgico sobre criminalidade. 1. Explicaes individuais. 1.1. Teoria dos defeitos pessoais. a) Explicaes biolgicas. b) Explicaes morfolgico- constitucionais. c) Explicaes genticas. d) Explicaes hereditrias. e) Explicaes instintivas. 1.2. Teorias de aprendizagem. 1.2.1. Teoria da aprendizagem por condicionamento. 1.2.2. Teoria da associao diferencial. 1.2.3. Teorias psicanalticas. 2. Explicaes socioestruturais. 2.1. Teorias culturais: anomia. 2.2. Teorias subculturais: subsocializaco. 2.3. Teorias fenomenolgicas: neutralizao normativa. B) A Criminologia crtica: o discurso poltico sobre criminalizao. 1. A perspectiva individual do labeling approach. 1.1. Origens. 1.2. Objeto. 1.3. Mtodo. 2. A perspectiva socioestrutural da Criminologia Crtica. 2.1. Premissas. 2.2. Objeto. 2.3. Mtodo.
Todas as ideias sobre imputao de crimes e explicao da criminalidade podem ser sintetizadas em dois discursos bsicos: a) o discurso da teoria jurdica do crime; b) o discurso da teoria criminolgica da criminalidade. 1
I. O DISCURSO JURDICO SOBRE CRIME O discurso da teoria jurdica do crime ou discurso jurdico sobre crime , construdo com base na legislao penal do Estado, tem por objetivo imputar penas (ou medidas de segurana) aos autores de fatos definidos como crime, conforme princpios de interpretao e de aplicao concreta
* Artigo escrito em homenagem aos Professores Doutores Nilo Batista e Vera Malaguti Batista. 1 Definir como discursos as teorias jurdica e criminolgica sobre crime e criminalidade atribuir aos homenageados um justo tributo: NILO BATISTA nos emocionou com seus eloquentes Discursos sediciosos sobre crime, direito e sociedade, a festejada revista do Instituto Carioca de Criminologia; VERA MALAGUTI BATISTA nos revelou o discurso do medo (na cidade do Rio de Janeiro), como instrumento de polticas autoritrias no Brasil. 2 da lei penal (legalidade, culpabilidade, proporcionalidade etc.). 2 A legislao penal o dado da pesquisa jurdica, que fundamenta o discurso jurdico e determina o contedo e os limites desse discurso, como conjunto de enunciados descritivos do conceito de crime e de pena, conhecido como dogmtica penal. Assim, o discurso jurdico do crime constitudo pela teoria do crime e o discurso jurdico da pena constitudo pela teoria da pena, como discursos fechados construdos sobre a legalidade penal pelas tcnicas de interpretao da lei penal.
1. A teoria do crime O moderno discurso da teoria do crime representado pela definio analtica (ou operacional) de fato punvel, configurada nas categorias elementares de tipo de injusto e de culpabilidade. 3
1.1. O tipo de injusto define o objeto de imputao do discurso jurdico do crime: indica o que imputamos ao autor como crime doloso ou como crime imprudente, realizado por ao ou por omisso de ao. Nesse sentido, o tipo de injusto formado por uma ao tpica e antijurdica concreta, estruturada pela dimenso objetiva (causao e imputao do resultado) e pela dimenso subjetiva (dolo ou imprudncia) dos comportamentos humanos tpicos, realizados ou omitidos sem justificao pelo autor; em posio excludente aparecem as justificaes (a legtima defesa, o estado de necessidade etc.), cuja presena desfaz o tipo de injusto. 1.2. A culpabilidade define o fundamento da imputao do discurso jurdico: indica por que imputamos ao autor o tipo de injusto, demonstrado pelas categorias (a) da imputabilidade (o sujeito capaz de saber e de controlar o que faz), excluda ou reduzida em situaes de menoridade ou de doena mental, (b) da conscincia do injusto (o sujeito sabe, realmente, o que faz), excluda ou reduzida em situaes de erro de proibio e (c) da inexigibilidade de comportamento diverso (o sujeito tem o poder de no fazer o que faz), excluda ou reduzida em situaes de exculpao legais e supralegais.
2 Sobre os princpios do Direito Penal, ver BATISTA, Nilo. Introduo crtica ao direito penal brasileiro. Revan, 1999; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal (parte geral). Conceito, 2010, 4 a edio, p. 19-32. 3 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal (parte geral). Conceito, 2010, 4 a edio, p. 73; JESCHEK, Hans-Heinrich/WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts. Duncker & Humblot, 1996, 39, I, p. 194-195. 3 A integrao da categoria do tipo de injusto (objeto de imputao) com a categoria da culpabilidade (fundamento de imputao) constitui o conceito de crime da moderna dogmtica penal. 4
2. A teoria da pena O discurso da teoria da pena tem por objeto as funes de retribuio, de preveno especial e de preveno geral atribudas pena criminal. A teoria da pena deve ser examinada de dois pontos de vista opostos: a) primeiro, do ponto de vista do discurso oficial da teoria jurdica da pena; b) segundo, do ponto de vista do discurso crtico da teoria criminolgica da pena.
2.1. A funo de retribuio 2.1.1. O discurso oficial. Antes de tudo, a funo de retribuio da pena criminal perturba o penalista: o contedo religioso de expiao ou a natureza metafsica de compensao atribudos ao conceito de culpabilidade parecem incompatveis com a racionalidade utilitarista do controle social moderno. Afinal, supor que o mal justo da pena permite expiar ou compensar o mal injusto do crime pode corresponder a uma crena, mas no democrtico, nem cientfico: no democrtico porque a Justia exercida em nome do Povo e no em nome de Deus; no cientfico porque a liberdade de vontade que fundamenta a retribuio penal indemonstrvel. No obstante, a persistncia histrica da funo de retribuio nas sociedades contemporneas exige explicao, assim apresentada pelo discurso oficial: a) a psicologia popular seria regida pelo talio: a retaliao expressa no olho por olho, dente por dente constituiria mecanismo retributivo responsvel pela sobrevivncia de seres zoolgicos e, assim, atitude generalizada no homem; b) as religies apresentam uma imagem retributiva da justia divina, que constituiria poderosa influncia cultural sobre a disposio psquica retributiva da psicologia popular portanto, uma disposio psicolgica mais social do que biolgica;
4 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal (parte geral). Conceito, 2010, 4 a edio, p. 79 e 277. 4 c) os grandes sistemas filosficos do pensamento ocidental so retributivos: KANT define a justia retributiva como lei inviolvel, pela qual todo aquele que mata, deve morrer; HEGEL considera a justia retributiva a nica digna do ser humano, porque teorias preventivas equivaleriam a tratar o homem como um co; d) enfim, a lei consagra a retribuio penal: o legislador determina ao juiz aplicar a pena necessria e suficiente para reprovao do crime (art. 59, CP) por essa via, a retribuio tambm informa a jurisprudncia criminal. 5
2.1.2. O discurso crtico. O discurso crtico redefine a retribuio do discurso oficial como retribuio equivalente, mostrando existir uma correspondncia ideolgica da retribuio equivalente com os fundamentos econmicos, polticos e jurdicos das sociedades fundadas na relao capital/trabalho assalariado, em que o tempo o critrio geral de medio do valor por exemplo: a) da mercadoria pelo preo, medido pelo tempo de trabalho social necessrio para produo da mercadoria; b) do trabalho pelo salrio, medido pelo tempo de trabalho social necessrio para reproduo do trabalhador (como energia produtiva); c) do crime pela pena, medida pelo tempo de privao de liberdade necessria para retribuio do crime. Por outro lado, mostra que a retribuio equivalente do crime pela pena existe como retribuio desigual nas sociedades capitalistas, como indica a dupla seletividade do sistema penal: a) no sistema legal, proteo penal seletiva de interesses e necessidades das classes sociais hegemnicas; b) no sistema de justia criminal, represso penal seletiva das classes sociais subalternas, realizada conforme indicadores sociais negativos de marginalizao, desemprego, pobreza etc., que ativam esteretipos, preconceitos, idiossincrasias e outras deformaes ideolgicas dos agentes de controle social (as chamadas metarregras), decidindo sobre a criminalizao concreta de oprimidos sociais. Assim, segundo a lgica jurdica do capital mas no pela lgica contraditria do trabalho assalariado , a retribuio equivalente do crime legitima a pena criminal das sociedades capitalistas, e deve perdurar como forma de punio especfica das formaes sociais fundadas na relao capital/trabalho assalariado, enquanto sobreviver a sociedade de produtores de mercadorias gostemos ou no gostemos disso. 6
5 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal (parte geral). Conceito, 2010, 4 a edio, p. 421-423. 6 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal (parte geral). Conceito, 2010, 4 a edio, p. 435-442. 5
2.2. A funo de preveno especial. 2.2.1. O discurso oficial. A funo de preveno especial deve ser (a) definida pelo juiz na aplicao da pena mediante sentena individualizada conforme necessrio e suficiente para prevenir o crime (art. 59 CP) e (b) realizada pelos tcnicos do sistema penal mediante execuo orientada para a harmnica integrao social do condenado (art. 1 o , LEP). Na rea da execuo penal, o discurso oficial compreende a funo de preveno especial sob duas dimenses simultneas, pelas quais o Estado espera evitar crimes futuros do condenado: a) a dimenso negativa de neutralizao do condenado, consistente na incapacitao para praticar novos crimes durante a execuo da pena, produzida pelo confinamento do condenado dentro dos muros da priso na verdade, a dimenso negativa da preveno especial constitui a forma de existncia real da funo de retribuio penal; b) a dimenso positiva de correo do condenado, mediante o trabalho conjunto de psiclogos, socilogos, assistentes sociais e outros funcionrios da chamada ortopedia moral do estabelecimento penitencirio, dominou os ltimos dois sculos de execuo do projeto tcnico-corretivo da priso dois sculos de fracasso e de reproposio reiterada do mesmo projeto fracassado. 7
2.2.2. O discurso crtico. O discurso crtico sobre a funo de preveno especial da pena criminal distingue entre funes declaradas e funes reais da priso: a) por um lado, afirma o fracasso integral das funes declaradas da priso; b) por outro lado, reconhece o xito integral das funes reais da instituio penitenciria. O fracasso das funes declaradas da priso refere-se ao projeto de correo do condenado, como demonstram todas as pesquisas empricas dos ltimos duzentos anos: a) primeiro, a relao entre pena e reincidncia: quanto maior a pena, maior a reincidncia criminal; b) segundo, a influncia negativa da subcultura da priso sobre o condenado: a reconstruo psquica da autoimagem como criminoso, as deformaes emocionais do preso, os processos de desculturao (desaprendizado das normas sociais) e de aculturao do condenado (aprendizado das normas de sobrevivncia na priso: as normas da violncia e da malandragem, por exemplo). 8
7 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Vozes, 1977, p. 228-239. 8 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. Freitas Bastos, 1999, 2 a
edio, p. 184. 6 Nessa perspectiva, o xito das funes reais da priso consiste em garantir as desigualdades sociais da formao econmica capitalista, fundadas na relao capital/trabalho assalariado, mediante uma gesto diferencial da criminalidade, assim definvel: a) imunizao legal das elites de poder econmico e poltico; b) represso penal das massas populares de marginalizados do mercado de trabalho e de oprimidos sociais, em geral. 9
2.3. A funo de preveno geral. 2.3.1. O discurso oficial. A funo de preveno geral realizada pelo Legislador mediante definio de crimes e cominao de penas, tambm definida sob forma negativa e sob forma positiva. A dimenso negativa da preveno geral atribuda ao poder intimidante da pena, pelo qual o Estado espera desestimular pessoas de praticarem crimes cuja frmula original a teoria da coao psicolgica de FEUERBACH , apesar de BECCARIA j reconhecer que no seria a gravidade da pena, mas a certeza ou probabilidade da punio que desestimularia a prtica de crimes. 10
A dimenso positiva da preveno geral definida pela estabilizao das expectativas normativas (ou preveno/integrao), fundada na necessidade da pena para proteo da sociedade e na utilidade da punio do criminoso para inibir impulsos antissociais da populao, apresentada em duas variantes principais: a) a variante liberal de ROXIN 11 , da pena como proteo subsidiria e fragmentria de bens jurdicos selecionados a partir da Constituio; b) a variante autoritria de JAKOBS 12 , da pena como demonstrao da validade da norma realizada s custas do autor, hoje repensada conforme as propostas do direito penal do inimigo, com as seguintes alternativas: b1) para o cidado, a pena uma reao contraftica com significado simblico de afirmao da validade da norma, como contradio ao fato passado do crime, cuja negao da validade da norma a pena pretende reprimir; 13 b2) para o inimigo, a pena uma medida de fora com efeito de custdia de segurana, como
9 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal (parte geral). Conceito, 2010, 4 a edio, p. 442-446. 10 BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene (1764). Giuffr Editore, 1973 (reimpresso), p. 73. 11 ROXIN, Claus. Strafrecht. 1997, 2, n. 38-39, p. 25. 12 JAKOBS, Gnter. Strafrecht, 1992, p. 5-7. 13 JAKOBS, Gnther. Brgerstrafrecht und Feindstrafrecht, 2004, Caderno 3, p. 89 s. 7 obstculo antecipado ao fato futuro do crime, cuja negao da validade da norma a pena pretende prevenir. 14
2.3.2. O discurso crtico. O discurso crtico tem por objeto as dimenses negativa e positiva atribudas funo de preveno geral da pena criminal. A dimenso negativa de intimidao penal apresenta os seguintes problemas: primeiro, a funo de intimidar para desestimular no possui critrio limitador da pena assim, a lgica de quanto maior a intimidao, maior o desestmulo tende a instalar um estado de terrorismo penal , como mostram os crimes hediondos; segundo, a grandeza da punio exemplar de indivduos reais para desestimular indeterminveis criminosos potenciais constitui violao da dignidade humana. A dimenso positiva de estabilizao das expectativas normativas parece atribuir ao Direito Penal a tarefa de satisfazer os instintos mais primitivos do ser humano: assim, a punio de crimes aumentaria a fidelidade jurdica porque satisfaz os impulsos punitivos da populao; ao contrrio, a no punio de crimes reduziria a fidelidade jurdica porque frustra os impulsos punitivos da populao. Por ltimo, a distino de JAKOBS entre cidados e inimigos institui a desigualdade legal no lugar do princpio de igualdade perante a lei e condiciona as garantias constitucionais do processo legal devido ao conceito de tipo de autor, aplicadas ao cidado e negadas ao inimigo conforme decises idiossincrticas dos agentes de controle social. 15
II. O DISCURSO CRIMINOLGICO As cincias naturais e as tcnicas estatsticas desenvolvidas nas sociedades industriais fazem nascer a Criminologia, uma cincia explicativa da criminalidade como fenmeno de massa. Esse novo discurso de explicao da criminalidade, construdo pelo mtodo positivista das cincias naturais, nas variantes biolgica (LOMBROSO) e sociolgica (FERRI), pretende substituir o Direito Penal como discurso oficial de imputao de fatos antissociais. Aps o clebre confronto histrico das chamadas Escolas Penais na virada para o sculo 20, a Criminologia positivista assume uma posio subalterna de cincia auxiliar do Direito Penal por exemplo, como prope LISZT na
14 JAKOBS, Gnther. Brgerstrafrecht und Feindstrafrecht, 2004, Caderno 3, p. 89 s. 15 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal (parte geral). Conceito, 2010, 4 a edio, p. 447-451. 8 Moderna Escola do Direito Penal orientada pelo fim: intimidar o autor ocasional, corrigir o corrigvel e neutralizar o incorrigvel. 16
Mas a sociedade sempre mais rica do que supem os discursos oficiais de controle social: a pesquisa histrica mostra a construo paralela de dois discursos criminolgicos antagnicos, com teorias sociais opostas, com objetos de estudo diferentes e diversos mtodos de estudo do objeto, assim definveis: a) a Criminologia tradicional, com um discurso etiolgico sobre criminalidade, sempre no papel de cincia auxiliar do Direito Penal; b) a Criminologia crtica, com um discurso poltico sobre criminalizao, no papel de cincia crtica do Direito Penal, do Sistema de Justia Criminal e das desigualdades sociais da relao capital/trabalho assalariado.
A) Criminologia tradicional: o discurso etiolgico sobre criminalidade O discurso etiolgico sobre criminalidade a marca da Criminologia positivista, que trabalha com um mtodo causal-determinista fundado na pergunta: por que certas pessoas cometem crimes? Por isso, orienta a investigao para as causas determinantes do comportamento criminoso, uma realidade objetiva estudada como coisa, conforme prope DURKHEIM. O discurso etiolgico sobre criminalidade da Criminologia positivista possui as seguintes caractersticas: a) teoria poltica consensual: assume a teoria do consenso sobre valores e interesses como fundamento poltico da sociedade, o que permite definir o desvio como dissenso individual determinado por patologia ou subsocializao; b) determinao causal: trabalha com o conceito de determinao causal da conduta humana, que reduz o comportamento a mero sintoma revelador da natureza do sujeito, produzido por causas internas desconhecidas e no controladas pelo autor, mas identificveis por peritos (psiquiatras, bilogos etc.) mediante diagnstico de causas, prognstico de comportamentos e prescrio de terapias corretivas, segundo o modelo e a linguagem mdica; c) mtodo experimental: o conceito de determinao causal do positivismo pressupe o mtodo indutivo-experimental das cincias
16 LISZT, Franz v. Der Zweckgedanke im Strafrecht, in Strafrechtliche Aufstze und Vortrge, 1905, vol. 1, p. 126 s. 9 naturais, verificando hipteses induzidas da quantificao da conduta com base em estatsticas criminais. d) explicaes por defeitos individuais: as respostas pergunta (por que determinadas pessoas cometem crimes?) fundamentam explicaes da criminalidade fundadas em defeitos individuais determinados por patologia ou por subsocializao, com propostas de correo pessoal ou de reformas sociais, substituindo as penas criminais (fundadas na liberdade de vontade) por medidas corretivas ou assecuratrias (fundadas na determinao da conduta). 17
Como se ver, a Criminologia tradicional produziu explicaes individuais (modelo de LOMBROSO) e explicaes socioestruturais (modelo de FERRI) da criminalidade, a seguir sumariadas. 18
1. Explicaes individuais 1.1. Teoria dos defeitos pessoais naturais As teorias etiolgicas dos defeitos pessoais naturais apresentam explicaes biolgicas, constitucionais, genticas e instintivas do comportamento humano, como se indica: a) Explicaes biolgicas. A primeira explicao biolgica do comportamento humano a teoria do criminoso nato (LOMBROSO), fundada na hiptese de atavismo, definvel como degenerao pessoal identificvel por estigmas fsicos: o crnio estreito e pomos salientes do assassino, os olhos oblquos e o nariz grande do estuprador, a fronte fugidia do ladro etc. A crtica fala dos mtodos de pesquisa defeituosos, da falta de confirmao das correlaes indicadas, da origem social da maioria dos estigmas e da seletividade do sistema penal orientada por tais estigmas (na poca, desconhecida). Mas a rejeio da hiptese explicativa especfica no teve o efeito de invalidar a teoria geral, ainda dominante na Criminologia positivista contempornea. 19
17 TAYLOR, WALTON e YOUNG. The new criminology. Routledge & Kegan Paul, Londres, 1973, p. 31-40. 18 ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentao para o Direito Penal. Traduo de Juarez Cirino dos Santos e de Helena Schiessl Cardoso. ICPC/Lumen Juris, Curitiba Rio de Janeiro, 2010, p. 40 s. 19 ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentao para o Direito Penal. Traduo de Juarez Cirino dos Santos e de Helena Schiessl Cardoso. ICPC/Lumen Juris, Curitiba Rio de Janeiro, 2010, p. 41; HASSEMER, Winfried. Einfhrung in die Grundlagen des Strafrechts. Beck, 1990, p. 28- 30; TAYLOR, WALTON e YOUNG. The new Criminology. Routledge & Kegan Paul, Londres, 1973, p. 41-42. 10 b) Explicaes morfolgico-constitucionais. Teorias corporais pressupem correlaes entre caracteres fsicos e tendncias psquicas para determinados delitos: por exemplo, o leptossomtico ou ectomorfo (indivduo magro e alto), tendncia para o furto, o estelionato etc.; o atltico ou mesomorfo (indivduo musculoso), tendncia para a violncia pessoal, patrimonial e sexual; ao contrrio, o pcnico ou endomorfo (indivduo gordo) seria socivel e bonacho. A crtica fala de dificuldades para definir os tipos corporais e da inconfiabilidade dos dados de pesquisa, que excluiriam a influncia social na formao dos caracteres corporais e psquicos, pesquisados em instituies totais etc. 20
c) Explicaes genticas. A teoria gentica mais difundida indica a presena de um Y extra na estrutura cromossmica individual (XY no homem, XX na mulher) como responsvel pelo comportamento violento: essa anomalia cromossmica teria sido encontrada na proporo de 3% a 4% da populao das prises, mas apenas na proporo de 0,04% da populao em geral. Independente de crticas metodolgicas, bvia a insignificncia explicativa da teoria. 21
d) Explicaes hereditrias. Teorias hereditrias, fundadas em pesquisas de gmeos idnticos e fraternos, pressupem correlaes entre disposies hereditrias e comportamento humano, assim formuladas: se existe a correlao herana/comportamento, ento (a) o comportamento de gmeos idnticos seria concordante e (b) o comportamento de gmeos fraternos seria discordante. Os dados de pesquisas mais recentes indicam pequena correlao: gmeos idnticos, concordncia em 35% dos casos; gmeos fraternos, concordncia em 13% dos casos. A crtica menciona influncias sociais e culturais para explicar a concordncia superior do comportamento de gmeos idnticos em relao aos gmeos fraternos, desconsideradas nas pesquisas indicadas. 22
e) Explicaes instintivas. Estudos do comportamento instintivo animal identifica sinais/estmulos inatos (maioria) e condicionados (minoria) responsveis pelo controle das relaes recprocas, mostrando como a
20 ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentao para o Direito Penal. Traduo de Juarez Cirino dos Santos e de Helena Schiessl Cardoso. ICPC/Lumen Juris, Curitiba Rio de Janeiro, 2010, p. 42; TAYLOR, WALTON e YOUNG. The new Criminology. Routledge & Kegan Paul, Londres, 1973, p. 43-44. 21 KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 118-119; HASSEMER, Winfried. Einfhrung in die grundlagen des Strafrechts. Beck, 1990, p. 28-30; TAYLOR, WALTON e YOUNG. The new Criminology. Routledge & Kegan Paul, Londres, 1973, p. 44-47. 22 ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentao para o Direito Penal. Traduo de Juarez Cirino dos Santos e de Helena Schiessl Cardoso. ICPC/Lumen Juris, Curitiba Rio de Janeiro, 2010, p. 43-44; HASSEMER, Winfried. Einfhrung in die grundlagen des Strafrechts. Beck, 1990, p. 28-30; KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 114-118. 11 transmisso/captao desses sinais/estmulos pode desencadear ou inibir a agressividade instintiva em trs hipteses, apresentadas como prottipos da agressividade humana: a) agresso predatria, relacionada sobrevivncia de animais de presa; b) agresso defensiva, por medo ou para proteo do grupo social ou do territrio, desencadeada em caso de violao da chamada distncia crtica; c) agresso intraespecfica, inibida por mecanismos individuais (exposio das partes vulnerveis) ou sociais (posio hierrquica, impresses recprocas de poder e fora), mas desencadeada em situaes de competio por fmeas ou por posio social, ou em situaes de erro de transmisso ou de captao de sinais. 23
A crtica refere o abismo entre instintos animais e teorias sociolgicas e polticas das sociedades humanas, marcadas pela ideologia e pelos conflitos de classes. 24
1.2. Teorias dos defeitos pessoais apreendidos 1.2.1. Teoria da aprendizagem por condicionamento. As teorias de aprendizagem por condicionamento definem a mente humana como um conjunto de reflexos condicionados (EYSENCK), ou como sistema de reaes mecnicas condicionadas por processos de recompensa/punio (SKINNER), ambas fundadas na capacidade humana de decidir o comportamento conforme antecipao psquica das consequncias futuras, regidas pelo princpio do prazer. Apesar de desenvolvimentos modernos fundados na adoo de modelos, em que a imitao teria maior influncia do que a experincia pessoal, limitada ao mero reforo do comportamento pelos efeitos de recompensa (prazer) ou punio (dor), as teorias behavioristas reduzem o comportamento humano a simples sistemas de reflexos condicionados ou de reaes mecnicas, igualmente incompatveis com as teorias psicanalticas e sociolgicas modernas. 25
1.2.2. Teoria da associao diferencial
23 Ver LORENZ, Konrad. A agresso (uma histria natural do mal). Moraes Editores, Lisboa, 1974; tambm DEBUYST, C. Etiology of violence. In Violence in society (Collected studies in criminological research, v. XI). Strasbourg, Council of Europe, 1974. 24 Para uma fina crtica de tendncias psiquitricas e biolgicas da Criminologia tradicional, ver MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Revan, 2003, p. 87 e s. 25 KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 123-124; TAYLOR, WALTON e YOUNG. The new Criminology. Routledge & Kegan Paul, Londres, 1973, p. 47-61. 12 A teoria da associao diferencial, criada por SUTHERLAND (celebrizado pelas pesquisas do white collar crime), define o comportamento criminoso (a) como aprendido no processo de interao social, especialmente mediante comunicao verbal, (b) a aprendizagem ocorreria no interior de grupos sociais (por exemplo: de condenados, nos crimes comuns; de empresrios, nos crimes econmico-financeiros), com transmisso de tcnicas de execuo de crimes e desenvolvimento de direes especficas, fundadas em motivos, em impulsos, em racionalizaes e em atitudes concretas, por sua vez variveis conforme a frequncia, a durao, a prioridade e a intensidade das associaes com padres de comportamentos criminosos. 26
A crtica reconhece que a aprendizagem pode explicar a difuso de comportamentos antissociais no interior de grupos, mas no explica a gnese social das relaes pessoais nos grupos (de condenados, ou de empresrios, por exemplo), nem a origem dos crimes passionais ou impulsivos, nem a identificao com modelos difundidos pelos meios de comunicao de massa 27 na poca da teoria, ainda incipientes.
1.2.3. Teorias psicanalticas. A Psicanlise uma prtica teraputica fundada numa teoria da personalidade configurada em trplice constituio do aparelho psquico: a) o id originrio, fonte da energia psicossomtica e sede dos instintos, regido pelo princpio do prazer; b) o ego, desenvolvido a partir do id pela experincia sensorial do indivduo, responsvel pela adequao do princpio do prazer ao princpio da realidade, constitudo pelas relaes do mundo externo; b) o superego, herdeiro do complexo de dipo, como instncia psquica de controle sobre o ego na realizao dos impulsos agressivos ou sexuais provenientes do id. 28
As explicaes psicanalticas da agressividade humana apontam distrbios no desenvolvimento da libido, com projees destrutivas do instinto de morte, nas seguintes situaes: a) por falhas na identificao com o pai atravs da experincia de dipo, que continua como rival (no
26 SUTHERLAND, Edwin e CRESSEY, Donald R. Principles of criminology. J.B.Lippincott Company, 1966, p. 77-83; ver tambm ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentao para o Direito Penal. Traduo de Juarez Cirino dos Santos e de Helena Schiessl Cardoso. ICPC/Lumen Juris, Curitiba Rio de Janeiro, 2010, p. 46; HASSEMER, Winfried. Einfhrung in die Grundlagen des Strafrechts. Beck, 1990, p. 35-36; KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 147-148. 27 KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 114-118. 28 FREUD, Sigmund. Das Ich und das Es. Fischer, 1994, v. III, p. 283-330. 13 se transforma em modelo), objeto de agresso e prottipo de posterior agressividade social; b) por represso excessiva da experincia edipiana, produzindo inconsciente sentimento de culpa e necessidade de punio para reduzir ou excluir o sentimento de culpa, com liberao de agressividade pela prtica de crimes (o chamado criminoso por sentimento de culpa). 29
As explicaes psicanalticas podem ser importantes em casos individuais, mas so incapazes de explicar a criminalidade como fenmeno de massa, ou a criminalizao como programa poltico nas sociedades de classes sociais antagnicas do capitalismo contemporneo. 30
2. Explicaes socioestruturais 2.1. Teorias culturais: anomia A principal teoria socioestrutural emprega o conceito de anomia, criado por DURKHEIM (no sentido de ausncia de normas) e utilizada por MERTON (como conflito cultural) para explicar o comportamento desviante. 2.1.1. DURKHEIM classifica o comportamento humano nas categorias de normal e patolgico: a) o comportamento normal compreende as espcies de comportamento conformista e de comportamento desviante este, geral a todas as sociedades e indicador do nvel de sade respectivo: se crescente, dinamismo; se decrescente, estagnao); b) o comportamento patolgico exprime a desconformidade excessiva de situaes de anomia afinal, o desvio normal em determinados limites. 2.1.2. MERTON descreve o conflito entre uma estrutura cultural de valores gerais igualitrios (metas culturais de riqueza, poder, sucesso etc.) e uma estrutura social de meios institucionais desiguais para realizar as metas culturais, criando anomia como conflito cultural: se existe discrepncia/disjuno entre metas culturais e meios institucionais,
29 FREUD, Sigmund, Artigos sobre Metapsicologia (1915). Imago, vol. XIV; KUNZ, Karl-Ludwig, Kriminologie. Haupt, 2004, p. 124-126. 30 CARVALHO, Salo. Antimanual de criminologia. Rio: Lmen Juris, 2008, p. 191 e s., apresenta original proposta de integrao entre Criminologia e Psicanlise. 14 ento sujeitos em posio social desvantajosa adotam meios ilegtimos (comportamento inovador) para alcanar as metas culturais. 31
A crtica observa o seguinte: primeiro, deve-se distinguir entre desejo (que independe da posio social) e expectativa (dependente do status socioeconmico) de sujeitos concretos na realizao das metas; segundo, a frequncia estatstica de criminalizao das camadas subalternas no decorre de maior criminalidade, mas da seletividade das sanes do sistema penal; 32 terceiro, as teorias socioestruturais so explicaes sistmicas limitadas s relaes de distribuio de bens e riquezas, que assumem e legitimam a base econmica das relaes de produo, assim como as relaes de poder poltico e as formas jurdicas de disciplina da contradio capital/trabalho assalariado das sociedades modernas.
2.2. Teorias subculturais: subsocializaco As teorias subculturais consideram a sociedade como conjunto de subsistemas culturais (no como sistema cultural unitrio), explicam o comportamento na perspectiva do subsistema cultural respectivo (no do sistema cultural unitrio), como adeso a valores e normas da subcultura especfica (no da cultura dominante) e mostram que o comportamento desviante ou criminoso pode ser normal, em determinadas circunstncias e pode ser reduzido por reformas no mbito da subcultura, ou por assistncia social de indivduos subsocializados. A crtica aponta que a criminalizao de sujeitos socializados na subcultura no indica a relao subsocializao/criminalidade, mas a relao subsocializao/criminalizao seletiva logo os defeitos de socializao no representam condio de criminalidade, mas perigo de criminalizao, como origem de prognsticos sociais negativos que orientam a seletividade do controle penal para reas e indivduos subsocializados. 33
31 HASSEMER, Winfried. Einfhrung in die Grundlagen des Strafrechts. Beck, 1990, p. 42-47; KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 159-161; TAYLOR, WALTON e YOUNG. The new Criminology. Routledge & Kegan Paul, Londres, 1973, p. 67-81. 32 ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentao para o Direito Penal. Traduo de Juarez Cirino dos Santos e de Helena Schiessl Cardoso. ICPC/Lumen Juris, Curitiba Rio de Janeiro, 2010, p. 48-49; KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 159-160. 33 KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 138-142. 15 Estudos fenomenolgicos sobre socializao em subculturas descobrem um vocabulrio de motivos produzidos pelas percepes e condicionantes das atitudes do autor, como tcnicas psquicas de neutralizao normativa ou discursos pessoais de justificao do comportamento, vlidas para a subcultura mas invlidas para a cultura dominante, assim definidas por MATZA: 34
a) negao de responsabilidade em situaes sociais sem-sada, em que o autor define o comportamento como produto de fatores incontrolveis por exemplo, eu estou doente; b) negao de injusto em casos de comportamentos considerados sem efeitos danosos por exemplo, brigas de rua como duelos privados; c) negao de vitimizao em hipteses de representao do comportamento como leso insignificante por exemplo, furto em supermercados; d) condenao dos condenadores em representaes de conduta reprovvel da autoridade ou do cidado por exemplo, o policial violento, o juiz venal, o governo corrupto, todo mundo usa algum tipo de droga etc.; e) apelo a lealdades superiores em atitudes vinculadas a valores concretos (a famlia, os filhos), superiores aos valores culturais (a lei) por exemplo, eu no fao isto por mim. Esses mecanismos psquicos de neutralizao da norma cultural geral mostram que certas percepes da realidade podem informar atitudes pessoais definveis como realizao de valores subculturais e no como leso de valores culturais , mas no esclarecem as determinaes estruturais, econmicas e polticas, dos sistemas culturais e subculturais da formao social.
B) A Criminologia crtica: o discurso poltico sobre criminalizao A Criminologia surge como crtica ao Direito Penal, porque apresenta um novo fundamento para o controle social: em lugar da liberdade como fundamento da pena, as determinaes como fundamento de medidas de segurana. Contudo, no uma crtica do controle social das sociedades capitalistas, porque trabalha com a teoria do consenso, incapaz de
34 MATZA, David. Becoming deviant. PRENTICE HALL, New York, 1969; HASSEMER, Winfried. Einfhrung in die Grundlagen des Strafrechts. Beck, 1990, p. 37-39; KUNZ, Karl-Ludwig, Kriminologie. Haupt, 2004, p. 147-148. 16 compreender o conflito de classes na estrutura econmica da sociedade. O atual discurso poltico sobre criminalizao formado por duas perspectivas independentes, mas suscetveis de integrao em uma abordagem unitria alis, como props BARATTA: a) a perspectiva individual do labeling approach; b) a perspectiva socioestrutural da Criminologia crtica. 35
1. A perspectiva individual do labeling approach 1.1. Origens. O labeling approach no uma teoria criminolgica, mas um novo paradigma de abordagem da questo criminal, que desloca o objeto de estudo da criminalidade para a criminalizao. Esse novo paradigma, tambm conhecido como interacionismo simblico, possui antecedentes sociolgicos e fenomenolgicos: a) antecedente sociolgico parece ser a noo de crime como leso da conscincia coletiva (DURKHEIM), assim enunciada: o fato no uma leso da conscincia coletiva, porque criminoso (condenamos, porque o fato criminoso), mas o fato criminoso, porque uma leso da conscincia coletiva (o fato criminoso, porque condenamos); 36 b) antecedente fenomenolgico a definio da personalidade como construo social no processo de interao simblica: a conscincia de si desenvolvida na interao social, mediante internalizao da atitude dos outros em relao a ns. 37
1.2. Objeto. O enfoque do labeling approach desloca o objeto de estudo do problema da criminalidade para o processo de criminalizao: o comportamento criminoso no uma realidade ontolgica preexistente, segundo a criminologia positivista, mas realidade social construda pelo sistema de justia criminal. Assim, (a) o crime no uma qualidade da ao (crime natural), mas uma ao qualificada como crime pelo Legislador, e (b) o criminoso no um sujeito portador de uma qualidade intrnseca (criminoso nato), mas um sujeito qualificado como criminoso
35 BARATTA, Alessandro. Che cosa La criminologia critica? In Dei delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 59; ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentao para o Direito Penal. Traduo de Juarez Cirino dos Santos e de Helena Schiessl Cardoso. ICPC/Lumen Juris, Curitiba Rio de Janeiro, 2010, p. 25-26; KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 25-26. 36 KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 172-176. 37 MEAD, George H. Mind, Self and Society. Chicago, 1934; HASSEMER, Winfried. Einfhrung in die Grundlagen des Strafrechts. Beck, 1990, p. 60-62; KUNZ, Karl-Ludwig. Kriminologie. Haupt, 2004, p. 174. 17 pela Justia criminal: criminoso o sujeito a quem se aplicou com sucesso o rtulo de criminoso. 38
1.3. Mtodo. A teoria do labeling approach trabalha com um mtodo processual-interacionista fundado na pergunta: como certas condutas so criminalizadas? ou como alguns sujeitos tornam-se criminosos? Logo, dirige a ateno para o processo de criminalizao legal e judicial e para a formao de carreiras criminosas por sujeitos criminalizados pelo sistema de justia criminal. 39
Assim, se o crime e o criminoso so realidades sociais construdas por mecanismos de interao social, ao nvel de definio legal de condutas como crimes (Poder Legislativo) e ao nvel de constituio judicial de sujeitos como criminosos (Justia criminal), ento o Estado cria o crime e produz o criminoso; alm disso, se a criminalizao inicial produz a autoimagem de criminoso e a criminalizao posterior efeito da anterior, ento o Estado tambm reproduz a criminalidade, sob a forma de reincidncia criminal. 40
2. A perspectiva scioestrutural da Criminologia Crtica 2.1. Premissas. A Criminologia Crtica promove mudanas radicais no objeto de estudo e no mtodo de estudo do objeto: a) quanto ao objeto, muda do sujeito (objeto da Criminologia tradicional) para as estruturas econmicas e as instituies jurdicas e polticas que constituem o sujeito como ser histrico concreto; b) quanto ao mtodo, muda das determinaes causais de objetos naturais (mtodo da Criminologia tradicional) para a dialtica materialista de objetos histricos, capaz de compreender as relaes entre a estrutura econmica de produo e distribuio da riqueza material e as instituies jurdicas e polticas de controle social do Estado. 41
38 BECKER, Howard. Outsiders: studies in the sociology of deviance. Free Press, New York, 1963; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. ICPC/Lumen Juris, 2008, p. 19 s. 39 RUBINGTON, Earl e WEINBERG, Martin S. The study of social problems. New York, Oxford University Press, 1977, p. 172 s.; 40 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. Freitas Bastos, 1999, p. 99 s.; ver ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA, SLOKAR. Direito Penal Brasileiro. Revan , 2003, v. I, p. 43-59, em especial sobre a relao seletividade (do sistema penal) e vulnerabilidade (do reprimido). 41 MARX, Karl. Das Kapital, 1867, v. 1, p. 761-762, formula a primeira distino entre explicaes individuais e estruturais do comportamento humano, na descrio do processo de acumulao primitiva do capital: expulsos da terra e expropriados dos meios de trabalho e de sobrevivncia animal, os camponeses formaram bandos de vagabundos, mendigos e ladres (por limitao objetiva do mercado de trabalho ou por incapacidade de adaptao disciplina do trabalho), originando uma 18 Hoje, a Criminologia Crtica o produto da integrao da teoria do conflito de classes do marxismo, que desenvolveu um modelo de compreenso dos processos objetivos das relaes sociais de produo e distribuio da riqueza material, com a teoria da interao social do labeling approach, que desenvolveu um modelo de compreenso dos processos subjetivos de construo social da criminalidade. 42
2.2. Objeto. O objeto de estudo da Criminologia Crtica compreende: a) a estrutura econmica das relaes sociais de produo e distribuio da riqueza material, configurada pela contradio capital/trabalho assalariado; b) o sistema de justia criminal (lei, polcia, justia e priso), bem como o conjunto das instituies jurdicas e polticas do Estado, definidos nas perspectivas dos objetivos aparentes e dos objetivos reais que caracterizam as instituies sociais das modernas sociedades capitalistas. 43
2.2.1. Na estrutura econmica, a violncia da relao capital/trabalho assalariado ocorre em duas direes: a) sobre seres humanos integrados no mercado de trabalho, redefinidos como fora de trabalho produtora de mais-valia pelo preo do salrio, cujo valor de troca determina a constante necessidade de venda da energia produtiva para reproduo ampliada do capital; b) sobre seres humanos excludos do mercado de trabalho, como fora de trabalho excedente compelida a viver em condies de misria econmica e de marginalizao social, intil para produo de mais-valia e reproduo ampliada do capital, mas til para conter os salrios no nvel mais baixo possvel, pela presso sobre a fora de trabalho integrada no mercado. 2.2.2. No sistema de justia criminal, os mecanismos estatais de atribuio da criminalidade pelos processos de criminalizao, mediante proteo seletiva de bens jurdicos pela lei penal e represso seletiva de sujeitos pela Polcia, Justia e Priso, garantem as desigualdades sociais
legislao sangrenta contra a vagabundagem, que explicava aqueles fatos por defeitos pessoais, e no por mudanas estruturais e institucionais do modo de produo da vida social. 42 BARATTA, Alessandro. Che cosa La criminologia critica? In Dei delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 59. 43 PASUKANIS, Evgeny. Teoria geral do direito e o marxismo. Perspectiva Jurdica, Lisboa, 1972, apresenta a primeira anlise da pena criminal na perspectiva das aparncias e realidades dos fenmenos sociais das sociedades de classes: a) objetivos reais de proteo dos privilgios da propriedade privada dos meios de produo, de luta contra as classes oprimidas e de garantia da dominao de classe; b) objetivos ideolgicos de proteo da sociedade, definida como alegoria jurdica para ocultar a proteo das condies fundamentais da sociedade de produtores de mercadorias. Ver tambm ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentao para o Direito Penal. Traduo de Juarez Cirino dos Santos e de Helena Schiessl Cardoso. ICPC/Lumen Juris, Curitiba Rio de Janeiro, 2010, p. 57-58; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal (parte geral). Conceito, 2010, 4 a edio, p. 435-442. 19 da relao capital/trabalho assalariado, legitimada pelos velhos e novos discursos punitivos por exemplo, o discurso da tolerncia zero, do direito penal do inimigo etc. 44
No quadro da constituio histrica do indivduo pelas relaes sociais concretas, mediante condicionamentos psquicos e emocionais da violncia estrutural sobre a fora de trabalho integrada no mercado (por exemplo, a subordinao pessoal, a disciplina do trabalho), ou mediante deformaes psquicas e emocionais da violncia estrutural sobre os marginalizados do mercado de trabalho (por exemplo, a fome, a doena, o desespero), contra os quais aplicada a violncia institucional seletiva do sistema de justia criminal, orientada por estigmas e outros esteretipos do processo de subsocializao que ativam preconceitos e outras deformaes idiossincrticas e ideolgicas dos agentes de controle social , podemos perceber como a natureza humana de indivduos concretos formada/deformada pelo conjunto das relaes sociais da vida real. 45 No contexto histrico desses processos estruturais e institucionais seria possvel identificar, neste ou naquele caso isolado, uma ou outra hiptese das explicaes etiolgicas individuais ou socioestruturais da Criminologia tradicional mas, somente e talvez, nada mais. 2.3. Mtodo. A Criminologia Crtica trabalha com o mtodo dialtico do materialismo histrico, fundado no princpio da contradio de objetos sociais, pelo qual o conflito antagnico da relao capital/trabalho assalariado das formaes sociais capitalistas o princpio metodolgico capaz de explicar as instituies jurdicas e polticas do Estado capitalista e, de modo especial, a criao da lei penal e o funcionamento do sistema de justia criminal. 46 Esse mtodo de trabalho comea com as seguintes perguntas: a) por que so criminalizados certos comportamentos (e no outros)? b) por que so criminalizados certos sujeitos (e no outros)? Essas perguntas dirigem a investigao para os mecanismos de controle social do Estado, definidos pelo sistema legal e operacionalizados pelos
44 BARATTA, Alessandro. Che cosa La criminologia critica? In Dei delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 59-63 e 66-67; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal (parte geral). Conceito, 2010, 4 a
edio, p. 435-442. 45 MARX/ENGELS, Die deutsche Ideologie. In MEW, Institut fr Marxismus-Leninismus, Berlim, 1956-1968, vol. 3, p. 46. 46 RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto, in Punishment and Social Structure. Transaction Publishers, 2003, p. 5, mostram a correspondncia entre a base material da estrutura econmica e as instituies jurdicas e polticas de controle social, deste modo: Every system of production tends to discover punishments which correspond to its productive relationships. 20 sistemas de represso policial, judicial e prisional, e iluminam a unidade interna entre o modo de produo da Economia, as formas jurdicas do Direito e as relaes de poder da Poltica do Estado Moderno, que instituem, legitimam e garantem a explorao e a dominao de classes das sociedades capitalistas. Assim, as respostas demonstram a natureza seletiva do Sistema de Justia Criminal: a seletividade da lei penal, mediante a proteo de interesses e necessidades das classes hegemnicas da formao social; a seletividade da Justia penal, mediante a represso das classes e segmentos oprimidos da formao social, em especial das massas marginalizadas do mercado de trabalho, do consumo social e da cidadania poltica. 47
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47 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. Freitas Bastos, 1999, p. 159 s.
Uma Teoria de Direito Criminal: para além da Tutela de Bens Jurídicos: a consciência dos valores como fundamento e o Bem Jurídico como possibilidade de relação