Achilles Delari - Princípios Éticos

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http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v24i1.

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PRINCPIOS TICOS EM VIGOTSKI: PERSPECTIVAS PARA A PSICOLOGIA E A EDUCAO

ETHICAL PRINCIPLES IN VYGOTSKY PERSPECTIVES FOR PSYCHOLOGY AND EDUCATION


Achilles Delari Junior1 RESUMO: Este texto explora criticamente princpios ticos pertinentes psicologia de Vigotski, nem sempre explicitados por outros estudiosos, procurando esboar suas consequncias para a prtica social do psiclogo e do educador, de modo reflexivo e no normativo. Na primeira seo, explicita-se que o valor fundamental para a perspectiva histrico-cultural a prpria humanidade. Contudo, no se trata de um humanismo ingnuo, nem liberal, mas crtico de raiz marxista. No interior deste humanismo crtico, detalham-se os conceitos de superao, colaborao e emancipao, como busca de salto para o reino da liberdade. Na segunda seo, so abordadas contradies enfrentadas por trabalhadores da psicologia e da educao que tentem pautar suas prticas em tais valores morais. Alia-se a necessidade de ver a realidade de modo crtico com a de entend-la em sua historicidade, portanto, no carter dinmico e conflitivo das lutas que constituem a sociedade e nossos papis dentro dela. Na terceira seo, coloca-se o mtodo construtivo [konstruktivnii metod] como um elo entre os princpios antes discutidos e a prtica social do psiclogo e do educador, na constituio da sua personalidade e a de seus interlocutores. Finalmente, como desafio e pedido de rplica, problematizam-se as possibilidades de superao da hipocrisia da tica burguesa, com base no princpio da organizao coletiva classista radical. PALAVRAS-CHAVE: Vigotski; tica; psicologia; educao; marxismo. ABSTRACT: This text critically explores ethical principles pertinent to Vygotskys psychology, that are not always made explicit by other scholars, looking to outline its consequences for the psychologists and educators social practice, in a way that is reflexive and not normative. On the first section, it is made explicit that the fundamental value for the historic-cultural perspective is humanity itself. However, this is not about nave or liberal humanism, but a critical one with Marxist roots. On the inside of this critical humanism, are detailed the concepts of overcoming, collaboration and emancipation, as a quest for jumping to the kingdom of freedom. On the second section, the focus is on contradictions faced by psychology and education workers who try to base their practices on such moral values. The necessity to see reality in a critical way is allied with the need to understand in its historicity, therefore, in the dynamical and conflictive character of the struggles that constitute society and our roles inside it. On the third section, the constructive method [ konstruktivnii metod] is put as a link between the principles discussed before and the psychologists and educators social practice, in the constitution of its personality and of their interlocutors. Finally, as a challenge and ask for reply, we problematize the possibilities of overcoming bourgeois ethics hypocrisy, with basis on the principle of radical classist collective organization. KEYWORDS: Vygotsky; ethic; psychology; education; Marxism.

Psiclogo pela UFPR; Mestre em Educao pela Unicamp; Professor universitrio aposentado; Pesquisador independente. E-mail: [email protected]

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POSICIONAMENTO DO PROBLEMA E SUA ABORDAGEM Este artigo, inspirado na primeira seo de estudo anterior (DELARI JR., 2009), deseja por em relevo princpios ticos pertinentes psicologia histrico-cultural, os quais nem sempre so explicitados por estudiosos desta vertente. Contudo, esto no subtexto das formulaes mais radicais de L. S. Vigotskii (1896-1934), com implicaes decisivas para os campos da educao, da sade mental e de todo engajamento da cincia na luta de classes. Nosso objetivo geral destacar e explorar criticamente tais princpios ticos, pertinentes ao humanismo marxista, como sua principal diretriz. O especfico convidar o leitor discusso sobre consequncias de tais princpios para o ato educativo, num sentido antropolgico: transmisso/apropriao da cultura nas relaes sociais das novas geraes com suas predecessoras. Porque, para Vigotski, o educador organizador do meio social educativo (1926/1991, p. 159) e educar significa organizar a vida (VIGOTSKI, 1924/2003, p. 220), na escola e alm dela. Para organizar a vida preciso algum sistema de valores morais, que guiem tal organizao, para edificar modos de agir, pensar e sentir que temos como dignos de alcanar e aprimorar. O pensador marxista Adolfo Snchez Vzquez (1915-2011) faz distino conceitual entre tica e moral. A tica seria o discurso crtico-filosfico sobre a ao moral e os valores que a orientam. A ao propriamente moral, por sua vez, segundo tal autor, seria a que remete s suas consequncias boas ou ruins para a nossa vida e da coletividadeii. Assim, o adjetivo tico ser aqui utilizado como relativo aos valores morais e aos juzos formulados na/para a orientao de nossa atividade vital no interior de relaes com outras pessoas. Portanto, quando falarmos de tica no nos referiremos a padres de conduta formalizados em cdigos de tica profissional ou exigncias de comits de tica em pesquisa com seres humanos ou animais. Eles so necessrios, mas nos referimos antes ao campo dos princpios e valores profundos que permitem formular tais cdigos e normas de comits, avaliar sua validade e aprimor-los. Valores sem os quais as diretrizes de cdigos e comits se tornam sem sentido ou exercidas s por fuga punio. Fazer ou deixar de fazer algo para no ser punido prprio de uma tica fraca. Uma tica substancial diz respeito reflexo crtica do homem sobre os valores relativos ao carter bom ou ruim de suas aes, pelas consequncias que venham a ter para ns e nossos semelhantes. Refere-se a um campo em que querer e dever vm a ser uma s realidade. Historicamente, diferentes doutrinas ticas diferem ao definir o bem buscado. A tica diz mais do bem que se quer do que da punio da qual
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fugir. As ticas que tiveram como valor e bem maior a felicidade, foram chamadas de eudemonistas. As que tiveram o prazer como valor e bem maior se denominaram hedonistas. quelas que viam na utilidade das aes humanas o bem e o valor maior se designaram pragmatistas. Entre outras. (VZQUEZ, 1975). Propomo-nos pensar quais valores morais seriam centrais para a perspectiva histrico cultural, filiada histria de lutas da classe trabalhadora e ao iderio marxista. Valores cuja materializao e aperfeioamento se constituem como sua meta, sem a qual nenhum mtodo de estudo ou interveno pode ser criticamente definido. Desejamos propor conexes iniciais destes valores com o trabalho do psiclogo e do educador, sabendo ser a psicologia s um dos saberes necessrios Educao, no o nico nem o principal. Tal proposta est organizada nos tpicos: (a) critrios para um humanismo crtico na orientao histrico cultural; (b) contradies enfrentadas por quem se orienta por um humanismo crtico; (c) O mtodo construtivo e a educao como constitutiva da vida humana; e (d) algumas questes para continuar o dilogo.

CRITRIOS

PARA

UM

HUMANISMO

CRTICO

NUMA

ORIENTAO

HISTRICO CULTURAL Reduzir cada doutrina tica a uma palavra temerrio. E pode haver duas ou mais doutrinas sob uma s categoria, portando traos bem distintos. Dependendo, por exemplo, do que se define por felicidade, teremos diferentes eudemonismos, e assim por diante. Demos alguns exemplos, ao posicionar o problema, s para ilustrar a relao da tica com um bem imprescindvel que se busca. Nossa hiptese que a tica em Vigotski, marxista em essncia, embora afetada por outras tradies (como o espinosismoiii e o iluminismo judaicoiv), pode ser definida como humanista lato sensu. No se trata do humanismo cristo de Carl Rogers (1902-1987), ou o ateu de Jean-Paul Sartre (1905-1980). Mas tambm toma o humano e a realizao de suas potencialidades como valor inalienvel. Porm, na viso de Vigotski, os potenciais humanos s se atualizam e ampliam na ao coletiva, em aliana com a alteridade. No sendo seu foco tico na satisfao alheia de nossos semelhantes, os outros no so o infernov que trava nossa realizao pessoal, mas sua condio de possibilidade. O valor da humanidade como bem a ser preservado e cultivado, na perspectiva tica implcita em Vigotski: (a) no se traduz como humanismo ingnuo nem liberal; logo, (b) demanda critrios prprios para conceitos como superao, cooperao e emancipao. Sobre o que chamamos humanismo ingnuo,
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lembremos que humanos no so apenas nossos grandes feitos, na criao artstica, na cincia, na luta aguerrida pelo bem comum. No basta algo ser humano para ser bom. Tambm so humanos (ausentes noutros animais) atos de crueldade, degradao e autodestruio. Infelizmente, exemplos de expropriao, preconceito, censura, tortura, extermnio, dados sempre pelo capitalismo e s vezes mesmo pelo dito socialismo real, so tambm realizaes humanas. Teria dito Karl Heinrich Marx (1818-1883) que sua frase preferida seria de Terncio (195-159 a.n.e.): Sou homem, nada de humano me alheiovi (FROMM, 1976). Os males da humanidade no nos so alheios. Sabermo-nos humanos encarar bens e males coletivos como algo de que somos potencialmente capazes e, em alguma medida, responsveis. A tica humanista que nos importa no elevar qualquer ato humano a valor maior, no dir que s humano o que elevado, nem ver o homem como bom por essncia. Assim, a ela cabe acrescentar critrios distintos frente ao humanismo ingnuo, que definiremos a seguir. Tambm importante no confundir toda tica que tem a humanidade como valor central com viso liberal de homem. O liberalismo, ideologia da classe ascendente com o advento do capitalismo, posiciona o homem no centro (antropocentrismo), contra a viso medieval da divindade no centro (teocentrismo). Mas qual homem vem ao centro? Sem nos alongarmos, recordemos que o conceito de homem do liberalismo surgido com a ascenso da burguesia, privilegia certo modelo: proprietrio, masculino, branco, europeu, adulto, heterossexual, letrado, entre outros traos. Isto denuncia que a ideia de tal homem ser valor universal imposta s mais diversas formas de cultura, apesar do modelo derivar de interesses de uma s classe. Mesmo sendo um oponentevii, damos razo parcial a Paul-Michel Foucault (1966/1995; 1994) quando critica o humanismo moderno hegemnico, questionando seu conceito de homem. Dizemos razo parcial, pois no admitimos que a modernidade tenha gerado uma nica forma de conceber o homem: a liberal-burguesa. Nem que a crtica de suas falcias prove a derrota definitiva de todo e qualquer projeto humanista. O conceito liberal de homem hipostasia nossa individualidade e concebe nossa liberdade como um a priori. Temos a ideologia de todos serem livres para vender sua fora de trabalho e prosperar com esforo pessoal. O fracasso ou sucesso de cada um ser devido somente a mritos ou defeitos individuais. O humanismo que se insinua em Vigotski no se pauta no critrio ingnuo do homem como essencialmente bom, nem no liberal que foca a realizao individual. Mas,
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se ele no advoga a morte do homem, quais os ndices de valores morais de seu legado cientfico? H ao menos trs aes humanas que a psicologia de Vigotski no s valoriza em tese, mas busca produzir mediante sua prtica social. Para fins heursticos, vamos nome-las: (a) superao, (b) cooperao e (c) emancipao. A noo de superao em Vigotski, como ato e necessidade de irmos alm de nossos limites atuais, ressaltada por Andrei Puzirei como signo de finalidades e os valores fundamentais presentes em todo o pensamento de Vigotski (PUZIREI, 1989, p. 16 grifos do autor). Uma leitura rigorosa de Vigotski permite identificar uma orientao ao supremo no homem ou, para diz-lo com palavras de Dostoivski, ao homem no homem, sua organizao psquica e espiritual, desde o ponto de vista do que pode ser, em geral, o homem e dos caminhos que existem para este estado possvel, dos caminhos que abre, em particular, a arte e a psicologia da arte (PUZIREI, 1989, p. 16 grifos do autor). Ao que somamos os caminhos que abrem o trabalho consciente e o combate revolucionrio. Contra o erro aristocrtico de culto a grandes obras e grandes homens. Tal orientao da teoria histrico cultural ao que podemos ser e alcanar de mais elevado indica que se v o humano: (a) como ser apto a ir alm de seus limites; e (b) como ser que s realiza sua condio quando se supera. Contudo, realizarmo-nos indo alm de nossos limites atuais pode ocorrer ou no, em funo de condies materiais, de nossa vida social. Uma das principais condies materiais para a superao humana a cooperao. Se a ideologia liberal valoriza a competio como motor da superao humana, a tradio qual Vigotski se filia nega que um ser humano s avance quando outro sobrepujado. Se aquela supe o outro como algum a temer ou subjugar, esta supe que para tornarmo-nos indivduos necessitamos dele. A simples fragilidade do filhote humano, o tempo que demora at garantir sua sobrevivncia por conta prpria, mostra que necessitamos colaborao com algum para vir a sermos ns mesmos. E que podemos ser necessrios para algum vir a ser ele prprio. Isso ilustrado no estudo do desenvolvimento da personalidade e das funes do signo. Para Vigotski, a funo dos primeiros signos no estritamente afetiva, expressar emoes, mas antes indicativa, pedir ajuda. O primeiro propsito da linguagem um pedido de ajuda, uma chamada de ateno e, por conseguinte, a primeira transposio dos limites da personalidade, isto , uma colaborao... (VYGOTSKI, 1931/2000a, p. 338 grifo nosso).

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A necessidade de atuar junto a algum para avanarmos no se restringe a aprendermos a andar, falar, cuidar de nossa higiene, ler, escrever, contar. Por toda vida a superao de nossos limites exigir algum mais experiente, que provenha mediaes necessrias e a quem dirijamos solicitaes: para aprender outra lngua, exercer uma profisso ou dominar alguma arte. Tal necessidade de cooperar no se limita a instruirmo-nos com algum bem mais experiente, mas tambm com pares, amigos, familiares. Aprendemos tambm com crianas, pessoas mais novas, menos experientes, com suas perguntas, tentando lhes ensinar momento talvez em que mais devamos nos superar. Se, para nos tornarmos ns, necessitamos do outro, cabe eticamente lembrar que para irmos alm, o outro aliado essencial. Mas se no nascemos egostas (humanismo liberal) tambm no nascemos altrustas (humanismo ingnuo). A cooperao imprescindvel para o nosso avano, mas nem toda relao social permite ir alm. Acrescentamos que nem toda cooperao, sendo pelo bem de um grupo, pelo bem da humanidade. Fascistas podem cooperar visando derrota da democracia, liberais podem cooperar formando cartis. Nesses casos, a superao no vista como processo de todos desafiarem seus limites e fazerem-se melhores em algo de sua personalidade. Mas como forma obter benefcios pessoais ou corporativos e prevalecer-se sobre os demais. Pode haver formas de cooperao restritivas do potencial de avano do outro, e at mesmo em funo de subjug-lo e destru-lo. O crime organizado seria um exemplo dos mais comuns e mesmo as guerras no deixam de ser algo semelhante, ainda que num plano poltico bem distinto. O que tm de similar a ao de um coletivo para a destruio do inimigo. Se nem toda cooperao produz superao para toda a humanidade, cabe articular esses dois critrios ticos a um terceiro decisivo: a busca da emancipao humana. O valor tico da conquista e manuteno da liberdade, no sentido substancial. Para Vigotski (1932/2010, p. 92-93): o problema central de toda a psicologia a liberdade e uma grande imagem do desenvolvimento da personalidade: [] um caminho para a liberdade. Renascimento do espinosismo na psicologia marxista. Como se v, a viso de liberdade de Vigotski no liberal. O conceito de liberdade uma produo histrica e tem significados diversos: na antiga plis grega; no iderio da revoluo francesa; no projeto socialista, nunca plenamente realizado; ou na proposta anarquista, poucas vezes efetivada. Carregando origens diversas, os significados atuais para a palavra liberdade tambm divergem a palavra se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes (BAKHTIN [VOLOSHINOV], 1929/1992, p. 46). Significados dos mais ingnuos
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aos mais crticos, dos mais idealistas aos mais materialistas, dos mais demaggicos aos mais francos, dos mais racionalistas aos mais apaixonados. Dizer que a viso de liberdade de Vigotski no liberal, contrap-lo ideologia dominante desde a ascenso da burguesia na Europa. Reiteramos que os conceitos liberais de liberdade e humanismo pautam-se numa concepo individualista de homem. Apoiada num naturalismo: as diferenas entre ns derivam, sobretudo, da herana gentico-molecular nossos mritos adviriam de dons alheios s condies materiais da existncia social. O pensamento de Vigotski, com base metodolgica enraizada na tradio marxista, ope-se ao conceito liberal de liberdade ou emancipao. Isso se demonstra com dois pontos no conceito de liberdade/emancipao em Vigotski: (a) trata-se de uma conquista no de um pressuposto; (b) uma conquista que se obtm cooperando e no sozinho. No preciso optar por liberdade em preferncia a emancipao, nem o oposto. Ao dizer liberdade, concebemos o processo permanente de obt-la e no um estado ideal que atingido faz cessar a busca. Por emancipao, concebemos o mesmo, ainda que a terminao da palavra talvez enfatize mais o movimento. Como dissemos, o beb humano o mais dependente dos filhotes conhecidos. certo que no nascemos livres nem autnomos. Portanto, um desenvolvimento necessrio para conquistar autonomia: independncia afetiva, liberdade de ao e pensamento. O curso deste desenvolvimento vai do social ao individual (VIGOTSKI, 1932/2001). A nfase oposta a de autores como Freud e Piaget, para quem a criana um ser individual que s depois se socializaviii. Para a perspectiva histrico cultural, nascemos num mundo social e s nos mantemos vivos em contato com outras pessoas. Em relao, vamos nos diferenciando e subjetivando, tomando conscincia de nossa existncia, constituindo nosso mundo privado e assumindo novos lugares no mundo pblico. No h liberdade a ser constituda que no passe por relaes sociais. Mesmo as regras sociais, se bem formuladas, aprendidas com adultos e outras crianas, podem ajudar a obter mais liberdade, no sendo um inevitvel impedimento. Relaes coercitivas no so lei de desenvolvimento, como noutras teorias, mas realidades histricas que podem predominar ou no, devido a condies objetivas. Relaes coercitivas esto em constante tenso com as que proporcionam avano na obteno e exerccio de maior potncia de vida. Tomemos a brincadeira da criana: para que exista precisamos regras. Mas brincar no s pode ser aprazvel, como tambm permitir ir alm do que est diante de nossos olhos, no ato da imaginao (VIGOTSKI,
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1933/2008). Por fim, em Vigotski, o conceito de liberdade alia-se ao de vontade, que se traduz por atos volitivos, isto , tomada de deciso. Diante de duas opes, o homem necessita decidir o que ir obter (realizar) e perder (deixar de realizar). Nessa deciso (in)tensa pode superar a determinao mecnica dos estmulos externos. Alm disso, tal ato de volio desenvolve-se, passa por mudanas qualitativas ao longo do tempo. Em estudo sobre o domnio da prpria conduta, Vigotski explora tais questes. Retoma Marx e Engels (apud VIGOTSKI, 1931/2000b, p. 300): o livre arbtrio [...] no significa mais do que a capacidade de tomar decises com conhecimento do assunto. As decises mais livres no seriam as tomadas com base no impulso de fazer como quero ou tudo que quero, como no senso comum perpassado pela ideologia liberal. Uma ao apenas por querer, sem intuir seus motivos, arrisca no ser to livre. O conceito de liberdade aliado conscincia do real lembra o conceito espinosiano de superao de supersties. As quais provm de ignorarmos a verdadeira causa do que acontece, e as nossas possibilidades e limites na transformao ou manuteno disso. Vigotski assume, sem detalhar, a identificao de seus ideais com os de Espinosa: No podemos deixar de assinalar que nossa ideia da liberdade e o autodomnio coincide com as ideias que Espinosa desenvolveu em sua tica (VYGOTSKI, 1931/2000b, p. 301). Deve-se, ainda, relacionar o iderio emancipatrio em Vigotski com a busca social, na URSS, de engendrar o chamado novo homem socialista. Isto implicaria a ampliao das capacidades simblicas e culturais de cada pessoa num contexto societrio livre da expropriao de uma classe por outra (VYGOTSKY, 1930/1994). No marxismo, trata-se do salto para adiante, do reino da necessidade para a esfera da liberdade, como descrito por Engels (VIGOTSKI, 1930/1994, p. 182). Salto necessrio tanto para toda a sociedade quanto para a personalidade individual ix. Algo que ainda no houve na histria da humanidade. Sintetizamos, assim, um sistema de conceitos ticos que explicitam que humanismo est implcito em Vigotski e em suas contribuies para a psicologia e a Educao.

CONTRADIES

ENFRENTADAS

POR

QUEM

SE

ORIENTA

POR

UM

HUMANISMO CRTICO J que o humanismo prprio perspectiva histrico-cultural, tal como a lemos, nega valores dominantes, poderamos atribuir-lhe o adjetivo crtico. Mas sem substantiv-lo, para no criar rtulos que distanciem leitores com quem teramos aliana por
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um bem maior, caindo em luta ideolgica por qual seria o melhor humanismo. At porque humanista j adjetivo para uma tica. Seria mais literal tica humanista crtica ou humanismo marxista. Mas, como isto no resolve todo o problema conceitual e da prxis, o termo aqui s recurso heurstico. De todo modo, a crtica critrio fundamental para a psicologia histrico cultural. Disse Marx (1843/2010, p. 151) que:
A arma da crtica no pode claro, substituir a crtica da arma, o poder material tem que ser derrubado pelo poder material, mas a teoria tambm se torna fora material quando se apodera das massas. A teoria capaz de se apoderar das massas to logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem to logo se torna radical. Ser radical agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, o prprio homem (grifos do autor).

A crtica s eficaz se argumenta ad hominem. No no sentido vulgar de argumentar contra o homem que, na retrica clssica, uma forma de falcia: desqualificar traos pessoais do outro para desvalorizar seu argumento, sem mostrar sua falha. Mas sim no sentido mais profundo, de argumentar junto ao homem, interpelando-o em sua existncia social, pedindo-lhe coerncia entre atos simblicos e experincia. Falando o que lhe respeite pessoalmente e no s em tese, solicitando-lhe responsabilidade e tomada de atitude quanto ao que defende. Mas, para um dia argumentar assim, deveremos antes voltar tal recurso a ns mesmos. Ou em nossa fala poder predominar o agir estratgico sobre o agir comunicativox (HABERMAS, 1983/1989). Alm disso, sem em Puzirei (1989) o homem no homem se extrai para o alto, em Marx extrado do profundo, de suas razes, de ns mesmos seres sociais. Logo, a emancipao, conquista permanente de maior liberdade, ser social no s por cada indivduo se relacionar para desenvolver seus atos volitivos, mas por algo mais. O processo social de emancipao humana no relativo s liberdade de cada um, mas de toda sociedade, na produo de prticas democrticas radicais (que incluam a democracia econmica). Sabemos, porm, que nossa democracia apenas formal, suas restries so fortes e nossas instituies no so confiveis. Por isso, a ideologia liberal da liberdade individual hegemnica. H um dilema tico quanto a agir ou no agir, com relao a esse estado de coisas. Se Marx diz da luta entre arma da crtica e crtica das armas, Espinosa, no Tractatus politicus tambm recorre a termos blicos:
se numa Cidade os cidados no tomam das armas porque esto aterrados pelo medo, no se pode dizer que a exista paz e sim mera ausncia de guerra. A paz no pura ausncia de guerra, mas virtude originada da fora dalma no respeito s leis [...]. Uma Cidade onde a paz efeito da inrcia dos sditos tangidos como um rebanho e feitos apenas para servir merece antes o Nuances: estudos sobre Educao, Presidente Prudente, SP, v. 24, n. 1, p. 45-63, jan./abr. 2013. 53

nome de solido do que de Cidade (ESPINOSA, 1677 apud CHAUI, 1995, p. 55).

No

temos

espao

para

aprofundar

diagnstico

da

realidade

contempornea, dita ps-moderna, tambm nomeada neoliberal, ou designada como capitalismo tardio. Contudo, no tendo ainda como tomar das armas, notamos forte tenso entre os valores da tica implcita em Vigotski e os vigentes no mundo atual, inclusive no Brasil. Como agir com base em tais valores se so vistos, hegemonicamente, como antiquados ou mesmo utpicos, se no so totalmente ignorados? O marcador semntico principal, neste momento, hegemonicamente. O hegemnico o que predomina, o que mina e subordina as vises contrrias, mas no o absoluto, monoltico, no existe sem fissuras. As quais podem surgir como contestaes radicais organizadas, desobedincia civil, ou at convulses de cunho retrgrado. A sociedade em que nasceu a teoria histrico cultural no mais existe, foi derrotada na dita Guerra Fria. Ela mesma, por sua vez, enquanto existiu no atingiu todo o projeto proposto e talvez sua derrota decorra justo disso. Na sociedade atual, na qual psiclogos soviticos, como Vigotski xi, vm nos interpelar, o ser humano nem sempre valor central. Quando sim, tratado em termos liberais ou ingnuos. Nossa atitude no pode ser muito mais que a de distanciamento crtico. Como disse o Prof. Dr. Luiz Lastria (em conversa pessoal no ano de 1998), interpretando a tica de Adorno: Se no h cura, aprofunda o diagnstico. Propostas apressadas de cura, sem conhecimento crtico do que gera sintomas, podem ser iatrognicas (o tratamento gera patologia). E Hipcrates (apud SALIM, 1987, p. XVII) j alertava: curar se possvel; ao menos no danar. So metforas mdicas, pensamos em psiclogos e educadores, mas vale refletir. Alm disso, diagnosticar no um ato passivo ou politicamente neutro. , desde a raiz grega, conhecer atravessando a realidade, no tem o sentido de rotulao. necessrio compromisso com o ato de conhecer e com aqueles que se deseja conhecer, na relao com quem nos conheceremos melhor. J que s podemos tomar cincia de nossa existncia se nos situamos no complexo social no qual vivemos desde que nascemos. No so nossos alunos, por exemplo, objeto de piedade ou caridade, mas sujeitos coautores do processo histrico em que estamos inseridos e (re) produzimos. Em suma, aos princpios ticos aqui insinuados, comentados, soma-se um princpio ontolgico que permite abord-los melhor. Trata-se da historicidade dos valores. Se nossas relaes sociais, significando o mundo mediante a linguagem e modificando-o mediante o uso de instrumentos, se constituem historicamente, tambm nossos
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valores morais e, por conseguinte, nossa tica. Eles se constituem historicamente e s assim podem se consolidar ou se enfraquecer dando lugar a outros. A histria implica contradies e lutas entre projetos polticos. S em meio a tal contradio a realizao e/ou transformao dos nossos valores pode se dar. A busca de cooperao em funo de superao constante, como conquista de uma mais potente e universal emancipao humana, um desafio histrico, coletivo e pessoal. No pouco, nem suficiente. Mas uma interpelao feita pela histria da humanidade. Trabalhar instigados por tal desafio assumir o que ouvimos de Paulo Freire em Curitiba, em 12 de junho de 1992: Cabe fazer o que possvel fazer hoje para que aquilo que no possvel fazer hoje seja feito amanh. Os limites do possvel, segundo Vigotski (1935/1989)xii, se ampliam na relao com o outroxiii, e podem se estreitar dependendo de como nos relacionemos. Nesse ponto, cabe o ato volitivo de optar, se possvel, pelas relaes mais potencializadoras, que produzam bons encontros, que permitam compor com o mundo, com nossos semelhantes, com nossa classe social, pelo fim da sociedade de classes, rumo ao reino da liberdade. Descobrir quando possvel ou no, no mesmo ato de buscar produzir a possibilidade, o prprio exerccio da tica.

O MTODO CONSTRUTIVO E A EDUCAO COMO CONSTITUTIVA DA VIDA HUMANA Assumindo o critrio metodolgico da crtica e o ontolgico da historicidade como suportes tica, falemos sobre o critrio prtico do chamado mtodo construtivoxiv de Vigotski (1929/1986; 1929/2000). Pois se relaciona ao referido aprofundamento do diagnstico, como olhar crtico para o outro e ns mesmos, como psiclogos e educadores. Esse ponto um elo entre os valores gerais j abordados e a atuao do psiclogo e do educador numa perspectiva histrico-cultural. Retomo aqui discusso j iniciada alhures (DELARI JR., 2000), tratando da ntima relao entre: (a) prticas sociais e linguagens tericas que assumimos; e (b) a constituio de nossa subjetividade, conscincia e personalidade. O vnculo profundo dos valores ticos com o trabalho, momento essencial da vida em sociedade, em psicologia histrico-cultural, correlato s relaes entre o abstrato e o concreto. No marxismo, no h como chegar ao concreto sem passar pela abstrao, porque o concreto no mais s o emprico, ou seja, a experincia pela experinci a (KOSIK, 1963/1989). Para entendermos determinaes concretas da realidade preciso olhar
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alm do que se apresenta aos sentidos, ver o que no se mostra, ouvir o que no foi dito, conectar, relacionar, imaginar, interpretar, abstrair. Para Marx (1859/1978, p. 117) preciso elevar-se do abstrato ao concreto. Ele meta avanada, no ponto de partida eventual, como no senso comum: precisamos partir do concreto. Mas para alcanar o concreto, a abstrao deve manter vnculo com a vida, com as necessidades e lutas sociais. Infelizmente, se a abstrao sempre necessria ao cientista, ao psiclogo e ao educador crticos, nem sempre elevamo-nos ao concreto. Para Puzirei (1929/2000, p. 35), Vigotski diz que sua histria do desenvolvimento cultural a elaborao abstrata da psicologia concreta como autocrtica que testemunha sobre como ele foi livre e crtico na avaliao do seu trabalho (pela profundidade radical de seu pensamento [...] (PUZIREI, 1986/2000, p. 43). Portanto, a psicologia concreta viria a ser a superao dialtica de sua elaborao abstrata. Com base em tal pensamento, Vigotski teria formulado um projeto no qual viu a linha principal e perspectiva do futuro desenvolvimento da psicologia histrico cultural. Esta tendncia poderia denominar-se como a superao radical do academicismo na psicologia tradicional (PUZIREI, 1986/2000, p. 43). Tal projeto para o futuro, visto daquele tempo, interessa-nos hoje, no sculo XXI. Embora as condies da psicologia atual no sejam melhores que no perodo em que a perspectiva histrico cultural surgiu. Trata-se de um projeto que solicita
a transferncia para um tipo de pesquisa inteiramente novo, o qual [mostra] a fora das especificidades fundamentais do seu objeto, objeto histricocultural e que est em desenvolvimento, e exigncias principais [...] do seu mtodo, exteriorizao e anlise, o qual deveria realizar-se por si mesmo nos limites da organizao de uma ou outra atuao psicotcnica, ou at [se] possvel, em algum sistema regular da prtica psicotcnica, aparecendo na qualidade de seu rgo essencial, que garante o projeto, realizao, reconstruo e desenvolvimento planejado desta prtica. Este projeto de reconstruo radical da psicologia em toda a histria da psicologia posterior permaneceu em essncia no realizado (PUZIREI, 1986/2000, p. 43-44).
xv

A psicologia concreta proposta por Vigotski convida a uma mudana radical em nossa prpria atitude epistemolgica e profissional. A prtica da psicologia que estuda e intervm sobre a gnese social da conscincia, e a da educao que impulsiona intencionalmente o desenvolvimento da mesma, seriam entendidas e conduzidas como constitutivas de tal gnese. algo muito srio, se levado s ltimas consequncias, por evidenciar nosso grande compromisso para com o planejamento e a organizao intencional das relaes sociais que promovam o desenvolvimento de outras pessoas e de ns mesmos. Simultaneamente, trata-se de algo coerente com seus conceitos psicolgicos (tericos) e metodolgicos (meta-tericos); psicolgicos como a palavra [significativa] xvi microcosmo
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da conscincia humana (VIGOTSKI, 1934/2001, p. 486). Metodolgicos como a palavra o grmen da cincia, e neste sentido cabe dizer que no comeo da cincia estava a palavra (VYGOTSKI, 1927/1991, p. 281). A cincia surge historicamente do trabalho mediante a abstrao/generalizao tornada possvel pela palavra, em sua forma mais sistemtica e objetiva: o conceito (VYGOTSKI, 1931/2006; VIGOTSKI 1933-34/2001). Mas, na palavra cientfica, reflexo e refrao da existncia social, tambm realizamos o ato de tornar-nos humanos. Assim, as palavras de uma teoria e os valores morais que ela assume, incorporados aos modos de pensar e agir de um psiclogo ou educador, tornam-se unidades constitutivas de suas personalidades. Na hiptese de nossos valores mais profundos serem condizentes com os de nossa vertente cientfica, isso ter implicaes cruciais. Uma vez que nosso trabalho sempre com outras pessoas, sobretudo nossos educandos, nossos valores morais passaro a interagir com os deles, constituindo nossa relao social com eles. Isso se dar numa relao (in) tensa, de empatia e estranhamento, de aliana e confronto, que nos transformar mtua e constantemente, se houver disposio poltica para tal. O processo pelo qual nosso trabalho com conceitos compe nossa personalidade e a daqueles com quem nele dialogamos, lembra-nos o chamado mtodo construtivo em pesquisa psicolgica. Seus princpios so pertinentes no s para a pesquisa como para a prtica profissional do psiclogo e do educador. Como disse Puzirei (1989), em citao anterior, o mtodo de investigao articula-se prtica psicotcnicaxvii. Vigotski (1929/2000, p. 23) diz que: O mtodo construtivo tem dois sentidos: 1) estuda no as estruturas naturais, mas construes; 2) no analisa, mas constri processos Construes aqui so processos produzidos culturalmente, no dados pela natureza em seu estado primeiro. Mas emergentes nela, por sua transformao mediante a ao humana, planejada, dirigida a metas, visando a atender diferentes necessidades do estmago ou da fantasia (MARX, 1867/1983, p. 45). Tais construes so produes histrico-culturais: signos, instrumentos, modos de us-los, papis sociais, modos de exerc-los, prticas institucionais, a contestao consciente delas, e assim por diante. Produes que, efetivadas por ns, realizam o que somos e podemos ser. Trata-se de um mtodo de investigao e de possvel atuao profissional, no qual no s analisamos processos, mas os construmos, com nossos atos, linguagem e emoes. Isto atina com a afirmao anterior de Puzirei de que a perspectiva iniciada por Vigotski busca superar o academicismo em psicologia. O qual, em entrevistas a Marta Shuare (1990),
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diferentes psiclogos russos dizem ter predominado na URSS. Trata-se de uma psicologia e uma educao sem assepsia para com a realidade humana, assumindo com ela compromisso poltico de composio partilhada. Assim, os valores de que falamos esto implicados no mtodo. Somos convidados a produzir um trabalho do psiclogo e do educador, que fale uma palavra que realmente significa e responsvel por aquilo que diz (BAKHTIN [VOLOSHINOV], 1929/1992, p. 196).

PARA CONTINUAR O DILOGO Cabe no transformar problemas em postulados, temos conscincia de que as questes levantadas aqui demandam aprofundamento futuro e submisso crtica do leitor. Contudo, vale destacar desafios que temos pela frente, no entendimento de princpios ticos implcitos ao pensamento de Vigotski e suas consequncias para a nossa prxis. importante retomar que princpios ticos no so normas de regulao da conduta, para garantir a ao moral correta. Mas sim recursos conceituais que permitem avaliar criticamente as nossas aes morais efetivas e potenciais. No foi nossa pretenso estabelecer modelos sobre como devem se comportar o psiclogo e o educador para bem realizarem sua funo social. Por outro lado, o ato de escrever um texto que vai a pblico no neutro do ponto de vista axiolgico. Trata-se de um ato poltico e de uma solicitao de rplica social. Vigotski (1924/2003, p. 212) destaca que uma coisa compreender como se deve agir, e outra totalmente diferente agir corretamente. Digamos que: (1) para ns a humanidade bem maior; (2) tal humanidade se realiza em constante superao; (3) para haver superao cabe cooperarmos com nossos semelhantes; e (4) para que tudo isso faa sentido necessrio buscarmos nossa emancipao, como salto para o reino da liberdade. O que foi dito no basta para passarmos a viver em funo de concretizar tais enunciados. Assim como para Marx (1845/1978, p. 51) na prxis que o homem deve demonstrar a verdade, para ns na prxis que devemos demonstrar nossa tica. Mas no se trata de um irracionalismo. Para Vigotski (1924/2003), compreender no suficiente, mas necessrio. A questo que o vnculo efetivo da conscincia com a ao cotidiana s pode se dar em funo dos modos coletivos de organizao da vida. Vigotski (1924/2003) questiona a possibilidade de uma educao moral, j que tentativas de agir diretamente sobre a moral das crianas mostraram -se infrutferas. Tal educao s vivel mediante a influncia organizada da escola como coletividade. No contexto da discusso sobre a construo do socialismo na URSS, contrastou-se a educao
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da sociedade futura com a da sociedade de classes, considerando dificuldades de transio. A tarefa da educao moral impossvel nos padres pautados na hipocrisia. A moral burguesa era obrigada a fingir, porque ensinava uma coisa e fazia outra (VIGOTSKI, 1924/2003, p. 210). Isso mostra um dilema, j que os problemas educativos s sero definitivamente resolvidos quando forem definitivamente resolvidos os problemas do sistema social xviii. Numa sociedade socialista, rumo sua consolidao, no se partiria do princpio da influncia direta, mas da organizao intencional da multiplicidade de influncias do coletivo escolar. A educao moral no foi nosso objeto e merece tratamento mais detalhado no futuro. Mas h algo paradigmtico no pargrafo anterior, que nos diz respeito: o problema de ser ou no possvel trabalhar de acordo com valores que no reponham a hipocrisia burguesa. J destacamos que os valores so histricos, e que a histria feita de lutas, portanto no h um de ns cuja personalidade se constitua seno como luta entre diferentes vetores simblicos. Se em uma vida correta, as crianas so criadas corretamente (VIGOTSKI, 1924/2003, p. 220), como sero em uma vida hipcrita? O nico caminho tico possvel a negao da mesma. Assim, Vigotski deixa no horizonte a possibilidade da organizao coletiva de nossa conduta moral, numa comunicao pela qual possamos saber dos demais qual a eficcia de nossos atos, e tambm dizermos sobre a deles. O que permitiria superar alguns velhos modelos pautados em prmio e punio, que levam a uma moral da submisso, apenas para evitar o desagradvelxix. Superar o que, no incio, chamamos de tica fraca mediante a organizao coletiva classista e radical.

Notas
i

O nome . . ser transliterado como L. S. Vigotski conforme tbua de transliterao disponvel em: http://www.vigotski.net/obras_lsv.html#translitera. As transliteraes do mesmo nas referncias sero mantidas como feitas pelas editoras.
ii iii

ver Vzquez (1975).

Espinosismo: termo genrico para o pensamento tico, poltico, filosfico, de Baruch de Espinosa (16321677). Segundo Leontiev, nos anos estudantis de Vigotski nasceu nele o interesse pela filosofia de Espinosa, que foi durante toda sua vida seu pensador preferido (1982/1991, p. 423).
iv v

Sobre a influncia do judasmo no pensamento de Vigotski ver Friedgutt e Kotik-Friedgutt (2008).

Da frase o inferno so os outros de Garcin na pea Entre quatro paredes de Sartre. Apesar de n outra cena dizer que uma aprovao de sua pretendida o redimiria.
vi

Do latim: Homo sum, humani nihil a me alienum puto. Para uma crtica metodolgica nossa a Foucault, ver Delari Jr. (2011, p. 188). ver Bruner (2005).

vii viii

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ix x

(Idem, p. 182)

Para Habermas (1983/1989), o agir estratgico aquele em que argumentamos somente para sobrepujar a posio do outro e convenc-lo. Enquanto no agir comunicativo ambos dialogam e cedem, tendo como objetivo a busca da verdade. Entende-se que os dois modos de agir no se polarizam de forma ideal, mas na prtica influenciam-se mutuamente, numa relao dialtica, em contradio inter -constitutiva.
xi

Outros nomes importantes so Luria (1902-1977); Leontiev (1903-1979); Rubinshtein (1889-1960); Elkonin (1904-1984); Bojvitch (1908-1981); entre tantos.
xii

A fonte s fornece o ano da primeira publicao, no a data de concluso do trabalho. uma publicao pstuma, Vigotski morreu em 11 de junho de 1934.
xiii

O avano do desenvolvimento ontogentico e microgentico pode ser conceituado, em Vigotski, como relativo chamada zona blijaishiego razvitia [ ]. Que literalmente significa: A zona do desenvolvimento mais prximo. E ganhou, no Brasil, diferentes verses: zona de desenvolvimento proximal (da trad. americana); zona de desenvolvimento prximo (da trad. espanhola); zona de desenvolvimento imediato (na trad. brasileira de Paulo Bezerra); e zona de desenvolvimento iminente (na trad. brasileira de Zoia Prestes). Em Vigotski (1935/1 989), ZBR indica a distncia (ou diferena) entre desenvolvimento real (posto em jogo pela pessoa em sua atividade individual) e desenvolvimento possvel (emergente da atividade partilhada da pessoa com outra mais experiente que lhe proporciona mediaes necessrias para transpor seus limites individuais).
xiv

Em russo: Konstruktivnii metod [ ] (Vigotski, 1929/1986, p. 52). Isto nada tem a ver com construtivismo, como construto epistemolgico, nem como metodologia de ensino. A qui se destaca o carter intencional do ato de construir. Tal como para um trabalhador da construo, que realiza sua obra com base em um projeto, de acordo com leis objetivas que regem a realidade a ser transformada em objeto da cultura, para atender necessidades humanas.
xv

Os colchetes so meus, pois omisses de palavras na traduo do russo ao portugus prejudicam o entendimento.
xvi

Corrigimos a traduo citada. Paulo Bezerra traduz [Omislennoe slovo] (VIGOTSKI, 1934, p.318) por palavra consciente ao invs de palavra significativa, acepo mais apropriada teoria, criando o pleonasmo a palavra consciente o microcosmo da conscincia.
xvii

Nesse contexto, o conceito russo de psicotcnica, tambm traduzido como psicotecnia (VYGOTSKI, 1927/1991; VIGOTSKI,1927/1996), no sinnimo de psicometria, como se fez comum no Brasil. Ao contrrio, psicotcnica um co nceito abrangente relativo aplicao prtica psicolgica frente s demandas sociais, na educao, na clnica, no trabalho, etc.
xviii xix

(Idem, p. 220).

(Idem, p. 219).

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Recebido em outubro de 2012 Aprovado em janeiro de 2013

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