Fabiana Verardino Spina

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Fabiana Verardino Spina

De perto, de dentro e mais alm:


estudo qualitativo de encontros de um grupo de
mentoring na FMUSP



Dissertao apresentada Faculdade de Medicina
da Universidade de So Paulo para obteno do
ttulo de Mestre em Cincias

Programa de Medicina Preventiva
Orientadora: Dra. Patrcia Lacerda Bellodi




So Paulo
2013














































Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
Preparada pela Biblioteca da
Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo

reproduo autorizada pelo autor

Spina, Fabiana Verardino
De perto, de dentro e de mais alm : estudo qualitativo de encontros de um
grupo de mentoring na FMUSP / Fabiana Verardino Spina. -- So Paulo, 2013.

Dissertao(mestrado)--Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo.
Programa de Medicina Preventiva.

Orientadora: Patrcia Lacerda Bellodi.


Descritores: 1.Tutoria 2.Mentores/psicologia 3.Estudantes de
medicina/psicologia 4.Educao mdica 5.Escolas mdicas 6.Pesquisa
qualitativa 7.Estudos de caso 8.Antropologia cultural 9.Psicanlise 10.Relaes
interpessoais



USP/FM/DBD-371/13























H fases na vida em que sentimos estar muito distantes
de atingir os acontecimentos considerados realmente
significativos e prsperos; em contrapartida, como se
estivessem encubados, esperando para florescer no
tempo certo, h momentos de nascimento, onde, dali,
novos rumos esto por vir.
Por isso dedico este estudo minha Mila, filha amada.

Agradecimentos

Aos meus pais, Liliana e Neuto, sempre ao meu lado, dedicando o seu melhor e
acreditando na minha capacidade de fazer escolhas e trilhar caminhos.

Ao meu marido, Andreas, pela maneira clara e segura de apoiar e incentivar meus
estudos e percurso profissional.

minha amada filha Mila que, desde a gestao, me acompanhou durante o
desenvolvimento deste estudo, de alguma forma entendendo que, mesmo nos
momentos mais difceis e de escassez de tempo, o lugar dela e o olhar para ela
estavam preservados.

minha querida orientadora Patrcia que, desde o momento que nos encontramos
pela primeira vez, abriu as portas numa atitude generosa, o que resultou neste
estudo e no somente isso, mas, para constituir o que sou hoje, saio desta
experincia mais amadurecida, e sei que nos passos que trilhei por este caminho
voc foi a minha tutora.

Ao fascinante grupo de tutoria observado, aos alunos e, em especial, tutora, toda
a minha gratido por me permitirem entrar em seus espaos, fsico e subjetivo,
colhendo dados muitas vezes inacessveis percepo do prprio grupo. Obrigada
por confiarem em mim.

Marta Prado e Silva, pelas supervises do contedo psicanaltico, ajudou-me
muito a navegar pelas guas turvas do inconsciente grupal e sobre elas lanar luz.





















Me vejo no que vejo
Como entrar por meus olhos
Em um olho mais lmpido
Me olha o que eu olho
minha criao
Isto que vejo
Perceber conceber
guas de pensamentos
Sou a criatura do que vejo.

Blanco, poema de Octavio Paz.

RESUMO


Spina FV. De perto, de dentro e mais alm: estudo qualitativo de encontros de um
grupo de mentoring na FMUSP [dissertao]. So Paulo: Faculdade de Medicina,
Universidade de So Paulo; 2013.
Introduo: Programas de Tutoria (modalidade mentoring) tm sido reconhecidos em
seus mritos, conquistando espao nas instituies que investem na formao integral
de seus alunos. Na formao mdica, alm de aprender a tcnica, o jovem tem a
necessidade de amadurecer para lidar com o sofrimento do outro, o que justifica a
relao de proximidade e cuidado proporcionada pelo Mentoring. Esta relao, embora
desejada e promissora, bastante complexa e influenciada por caractersticas
pessoais, questes institucionais e pelo prprio enquadre de funcionamento. No
Programa Tutores FMUSP, o estar em grupo outro elemento a se considerar, incluindo
a presena de dinmicas inconscientes, tal como descritas pela teoria psicanaltica de
Wilfred Bion. Bion sugere que os grupos podem operar de duas maneiras distintas, as
quais afetam seus objetivos o grupo de trabalho (funcionamento colaborativo) e o
grupo de suposto bsico (funcionamento regredido). Objetivos: Para aprofundar a
compreenso das relaes de mentoring, este estudo investigou a dinmica de um
grupo de tutoria do Programa de Tutores FMUSP ao longo de um ano. Teve como
objetivos especficos a descrio dos encontros realizados e sua anlise a partir do
referencial psicanaltico bioniano sobre grupos. Metodologia: O estudo foi realizado
numa abordagem qualitativa, estudando o fenmeno em seu ambiente natural,
Realizou-se um estudo de caso, por meio de observao participante, acompanhando
os encontros de um grupo de tutoria em seus encontros mensais no Programa Tutores
FMUSP, no perodo de abril de 2009 a maro de 2010. Foi utilizado um roteiro de
observao e um caderno de notas. Por meio da anlise de contedo foram
estabelecidas categorias articuladas aos objetivos do estudo. Resultados: O grupo
observado, por sua formao artificial, mostrou-se de complexo manejo. O tutor, neste
enquadre, precisou criar condies que favorecessem a ligao entre os participantes.
As caractersticas pessoais e disposio do tutor e dos alunos favoreceram o
compartilhamento de experincias e a formao de vnculos. O cotidiano da formao
mdica dificultou o estar no grupo, mas no impediu que o encontro ocorresse quando
temas interessantes, prazerosos e da ordem da descompresso das angstias
estiveram presentes. O grupo observado funcionou, predominantemente, de forma
colaborativa, como um grupo de trabalho. Tambm apresentou, como proposto por
Bion, momentos de funcionamento regredido, derivados de fantasias inconscientes. O
suposto bsico de luta ou fuga manifestou-se no grupo em situaes de cobrana e
julgamento; a dependncia quando houve intensa valorizao da experincia do tutor e
o acasalamento quando houve formao de pares no produtivos no grupo. O estilo do
tutor, associado s caractersticas dos alunos, foi essencial para que o grupo sasse
dos momentos regredidos e voltasse a funcionar de forma colaborativa. Concluso: A
proximidade e a intimidade com o grupo de tutoria revelaram aspectos importantes a
respeito do que pode acontecer na relao de mentoring. Alm de aspectos pessoais e
do contexto institucional, fenmenos grupais inconscientes podem afetar o
funcionamento de um grupo de tutoria. Programas desenvolvidos neste enquadre
devem consider-los para a compreenso da relao de mentoring em profundidade e
para o manejo das dificuldades inerentes ao processo.

Descritores: Tutoria; Mentores/psicologia; Estudantes de medicina/psicologia;
Educao mdica; Escolas mdicas; Pesquisa qualitativa; Estudos de caso;
Antropologia cultural; Psicanlise; Relaes interpessoais.


SUMMARY



Spina FV. Closer, inside and beyond: a qualitative study of a group mentoring meetings
at FMUSP [dissertation]. Sao Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de So
Paulo; 2013.
Introduction: Mentoring programs have been recognized for their merits, gaining
recognition in institutions concerning integral education of their students. In medical
training, the young student needs to learn the technique and became mature to deal
with others suffering, justifying the close and careful relationship offered by mentoring.
Although desired and promising, mentoring relationship is complex and influenced by
personal characteristics, institutional issues and the operating mode itself. In Programa
Tutores FMUSP, another element to be considered is being in a group, including its
unconscious dynamics, as described by psychoanalytic Bions theory. Bion suggested
that groups can operate in two distinct ways which affects the achievement of its
purposes the work group (a collaborative functioning) and the basic assumption
group (a regressive one). Objectives: To deepen the understanding of mentoring
relationships, this study investigated the dynamics of a FMUSP tutoring group over one
year. We aimed to describe the mentoring meetings and analyze them using Bions
psychoanalytic framework about groups. Methodology: The study was carried out using
a qualitative approach, studying the phenomenon in its natural environment. We
conducted a case study through participant observation, following a tutoring group in
their monthly meetings from April 2009 to March 2010.An observation guide and a field
diary were used. Through content analysis, we established categories related to study
objectives. Results: Due to its artificial composition the observed group showed a
complex management. In this context, the tutor needed to promote conditions in order
to connect the participants. Tutor and students personal characteristics and motivation
contributed to the sharing of experiences and the link among them. The daily medical
training made it difficult to be in the group but it did not prevent meetings from
happening when interesting, pleasant and de-stressing issues were present. Most of the
time, the group operated as a "working group". The group also worked as a basic
assumption group showing a regressive functioning. Fight or flight were observed in
group situations of accusations and judgments, Dependence was observed when the
tutors experience was overestimated and Pairing when unproductive interaction
occurred in pairs. The return of a collaborative way of group functioning was possible
due to tutors style associated with students characteristics. Conclusion: The
closeness and intimacy experience with the tutoring group revealed important aspects
about what could happen in mentoring relationships. In addition to personal aspects
and institutional context, unconscious dynamics can affect the mentoring group
meetings. Mentoring programs must recognize all these influences to an in-depth
understanding of the relationship and to better deal with the inherent difficulties of the
process.

Descriptors: Preceptorship; Mentors/psychology; Students, medical/psychology.
Education, medical; Schools, medical; Qualitative research; Case studies; Anthropology,
cultural; Psychoanalysis; Interpersonal relations.







SUMRIO


Resumo
Summary
1. INTRODUO ....................................................................................... 1

ESTE ESTUDO E A PESQUISADORA ...................................................... 1

MENTORING NA FMUSP .......................................................................... 2
Mentoring: conceito, processo e relao ................................................... 2
As relaes durante a formao mdica .................................................... 5
O Programa Tutores FMUSP ..................................................................... 7
Tutor e alunos: uma complexa relao .................................................... 11

OS GRUPOS E SEUS PROCESSOS INCONSCIENTES ....................... 15
Freud e a psicologia das massas ............................................................. 15
Bion e os estados mentais do grupo ........................................................ 17

2. OBJETIVOS ......................................................................................... 22

3. MTODOS ........................................................................................... 23
Um estudo qualitativo .............................................................................. 23
O caso estudado ...................................................................................... 26
Instrumentos ............................................................................................ 27
Anlise dos dados .................................................................................... 29

4. RESULTADOS E DISCUSSO ............................................................ 30
O grupo ao longo do tempo ..................................................................... 30
Quem participava ....................................................................... 30
A tutora do grupo ........................................................................ 30
Os tutorados ............................................................................... 31

Outros participantes ..................................................................... 32
Onde acontecia .......................................................................................... 33
Um laboratrio frio, um encontro quente ....................................... 33
Quando acontecia ...................................................................................... 34
Em um tempo preciso ................................................................... 34
Os alunos chegam aos poucos ..................................................... 35
Presenas, atrasos e ausncias ................................................... 36
Um tempo precioso e concorrido .................................................. 41
Como acontecia ......................................................................................... 44
Comeo de conversa .................................................................... 44
Uma tutora habilidosa e firme ....................................................... 46
Calouros e veteranos: suporte e troca de experincia .................. 50
Uma conversa variada, de tudo um pouco .................................... 54
Vida acadmica ............................................................ 54
Vida pessoal ................................................................. 62
Futuro profissional ........................................................ 65
Os velhos tempos ......................................................... 70
A prpria Tutoria ........................................................... 72
O final da reunio, corredor a fora ................................................ 73
Os estados mentais do grupo .................................................................... 75
Um Grupo de Trabalho .................................................................. 75
Os Supostos Bsicos no Grupo .................................................... 80
Dependncia ................................................................ 80
Acasalamento ............................................................... 81
Luta e fuga ................................................................... 83
A devolutiva ao grupo ................................................................................ 88

5. CONCLUSES .................................................................................... 102

6. IMPLICAES .................................................................................... 107

7. REFERNCIAS ................................................................................... 110
1

1. INTRODUO

ESTE ESTUDO E A PESQUISADORA

O interesse pela relao de mentoring surgiu a partir do contato com
o livro Tutoria: Mentoring na formao mdica (Bellodi; Martins, 2005).
No h como negar a importncia do bem estar, em geral, e da
sade emocional, em particular, para o profissionalismo daqueles que tem
como ofcio oferecer cuidados a outros.
O programa de mentoring da Faculdade de Medicina da
Universidade de So Paulo, Programa Tutores FMUSP, especialmente, para
mim, psicloga, chamou ateno tanto pelo valor de seu carter preventivo,
ao oferecer suporte emocional e profissional a futuros cuidadores
(mdicos), quanto por se constituir e promover seus efeitos, essencialmente,
atravs de uma relao entre pessoas: a relao de mentoring.
Entretanto, poucos estudos empricos (Malik, 2000, Rabatin et al.,
2004; Hauer et al., 2005) tm se dedicado a compreender, qualitativamente,
a relao de mentoring em si. Preocupam-se com a satisfao do aluno, sua
adeso aos programas, mas no se debruam sobre a dimenso relacional.
Tambm so, em sua expressiva maioria, retrospectivos e realizados por
meio de metodologias quantitativas (Buddeberg-Fischer; Herta, 2006; Frei et
al., 2010).
Rhodes (2002), uma importante autora da rea, diz que para ajudar
os mentores na tarefa promover mudanas positivas na vida de seus
2

tutorandos h manuais, websites, listas de diretrizes para prtica e toda
uma srie de recomendaes. Entretanto, ressalta ela, tais recomendaes
so raramente baseadas em pesquisas cientficas e estudos rigorosos na
rea so poucos.
Acreditando na filosofia do Mentoring, a possibilidade de um estudo
que se aproxime dessa dimenso, a relacional, e numa abordagem
qualitativa, ganhou fora dentro do meu percurso profissional.
Acredito que com minha formao em Psicologia, posso contribuir
para a compreenso das relaes entre os tutores e seus alunos,
acrescentando novas informaes e fortalecendo assim a proposta do
Mentoring como recurso de suporte e desenvolvimento emocional e
profissional.


MENTORING NA FMUSP

Mentoring: conceito, processo e relao
No Brasil e no exterior, Programas de Tutoria (modalidade
Mentoring) tm sido reconhecidos em seus mritos e vm conquistando
espao nas instituies que investem na formao integral de seus alunos
(Bellodi; Martins, 2005; Buddeberg-Fischer; Herta, 2006; Frei et al., 2010).
O valor e a riqueza deste tipo atividade derivam de sua proposta
abrangente, isto , decorre do fato de que se preocupa com o
desenvolvimento do futuro mdico no somente em seu aspecto tcnico,
3

mas tambm relacional. preciso considerar que, durante o curso, h a
necessidade de amadurecimento do jovem para olhar o sofrimento alheio e
relacionar-se com o outro, alm do domnio da tcnica (Montenegro, 2005,
p.87).
Em seus aspectos essenciais, o Mentoring pode ser conceituado
como uma relao de suporte e acompanhamento estabelecida entre um
indivduo experiente (o mentor) e um jovem iniciante (mentee) durante seu
caminho de formao.
O termo Mentoring tem sua origem na obra: A Odissia de Homero,
a partir da relao estabelecida entre o personagem Mentor e o filho do rei
Ulisses, o jovem Telmaco.
Nesta obra, Ulisses partiu para a Guerra de Tria e confiou a Mentor,
seu sbio e fiel amigo, a tarefa de cuidar de seu filho. Com o passar dos
anos, Ulisses no havia conseguido voltar ao seu lar, e Telmaco,
angustiado, decidiu partir em busca de notcias do pai. Por ser muito jovem e
inexperiente foi, ento, acompanhado por Mentor, recebendo dele suporte e
estmulo para seguir em direo ao seu objetivo:
... importante salientar que, mais do que tutelar isto , ser
totalmente responsvel por Telmaco na ausncia do pai,
Mentor o mentoreava. Orientava, guiava, ensinava, e, acima
de tudo encorajava-o em direo independncia,
autonomia, construo de sua prpria identidade. No fazia
pelo jovem e sim o fortalecia, atravs do suporte e da
experincia em fazer por si (Bellodi, 2005, p. 33).
4

Mentor foi uma figura de transio fundamental para Telmaco
durante sua transio da infncia para a maturidade. Ao final de sua jornada,
e isto importante para a compreenso dos objetivos do mentoring, o jovem
encontra-se amadurecido para tomar suas prprias decises. A clssica obra
de Homero, ainda hoje, ajuda a fundamentar filosoficamente a essncia do
Mentoring.
Modernamente, o SCOPME - The Standing Committee on
Postgraduate Medical and Dental Education in England, em 1988, elaborou a
seguinte definio para Mentoring:
Mentoring , tipicamente, uma relao voluntria entre dois
indivduos na qual o mentor usualmente um indivduo
experiente, altamente respeitado e emptico, muitas vezes,
trabalhando na mesma organizao ou campo que o mentee.
O mentor ao ouvir e conversar de forma privada e em
confiana guia o mentee no desenvolvimento de suas idias,
na aprendizagem e no desenvolvimento pessoal e
profissional. Este processo deve ser positivo, facilitador e
desenvolvimental e no deve ser parte da avaliao ou de
processos de monitoramento de desempenho (SCOPME,
1998).

Observa-se nessa definio que no conceito de Mentoring
destacam-se dois aspectos fundamentais: a atividade como relao e
processo.
5

O Mentoring como processo pode ocorrer dentro de diferentes
enquadres, dependendo da instituio onde ser desenvolvido e o que se
pretende, especialmente, alcanar com a atividade.
Pode-se, por exemplo, organizar um programa de mentoring dentro
de um enquadre um-a-um (um tutor e um aluno) ou grupal (um tutor e um
grupo de alunos). Os encontros podem ter durao predeterminada por um
calendrio ou pelo desenvolvimento natural da relao entre tutor e aluno. O
aluno pode ser acompanhado por um nico tutor ao longo de toda sua
formao ou por mais de um, em um esquema de rodzio de tutores. H at
mesmo programas onde os encontros acontecem distncia e virtualmente
(e-mentoring) (Sandeville, 2005).
Tal diversidade possvel, porm a chave fundamental para o xito
de todo processo de mentoring , essencialmente, a relao estabelecida
entre mentores e jovens:
A relao tutor-tutorandos o corao da proposta de
mentoring: ela, mais do que o enquadre adotado, define a
natureza da atividade. Esta relao, humana que , ser
ento influenciada por variveis tambm humanas,
especialmente ligadas pessoa do tutor, pessoa do aluno
ao grupo de alunos como um todo, se este for o enquadre e
as caractersticas da instituio (Bellodi, 2005, p.97).

As relaes durante a formao mdica
Por que uma atividade como o Mentoring, que tem a relao como
6

foco e como meio para o desenvolvimento de um jovem iniciante, mostra-se
desejvel e promissora para as escolas mdicas?
Reconhecidamente, a formao mdica constitui-se em uma longa e
rdua jornada permeada por constantes, crescentes e difceis desafios a
serem enfrentados ao longo do tempo.
Tais desafios incluem no apenas enfrentar a natureza da tarefa
mdica, com aquilo que ela implica de dor, sofrimento, vida e morte. Dizem
respeito tambm ao processo de formao e suas caractersticas, com seus
momentos previsveis de crise e estresse, dentro de um contexto relacional
caracterizado hoje, especialmente, pelo distanciamento professor-aluno e
pela competio intensa entre os colegas (Bellodi, 2005).
Barondess (1997) assinala que a relao prxima e individualizada
entre mestre e aprendiz, caracterstica da formao mdica, tem
desaparecido ao longo do tempo. Alm disso, com a progressiva
especializao, competitividade por financiamentos para pesquisas e
desvalorizao da docncia, os professores sofrem com as presses do
tempo para dar conta de todas as suas tarefas administrativas, cientficas,
clnicas e pedaggicas.
Anonimato, impessoalidade e solido no enfrentamento das
vicissitudes da formao mdica tornam-se assim, atualmente, aqueles
elementos que justificam a relao de proximidade e cuidado proporcionada
pelo Mentoring:
Sem um mentoring efetivo, os alunos se sentem sozinhos,
perplexos, sobrecarregados, e o fogo do entusiasmo com o
7

qual iniciam sua experincia na escola mdica comea a
perder o brilho. Quando h, entretanto algum como Mentor
para Telmaco, o fogo e a paixo crescem, os objetivos se
tornam claros, valores profissionais apropriados so
adquiridos. Eles terminam sua experincia na escola mdica
com confiana e podero sempre refletir sobre os mentores
que estavam l e que fizeram a diferena (Dunnington, 1996,
p.607).

A partir do reconhecimento dessas questes e de uma srie de
mudanas curriculares no curso de graduao da FMUSP, instituiu-se, em
2001, um programa de Tutoria (modalidade Mentoring) para todos os seus
alunos, considerando que se tornou ainda mais necessrio um
relacionamento estreito entre corpo docente e discente (Bellodi; Martins,
2005).

Programa Tutores FMUSP
O Programa Tutores FMUSP tem como objetivo geral contribuir para
o desenvolvimento pessoal e profissional do estudante de Medicina por meio
da promoo de um vnculo mais intenso entre professores e alunos e da
troca organizada de experincia entre alunos dos diversos anos.
A preocupao da FMUSP em aproximar docentes e discentes e
acompanhar de perto o desenvolvimento dos alunos por meio da figura de
um tutor, com papel de mentor, antiga.
8

O atual Programa Tutores foi antecedido pelo chamado Programa
Pastoreio, com a mesma filosofia, no final dos anos 80. No Projeto
Pastoreio, os alunos tinham a responsabilidade de procurar seus tutores, os
quais apresentados a eles por meio de um perfil onde eram citados seus
interesses cientficos e pessoais. Segundo relatos de participantes da
poca, a adeso proposta foi muito insatisfatria. Entre as razes do
insucesso destacou-se a escolha do nome do projeto, que levava idia de
conduo passiva e obedincia (alunos como ovelhas), e tambm a
interpretao dos alunos de que a tutoria seria uma reedio do chamado
moc, nome dado a grupos de alunos que se aproximam de professores
que possam, particularmente, benefici-los.
H relatos de experincias ainda mais antigas na instituio, como
esta descrita no O Bisturi, jornal acadmico dos alunos:
necessrio destruir aquela mentalidade, vinda de cursos
anteriores, de que professores e alunos devem estar em
posies diferentes e a rigidamente colocados. O interesse
de ambos deve ser o mesmo, somente que visto por ngulos
diversos: o do professor que o aluno aprenda e o deste o de
aprender. Para isto foi criada a Tutoria. Ela constitui um meio
de aproximao entre professor e alunos, visando maior
compreenso e amizade para ambos os lados.
A Tutoria composta pelo catedrtico de uma determinada
matria e seus assistentes; os alunos so distribudos de tal
forma que no se verifique sobrecarga de turmas. Durante a
9

Tutoria, que no passa de um bate-papo animado, so
discutidos assuntos de interesse curricular, escolar, social
poltico etc.
A Tutoria foi criada h dois anos na cadeira de Histologia, mas
j se estendeu a todas as outras do 1 ano com amplo
sucesso. necessrio observar que a Tutoria, para funcionar,
precisa da colaborao dos alunos, j que em caso contrrio
o professor pode se desinteressar pelo assunto. Mas estejam
certos de que vocs gostaro e incentivaro a Tutoria (Trunci,
1958).

Alm dessa filosofia, que valoriza uma relao mais prxima entre
professores e alunos, contriburam tambm para a realizao do atual
programa de Tutoria da FMUSP, dois outros elementos histricos.
Um deles foi o seminrio especial organizado em 1998, pela Pr-
Reitoria de Graduao da Universidade de So Paulo, onde a tutoria foi
discutida como elemento de melhora da vida acadmica dos alunos,
propondo e estimulando que a atividade fosse estruturada por cada unidade
ou curso da Universidade a partir de suas necessidades e caractersticas.
O outro diz respeito s mudanas na estrutura curricular do curso de
Medicina na FMUSP que, tambm no final dos anos 90, promoveu a
introduo de disciplinas dirigidas s humanidades e ao papel social do
mdico e, para alm da rea das disciplinas nucleares, tornou possvel a
construo de um currculo mais personalizado. Tais mudanas apontaram
10

no sentido de uma maior aproximao entre alunos e professores, no
sentido de orientar as escolhas e decises dos alunos em relao a sua vida
acadmica e futuro profissional.
Em sua verso atual, a Tutoria na FMUSP adotou um enquadre
mais estruturado que as experincias anteriores, acreditando que:
O desenvolvimento da identidade e os princpios
profissionais to importante para os alunos de medicina que
no pode ser deixado para meios informais, deve ser
cultivado atravs de um sistema estruturado que tem como
foco principalmente o profissionalismo (Kalet et al., 2002, p.
1171).

Hoje, no Programa Tutores, a atividade oferecida a todos os
alunos que, ao entrar na faculdade, so aleatoriamente designados para um
grupo. Os grupos so compostos por sorteio, com 12 a 14 alunos e
heterogneos quanto ao ano acadmico. No enquadre atual, a participao
dos alunos voluntria, mas incentivada por meio de crditos e certificado.
H a possibilidade de mudana de grupo sempre que necessrio, no sentido
de favorecer uma relao entre tutorandos e tutores. Os alunos avaliam a
atividade, ao final de cada ano, atravs de um questionrio (O Tutorando)
que aborda sua satisfao com o tutor, o grupo e o programa como um todo,
alm de investigar, especialmente, as razes de maior ou menor adeso.
Os tutores, por sua vez, so recrutados para a atividade a partir de
divulgao junto a toda a comunidade da FMUSP. Faz parte do perfil do tutor
11

ser um mdico interessado e vinculado graduao e aos alunos, ter tempo
disponvel para os encontros e estar disposto a ser supervisionado durante o
trabalho. Os selecionados para a tarefa passam por um treinamento inicial e
a eles oferecido suporte, ao longo do processo, por meio de superviso e
reunies peridicas com a coordenao geral do programa. Os tutores tm a
responsabilidade de fornecer, ao longo do ano, informaes peridicas sobre
o funcionamento do grupo atravs de um dirio (Dirio do Tutor) enviado
coordenao depois de cada encontro. Estes dados respeitam a integridade
dos participantes e cooperam para o aprimoramento do funcionamento dos
grupos e do programa como um todo.
Desde 2005, os encontros de Tutoria ocorrem dentro de uma agenda
pr-definida para o ano todo. Os dez encontros previstos ocorrem dentro da
grade horria curricular, uma vez por ms, das 10 s 12h. Outras atividades
acadmicas so suspensas no dia de Tutoria para que o aluno possa dela
participar.

Tutor e alunos: uma complexa relao
As relaes de mentoring so complexas e difceis, pois, ao
envolvem seres humanos, os tutores e seus alunos, envolvem suas
caractersticas pessoais e tambm seus mais profundos sentimentos:
Nem ser mentor nem ser mentorando so tarefas fceis. O fato
de que fatores pessoais esto constantemente presentes torna
esta uma relao difcil e que requer trabalho para se tornar
efetiva para ambos os participantes (Centeno, 2002, p. 1214).

12

Se a chave para a efetividade do processo do mentoring a relao
entre o tutor e o tutorado, fundamental que ambas as partes estejam
disponveis para vivenciar e superar as vicissitudes prprias e inerentes a
toda relao humana. Os sentimentos presentes nesta relao podem ou
no favorec-la, at mesmo antes de seu incio e esto intimamente ligados
s caractersticas e vivncias relacionais anteriores dos envolvidos. O aluno,
de sua parte, pode sentir-se, por exemplo, invadido e angustiado com a
proposta de falar sobre si e suas preocupaes. O tutor, por outro lado, pode
ter sentimentos de incapacidade frente ao aluno e grupo.
Assis (2005) considera que encontros entre tutores e alunos so, ao
mesmo tempo, desejados, por promoverem desenvolvimento, e temidos
porque promovem angstia:
Se, de um lado, olhar para si abre a possibilidade de identificar
problemas e procurar corrigi-los, por outro leva ao contato com
as prprias limitaes. Se compartilhar problemas e dvidas
com colegas e mestres ganhar fora para resolv-los
tambm se expor, estar vulnervel; uma espcie de
desnudamento, o que gera desconforto (p. 254).

O estar em grupo outro elemento a se considerar nas vicissitudes
deste encontro. Para Bion (1991), psicanalista ingls que desenvolveu
pesquisas sobre a formao e fenmenos de grupo, h duas formas bsicas
de reao angstia: enfrentamento ou evaso. Nesse sentido, a relao de
mentoring que no acontece pode, entre outros fatores, ser conseqncia
13

tambm da forma com que alunos e tutores lidam com as angstias
despertadas pelo encontro num enquadre grupal.
Para que esta relao acontea em sua plenitude e atinja seu
objetivo - o suporte ao longo do desenvolvimento - fundamental que se
estabelea um vnculo de confiana, fruto de relaes empticas
desenvolvidas ao longo do tempo.
Neste processo de favorecimento de empatia e confiana
essencial, sem dvida, como para qualquer outra relao recproca,
considerar a qumica interpessoal entre tutor e aluno (Jackson et al., 2003).
Outro importante fator o tempo na construo das relaes de
mentoring. Estas requerem compreenso e aceitao (dos alunos e dos
tutores) de que o processo acontece respeitando fases (incio,
desenvolvimento e trmino) e que o desenrolar satisfatrio de cada fase na
relao de mentoring depende de uma resoluo satisfatria da fase
anterior (Bellodi, 2005, p.98).
Inicialmente, o tutor, por compor a parte experiente do processo,
carrega a maior parte da responsabilidade pela relao. Ele recebe o aluno e
tem como tarefa instituir um espao de abertura e flexibilidade para que as
questes possam emergir sem serem acompanhadas das temidas crticas,
mas sim do acolhimento:
Do tutor esperado que tenha ou desenvolva as habilidades
fundamentais e necessrias de toda relao de ajuda, especialmente as
chamadas habilidades interpessoais e de comunicao. Atravs delas e de
sua experincia, trabalha no sentido de organizar um ambiente favorecedor
14

da reflexo, permitindo assim que emoes e pensamentos podem ser
ressignificados. Prope tambm desafios, com a introduo de novos
elementos no campo do pensamento, promovendo assim uma viso
ampliada de possibilidades. Cabe a ele, nos encontros, incentivar a troca de
experincias entre os diferentes membros do grupo, dentro de um clima de
aceitao, aproveitando diferenas e semelhanas para o enriquecimento do
desenvolvimento pessoal e profissional. Como exemplo real e possvel do
vir-a-ser mdico, favorece ainda, no presente, a aproximao do jovem com
o futuro ainda distante. Levinson (1978) aponta, nesse sentido, a crucial
funo de um mentor em dar apoio para a realizao do sonho: o como e o
quem o jovem deseja-se tornar, isto o seu projeto de vida futura.
O outro elemento fundamental desta relao, o tutorado, tambm
apresenta caractersticas pessoais e habilidades que podem ou no
favorecer este tipo de atividade, tornando-a mais ou menos efetiva.
Johnson e Huwe (2003) apontam caractersticas de alunos cujo
comportamento no promove uma relao positiva no Mentoring. Seriam
aqueles que apresentam hipersensibilidade frente aos feedbacks do mentor,
tomando-os como crtica pessoal ou desprezando suas informaes.
Aqueles muito independentes, no dispostos a receber ajuda, com pouca
humildade, tendem tambm a frustrar o tutor fazendo a relao fracassar.
Ainda so pouco atingidos pelo mentoring os alunos desmotivados, os
emocionalmente dependentes ou com muita negatividade, os que precisam
de constante reasseguramento e aqueles com humor instvel.

15

OS GRUPOS E SEUS PROCESSOS INCONSCIENTES

Freud e a psicologia das massas
Muitos pensadores, de diferentes reas e, por meio de diferentes
enfoques, dedicaram-se compreenso dos grupos humanos e seus
processos.
Na Psicanlise, a investigao do funcionamento grupal inaugura-se
com Totem e Tabu (1913-14), onde Freud apresenta o inconsciente como
intermediador na transmisso das leis sociais da humanidade, produzindo
cultura. Um pouco mais tarde, em seu clssico trabalho Psicologia das
Massas e a Anlise do Eu (1920-1922), Freud defende que a psicologia
individual e social no diferem em sua essncia. Para ele, as relaes que
moldam o indivduo, desde a infncia, na famlia e na cultura, so tambm
fenmenos sociais- no indivduo, mesmo que sozinho, sempre haver a
presena do outro.
Neste texto, Freud questiona o porqu das caractersticas individuais
se extinguirem quando o individuo est imerso em um grupo: por que o
indivduo quando inserido na massa, pensa, sente e age de forma diversa de
quando est s? Por que compactua com certos comportamentos que no
seriam praticveis, e nem se quer aceitos, caso este, estivesse agindo
sozinho?
Freud utiliza sua teoria da libido para justificar a estruturao dos
chamados grupos psicolgicos, aqueles unidos por laos inconscientes de
identificao com o lder e com os demais membros do grupo. Para Freud, o
16

sujeito, no grupo, abandona sua singularidade pela necessidade de estar em
harmonia com os outros e por desejar ser amado pelo lder idealizado. Nos
grupos, ocorre uma espcie de servido voluntria que se instaura pela
necessidade de se estabelecer laos e pela iniciativa por obedecer quele
que se idealiza (Salztrager, 2011, p.181). Por conta disso, o indivduo num
grupo est sujeito a uma profunda alterao em sua atividade mental:
Sua submisso emoo torna-se extraordinariamente
intensificada, enquanto que sua capacidade intelectual
acentuadamente reduzida, com ambos os processos
evidentemente dirigindo-se para uma aproximao com os
outros indivduos do grupo; e esse resultado s pode ser
alcanado pela remoo daquelas inibies aos instintos que
so peculiares a cada indivduo, e pela resignao deste
quelas expresses de inclinaes que so especialmente
suas (Freud, 1920-1922, p.99).

Freud se preocupa em distinguir entre diferentes tipos de grupos
como os grupos de carter efmero, que algum interesse passageiro
provocou a aglomerao, a partir de diversos tipos de indivduos, e os
grupos ou associaes duradouras aquelas em que a humanidade passa a
sua vida, como por exemplo, a famlia. Diferencia os grupos homogneos
constitudos pelos mesmos tipos de indivduos, dos no homogneos; e os
grupos organizados com estrutura definida, dos primitivos. Destaca ainda a
diferena entre os grupos com e sem lderes, e entre os grupos naturais e os
17

artificiais - aqueles que exigem uma fora externa e, muitas vezes,
coercitiva, para que se mantenham agregados, como a Igreja e o Exrcito.
Quanto aos grupos sem lderes, Freud considera se, nesses casos, uma
idia, uma abstrao, no pode tomar lugar do lder e se uma tendncia
comum, um desejo, em que certo nmero de pessoas tenha uma parte, no
poder, da mesma maneira, servir de sucedneo (p.111).

Bion e os estados mentais do grupo
Bion (1897- 1979), psiquiatra ingls, aprofundou as idias freudianas
sobre grupos e em seu clssico livro de 1961, Experincias com Grupos,
apresentou sua experincia com pequenos grupos teraputicos nos perodos
de guerra e ps-guerra. Embora originrios de grupos teraputicos, os
conceitos bionianos podem ser aplicados a todos os tipos de grupos, e
segundo o autor:
A expresso teraputica de grupo pode ter dois significados.
Ela pode se referir ao tratamento de um certo numero de
indivduos reunidos para sesses teraputicas especiais ou
pode relacionar-se a um esforo planejado para desenvolver
num grupo as foras que conduzem a uma atividade
cooperativa de funcionamento (Bion; Rickman,1970).

Em sua teoria Bion considera o grupo como um indivduo,
pressupondo a existncia de um estado mental de grupo, que pode
apresentar-se como regredido ou evoludo. Bion defende que, em qualquer
18

grupo, essas tendncias de atividade mental podem ser identificadas e, para
tanto, preconiza que, por mais casual que seja o grupo, este sempre se
encontra para fazer algo:
Quando um grupo se rene, ele rene-se para uma tarefa
especfica e, na maior parte das atividades humanas de hoje
a cooperao tem que ser conseguida por meios refinados
(Bion, 1970, p.88).

O refinamento a que ele se refere constitui uma srie de
caractersticas do individuo que colocam o grupo em um determinado nvel
de funcionamento evoludo, denominado por ele a princpio de Grupo
Refinado e, posteriormente, Grupo de Trabalho.
O termo grupo de trabalho, utilizado por Bion, leva-nos
compreenso de que necessria uma aprendizagem para
que um participante se coloque em condies de contribuir
para a realizao dos objetivos do grupo. Tal termo indica
tambm que a participao no grupo de trabalho requer o
desenvolvimento de algumas capacidades, que Freud indicou
como caractersticas do Eu do indivduo: ateno, capacidade
de representao verbal, capacidade de pensamento
simblico (Neri, 1999, p.36).

Nesta fase o nvel de cooperao grande e difere o da mentalidade
regredida de grupo, onde as emoes e pensamentos que se encontram
19

enraizados em fantasias inconscientes interrompem e perturbam o
funcionamento do grupo de trabalho (Neri, 1999).
Sampaio (2002), utilizando uma linguagem menos tcnica, ressalta
que no grupo de trabalho, alm da existncia de um propsito comum, h o
reconhecimento dos limites de cada membro, sua posio e sua funo em
relao s unidades e grupos maiores, e a distino entre os subgrupos
internos. H tambm a valorizao dos membros por suas contribuies ao
grupo, existe liberdade de locomoo dentro do grupo e a capacidade do
grupo enfrentar descontentamentos dentro de si e de ter meios de lidar com
ele. Em sntese, pode-se considerar que na manuteno dos grupos de
trabalho prevalecero: colaborao, respeito pelas individualidades,
fertilidade e criatividade (Sapienza, 2010, p. 31).
Bion define como supostos bsicos as fantasias que permeiam e se
revezam na mentalidade primitiva. Como cada membro do grupo vem
acompanhado de figuras de seu mundo interno e de conexes residuais dos
terceiros (Sapienza, 2010, p.32), o grupo est sempre a merc dos perigos
de sucumbir aos supostos bsicos que se infiltram no funcionamento
grupal e o alteram de um estado evoludo (grupo de trabalho) para outro
primitivo. Essa alternncia de estados mentais obedece a uma dinmica
viva, que pode ser alterada com intensa rapidez ou prevalecer por mais
tempo essa predominncia que caracteriza o tipo de grupo, regredido ou
evoludo.
Os supostos bsicos podem ser classificados em trs fantasias
principais: dependncia, acasalamento e luta-fuga, que podem apresentar-
20

se combinadas, isto , de forma concomitante, ou sequencial, passando de
um suposto bsico para outro.
Na primeira, a da dependncia, prevalece no grupo a idia de que
ele depende de um guia absoluto, um lder carismtico e messinico a ser
seguido, que prov as necessidades bsicas dos indivduos e do grupo.
Neste suposto bsico, o grupo apresenta uma demanda por um lder capaz
de satisfazer aos seus membros e "O grupo bastante incapaz de enfrentar
as emoes dentro dele, sem acreditar que possui alguma espcie de Deus
que inteiramente responsvel por tudo o que acontece" (Bion, 1970, p.30).
Na segunda a de acasalamento, o grupo se fragmenta (clivagem)
em pares no produtivos:
Esse estado primitivo foi inicialmente observado por Bion em
pares que conversavam assuntos diversos, parte, sem que
o grupo se incomodasse com eles ou chamasse a sua
ateno, aceitando-os. Eles se pareciam com casais de
namorados, embora no tratasse de nenhum assunto de
contedo explicitamente sexual (Sampaio, 2002, p.283).

Neste caso, o lder do grupo est por nascer e salvar o grupo, isto
, "est por vir um novo grupo melhorado". Por esse motivo, Bion, s vezes
se refere a este pressuposto como "esperana messinica".
Na terceira fantasia, a de luta-fuga, o grupo se ocupa de sua prpria
conservao, atacando ou evitando um inimigo externo, seja este uma
pessoa ou uma ideia (Bion, 1970). E, neste suposto bsico:
21

so ativadas valncias de automatismo mental e onipotncia
relacionadas a configuraes de dependncia, guerra e idlio,
as quais se infiltram na dinmica do grupo de trabalho,
podendo destruir as funes da vida mental, instalando-se
vibraes contagiantes de funcionamento psictico (Sapienza,
2010, p.30).

As manifestaes encontradas atravs das suposies bsicas
podem levar ao entendimento dos verdadeiros motivos pelo qual o grupo se
forma entendendo, assim, sua dinmica.













22

2. OBJETIVOS

Este estudo tem como objetivo investigar a dinmica de um grupo de
tutoria do Programa Tutores FMUSP, buscando contribuir para a
compreenso das relaes de mentoring nas escolas mdicas.

Tem como objetivos especficos:
1. Descrever os encontros realizados nos seguintes aspectos:
quem participou, onde, como, em que momento, temas
discutidos, interaes verbais e no verbais entre tutores e
alunos, sentimentos e emoes presentes, relao com a
pesquisadora/observadora, incluindo o encontro final para a
devolutiva das observaes realizadas ao grupo.
2. Analisar e interpretar o funcionamento grupal a partir do
referencial psicanaltico bioniano, segundo os conceitos de
grupo de trabalho (funcionamento evoludo) e grupo de
supostos bsicos (funcionamento regredido).






23

3. MTODOS

Um estudo qualitativo
O presente estudo foi realizado numa abordagem
qualitativa,estudando-se o fenmeno em seu ambiente natural, de forma
descritiva, tendo a compreenso do processo e seu significado como focos
principais de interesse do pesquisador.
Como estratgia de investigao para a descrio e compreenso
do fenmeno realizou-se um estudo de caso, por meio de observao
participante.
O estudo de caso consiste na descrio, compreenso e
interpretao em profundidade de uma unidade de estudo, um caso
concreto, seja este um contexto, um indivduo, ou um acontecimento
especfico. Minayo (2006), assim define seus objetivos:
Em sua essncia, o estudo de um caso, no mbito da
investigao avaliativa, visa a aumentar ou a esclarecer por
que e como determinada deciso ou conjunto de decises
foram tomadas. Objetiva tambm evidenciar ligaes causais
entre intervenes e situaes de vida real; bem como
ressaltar o contexto em que uma interveno ocorreu. (p.93).

Yin (2001), ao discutir a aplicao do estudo de caso em pesquisas
de diferentes reas do conhecimento, destaca que a estratgia pode ser
utilizada para compreender processos sociais complexos tanto em situaes
24

problemticas, para anlise dos obstculos, quanto em situaes bem-
sucedidas, para avaliao de modelos exemplares. Em alguns casos, a
metodologia pressupe a existncia de uma teoria prvia, que ser testada
no decorrer da investigao e, em outros casos, a teoria ser construda a
partir dos achados da pesquisa.
A coleta de informaes em um estudo de caso pode ser realizada
por meio de documentos, entrevistas, questionrios ou, como neste estudo,
por observao direta.
A observao, como forma sistemtica e planejada de captar a
realidade emprica, uma das mais antigas tcnicas de pesquisa, com forte
tradio de uso na Antropologia (mtodo etnogrfico).
Na pesquisa qualitativa, a observao acompanhada pelo adjetivo
''participante'' quando o observador estabelece uma relao face a face com
os observados e colhe seus dados, participando da vida deles, no seu
prprio cenrio cultural. Nesta tcnica, o observador parte do contexto que
est sendo observado, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado
por este contexto.No caso do ser humano e suas relaes, estes podem
apresentar significativas distores no comportamento pelo fato da presena
de um observador - fato que torna esta ferramenta bastante complexa,
exigindo tica, experincia e cuidado por parte do pesquisador para exerc-
la, alm do consentimento por parte dos envolvidos.
A observao participante pode assumir formas diversas que variam
em um continuum, dependendo do envolvimento do pesquisador com o
campo. Pode-se classific-la como participao plena, onde ocorre um
25

envolvimento por inteiro em todas as dimenses de vida do grupo a ser
estudado e, no extremo oposto, em distanciamento total, onde h
distanciamento total de participao da vida do grupo, tendo como
prioridade apenas a observao (Neto, 1997, p.60). Pode-se ainda
denominar o pesquisador como participante observador, quando este
participa efetivamente do cotidiano do grupo estudado, e como observador
participante, quando se estabelece com o grupo uma relao circunscrita,
em ocasies especficas (Angrosino, 2009).
O valor da observao atribudo s informaes colhidas
diretamente em sua fonte, pois:
[...] ns no podemos ter certeza de que aquilo que as
pessoas dizem que fazem, realmente o que elas fazem. Os
mtodos de observao de alguma maneira seguem em
direo onde reside este problema ao invs de fazer
perguntas sobre comportamentos, o pesquisador assiste
sistematicamente pessoas e eventos e observa
comportamentos do dia a dia e relaes (Pope; Mays, 1996, p.
32).

Para garantir que as informaes obtidas atravs da observao
correspondam veracidade dos fatos, o pesquisador conta com o auxilio de
alguns instrumentos que auxiliam no processo de coleta de dados, como o
uso de gravador de udio e/ou vdeo e um dirio de campo onde so
registrados as impresses e acontecimentos acerca da observao. Faz-se
26

importante tambm um roteiro para a observao do campo, contendo
tpicos que permitam, ao mesmo tempo, foco nas questes previamente
definidas para investigao, quando a abertura para novas descobertas
(Minayo et al., 2006).

O caso estudado
Foi observado um grupo de tutoria, composto por um tutore seus
alunos, durante seus encontros mensais no Programa Tutores FMUSP, no
perodo de abril de 2009 a maro de 2010.
Trabalhou-se com um grupo tpico nos seguintes aspectos: grupo
cuja adeso dos alunos encontrava-se dentro da mdia histrica do
programa e cujo tutor estava em atividade h, pelo menos, 2 anos.
Participou do estudo um grupo sorteado, dentro desse critrio, em
que o tutor e os alunos concordaram em participar voluntariamente da
pesquisa.
A princpio, havia se pensado na possibilidade do estudo
compreender dois grupos de tutoria. Partindo dessa idia, dois grupos foram
selecionados e inicialmente observados. Porm, apenas um deles foi
mantido no estudo. Colaboraram para essa deciso, duas razes: a primeira
se refere ao volume de informaes que a observao dos dois grupos
gerou; a segunda razo diz respeito ao desligamento do programa por parte
do tutor de um dos grupos, por motivo de mudana de pas.
De acordo com o calendrio do programa, entre abril de 2009 (incio
das observaes) at maro de 2010 (final do prazo de pesquisa), 10
27

reunies estavam agendadas. Em 2009, as observaes ocorreram nos
seguintes meses: abril (OBS 1), maio (OBS 2), junho (OBS 3), setembro
(OBS 5), outubro (OBS 6), novembro (OBS 7) e dezembro (OBS 8). A
reunio programada para agosto de 2009 (OBS 4) foi desmarcada pela
tutora, mas a comunicao realizada por ela (e-mail) foi mantida como
momento de observao por ter promovido efeitos no grupo. Em dois
momentos, em maio e novembro de 2009 (OBS 2 e 7), segundo proposta da
coordenao do programa, as reunies de tutoria foram realizadas em
conjunto, isto , o grupo observado se juntou a outro para a realizao do
encontro (tutoria conjunta). Em 2010, as observaes ocorreram nos meses
de fevereiro (OBS 9) e maro (OBS 10).

Instrumentos
Para este estudo foi elaborado um roteiro de observao composto
por itens relacionados aos objetivos da investigao (Quadro 1).









28

Quadro1: Roteiro de Observao

ROTEIRO DE OBSERVAO/ GRUPO DE TUTORIA

1. ONDE (espao fsico e subjetivo)
- local dos encontros, aspectos associados a conforto/desconforto,
adequao, ocupao do espao pelos membros

2. QUANDO (tempo real e vivenciado)
- durao do encontro, manejo do tempo pelo tutor e pelos alunos, aspectos
associados a chegadas/sadas, atrasos/adiantamentos

3. QUEM (o tutor e seus tutorandos)
- presenas e ausncias, aspectos associados a percepes de falta ou
suficincia da presena dos membros

4. COMO (interao na relao)
- tipos de interaes verbais e no verbais do tutor e dos alunos, situaes
desencadeadoras de reaes e sentimentos de satisfao e insatifao dos
membros, manejo de situaes dificeis

5. O QU(temtica dos encontros)
- temas discutidos, aspectos associados a maior ou menor interesse,
motivao, profundidade dos assuntos

6. A OBSERVADORA (relao com a pesquisadora)
- reaes dos membros do grupo frente ao observador, aspectos relativos a
estranhamento, acolhimento, indiferena
29

No momento das observaes, a pesquisadora fez uso apenas de
sua escuta e de um caderno de notas, utilizado discretamente durante os
encontros, uma vez que o tutor no permitiu a utilizao de gravador. O
dirio de campo era registrado posteriormente, a partir dessas notas iniciais,
com a elaborao da narrativa do encontro.

Anlise dos Dados
A anlise dos dados teve como pontos de partida os itens do roteiro
de observao dos encontros, considerando-os como categorias analticas.
As categorias empricas, aquelas emergentes do material, foram
apresentadas como temas e subtemas. A pesquisadora e sua orientadora
realizaram leituras em paralelo do material e a construo final das
categorias foi definida por consenso, adotando-se o referencial para anlise
de contedo de Bardin (1977).
Foram selecionados trechos para ilustrar os resultados e optou-se
por apresentar, por vezes, trechos longos, para que a dinmica da relao
pudesse ser compreendida em sua complexidade e contexto. Dessa forma,
a apresentao de anexos, contendo as observaes integralmente, foi
considerada dispensvel.





30

4. RESULTADOS E DISCUSSO

O grupo ao longo do tempo

Quem participava

Participava do grupo de tutoria uma mdica e professora da
Faculdade, a tutora, e seus alunos, de diferentes anos acadmicos.
Em 2009, 16 alunos faziam oficialmente parte do grupo, sendo pelo
menos dois de cada ano acadmico. Destes, participaram das reunies 10
alunos: quatro calouros, duas alunas do 3 ano, um aluno do 4 ano e trs
internos do 5 ano. Em 2010, houve a sada dos dois antigos sextoanistas e
o grupo recebeu duas novas calouras, continuando ento com 16 alunos.
Neste ano, participou tambm das reunies observadas, alm das novas
alunas do 1 ano, um aluno do antigo 4 ano, agora interno.
Para falar dos integrantes do grupo observado neste estudo, utilizou-
se de pseudnimos, buscando conferir maior pessoalidade aos participantes,
assim como deixar a leitura mais prxima e agradvel ao leitor.

A tutora do grupo
Dra. Anita, a tutora do grupo, era uma mulher forte e bastante
determinada. Em sua conduo e manejo do grupo, ela era espontnea,
viva e, tambm, prtica. A tutora mostrava-se sempre disposta e cheia de
energia para a atividade, era evidente a sua disponibilidade para com os
31

seus alunos e seu comprometimento com os encontros de tutoria. Na maior
parte das vezes, fazia-se presente, em seu comportamento, um verdadeiro
contentamento em estar convivendo com seus alunos. Essa energia e
entusiasmo funcionavam como um importante elemento de ligao junto
queles que frequentavam a atividade. A tutora contava com componentes
de personalidade que contribuam para o desenvolvimento de uma relao
baseada na convivncia.

Os tutorados
Os calouros do grupo em 2009 eram, em sua maioria,
questionadores e participativos. Entre eles tnhamos Mirna, que apesar da
pouca idade, vinha de outra formao; de presena agradvel, era bastante
atenciosa. Gustavo, extremamente curioso, aproveitava muito a presena
dos mais velhos para tirar suas duvidas. Por fim, no muito assduos,
tnhamos Joaquim, um tipo menos verbal e mais observador, e Paulo, que
quando presente mantinha uma postura interessada e ativa.
Os veteranos, correspondentes aos alunos dos demais anos, tinham
uma participao fundamental para a dinmica do grupo e, com suas
diferentes personalidades, sempre fomentavam intensa troca de ideias e
muita reflexo.
Entre os veteranos que frequentaram o grupo em 2009, havia a
polmica Rosa, aluna do terceiro ano, que com seu jeito contestador e nico
de enfrentar a tutora, questionar a vivncia da rotina da faculdade e trazer
temas angustiantes de cunho pessoal, movimentava o grupo. Outra aluna do
32

terceiro ano, Cintia, calada e observadora, participou de apenas um
encontro.
Menos contestadores eram Joo e Roberto, alunos do quarto e
quinto ano, respectivamente, parecidos na maneira de se comportar no
grupo, contriburam muito para a reflexo e troca de ideias, mesmo sendo,
Roberto, reconhecido por sua timidez. Do quinto ano, tambm havia Las de
frequente participao no grupo. Bastante simptica e atenciosa, sua
maneira tranquila de falar e lidar com o grupo difundia confiana, levando a
todos um clima de serenidade e acolhimento. Outra aluna do quinto ano,
Vitria, participou de apenas um encontro, mas com sua postura madura e
sria, contribuiu muito para troca de ideias.
Em 2010, conheci as duas novas calouras e um antigo aluno do 4
ano, agora interno. Mirela, uma das calouras, extrovertida e participativa,
entrosou-se rapidamente, questionando a rotina da faculdade e falando de si
mesma j nos primeiros encontros. Erika, a outra, por sua vez, muito tmida
e retrada, pareceu sentir-se deslocada no grupo ao chegar. Leonardo, do
quinto ano, era um tipo atltico, muito extrovertido e participativo, que se
comportou, aps um ano de ausncia, como se fosse ntimo do grupo e
tivesse vindo a todos os encontros de 2009.

Outros participantes
No ano de 2009, ocorreram dois encontros de Tutoria Conjunta,
quando dois tutores diferentes e seus respectivos grupos se juntaram.
Nessas tutorias especiais, conheci outros alunos e tutores. Um deles, Dr.
33

Antnio, citado neste estudo, por haver estudado na mesma poca de Dra.
Anita, demonstrou ter com ela muitas afinidades, compartilhando, em muitos
assuntos, das mesmas opinies. Observei que, alm das afinidades, ambos
tinham traos de personalidades parecidos, como o entusiasmo e a
espontaneidade, alm das habilidades de comunicao.


Onde acontecia

Um laboratrio frio, um encontro quente
Era em um laboratrio de pesquisa, localizado na prpria Faculdade
de Medicina, que o grupo de tutoria se encontrava para suas reunies.
O espao fsico era pequeno, estreito, o que dificultava o contato
visual entre parte dos membros. A disposio das cadeiras era definida por
essas condies, formando um contorno que lembrava uma letra L,
havendo um armrio estreito que dividia o segmento do contorno das
cadeiras criando dois cantos. A tutora preocupava-se em preparar o espao,
mostrando que esperava seus alunos, distribuindo as cadeiras antes que
eles chegassem.

Meu primeiro dia de observao. Chego com 15 minutos de antecedncia
ao prdio da FMUSP, cedo o suficiente para procurar o Laboratrio de
Investigao Mdica (LIM) onde ser o encontro de tutoria. Sinto
ansiedade e procuro me tranquilizar respirando. No tenho dificuldade em
encontrar a sala e, quando chego, a porta est entreaberta. Espio dentro
do laboratrio e vejo a tutora atravs de uma grande moldura de vidro. Ela
est sentada em frente ao computador, em uma pequena sala na parte de
34

trs de seu laboratrio; ela no me v, e percebo que a sala est vazia. O
laboratrio claro e estreito, formando um L na primeira sala; ali as
cadeiras esto dispostas e parecem esperar por algum que as ocupe.
Creio que a tutora as arrumou para o encontro, mesmo assim a sensao
de um ambiente um pouco apertado para uma reunio, com certeza. H
proximidade entre as cadeiras, e talvez isso favorea uma proximidade
subjetiva, ou demonstre a vontade da tutora para que haja proximidade. A
sala do fundo, onde est a tutora e seu computador, quadrada e tem uma
grande moldura de vidro para que se possa ver a sala da frente. (OBS 1)

A iluminao do lugar era fria, branca, prpria de um laboratrio, e
apesar de haver uma janela ao fundo, perto da qual ningum nunca sentou
perto, a ventilao era artificial. O laboratrio era silencioso e as interrupes
eram raras. Os alunos nunca questionaram ou reclamaram desse espao
para os encontros e tambm no o alteravam durante as reunies.
Apesar do espao fsico no constituir uma condio ideal, ou nem
mesmo perto disso, foi interessante observar que este no era um limitador
para que outro espao, o espao subjetivo da relao, acontecesse.
Durante o encontro, com a conduo firme da tutora e a participao dos
alunos, o espao frio do laboratrio transformava-se num espao quente, de
relaes vivas, entre pessoas.


Quando acontecia

Em um tempo preciso
As reunies ocorriam uma vez ao ms, dentro do calendrio oficial
35

do programa, divulgado no incio do ano pela coordenao do programa.
O tempo da reunio, das 10h s 12h, era administrado pontualmente
pela tutora, que nunca dele se descuidava. Ela iniciava e encerrava as
reunies, comunicava o horrio ao grupo, havendo sempre um relgio ao
seu alcance para consulta.
A tutora diz olhando no relgio: vamos encerrar? (OBS 2)

So 12h, a tutora seus papis, olha no relgio e pede para que eles
encerrem a reunio. (OBS 3)

Os alunos voltam a falar sobre os professores dos primeiros anos, o papo
est animado e no param de falar, parecem resistir ao trmino da reunio.
A tutora se levanta encerrando a reunio, despedindo-se de todos com
beijinhos. (OBS 5)

A tutora tambm no se atrasava e no deixava que a reunio se
estendesse alm do tempo combinado. Poucas vezes se ausentou para
atender ao telefone, sempre seguido de alguma justificativa, o mesmo
fazendo seus alunos.

Os alunos chegam aos poucos
A chegada dos alunos reunio era heterognea como a prpria
composio do grupo em relao ao ano acadmico.
Os calouros, mais tmidos, chegavam, na maioria das vezes, nos
primeiros quinze minutos da reunio. Os alunos veteranos, por sua vez, se
no eram pontuais, chegavam gradualmente e, s vezes, saiam um pouco
mais cedo com a permisso da tutora. Esta se mostrava agradecida pelo
36

tempo que os veteranos passavam com o grupo, reconhecendo que, para
estes, este era um tempo precioso. Estar na reunio era, para os internos,
em especial, no estar na prtica dos estgios hospitalares, mostrando
assim que valorizavam a atividade.
Alm de haver um forte respeito pelo tempo da reunio, isto , por
sua durao, a tutora tambm se preocupava com o tempo para a reunio,
isto , com a sua finalidade. A demanda dos alunos por comida durante o
encontro, por exemplo, era condenada por ela que dizia no ser hora para
isso.
A reunio est terminando e o ritmo do grupo est desacelerando. Gustavo
pergunta da possibilidade de haver comida na prxima reunio.(...) A tutora
diz: Sobre a comida, eu sou uma tutora tradicionalista, (olha para mim) ou
a gente come ou a gente fala, sou contra comida na tutoria, alguns aqui j
sabem. Das 10 s 12 no hora de comer, logo depois vem o almoo. Ela
fala com muita firmeza e no tenta agradar seu tutorado. O aluno escuta. E
faz cara de que ouviu um no, mas tudo bem, fazer o que? (OBS 1)

Presenas, atrasos e ausncias
Por ser gradativa, a tutora geralmente aguardava a chegada dos
alunos com certa expectativa. A intensidade dessa expectativa fazia
tambm, s vezes, com que ela j anunciasse o comeo da reunio quando
um ou dois alunos estavam presentes.
Em duas ocasies, minha chegada como observadora em 2009, e a
chegada das novas calouras em 2010, a tutora se mostrou particularmente
ansiosa e preocupada com a adeso dos alunos. Nessas ocasies, ela lidou
com esses sentimentos apresentando justificativas para aplacar sua
angstia e desconforto.
37

A tutora comea uma fala sobre a presena dos alunos para esta reunio;
parece preocupada com a idia de no comparecem e justifica que talvez
por causa do tempo, que est chuvoso, eles faltem. Eu penso que muito
cedo para tal afirmao e percebo que ela est muito ansiosa: a minha
presena no a faz confortvel, apesar, de ela estar se esforando para
me receber da melhor maneira que pode no momento. A tutora diz: vamos
ver quem vem hoje, e se eles vm! Nunca se sabe... o tempo hoje tambm
no est ajudando... (OBS 1)

So 09h56min e entro na sala, a tutora est no outro ambiente da sala e
quando me v, ela vem ao meu encontro. Ela me cumprimenta com um
beijo rpido e duro dizendo: eles esto um pouco atrasados. Eu, sabendo
que ainda no so 10 horas acho o comentrio estranho e que talvez seja
fruto de ansiedade. (...) So 10h12min e chega a nova caloura rika. Ela
entra, a tutora levanta e a recebe: voc deve ser a rika, eu sou a tutora
Anita. Hoje no sei o que deu nos alunos que ainda no chegaram! Eu
tinha dois calouros que vinham sempre e que agora parece que j viraram
veteranos!. (OBS 10)

A tutora no deixava de assinalar ao grupo as presenas, como que
sublinhando os atrasos e as ausncias dos membros. Era enftica e no
deixava de assinalar: essa a Cntia, sumida, no veio em nenhum
encontro no ano passado; ou Dra. Rosa, sempre atrasada, ou ainda,
Gustavo, j virou veterano, no veio esse ano ainda. Algumas vezes
comentava sobre os alunos que ainda no haviam chegado, na presena
dos que ali estavam. Outras vezes, esses comentrios sobre os ausentes ou
atrasados acabavam se desenvolvendo em falas ressentidas. De certa
forma, paradoxalmente, as ausncias ocupavam espao!
A tutora estava tensa, nervosa e inquieta, e comea a falar dos ausentes:
e este pessoal que no chega! Ser que no vem!? Sabe que tenho uma
sextoanista, que anti-tutoria, ela nunca veio! No comeu e no gostou,
38

como pode a pessoa nem querer saber como ! Essa aluna diz por a que
no vem mesmo pois no gosta!. (OBS 1)

Era interessante tambm observar que quando o atrasado ou o
ausente chegava ou retornava reunio de tutoria, este era recebido num
misto de festa e crtica. Ela mostrava-se feliz por eles estarem ali, mas,
descontente pela impontualidade.
So 10h20min e chega Mirna, agora no segundo ano. A tutora diz: H, a
est! Achei que agora que virou veterana no viria mais! (...) So
10h22min e chega Joo do quinto ano. A tutora fica muito feliz: esto
chegando, que bom que veio, sente-se aqui do meu lado j que um
veterano do quinto ano. A tutora olha para todos e comenta sobre a
frequncia de Joo para as reunies de tutoria: veio em algumas no ano
passado, no ? Abandonou-me no ano retrasado, mas quando d
aparece... (OBS 10)

Estudos sobre programas e atividades de mentoring em Medicina,
realizados no mesmo contexto, isto , na FMUSP, e em outras experincias
semelhantes, mostram que a insatisfao e angstia com a adeso no so
um privilgio desta tutora em especial.
Gonalves (2011), em estudo qualitativo, entrevistou 14 outros
tutores da FMUSP, buscando compreender suas vivncias ao longo do
tempo. Parte importante dos entrevistados reconheceu dificuldades ao longo
do caminho, envolvendo dvidas iniciais, sobrecarga derivada do cotidiano
acadmico-profissional e, em especial, frustrao com a adeso dos alunos.
A autora observou que o no comparecimento dos alunos aos encontros, ou
uma participao pequena, tal como por vezes acontecia com a Dra. Anita,
mobilizava nos tutores sentimentos de frustrao, raiva e desvalorizao e
39

estes, assim, acabavam por no se sentir desejados, suficientes e
competentes.
Sentimentos semelhantes foram tambm identificados no Programa
de Mentoring do Curso de Medicina da USP de Ribeiro Preto (Colares et
al., 2009). Apesar da satisfao em participar da atividade, os tutores
entrevistados tambm relataram dificuldades em motivar os alunos a
participar e em aumentar sua adeso atividade, referindo
desencorajamento pela reduzida participao e pela falta de pontualidade
deles nos encontros.
Programas de mentoring internacionais no apresentam dados
quantitativos ou qualitativos sobre a adeso dos alunos e,
consequentemente, h pouca discusso sobre a reao dos tutores frente a
essa questo.
Malik (2000), em sua avaliao do novo esquema de mentoring da
Universidade de Dundee, na Esccia, um dos poucos autores que se
refere, mesmo que tangencialmente, questo do no envolvimento dos
alunos. Entre os alunos respondentes, uma amostra dos envolvidos na nova
proposta, uma minoria referiu no sentir necessidade para um sistema de
tutoria. Outros reconheceram a necessidade, mas no consideraram
relevante participar, mesmo quando perceberam que estavam passando por
dificuldades. No h referncia, em seus resultados, percepo dos
tutores sobre os alunos que no participam do esquema.
Dobie e colegas (2010) entrevistaram mentores de um programa da
Universidade de Washington, no qual acompanhavam alunos do 1 at o 4
40

ano. Os mentores reconheceram uma variao na natureza do contato com
os alunos de um ano para o outro. Para eles, a relao se consolidou
apenas no 2 ano quando tiveram, junto aos alunos, alm do papel de
mentor, tambm responsabilidades curriculares, de ensino de habilidades
clnicas. Ao serem perguntados sobre os custos da atividade de mentoring,
os mentores referiram uma srie de fatores, como o fato de consumir tempo,
de ser estressante acompanhar os alunos durante quatro anos, de no saber
se seu desempenho est bom o suficiente ou se eles tinham as habilidades
necessrias. Referiram tambm que as necessidades dos alunos so
variadas, estes so muito ocupados, difcil agendar eventos sociais com
eles e que, em relao adeso, nem todos os alunos desejam a relao,
mesmo aqueles cujo desempenho sugere que poderiam ser beneficiados
pelo mentoring.
Embora minha presena, como observadora, ou a chegada das
novas calouras no ano seguinte, possa ter contribudo para aumentar o
estado de tenso da tutora em relao adeso de seu grupo, estudos da
rea mostram que vrios outros fatores tornam esta questo naturalmente
complexa e angustiante, especialmente quando se d em um enquadre
formal e de participao voluntria dos alunos.
Estudo qualitativo (Bellodi et al., 2011) sobre o ir ou no ir tutoria,
realizado na FMUSP, no perodo de 2004-2005, explorou as razes
apresentadas pelos estudantes em relao ao seu envolvimento com a
atividade, antes e depois da insero da atividade na grade horria e do
estabelecimento de um calendrio anual com 10 reunies pr-agendadas.
41

Os resultados mostraram que a insero do programa na grade horria
oficial resolveu alguns problemas como a queixa dos alunos quanto ao uso
de seu tempo livre para os encontros, a concorrncia com outras atividades
curriculares e o agendamento irregular dos tutores. Entretanto, revelam os
autores que: com a dispensa das atividades curriculares, o tempo para a
Tutoria comeou a ser usado como tempo livre para necessidades pessoais
(descansar, dormir ou atividades dirias, por exemplo) ou continuou a ser
destinado, muitas vezes, para atividades acadmicas consideradas mais
interessantes (procedimentos no internato, iniciao cientfica nos anos
anteriores).
A anlise das respostas dos alunos neste estudo mostrou que a
adeso deles resultado da combinao de muitos e diferentes fatores,
derivados tanto da estrutura e dinmica do programa e do curso, quanto das
caractersticas pessoais dos participantes do grupo o que pude tambm
constatar e compreender ao longo do tempo de minha observao.

Um tempo precioso e concorrido
O curso de Medicina, em sua estrutura e dinmica, envolvendo
muitas atividades e exigncias, tem sido considerado uma fonte estressora
que afeta a qualidade de vida dos estudantes, no permitindo que ele
consiga cuidar da prpria sade, relacionar-se com a famlia e amigos e, at
mesmo desenvolver outros interesses.
Fiedler (2008), em seu estudo sobre qualidade de vida do estudante
de medicina brasileiro, concluiu que a falta de tempo uma questo central
42

nessa discusso:
Algumas escolas chegam a oferecer 35 horas de aula
semanais ou mais, no prevendo tempo para estudo. Soma-se
a isso atividades complementares monitorias, ligas
acadmicas, congressos, projetos de extenso e iniciao
cientfica. Comprimido nessa grade horria, no sobra ao
estudante, tempo para amadurecer e refletir sobre a qualidade
de vida para alm dos muros da faculdade. (pg.164-5).

As observaes realizadas mostraram que a atividade de tutoria era
tambm contaminada e, de certa forma, bastante prejudicada, por esse
contexto. Os alunos, geralmente, justificavam seus atrasos e faltas,
atribuindo-os rotina e sobrecarga das atividades do curso e, no caso dos
internos, especialmente no liberao para a atividade de tutoria pelos
responsveis pelos estgios no hospital.
Rosa do terceiro ano comenta: nem fale em tempo! Haja jogo de cintura!
Estou com falta de tempo para tudo! Para a tutoria, estudar, dormir, nem
vejo mais meus amigos e no posso nem pensar em faltar da monitoria,.
Olha para a tutora e continua: a iniciao cientfica com a professora
ento, abandonei! (OBS 7)

Vitria, aluna do quinto ano, anuncia as 11h que ter que sair por motivo
de aula (OBS 1)

Roberto contou que saiu da visita no hospital para vir a este encontro e
que havia sido uma deciso por conta prpria, pois no ouve dispensa.
(aps fala de outro aluno, continua) comigo tambm est acontecendo o
mesmo problema, as aulas e visitas sendo marcadas para o horrio da
43

tutoria, hoje mesmo comuniquei aos residentes que no passaria a visita
para poder estar aqui, no vim em muitas reunies neste ano e no queria
faltar em mais essa, a tutoria conjunta. (OBS 7)

A Tutora comentou: hoje tivemos o Roberto do quinto ano no primeiro
momento e depois na segunda metade apareceu a Las tambm do quinto,
ficaram um tempo juntos e depois o Roberto teve que ir embora, vida de
quinto ano! (OBS 8)

Por vezes, eles tambm apontavam a distncia de onde eles
estavam, seja de casa, ou do local de atividade no hospital e da faculdade,
como dificultadora da chegada pontual reunio. Mas era difcil para a
tutora acolher essa dificuldade, atribuindo a ela uma conotao de preguia
e falta de responsabilidade. Dava exemplos de alunos que, na sua poca,
apesar da distncia eram pontuais e participativos, no valorizando as
condies atuais do transito numa cidade como So Paulo.
Entretanto, vale ressaltar, parecia haver para os internos uma maior
compreenso dos atrasos e ausncias, mostrando valorizao e empatia
com esses alunos to atarefados e quase mdicos.
Neste momento chega Joo do quinto ano. A tutora o sada dizendo: o
interno chegou! Ele estava at pouco tempo atrs pensando em fazer
Cirurgia Plstica, no ?. Antes que Joo tenha tempo de responder,
chega Las, aluna do sexto ano e Cntia, do quarto ano (esta ltima eu no
me lembro de t-la conhecido antes). A tutora cumprimenta as alunas e
comenta que Cntia abandonou o grupo no ano passado. Cntia escuta e
nada diz. Parece um pouco assustada diante da franqueza da tutora. (...)
So 10h40min e chega Lcio do quinto ano. A tutora diz para ele: Olha
quem veio! Nossa voc fazia tempo que no aparecia!. Lcio sorri um
pouco sem jeito: pois , depois se senta a vontade. (OBS 9)

44

Certa vez, dentro desse contexto de presena das ausncias, a
tutora fez questo de contar ao grupo sobre uma antiga aluna que, depois
de formada, enviou a ela uma mensagem por e-mail dizendo de seu
arrependimento por no haver frequentado a tutoria. A aluna, inclusive, pedia
a ela que nunca desistisse da atividade, o que me pareceu funcionar como
forte estmulo tutora nesses momentos difceis.


Como acontecia

Comeo de conversa
Aps um tempo de desabafo, por conta das faltas e atrasos dos
alunos, parecendo se dar conta de que este seu funcionamento no era
construtivo, a tutora conseguia se ligar novamente ao grupo e retomar o
propsito do encontro: trocar ideias e experincias.
A tutora falou um pouco mais sobre a aluna ausente, nomeando-a todas s
vezes. Penso que ela estava muito frustrada com os ausentes e eles
ocuparam o espao por um curto e doloroso tempo. A caloura escutava
com uma expresso preocupada. A tutora interrompe seu prprio discurso
e pergunta para Mirna: E voc o que tem feito? e olha para mim. Mirna
comea a falar animadamente e com uma mudana significativa em sua
expresso, estava muito feliz: fui a uma visita ao hospital e adorei, nossa
muito grande... A tutora a incentiva perguntando por onde ela passou,
quando e como foi. Elas conversam animadamente. (OBS 1)

A tutora ocupava o espao do encontro de maneira firme e intensa,
sendo ela, na maioria das vezes, quem abria a discusso, propondo um
45

tema. Mas, aps esse incio dado pela tutora, aproveitavam bastante o
encontro, falavam e ouviam, trocavam idias, tiravam dvidas, refletiam,
divertiam-se.
Dada a chegada gradual dos alunos, a tutora se preocupava em
colocar aqueles que chegavam depois a par dos assuntos discutidos at
ento: falamos at de ateno primria (OBS 10), estava comentando da
festa (OBS 7), etc. Isso era muito importante para ela: que o grupo, como
um todo, compartilhasse o assunto em questo.
Os membros do grupo, no perodo da observao, j se conheciam,
mas, quando chegavam alunos novos ao grupo, remanejados ou calouros,
ela costumava apresentar os veteranos a eles sempre dando um tom
pessoal. Ela se valia de eptetos, isto , associava adjetivos, substantivos ou
expresses aos nomes, para qualific-los.
Neste momento chega a tutorada do quinto ano, Vitria, que muito
calorosamente saudada pela tutora com beijos e abrao. Dra. Anita
comenta: Vitria a minha preferida, que bom que voc veio!!. (...) Os
alunos parecem um tanto surpreendidos pela afetuosidade da Dra. Anita
ou talvez pelo uso da palavra: preferida. E ficam calados. (...) os alunos
cumprimentam Vitria timidamente. (OBS 1)

A tutora olha para Rosa e diz ao grupo: esta a Rosa, ela quem eu
pego no p quando a Vitria no est! Ela fala muito nas nossas reunies,
traz sempre uma polmica e cumprimenta Rosa calorosamente. Os
alunos olham para Rosa com uma expresso diferente, j que ela ganha
ateno especial da tutora. O olhar de curiosidade. (OBS 1)

Vale dizer que nem sempre esse estilo da tutora foi apreciado pelos
alunos, como no caso de uma das novas calouras de 2010.
46

A tutora apresenta as novas calouras para as veteranas dizendo: Essa a
rika, ela bem nipnica. rika olha para tutora e para todos com uma
expresso de eu no acredito o que estou ouvindo, suas sobrancelhas se
contraem e ela d uma rpida bufada que parece um soltar de ar
desgostoso. Depois a tutora apresenta a outra caloura Mirela, dizendo em
tom de satisfao: essa Mirela, ela ser preo duro para mim e para a
Rosa porque falamos muito. A tutora olha para Mirela e diz: j percebi
que voc fala muito, a Rosa sempre fala bastante tambm. (OBS 10)

Uma tutora habilidosa e firme
Zimerman (1999), psicanalista com extensa obra dedicada ao estudo
de grupos, considera alguns atributos como desejveis para o bom
desempenho de um coordenador de grupos. Para este autor, importante
que o coordenador goste e acredite em grupos, seja continente s
necessidades e angstias dos membros do grupo, seja emptico, tenha
capacidade de discriminao (para lidar com as identificaes projetivas e
introjetivas e fazer a diferenciao entre o que pertence a si prprio e o que
do outro), funcione como um novo modelo de identificao, seja
verdadeiro, tenha senso de humor, coerncia, pacincia, capacidade de
comunicao e, por fim, capacidade para integrar e sintetizar.
Todos esses atributos, caractersticas e habilidades, de um bom
coordenador de grupo e de um mentor efetivo, estavam presentes na tutora
do grupo que observei.
Dra. Anita incentivava fortemente a troca de opinies, ampliava as
questes e fazia com que todos se expressassem a respeito. Ela
apresentava temas, os expandia, mudava ou encerrava a discusso, a partir
do que ela considerava importante para a reunio de tutoria, mesmo que,
47

algumas vezes, seus tutorados no desejassem.
Mas, importante dizer, mesmo com esse seu estilo, havia espao
para os temas levantados pelos tutorados, assim como para que o grupo,
sozinho, conduzisse as discusses, de forma autnoma, durante um bom
tempo. Havia espao no grupo para o desentendimento, para a crtica e para
discusses quentes entre ela e seus alunos, especialmente os veteranos.
Essas conversas acaloradas deixavam os alunos mais novos, no incio,
tensos e preocupados com o desfecho, angstia que com o tempo se
desfazia.
Era evidente a habilidade da tutora em ampliar, costurar e
arrematar os assuntos e os encontros, dando a esses um sentido de
comeo, meio e fim reparador. Ela conseguia sempre, ao final, resgatar o
bem-estar do grupo, por mais desastrosos os rumos que alguns temas
angustiantes, geralmente por sua insistncia, pudessem estar tomando.
(depois de momentos difceis) A tutora finaliza: Bom, estou muito feliz, o
grupo est forte, com internos presentes, quinto, e quarto ano, s alguns
no vem mais mesmo! O Gustavo que sempre vem, faltou: j virou
veterano, e espero que a Mirela e rika tenham adeso. Eu percebi que a
Mirela fala bastante e ser preo duro para eu e a Rosa, quem sabe assim
eu falo menos? e pergunta: Hem, rika?. A tutora finaliza: voltamos
daqui um ms, vocs querem meu telefone e e-mail? (OBS 10)

Mas, embora houvesse espao para diferenas de pensamento, por
outro lado foi interessante observar que parecia haver pouco espao para
algumas caractersticas de personalidade (timidez, retraimento, medo).
Parecia no haver espao para os fracos ou para atitudes fracas (os sem
opinio). Tambm no havia espao para certas atitudes ou
48

comportamentos, considerados relapsos pela tutora como, por exemplo,
no ler os e-mails da tutoria, no se preocupar com colegas ausentes ou no
participar de maneira ativa.
A tutora pergunta se eles receberam as fotos que ela encaminhou ao
grupo, referentes tutoria passada, eles respondem que sim. Apenas
Joaquim responde que Eu no recebi, mas tambm no abri meus e-
mails. E sorri displicentemente, com uma cara boa. A tutora diz: as nicas
pessoas que receberam e retornaram o meu e-mail agradecendo foram a
Fabiana (e olha para mim, com olhar de aprovao) e a coordenadora do
projeto. E depois diz em tom de reprovao: E de vocs no recebi nem
um al sobre o recebimento! Acho que poderamos falar sobre isto. Ela
questiona Joaquim: e voc, no utiliza seu e-mail? Temos que utilizar de
nossos meios de comunicao e nos relacionar, ainda mais vocs que so
desta poca de novos meios de comunicao!. Os alunos fazem cara de
que fizeram algo errado e levaram bronca. Ficam sem jeito e ficam
calados. Joaquim est muito envergonhado. (OBS 3)

Essas dificuldades da tutora em aceitar certos traos de
personalidade e de gerenciar algumas situaes mobilizadoras de angustia
geravam momentos de retraimento do grupo, nem sempre percebidos por
ela, o que me fez pensar na importncia de um espao onde os tutores
possam refletir sobre suas intervenes.
Freeman (1998), em sua experincia com mentores em programas
de Residncia Mdica, discute a importncia de treinamento para a prtica
do mentoring, mas enfatiza que este apenas uma fase de induo inicial. O
suporte continuado fundamental, pois na medida em que ocorrem os
encontros, os mentores encontram reas ou atitudes que eles necessitam
examinar, saber mais ou compreender melhor.
49

O Programa Tutores conta em sua estrutura e dinmica com a
presena de supervisores, vinculados ao ensino na instituio e com
formao em Psicanlise, que, regularmente, do suporte aos tutores no
sentido de compreender as diversas variveis, conscientes e inconscientes,
presentes em toda relao humana.
Sobre a superviso dos tutores, Szajnbok (2005), defende que:
Talvez possamos conceber a superviso para os tutores como
uma espcie de confronto entre a cultura mdica que aponta
para a objetividade, a generalizao e o pragmatismo na
soluo de problemas, e o discurso psicanaltico trazido pelos
supervisores, que aponta para a subjetividade, a
particularidade e a possibilidade e a necessidade de conter a
angustia de conter a angstia frente a questes sem respostas
(p. 60).

Observei que Dra. Anita valorizava esse espao, sem deixar de
indicar que participar das supervises demandava tambm vencer
resistncias:
Eu tambm fao superviso dos meus encontros e este ano minha
supervisora ser uma pessoa nova, que no conheo. Agora que eu
estava me acostumando com a supervisora, mudou! No sei quem ela ,
espero que eu goste dela, eu tambm passo por superviso aqui, viu
gente, no fcil no! (OBS 1)

Vencido o medo de que a superviso funcionasse como um
processo avaliativo, a tutora pode constatar seus benefcios. Certa vez, ela
50

comentou:
Veja o que essas prticas de tutoria fizeram comigo! Estou aprendendo a
lidar com a minha ansiedade, at Tai Chi Chopin estou fazendo!! (OBS 5)

Calouros e veteranos: suporte e troca de experincia
Em Os diversos tons de branco relaes de amizade entre
estudantes de Medicina, Rojo (2001), tambm numa abordagem
etnogrfica, acompanhou de perto o cotidiano de alunos da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Este autor observou que o grupo de amigos, no curso mdico, se d
entre estudantes de uma mesma srie e de forma cada vez mais restritiva no
decorrer do tempo. Segundo ele, a opo de no ter um grupo de amigos
praticamente invivel no curso mdico, com consequncias que atingiriam o
prprio rendimento acadmico dos alunos. Entre outras consideraes,
ressalta que esta nfase no grupo no se sustenta exclusivamente na
sociabilidade, mas na necessidade de confiana, de ausncia de
competitividade interna e de apoio compartilhado entre os membros, frente a
um ambiente extremamente competitivo.
No Programa Tutores, a nfase no grupo tambm est presente,
mas, ao contrrio dos grupos naturais, formados por colegas do mesmo
ano acadmico, so propostas relaes e trocas entre alunos que se
encontram em diferentes fases de formao, num conjunto composto por
puro e simples sorteio. Mesmo assim, pude constatar que no grupo
observado, pelo menos durante o tempo das reunies, a relao entre os
alunos era suportiva e de cumplicidade.
51

Vitria conta para a tutora que teve problemas de sade, problemas
oftalmolgicos, ela deslocou a retina, participando de um jogo na Atltica.
Elas falam sobre o diagnstico e todos escutam atenciosamente. (...) Las
manifesta preocupao com a colega e entra delicadamente na conversa
da dupla: voc est melhor?. Vitria: agora est tudo bem, pois fui
operada. A tutora diz: e quem te operou?. Vitria: quem me operou foi o
pai de Y (...). E diz: eu conheci ele aqui, um dia estvamos conversando
e ele contou que o pai dele era oftalmologista. Por intermdio dele (...), fui
operar com o pai dele! Ele timo mesmo! Recuperei 100% da viso,
apenas poucas pessoas conseguem esta recuperao, apenas 2%, e
graas ao pai dele eu consegui!. Pensei que a tutoria permitiu a Vitria a
experincia de contatos confiveis e de gratido. (OBS 1)

Mirela diz: outro dia fui nadar bem cedo, estava cansada, mas depois
compensou, pois cheguei aula pilhada, curada pela natao: era aula do
professor C e, nossa., s estando muito pilhada para aguentar aquilo.
Todos riem por causa do professor C, que o grupo diz ter caractersticas
especficas em sua maneira de lecionar, que induzem ao sono. Las
comenta com Mirela: legal que voc faz natao, mesmo muito bom!.
Mirela sorri para Las. A aluna Mirna diz: o professor C abaixa a voz na
parte mais importante da frase!. Todos riem. O aluno Paulo diz: agora o
segundo ano deu um microfone para o C. Ele ficou emocionado e at
chorou!. O grupo d risada e comenta que C precisava mesmo deste
instrumento de trabalho. Rosa pergunta para Paulo: ele j passou receitas
para vocs? Ele adora passar uma receita!. O aluno Paulo responde:
No, mas j falou do azeite!. (OBS 10)

A relao calouros-veteranos, em especial, era marcada pela
admirao e valorizao dos mais velhos pelos mais novos.
Os alunos dos primeiros anos escutavam muito interessados as
recomendaes e ensinamentos dos veteranos sobre tudo o que diziam a
respeito do curso e da faculdade. Os mais velhos respondiam a muitas das
52

dvidas apresentadas pelos anos iniciais sobre as disciplinas, as atividades
oferecidas, o incio da prtica mdica e sobre o que necessrio para ser
mdico. Eram temas discutidos intensamente e, por vezes, permeados por
angstia ou ansiedade, especialmente quando diziam respeito a escolhas a
serem feitas (atividades extracurriculares). Os veteranos conseguiam
apresentar o curso como um todo, discutiam o que era mais ou menos
relevante para o aprendizado e, especialmente, se preocupavam em alertar
os calouros sobre a necessidade de buscar o equilbrio em suas escolhas.
Tinham, nesses momentos, um papel de co-tutores, oferecendo diretrizes,
antecipando no apenas os problemas, mas tambm os prazeres do futuro,
estimulando-os a continuar em frente: o momento onde tudo far sentido
vai chegar!
Las diz: o quarto ano foi o que mais gostei!! Foi onde tudo comeou a
fazer sentido para mim, onde comeou a fechar tudo o
que eu havia aprendido nos outros anos! Portanto, no desistam, pois no
primeiro e segundo ano o curso parece mais fraco e alienado mais depois
melhora! Roberto, do quinto ano, concorda e calouros o escutam
atentamente. Ele comea a falar sobre as 3 fases da faculdade: voc
passa por uma adaptao, no primeiro momento tudo novidade, tudo
est comeando, nesta fase voc se sente solto, s vezes at meio
perdido, depois comea a aprender as propeduticas e da j comea uma
transio; no terceiro e quarto ano o curso d uma virada, h mais contato
com o que de fato ser mdico, as coisas comeam a fazer sentido, h
uma maior contato com a prtica e voc se sente mais preparado. E
depois vem o internato que junta vrios ensinamentos do curso todo.
53

Todos escutam muito atentos. (OBS 2)

Joo diz calmamente e sorrindo com uma cara boa que ele tem: no se
foquem em apenas uma coisa, nem em um s estudo, nem s na Atltica,
faa um pouco de tudo... uma hora voc se surpreende com o
conhecimento que adquiriu e nem sabia. Faa as ligas e no abandone os
primeiros anos, pois depois voc vai precisar das bases fisiolgicas. (OBS
10)

Os calouros mencionavam que a quantidade de atividades
extracurriculares oferecidas pela universidade e pela faculdade os deixava
se sentindo perdidos, como que bombardeados com tantos estmulos.
Nesses momentos, os veteranos os aconselhavam a agir com cautela, a
escolher aquilo que realmente os interessavam e a aproveitar os primeiros
anos do curso para curtir mais a faculdade, fazer atividades interessantes,
estudar sem se atolar de coisas, sem se sobrecarregar, fazer esporte,
lembrando que, nessa fase, incio do curso, ainda havia tempo para tais
atividades.
A tutora diz: e vocs do segundo ano o que tem a dizer para os calouros.
O aluno Paulo diz: no deixem de ir a nada, na EMA, na Atltica. A
caloura Mirela responde: a gente fica um pouco perdido. Mirna
complementa: um bombardeio. O aluno Paulo diz: tem uns caras que
so loucos por ligas fazem tudo e eu fico me perguntando: ser que estou
errado de no fazer todas?. A caloura rika est aparentemente
impactada, com os olhos bem abertos e com uma expresso assustada.
Joo do quinto ano tranquiliza o grupo dizendo: fazer mil ligas ou uma no
adianta nada para o currculo, como todos pensam, depois voc percebe
que no assim que funciona. Faam as que valem a pena, geralmente
54

so as mais antigas, faam as que vocs se interessam. Rosa diz: tem
muita liga ruim, o que mais tem!. (OBS 10)

Por conta desse funcionamento suportivo e orientador dos
veteranos, a tutora valorizava muito a presena dos internos, dizendo
quando esses estavam presentes:
Vitria anuncia que ter que sair, por motivo de aula (11h). A tutora lamenta
sua sada (...). E incentiva Vitria: veja se venha mais vezes, o ano
passado voc andou sumida e sua presena faz muita falta, os mais
velhos so sempre muito importantes nas nossas reunies, tem muito para
contar para todos e para o nosso grupinho de calouros. (OBS 1)

A tutora pergunta: e ento Lcio? O que voc acha?. (...) A tutora fala ao
grupo, justificando sua pergunta para Lcio: importante que os
veteranos falem, pois eu tenho 30 anos de formada!. (OBS 9)

So 11h15min e chega o aluno do sexto ano, o Roberto. A tutora o sada:
a est o Diretor da Bandeira Cientfica!. E continua: Roberto est agora
no sexto ano, veio em alguns encontros no ano passado, e agora est de
volta! Muito bom! muito importante a presena dos veteranos! O Roberto
comeou comigo quando ainda era um garoto tmido e agora est a no
sexto ano. Sempre que consegue comparece aos encontros, bem-vindo
Roberto!. (OBS 10)

Uma conversa variada, de tudo um pouco
Diversos temas ocuparam o espao dos encontros e mediaram as
relaes entre a tutora e seus alunos. De maneira geral, podem ser
agrupados nas seguintes categorias:
- Vida acadmica
O curso de medicina e a rotina da faculdade eram temas constantes
no grupo, ocupando a maior parte dos encontros. Conversavam muito sobre
55

as disciplinas que estavam cursando, tanto as obrigatrias quanto as
optativas, sua utilidade, a maneira como eram ministradas (professor:
matria boa ou ruim), aquelas que os colocavam em contato com a prtica
mdica/rotina do hospital, o nmero de alunos nas aulas prticas, o estado
das peas de anatomia, etc. Os alunos dos diferentes anos faziam
comparaes sobre determinadas matrias e experincias, se estendendo
longamente nesse tema, discutindo mudanas, melhoras e pioras. A tutora,
por sua vez, no deixava de assinalar a importncia da tutoria como
promotora dessa intensa troca de idias.

A tutora pergunta: e na faculdade, as aulas? como esto as coisas?.
Gustavo diz: neste semestre estou gostando bem mais!. Ele se anima e a
outra caloura tambm. E continua:principalmente as matrias! A tutora
pergunta: o que mudou? Ele responde: tudo! O esquema das aulas!
Menos Bioqumica e mais casos clnicos! Mirna diz: a prtica ajuda a
gente a querer estudar mais!. Gustavo complementa: d nimo. Os
alunos esto inclinados para frente e concordando entre si. Gustavo diz:
eu gosto de ler, mas a leitura de Bioqumica muito chata, mas agora
voc comea a estabelecer relaes do que l com o que v na aula.
Mirna concorda: sim, uma matria complementa a outra!. Eles esto
muito contentes, e se complementando, assim como as matrias. A tutora
ergue a bandeira da tutoria: para isso tambm acredito na Tutoria, pois
vocs vem aqui, contam as experincias de vocs e nos ajudam a fazer
uma faculdade melhor!(OBS 5)

A tutora pergunta para Gustavo como ele est se saindo na optativa.
Gustavo responde: ento, resolvi parar mesmo, ficava muito largado l,
sabe? Sem poder ajudar, sem saber como ajudar e, o pior, s vezes tinha
a impresso de que estava atrapalhando mais a situao. Las diz: o
caos l. Gustavo responde: achei melhor ocupar meu tempo com outra
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coisa mais produtiva agora. (OBS 6)

So 11h40min e o aluno Paulo comea a falar sobre as optativas. (...)
Rosa fala sobre as optativas que funcionam bem. Mirna comenta que
est em uma optativa e que est gostando muito, porm, antes, a mesma
no funcionava bem: no ano passado no ia ningum!. O aluno Paulo
conta: teve uma professora que marcou aula no InCor e no foi, pediu
para a secretria avisar e dispensar os alunos, muito vrzea!. (OBS 10)

As vrias atividades extracurriculares a que se dedicavam - ligas,
iniciao cientfica, monitoria, associaes acadmicas, esporte, e outras,
eram foco de muitas discusses. Observei, nessas ocasies, que o tema era
permeado por exigncias, culpa e sensao de desorientao.
Sabe-se que estudantes de Medicina, mesmo dentro de um curso j
bastante exigente, se envolvem com muitas outras atividades, seja numa
tentativa de preencher lacunas curriculares, de complementar o curso e de
obter respostas para suas indagaes profissionais, seja para se integrar
com colegas, aliviar tenses e, no caso das ligas acadmicas, para se
aproximar da prtica mdica, vivenciando o ser mdico (Perez et al., 2007;
Vieira et al., 2004).
Os calouros se interessavam especialmente, em saber sobre as
ligas acadmicas, quais eram necessrias e importantes para a prtica
mdica, quando seria interessante come-las, como acontecia a inscrio,
etc. Os veteranos, por sua vez, contavam suas experincias com elas,
transmitindo suas opinies, crticas e, por vezes, arrependimentos. Algumas
vezes as ligas eram objetos de descontrao e sarro de alguns encontros,
como a Liga do coffee-break e a Liga do Mendigo, apelido dado queles
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alunos que descobrem e aproveitam os momentos de lanche (coffee-break)
que acontecem na faculdade:
O calouro Gustavo pergunta sobre as ligas para seus colegas veteranos de
tutoria. Las diz para ele que bom que ele faa as ligas nos primeiros
anos da faculdade: bom voc fazer, aproveitar os primeiros anos que
so mais tranquilos. Veja bem, eu agora no tenho mais tempo e gostaria
de ter feito mais, faa mesmo se for para voc descobrir que no aquilo
que voc quer! Sempre muito vlido!. Joo concorda e diz que fez
algumas. (...) Rosa e Las explicam que depende do ano em que est, e
que h algumas que no aceitam calouros. Rosa: isto voc tem que ver,
ficar atento e se informar. Rosa, Joo, Las e os calouros falam sobre
prazos e datas de algumas ligas. Todos esto muito animados com a
conversa. (OBS 1)

Os calouros perguntam para Las quais ligas ela fez e quantas. Las diz:
olha, eu fiz algumas, hoje penso que deveria ter feito mais, at para
conhecer melhor as reas. Por isso, se puderem, no deixem de faz-las,
eu me arrependo por no ter aproveitado mais!. Alunos escutam
atentamente. (OBS 3)

Alm dos veteranos, a tutora tinha um papel muito importante na
discusso sobre o valor e o impacto de algumas ligas na formao mdica.
As ligas acadmicas tem ocupado o cotidiano do estudante de Medicina de
forma crescente, mas, como discutem Torres e colegas (2008), muitas delas
tm se distanciado de seu propsito, reforando a especializao precoce e
reproduzindo distores acadmicas. A tutora, considerando esse aspecto,
preocupava-se em discutir a relevncia social e acadmica desse tipo de
atividade extracurricular.
Mirna diz: estou fazendo a Liga de Tcnica Cirrgica. A tutora pergunta
sobre a rotina desta liga e Mirna explica sobre o funcionamento da liga e
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as atividades que havia realizado: j assisti cirurgia, visitamos a UTI.... O
assunto do grupo agora so as ligas. A tutora comea dizendo que h
muitas ligas atualmente que servem para engrossar o currculo do
professor: antes eram mais bem estruturadas e agora tem at Liga da
Unha Encravada do P Direito!. A tutora olha para todos, e para mim, e d
risada. Os alunos no acham muita graa e eu esboo um sorriso. Joo
diz: tem a Liga do Mendigo. Agora sim, todos riem. (OBS 9)

O mesmo acontecia em relao iniciao cientfica, com a
curiosidade e o desejo dos calouros em saber mais sobre seu
funcionamento e valor para o currculo e a formao. A FMUSP conta com
um programa bem consolidado e institucional de iniciao cientfica,
oferecida por meio de disciplinas optativas, e a tutora, ciente da importncia
do pensar cientificamente para a prtica mdica (Oliveira et al., 2008;
Reinders et al., 2005), incentivava seus alunos nesse caminho.
A tutora lembra a todos sobre a iniciao cientfica: alm das ligas vocs
podem se inscrever para a iniciao cientfica. Ela se orgulha do assunto
sugerido, olha para mim e balana a cabea positivamente. E diz para
Rosa: e seu projeto, Dra. Rosa? Os calouros se interessam e questionam
a tutora sobre o funcionamento desta atividade. Ela explica dizendo que h
diferentes reas e que: eles aprendem a como pesquisar e, de repente,
podem at tomar gosto pela pesquisa. (OBS 1)

O internato e a residncia mdica eram assuntos quentes, que
geravam muito interesse, curiosidade, angstias e preocupaes. Os mais
jovens desejavam saber quais os estgios e a rotina do internato, o que
faziam os internos, que tempo o internato ocupava na vida do aluno e se
sobrava tempo para o lazer. Interessante observar que, especialmente neste
tema os alunos mais velhos desempenhavam o papel de mentores junto aos
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mais novos e isso contribua para diminuir a ansiedade destes frente ao
futuro:
A tutora muda de assunto dizendo: e os nossos representantes do quinto
ano o que dizem sobre o internato? Las e Roberto contam sobre o
internato, comeam falando da falta de tempo do quinto ano. (...) Todos
manifestam interesse em saber sobre o internato e questionam como .
Eles explicam que esto gostando e que ainda est no comeo. Mas que,
agora sim, sentem-se mdicos de verdade. Las diz: agora d para sentir
como !. Roberto fala: acho que melhor aproveitar bem a faculdade, se
enturmar com todos e aproveitar, pois agora, no quinto ano, sinto o
estresse do curso em relao residncia, a sim voc sente a competio
aumentando, parece uma bomba-relgio. Las comenta a fala de Roberto
e concorda. Todos escutam, esto cansados e ao mesmo tempo
interessados. J 12h10 e ningum reclama o final do encontro. (OBS 2)

Las diz gostar muito de esporte e fala bem da Atltica: estou sem moral
agora, pois neste ano parei de nadar, muita coisa para fazer, mas um
bom lugar para fazer amizades. Roberto do sexto ano diz que no parou
de treinar: o tnis de mesa mais tranquilo e no parei de treinar, mas d
trabalho para continuar. Os alunos do quinto e sexto ano falam sobre os
treinos e como concili-los com o tempo de estudo e atividades na
faculdade. Todos escutam. (OBS 10)

A mentoria por pares, isto , por meio da troca de experincia entre
alunos de diferentes nveis acadmicos, tem sido considerada uma
estratgia bastante valiosa de orientao, tal como pude observar neste
grupo. Alm da diminuio do estresse para os alunos iniciantes, essa
estratgia pode proporcionar, para os alunos veteranos, o desenvolvimento
de habilidades de colaborao e comunicao, de responsabilidade
profissional e de comprometimento com o desenvolvimento de outra pessoa.
Sprengel e Job (2004), avaliando a mentoria por pares entre alunos de
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enfermagem, consideram que, alm dos benefcios de curto prazo, a
experincia pode favorecer no futuro atitudes positivas tanto em relao ao
mentoring, quanto colegialidade profissional. Os alunos participantes
podem, segundo esses autores, estarem mais dispostos a procurar
mentores ou a servir como mentores para os que entram na profisso.
Consideram ainda a mentoria por pares uma estratgia eficaz e eficiente
para lidar com problemas como as restries de tempo no currculo e a
sobrecarga de trabalho docente.
A diviso dos alunos em grupos, as chamadas panelas, era
tambm objeto de discusses muito interessantes, por conta do critrio de
afinidade.
Os calouros escutam atentos os alunos do quinto ano. Las diz: ns
escolhemos nossa turma por afinidade, isto gerou muita separao!.
Roberto concorda. Paulo, calouro, pergunta a Roberto o que ele achou
desta escolha por afinidades. Roberto responde: a escolha por afinidades
foi boa, voc fica prximo de suas preferncias, por isso bom, fica
prximo de pessoas que te fazem bem, mas acontece que hoje em dia as
turmas e panelas so bem separadas. A tutora Anita pergunta: e voc
conseguiu conhecer pessoas da outra turma? Roberto responde: sim,
nas atividades extracurriculares. Las diz: o problema que s vezes h
pessoas legais que voc no chega a conhecer por causa desta
separao!. Todos esto interessados e inclinados em suas cadeiras. O
grupo ouve interessado e quieto, as pessoas falam de forma ordenada.
(OBS 2)

Conversaram tambm sobre a recepo dos calouros, quando eles
chegaram no ano seguinte.

A aluna Las, do sexto ano, diz: e os trotes, o churrasco?. A caloura
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Mirela diz: eu fui, foi legal! Fiquei com medo, achei que ia morrer, um
veterano chegou de capuz e me pegou. Da eu pensei ai, meu deus, vou
morrer... . Mas eu sabia quem era o aluno, ento foi tudo bem. Choveu,
ento vrias pessoas no foram, foram uns 50 calouros. Las diz: nossa,
mas foi bom esto!. Mirela responde: foi sim! Nem dormi nem nada!. A
tutora pergunta: e a rika foi?. rika, a outra caloura, balana a cabea,
dizendo que no. Mirela responde: nunca me senti to recebida na minha
vida inteira! Foi muito legal!. (OBS 10)

A tutora ainda considerou importante discutir a relao entre os
alunos das turmas A e B e a falta de integrao entre eles. Para ela, o
compartilhamento de um espao comum na faculdade no era devidamente
valorizado pelos alunos nos dias de hoje. Ela no deixava de dizer que no
via, atualmente, unio entre eles para a reivindicao de melhores condies
de formao. Os esportistas do grupo, os atletiqueiros, defendiam a prtica
esportiva como importante elemento de integrao dos alunos. At mesmo
uma tutoria que juntasse as turmas A e B foi idia sugerida no grupo.
A tutora questiona Las sobre a integrao de sua turma, se os alunos so
unidos e como foi isso no decorrer dos anos. Conta que em sua poca a
integrao era maior e que hoje em dia os tempos so outros: hoje em dia
tudo mais segmentado, antes havia mais integrao. Las diz que sua
turma tem uma boa integrao e que as panelas acabam juntando as
pessoas que voc conhece e convive, e que talvez isso no seja bom.
Diz que por fazer parte da Atltica conheceu muita gente e que agora, no
quinto ano, est mais envolvida com os estudos: acredito que a afinidade
a coisa mais importante para a amizade aqui na faculdade. A tutora
pergunta aos demais se eles se consideram unidos. (OBS 6)

O comportamento dos alunos no hospital, na faculdade e na prpria
tutoria, foi tambm alvo de preocupao por parte da tutora. Ela os
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questionava quanto s suas posturas, algumas vezes considerando-as
inadequadas, ditando, de modo firme, modos e maneiras corretos de agir
como alunos e futuros mdicos. O comer, em especial, na sala de aula ou no
hospital, era duramente condenado, tal como no veto a comes e bebes
durante a reunio de tutoria.
- Vida pessoal
Assuntos de cunho pessoal, isto , envolvendo a pessoa do aluno,
tambm ocupavam as reunies. A tutora se interessava sobre o que os
alunos haviam feito durante as frias, contando ela tambm sobre si, falava
sobre esporte e lazer.
A tutora pergunta ao calouro Joaquim como ele foi de frias, afinal o
primeiro encontro que ele vem aps as frias. Ele responde que foi tudo
bem, que descansou e ficou com a famlia na tranquilidade de uma cidade
de Minas, onde mora, e diz: hoje quando estava vindo para c me perdi e
fui parar num outro andar, sempre me confundo por aqui e sempre me
perco: tudo muito grande e os andares aqui so parecidos. Pensei sobre
a adaptao dele nesta cidade grande. Depois de passar tranquilas frias
em Minas, ele est de volta a SP. O calouro Gustavo diz que passou as
frias em Barueri, tambm com a famlia, e que foi bom. (OBS 6)

Os alunos falam sobre o Show Medicina, a tutora comenta que faz muito
tempo que no vai ao show, e que assistir com o marido no d muito
certo, pois ele no entende muito bem as graas. E diz: falando nisso fiz
25 anos de casada. Eles a cumprimentam pela data e ela conta que foi
para o Vietn, como presente. Rosa comenta que sua me faz 25 anos de
casada no dia de hoje. (OBS 5)

Quando o aluno vinha de outra formao acadmica, havia interesse
em saber mais sobre isso, ampliando o assunto e favorecer a troca com os
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demais alunos. Certa vez, a tutora, ao conversar sobre uma cirurgia ocular
bem sucedida sofrida por uma de suas alunas faz a ligao:
A tutora comenta que uma de suas calouras, a Mirna, (e olha para Mirna)
fez formao ptica na Unifesp. E pede para que Mirna conte de sua
experincia. Mirna confirma e conta um pouco sobre o que aprendeu na
formao.Todos escutam. E a tutora diz: ento, Mirna j tem certa
experincia, pois vem de outra formao e no to cru. Mirna sorri.
(OBS 1)

Quando o tema era a famlia, algo importante para a tutora, ela se
interessava em saber sobre a sua procedncia e seus integrantes, sua
formao, especialmente se nela havia mdicos, e deixava que os alunos
falassem por um bom tempo sobre suas famlias.
A caloura Mirela solta os cabelos e olha para Joo. Conta que seu pai
engenheiro e que ele gostaria que ela fosse engenheira tambm: sempre
fui muito boa com clculos, fsica, mas era boa em biologia tambm. Sou
uma pessoa muito sensvel e isso preocupa meus pais, que acham que eu
vou sofrer muito com a Medicina. Sou filha nica e eles se preocupam. E
por causa desta falta de irmos vou querer ter um cinco filhos!. (OBS 10)

Onde moravam, onde iriam morar, como era o deslocamento at a
faculdade tambm eram questes discutidas nas reunies.

O clima est leve e a tutora diz: Joo d dicas para Mirela sobre os
melhores lugares para morar aqui por perto. Joo fala brevemente sobre
os melhores lugares para morar e conta onde mora, dizendo que se
locomove de metr para vir faculdade. A caloura Mirela, falante, diz que o
palpite de Joo corresponde ao que vem escutando. Conta que no
suporta trnsito e que precisa morar mais perto, pois mora na Granja
Vianna: meu pai muito bem resolvido no trnsito, ele pode pegar horas
de congestionamento, ele est bem adaptado e nem liga, mas eu chego na
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minha casa nervosa e estressada. Ele mesmo comentou que eu devo
morar mais prxima da faculdade, pois acha que eu ando muito diferente
depois que comecei a pegar transito!. Mirna diz para ela: voc
inevitavelmente ir pegar trnsito, pois ter aulas na cidade universitria.
(OBS 10)

Falavam tambm, com forte estmulo da tutora, sobre esporte e
lazer, importantes estratgias no enfrentamento do estresse cotidiano (Zonta
et al., 2006).
A tutora comea um novo assunto: e quem so os atletiqueiros aqui? Sei
que vocs so, contem!. E ela aponta Roberto e Joo. Rosa diz: estou na
bateria serve?. O aluno Paulo diz: eu estou treinando e na bateria
tambm!. E pergunta a Rosa: o que voc toca?. Rosa responde que toca
tamborim e Paulo sorri. Rosa fala: sei que a Cntia, que no veio hoje,
est no handball. A caloura Mirela diz: eu amo esporte, natao, mas
quero handball: quem eu devo procurar por l?. A tutora comenta sobre a
aluna Las: ela no veio hoje, mas veio muitas vezes o ano passado, ela
faz natao. (...) O tutorado Roberto diz que faz tnis de mesa e Joo do
quinto ano diz fazer plo aqutico. A tutora observa a caloura rika, muito
quieta, e diz: e voc rika, o que faz?. rika responde: eu? Nada!. Fica
vermelha e diz sem jeito: eu no conheo ningum!. (...) A aluna Mirela a
aconselha e pergunta: do que voc gosta?. rika miudinha e parece um
bichinho acuado. rika responde: talvez softball. (OBS 10)

Mirela diz: O professor C falou para ns do Oscar e que adora cinema. A
tutora diz: falando em Oscar, querem falar sobre o Oscar?. Mirela diz:
nossa, ganhou a primeira diretora mulher!. A tutora diz: e as fofocas? O
ex-marido dela estava l e perdeu, imagina s?! Acho que queria morrer!.
A tutora pergunta: vocs vo ao cinema?. O grupo fica dividido entre no
e de vez em quando. Mirela diz: meu pai tem uma rotina religiosa, ele
muito tradicional, todos os domingos dele so iguais, ele acorda, toma
caf, cuida dos pssaros, l jornal e vai ao cinema. Rosa diz: eu
costumava ir ao cinema toda sexta tarde. Mirna diz: quando fico
65

interessada eu vou. (OBS 10)

- Futuro profissional
Os alunos mostravam tambm muito interesse pela escolha da
futura especialidade, desejando saber qual a que os internos estavam
inclinados a seguir e quando decidiram e quais as reas em que h maior
qualidade de vida.
Tal como apresentado em outros estudos (Ribeiro et al., 2011; Dini;
Batista, 2004), a preocupao com o exerccio da especialidade mdica,
considerando vida profissional e pessoal com qualidade, e com o preparo
para o exame de Residncia Mdica, j est presente bem cedo no curso. E
parece no ser mais apenas uma tendncia entre as mulheres, como
discutem Dorsey e colegas (2005) e mostram os trechos abaixo:
Las fala sobre os estudos para a residncia: os grupos j esto se
formando para comearmos a estudar para a residncia. Gustavo
pergunta (como sempre faz): e voc, sabe o que vai fazer?. Las
responde: Clnica geral ou Oncologia, que tambm gostei bastante, estou
entre essas duas. (...) Gustavo pergunta para Las: e quando que voc se
decidiu pela Clnica Mdica? Las responde: foi no quinto ano; no terceiro
e no quarto ano eu achava que era Gineco. Sabe, at o terceiro ano eu
achava a Medicina legal, depois, no quarto ano, quando voc comea a
estudar mesmo, voc tem vontade de estudar!. Gustavo pergunta:
quando percebe que est virando mdica?!. Las responde: , no
primeiro e segundo ano voc muito passiva, agora j d para contestar.
(OBS 6)

A tutora pergunta para os internos o que eles pensam em fazer como
especialidade. Las diz que quer Clinica Mdica e Joo diz que quer
Cirurgia. A tutora comenta que a Cirurgia requer que voc seja crtico em
questionar se voc tem a habilidade para tanto. (...) Depois a tutora
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pergunta para Joo: e ento Joo, qual a sua viso sobre a Cirurgia?. Ele
responde: eu no sei, na verdade estou quase desistindo da Cirurgia. A
tutora pergunta por que. Joo responde: para ter uma melhor qualidade
de vida. (...) Joo conversa com Gustavo sobre a Cirurgia e qualidade de
vida. A tutora pergunta: e ento Lcio? O que voc acha?. Lcio faz um
sorriso largo e diz descontraindo o grupo: eu sou do grupo da qualidade
de vida!. O grupo sorri e se desprende das cadeiras. Lcio fala ao grupo:
agora tenho uma nova viso sabre as especialidades, o leque se abriu, e
existe o lazer que muito importante na vida. (...) A tutora pergunta qual
especialidade Lcio tem vontade de fazer. Lcio responde: Urologia, tenho
um tio urologista e eu o admiro, ele consegue ter uma vida regrada, com
hora para tudo. Las diz: Uro tem qualidade de vida. (OBS 9)

Os alunos dos anos mais adiantados expressavam suas angstias
em relao aprovao na residncia mdica: o que necessrio para
passar na residncia, o que deve haver no currculo, como se comportar na
entrevista, o cursinho uma boa alternativa e, especialmente, ser que eu
fiz o suficiente? Os alunos iniciantes acompanhavam essas questes de
forma atenta e com expresses de interesse, preocupao e solidariedade.
Surge no grupo o assunto de que houve uma pizza em apoio a um aluno
que no conseguiu passar na residncia: um grupo saiu para comer junto
em sinal de solidariedade. A partir disso, os calouros perguntam como
podem ir se preparando para a residncia. A tutora responde que eles
devem estudar sempre e seguir estudando. Mirna pergunta: e os cursinho
so bons? verdade que h professores que tiram pontos de quem faz?.
A tutora diz: melhor que voc estude. Houve uma aluna que se
beneficiou do cursinho, pois teve um branco na hora da prova, o cursinho a
ajudou a resgatar sua confiana, tratou seu psicolgico e foi bom, mas
acredito que a priori vocs no precisam disso. (OBS 5)

Dr. Anita conta para mim que Las est se preparando para as entrevistas
de residncia do ano que vem. A aluna conta que est preocupada porque
no concluiu nenhum estudo em iniciao cientfica. A tutora diz: mas
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recomendei que ela fosse atrs de um estudo que desenvolveu, embora
no tenha terminado, e conte o numero de horas que trabalhou e coloque
em seu currculo. Falei para que ela fale com o pesquisador daquela poca
e pea um certificado. E, ainda, que ela perceba que deixava de lado a
pesquisa para acompanhar partos, que ela achou mais interessante.
Graas a isso decidiu no optar por ginecologia, ou seja, deixou de fazer
uma coisa para fazer outra, quando descobriu que a ginecologia no era a
rea que queria, e isso foi muito rico! Las concorda e diz: mesmo,
descobri que no era mesmo o que queria e foi a que comecei a pensar
em Clnica Mdica. Las continua: mas essa conversa foi mesmo muito
boa, pois agora vou procurar o pesquisador e contar minhas horas na
iniciao, tambm fiquei mais tranquila. (Ao final da reunio...) Las se
levanta e parece contente, abraa e beija a tutora, e agradece novamente,
dizendo que foi um encontro muito bom e que ela est bem melhor! (OBS
8)

Joo pergunta a tutora se conhece muitos alunos que passaram na
residncia. A tutora responde que sim: sim, muitos passam aqui, pelo
menos os meus alunos sim, e se no for logo de cara, passaram no
segundo ano, pois no primeiro ano, s vezes, o stress no deixa voc ter
um bom desempenho na prova. Joo faz uma expresso de angustia e
diz: , muito difcil, muito stress. A tutora diz: vida luta que no se
acaba. (OBS 10)

A tutora explica a diferena entre residncias reconhecidas pelo MEC e as
no reconhecidas, fala sobre o sistema de vagas e bolsas obrigatrias
segundo a Lei de 1981, e discute a diferena nos diplomas entre as
residncias remuneradas e as no remuneradas. Todos prestam muita
ateno, uma verdadeira e til aula aos alunos. (OBS 10)

Os alunos mostravam tambm interesse em saber da especialidade
da prpria tutora e como era a atuao nessa rea. A tutora contou todo seu
trajeto acadmico-profissional at chegar aos dias de hoje, sendo ouvida
68

com interesse e admirao.
Gustavo pergunta: quantos anos a residncia na nefrologia?. A tutora
diz: so quatro anos de residncia. (...) Gustavo diz: deixa eu te
perguntar outra coisa: em que atua a nefrologia?. A tutora d exemplos de
reas onde a nefrologia atua. Ela conta minuciosamente sobre a discusso
entre cardiologistas e nefrologistas a respeito de qual delas deve cuidar da
presso alta: nos anos 40, a cardiologia, no satisfeita em cuidar apenas
do corao, comeou a cuidar da hipertenso. A tutora diz: eu sempre
costumo brincar que quem cuida da presso alta no SUS a nefrologia e,
no consultrio particular e convnios, a cardiologia; tem muita polmica
sobre este assunto e as pessoas falam muitas besteiras. Eu e os alunos
aprendemos muito sobre como cuidar da presso alta neste momento e
quando procurar a nefrologia ou a cardiologia para tanto. Os alunos
escutam atentamente a interessante tutora. (OBS 9)

O Sistema nico de Sade tambm foi tema discutido em reunio,
mobilizando os alunos de todos os anos, por muito tempo. A formao na
FMUSP para atuao do mdico na Ateno Primria, e como esta acontece
atualmente, gerou intensa troca de opinies, fazendo com que a tutora,
inclusive, se preocupasse com o monoplio desse assunto no tempo da
reunio.

A tutora diz: Vou puxar uma briga! Estava aqui num bate papo com a
rika, antes de vocs chegarem e ela me contou que est tendo aulas de
Ateno Primria. E a o que vocs acham da ateno primria? Acham
que vocs devem aprender sobre isso?. O aluno Paulo comenta: eu acho
interessante. A aluna Rosa diz rindo, de forma sarcstica: e continua
ruim?. A tutora pergunta: ento a matria ruim?. Rosa respondeu: o
problema no ateno primria como eles passam as informaes. A
tutora pergunta para o grupo, de maneira enftica: O aluno da Pinheiros
tem ou no tem que aprender Ateno Primria?. Os alunos Rosa, Mirna,
69

Paulo, Mirela dizem que sim. Joo diz achando graa: para prova, sim. A
aluna Mirna diz: acho que temos que saber sobre o sistema. A tutora diz:
h uma vertente na USP que defende que o QI dos alunos daqui no deve
servir Ateno Primria. Mirela diz: acho que no devemos ser
preconceituosos com a Ateno Primria. Rosa diz que o mdico de posto
de sade tem que saber muito de medicina, pois no conta com exames
no momento em que est atendendo. E conta uma experincia na UBS:
eu estava l e o cara chegou com uma queixa de gases, eu no saberia o
que fazer! O mdico tem que saber muito mais de medicina no posto, ele
improvisou e retirou do paciente as informaes que precisava, diferente
daqui que voc conta com vrios exames, eu acho bem legal!. Todos
escutam e concordam. (Muito tempo de discusso depois do mesmo
assunto...) a tutora diz olhando para o aluno do quinto ano: Joo fale um
pouco para ns de voc e do quinto ano, seno ns vamos continuar
falando apenas de Ateno Primria. E a, como esto s coisas?. Joo
diz: as coisas esto melhorando, no v a Ateno Primria? Pelo jeito
melhorou. Rosa comenta enfaticamente num tom alto: eu acho a
proposta da Ateno Primria muito errada e no vou lev-la a srio
enquanto no mudar!. A tutora infelizmente corta o assunto (que est
quente) e ordena: chega de Ateno Primria! Joo qual sua mensagem
para o grupo?. (OBS 10)

Embora com crticas em relao ao ensino da Ateno Primria, a
reao positiva da maioria dos alunos do grupo ao aprendizado desse
campo de prtica mdica refora estudos em que estudantes de Medicina
referem que experincias nessa rea contribuem favoravelmente para a
formao mdica, dando oportunidade de conhecer a realidade do sistema
de sade, um contato mais prximo com a populao, nova percepo do
processo sade-doena, conhecimento e integrao com a equipe de sade
e compreenso dos princpios da Sade da Famlia (Massote et al., 2011;
Campos; Foster, 2008).
70

- Os velhos tempos
A tutora apreciava e era apreciada quando contava suas prprias
histrias quando aluna, histrias da faculdade ou da Medicina, verdadeiras
aulas de conhecimento histrico, deixando os alunos muito impressionados
e surpresos com o que ouviam:
fui costureira na minha poca... , ganhei o premio Oswaldo Cruz...(OBS
9), A ditadura exigiu que fossem criados departamentos nas universidades
para que no houvesse unidade que proporcionasse o dilogo e a troca de
ideias(OBS 9).

A tutora comentava ter sido festeira na sua poca de estudante e,
certa vez, convidou seus tutorados para uma festa de reunio dos 30 anos
de formados de sua turma na FMUSP.
Valorizava o passado da faculdade e mostrava-se como uma
espcie de enciclopdia viva, que a todos entusiasmava: a vida de
Florence Nightingale, o anel de Arnaldo Vieira de Carvalho, os tempos
sombrios da ditadura militar, a formao dos LIMS, o Centro Acadmico e a
reativao do Poro, foram algumas dessas histrias, especialmente
relatadas num dia de tutoria conjunta:
A tutora fala longamente sobre como era o CAOC (Centro Acadmico
Osvaldo Cruz), fala dos tensos anos de ditadura, da impossibilidade de
encontros entre os alunos sem que houvesse preocupao. Os alunos
escutam muito atentos, o assunto mesmo muito interessante, e a
maneira como ela conta, muito vvida e empolgante: foi uma fase difcil,
sabamos de pessoas que sumiam de uma hora para outra, gosto de falar
dos anos de militarismo, das greves! Pois atravs das greves muitas
pessoas se uniram e tornaram-se amigos para sempre. O outro tutor, Dr.
Antnio, d continuidade ao assunto: naquela poca existia uma
71

convivncia muito grande entre os alunos, um intenso relacionamento
humano, apesar da dificuldade imposta pela ditadura! A Atltica, por
exemplo, sempre existiu, fui diretor, tesoureiro, ela no me impediu de
fazer poltica e nem de ser perseguido, era uma poca em que havia
assembleia todos os dias. Todos escutam e ningum fala nada, parecem
hipnotizados. (OBS 2)

A tutora questiona os alunos sobre a suspenso das aulas devido gripe
suna (...). A tutora diz: eu acho que esta gripe veio nos ensinar sobre as
nossas posturas, a nossa higiene, nossos hbitos! Todos parecem
surpresos com a sacada da tutora, mas concordam. Gustavo tira dvidas
com a tutora sobre o lcool em gel em comparao com a gua e sabo. A
tutora fala dos princpios da higienizao, pergunta a eles se eles sabem
quando isto comeou, e apenas Mirna comenta de mdicos que no
lavavam as mos em determinado sculo. A tutora conta sobre Florence
Nightingale, me da enfermagem, que comeou o movimento de um
melhor tratamento aos pacientes, na poca da guerra. Conta sobre os
mdicos que passavam formol nas mos e sobre o surgimento das luvas
de plstico. E diz que a medicina evoluiu e evolui por vrios motivos. Os
alunos e eu aproveitamos muito desta aula, foi muito interessante e a
maneira entusiasmada como ela conta torna o momento divertido. (OBS 5)

A tutora deu uma verdadeira aula de histria sobre a Faculdade de
Medicina e o Edifcio Central da Faculdade. Falou da poca da ditadura
(que ela adora contar) e da luta de determinadas pessoas para que o
prdio central no fosse ocupado pela policia: eles queriam que a
medicina mudasse para a cidade universitria. A cidade universitria foi
erguida s pressas, vocs j perceberam os aspectos geogrficos de l?
tudo separado e distante, no foi toa, foi por causa da ditadura, eles no
queriam que as pessoas se reunissem e conversassem, at hoje no h
um centro de convivncia l!. Os alunos se espantam e nem piscam. (...)
Gustavo aparenta satisfao com a explicao da tutora e diz: eu nem
imaginava. A tutorada Mirna tambm est impactada com a histria e diz:
como so as coisas!. (OBS 9)

72

Os alunos admiravam-na e valorizavam esses momentos nosso
grupo melhor..., gosto que a tutora conta de sua poca... (OBS 9).
- A prpria Tutoria
Muitas vezes a tutora falou sobre a prpria tutoria, levantando a
bandeira da atividade. Ela sempre pontuava sobre seus benefcios, entre
eles a melhora do ensino, e, assim, de certa forma, educava os alunos
sobre os propsitos e possibilidades da atividade e do papel do tutor.
A tutora, neste momento, fala a favor da tutoria: a tutoria democratiza a
possibilidade que o aluno tem de ligar-se a um professor, nada aqui
imposto! E vocs podem ou no ter afinidades comigo. (OBS 1)

E a tutora continua falando, agora, da tutoria: por isso tambm sou f de
carteirinha da tutoria, o militarismo fez com que o espao de trocas de
idias entre os alunos se perdesse, o contato entre os professores foi
diludo, e hoje em dia nenhum aluno pode dizer que no tem oportunidade
de conhecer o sistema. Ela fala na sequencia sobre o papel do tutor: veja
bem, ns como tutores temos um papel, eu no sou colega de balada e
no estou aqui para ficar bem no filme. Ela continua: ns somos um
ponto de referencia para vocs, e a tutoria uma idia muito antiga e
agora est acontecendo! (OBS 2)

Os alunos manifestavam seu contentamento com a tutoria, com a
tutora e o grupo, diziam aprender com os demais, ampliavam suas relaes
de confiana. Mas tambm ressaltavam que a rotina do curso no favorecia
o comparecimento deles tutoria, reclamavam que algumas disciplinas e
professores no os liberavam para a atividade. Em especial, os alunos de
internato se mostravam divididos entre a prtica mdica, no hospital, e os
encontros, especialmente porque muitos chefes ou preceptores no os
73

liberavam para a tutoria. Entretanto, mesmo com essas dificuldades, alguns
internos eram frequentes nas reunies, mostrando assim que o desejo em
participar existe entre os alunos dessa fase do curso, mesmo com os
impedimentos.
Esse assunto gerou discusso entre os alunos mais velhos. Todos
estavam de acordo com a falta de tempo e a dificuldade em serem
liberados: existem pessoas que liberam numa boa, mas tm outras que
dificultam sua presena na tutoria, eu gostaria de ser dispensada sem
constrangimento. A aluna continua: eu gosto muito da tutoria e acho que
os horrios deveriam ser melhor distribudos, est havendo aula e visitas
neste perodo, gostaria muito de vir sem ter que abandonar as visitas. O
quintoanista do grupo da tutora comenta, reforando sua identificao com
essa questo: hoje mesmo comuniquei aos residentes que no passaria a
visita para poder vir reunio, mesmo porque no vim em muitas este ano
e esta a ltima do ano e eu no poderia faltar (ele acreditava ser esta a
ltima do ano). (OBS 7)

O final da reunio, corredor a fora
A dinmica do grupo, ao longo do tempo de reunio, seguia um
curso de comeo, meio e fim. Iniciava-se, geralmente, morna, aquecia-se,
atingia um pice e, ao final, apesar do cansao dos membros, era sempre
entusiasmada.
Os alunos saiam juntos, conversando, literalmente, corredor a fora.
Algumas vezes, ficavam at mais tempo, para conversar com sua tutora
reservadamente.
O tempo do encontro est acabando e a tutora est com movimentos de
finalizao, como tampar sua caneta, arrumar suas anotaes. Mas os
alunos ainda esto muito envolvidos na reunio. Rosa volta a falar
espontaneamente, sobre vrios assuntos para os calouros: este ano fiz
74

vrias atividades, academia, e d tempo para fazer tudo: ingls, francs,
alemo. (...) A tutora diz: Nossa a reunio j estava animada hoje!. (...)
Os alunos voltam a falar sobre professores dos primeiros anos, o papo
est animado e no param de falar, parecem resistir ao trmino da reunio.
A tutora se levanta, encerrando a reunio, e despedindo-se de todos com
beijinhos, todos se despedem com beijinhos em todos, inclusive eu. Os
alunos continuam a falar e saem falando corredor afora. Eu aguardo todos
sarem, fico um minuto a ss com a tutora e comento o entusiasmo dos
alunos. Ela sorri feliz e concorda. (OBS 5)

J so 12h05 e todos esto motivados ouvindo Rosa falar. Mas a tutora
est impaciente e diz: bem, queridos, tenho que terminar por motivo de
reunio, eu tenho uma reunio agora e preciso ir. (...) Ela est apressada
e junta seus papeis. Rosa diz: eu vou voltar aqui para agente conversar,
preciso reclamar mais. A tutora diz: isso, volte, e ns vemos o que pode
ser feito no seu caso, podemos discutir sobre possibilidades. Os alunos
escutam. E fazem uma expresso pensativa. Os tutorados saem da sala e
continuam falando corredor afora. (OBS 6)












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Os estados mentais do grupo

Um grupo de trabalho
Considerando-se o principal objetivo da Tutoria o compartilhamento
de experincias entre tutor e alunos, pode-se dizer, numa anlise segundo o
referencial bioniano, que o grupo observado manteve-se predominantemente
num estado evoludo, isto , numa relao cooperativa, funcionando como
um grupo de trabalho. Ele trabalhava e se organizava voltado,
predominantemente, para os aspectos conscientes da tarefa a que se
propunha realizar.
Esse funcionamento evoludo do grupo de tutoria, com envolvimento
individual e cooperao coletiva, era reconhecido e valorizado pela tutora
que disse certa vez, empolgada com o desenvolvimento da atividade:
Eu estou adorando! Vocs esto muito entrosados e falando muito hoje! E
olha que eu nem precisei usar o Bom para Tutor! Na verdade no o
usamos muito nos nossos encontros! No so necessrios, vocs j tem
muito assunto!. (OBS 3)

Em outra ocasio, ao receber uma mensagem de uma aluna, ela
comentou:
a Mirna me mandou um e-mail, ela no pode vir, pois est com um
problema de sade, vou at coloc-lo no relatrio, foi um e-mail muito
legal, escreveu que aproveitou muito a tutoria, aprendeu muito neste
espao e que foi um lugar de importncia para que ela aprendesse mais
sobre a faculdade e conhecer mais pessoas. Ela agradeceu a mim e a todo
o grupo, isso inclui voc, Fabiana, e por isso estou lhe contando isso
(neste momento me senti muito feliz e valorizada pela tutora me considerar
como parte do grupo). (OBS 8)
76


Os alunos tambm reconheciam o bom funcionamento do grupo:
Las diz agora sempre que posso venho e gosto de vir. Gustavo comenta
que tambm gosta e acredita que o vinculo para este grupo de tutoria est
bom: eu gosto desse grupo, para mim ele est muito bom! acho que o
vinculo est legal e pretendo continuar aqui!. O resto do grupo comenta
que conhecem pessoas que no gostam de seus grupos de tutoria e
concordam com Gustavo em relao ao grupo da tutora Anita. (OBS 3)

Gustavo comenta que a tutoria passada foi muito boa: falamos um monte
sobre a faculdade! Rosa complementa: Foi muito boa mesmo!. (OBS 6)

Para esse estado mental do grupo, colaboravam muito a motivao
e as intervenes da tutora, assim como as dos prprios alunos,
especialmente os veteranos.
A tutora, particularmente, contava com um repertrio de
caractersticas, suas habilidades refinadas, associadas ao pensar, ao
sentir, ao acolher e ao perceber o outro, o que favorecia muito o
funcionamento em cooperao do grupo. Em relao ao pensar, ela o fazia
com sofisticao, estabelecendo relaes e analogias importantes e
interessantes entre os diferentes temas discutidos. Essa sua habilidade em
costurar e estabelecer pontes era manifestada tambm no sentido de
ligar os membros do grupo entre si (as pessoas) e ao objetivo da reunio (a
tutoria). Ela era hbil em manejar o grupo, no perdendo o foco durante as
discusses e, muitas vezes, retornando ao tema inicial da reunio, para
resgatar e alinhavar idias:

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Aps essa explicao, a tutora no perde o foco sobre o que Mirna estava
falando, e, volta a falar sobre o tema do incio da reunio a integrao da
turma, a importncia deles se unirem e festejarem e, de como hoje em dia,
as pessoas esto individualistas. (OBS 6)

Alm disso, e no mesmo sentido do estabelecer ligaes, a tutora
se preocupava sempre em manter todos a par do teor das discusses,
mesmo com os diferentes momentos de chegada dos alunos reunio.
Quando um membro do grupo chegava atrasado ela fazia questo de relatar
o que havia sido trabalhado at ento:
A tutora conta aos recm-chegados sobre o que estavam falando, no caso
a formao do cirurgio nos dias de hoje. (OBS 9)

A tutora funcionava tambm como educadora, no sentido amplo da
palavra, ressaltando aspectos, especialmente da prtica, que os alunos
deveriam considerar:
... outra coisa ainda mais importante, nunca comentar de pacientes sem
reparar muito bem no ambiente que est em volta de voc! Pois pode
haver um parente por perto, e at mesmo com o paciente, vocs devem
ser muito cuidadosos na maneira como se fala. (OBS 3)

Em relao ao sentir e acolher, a tutora era hbil tambm em aplacar
angstias que surgiam, acolhendo e tranquilizando seus alunos, em relao
ao futuro, vocs no precisam ficar preocupados, a hora de vocs vai
chegar, vocs sentiro um click e sabero que so mdicos, isso acontece
mais hora menos hora, cada um ter o seu click sem ansiedade, (OBS 10),
assim como em encoraj-los frente a situaes difceis: vida luta que no
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acaba. (OBS 10).
Ela estimulava seus alunos a seguir em frente, valendo-se de sua
experincia e sabedoria para auxili-los, em profundidade, sem nunca
engan-los quanto aos esforos necessrios para atingir seus objetivos:a
entrevista a hora de voc dar vida ao seu currculo, se voc no der vida
ao seu currculo, de nada serve. (OBS 7)
Era uma tutora afetuosa, beijava e abraava os alunos, no
deixando de explicitar, inclusive, suas preferncias: nossa! A reunio j
estava animada hoje, da chegou a minha estrela! (OBS 5) ou essa das
minhas (OBS 7). Alm disso, ela se mostrava sempre bastante disponvel
aos alunos, dizendo, por exemplo: quem quer meu telefone e e-mail? (OBS
10) e, por que no deu uma passadinha aqui para conversarmos?. (OBS 5)
Em relao ao perceber o outro, a tutora reconhecia o
desenvolvimento de seus tutorados ao longo do tempo e compartilhava essa
percepo com todo o grupo: ele que era um garoto tmido no comeo, mas
melhorou muito da sua timidez (OBS 8) e voc era atletiqueira e at
chamava os alunos para ir Atltica na hora da tutoria, mas esse ano
percebo que veio bastante tutoria e amadureceu (OBS 8).Percebia
tambm afinidades entre seus alunos e com isso buscava aproxim-los,
porm deixando-os vontade para estabelecer ligaes: Mirela lembra
muito a Las quando Las chegou tutoria no primeiro ano. (OBS 10)
Os alunos, por sua vez, relacionavam-se em sintonia com as
habilidades de sua tutora, colocando em prtica suas prprias habilidades
refinadas de pensamento e capacidade simblica. Os alunos se permitiam
79

viver a atividade, deixavam-se acolher e tambm acolhiam, eram
interessados, participativos e curiosos. Na maioria das vezes aproveitavam o
espao para tirar dvidas, exercitavam a troca de idias, a escuta e a
reflexo, expandindo seu repertrio de vivencias e saberes.
Era um grupo generoso em compartilhar e grato ao reconhecer o
valor da atividade e de sua tutora:
Depois chega a vez do quintoanista da tutora. Repetiu algumas falas
anteriores, como a retirada da visita para vir a este encontro (...) e disse
considerar a tutoria muito boa: gosto muito de ouvir a tutora falar das
experincias dela quando estava na faculdade, algo que ela sempre faz, e
depois v-la como est hoje. Como na experincia que contou da festa de
seus colegas, de encontr-los e v-los depois de tanto tempo, de se
reunirem. Eu considero isto fundamental, pois para mim serve como
incentivo para eu continuar meu caminho. O outro tutor diz: como uma luz
no final do tnel, um alento. O aluno concorda. O momento foi muito
emocionante, achei muito bonito o que ele falou e mais ainda a maneira
como foi dito. Prestando ateno no silencio, e na expresso dos
tutorados, percebi que ouviam atentamente e que a palavra do mais velho
tem muito peso. (OBS 7)

Aos veteranos, como se pode perceber neste ltimo trecho
ilustrativo, era conferido um lugar de destaque, eles funcionavam como um
protagonista do grupo movimentando-o no sentido do trabalho cooperativo.
Os alunos mais experientes eram sempre muito requisitados e valorizados,
no apenas pelos mais novos, como tambm pela tutora, para darem suas
opinies e sugestes, dada sua maior e atual vivncia da prtica mdica no
internato.

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Os Supostos Bsicos no grupo
Embora o grupo funcionasse predominantemente como um grupo
de trabalho, seu funcionamento evoludo era por vezes ameaado pelos
supostos bsicos que emergiam ou alternavam-se por variados perodos de
tempo.
Frente a alguns temas e situaes, momentos de angstia tambm
estiveram presentes no grupo. Nesses momentos, o grupo funcionava de
forma mais regredida. Alguns membros funcionavam como lideres a serem
seguidos (dependncia), pares se formavam (acasalamento), ou mesmo,
movimentos de luta e evaso precipitavam-se sem, entretanto, instalarem-se
ou desenvolverem-se a ponto de ameaar o funcionamento cooperativo. Na
maioria das vezes, apresentavam-se combinados, com maior prevalncia de
um ou de outro dependendo da ocasio.

- Dependncia
O suposto bsico da dependncia, aquele em que o grupo espera
por um salvador, ou exige um lder carismtico que prometa atender suas
necessidades, apareceu, de forma sutil, nos encontros observados.
A tutora, admirada por sua experincia e conhecimento, por vezes
era investida pelos alunos de certa autoridade, ocupando o lugar de lder a
ser seguido ou obedecido. Em certas ocasies observei movimentos como:
todos olham para a tutora e parecem buscar sua aprovao (OBS 6),Mirna
apoia-se no que sua tutora falou para responder-lhe (OBS 6), ou ainda os
alunos escutam atentamente e parecem, de fato muito interessados na sua
81

tutora (OBS 9).
Os veteranos, muitas vezes, tambm ocupavam esse lugar de lder,
como por exemplo: Os calouros esto muito atentos e concentrados em
tudo o que Las fala, diria que esto hipnotizados e concordando com tudo o
que ela diz! (OBS 9)
Mas, apesar da admirao dos alunos pela tutora e da grande
importncia dada pelos mais novos aos veteranos, nem ela, nem esses,
ameaaram o funcionamento cooperativo do grupo. A tutora era responsvel
pelo seu grupo e o comandava, mas facilmente despia-se do papel de lder
a ser seguida e deixava seus alunos vontade, para investirem, por si
mesmos, nas atividades de reflexo:
Agora chega de eu falar! a vez de vocs falarem! [...] Eu falei uns 20
minutos, mas achei importante para que vocs entendam. (OBS 9)

- Acasalamento
Outro suposto bsico, por vezes presente no grupo, era o de
acasalamento, isto , com formao de subgrupos e excluso dos demais.
Em algumas ocasies, a tutora fechou-se em dupla com alguns de
seus alunos preferidos, levando algum tempo at ela abrir a discusso para
o restante do grupo. Nesses momentos, o restante do grupo assistia calado,
com certa inibio. Posteriormente, at chegavam a comentar com a tutora
aquela aluna que sua amiga... (OBS 6)
Percebendo esse movimento, registrei em minhas anotaes:
A tutora diz olhando para Rosa: A nossa a reunio j estava animada
hoje, da chegou a minha estrela! A tutora anuncia sua preferncia e
afinidade por Rosa e, de fato, fica mais animada quando ela chega.
82

Lembrando que Rosa tambm fez iniciao cientfica com a Dra. Anita.
(OBS 5)

Dra. Anita espera todas se acomodarem e olhando para Vitria pergunta:
Vitria, como est voc?!. Vitria comenta que est tudo caminhando,
mas que teve problemas de sade recentemente. Ela e a tutora conversam
por um tempo com exclusividade, (fechadas em dupla, uma de frente para
a outra), deixando os outros de lado, que ficam em silencio ouvindo a
conversa de fora. Pouco a pouco foram abrindo a conversa para o resto do
grupo, que foi se aquecendo. (OBS 1)

Outras parcerias tambm aconteciam, como as estabelecidas entre
os internos ou dos calouros entre si. Por vezes, alguns casais de alunos se
juntavam no silncio ou conversavam entre si, num tom mais baixo.
Observei tambm, uma forma interessante de acasalamento,
ocorrida numa das duas tutorias conjuntas. A tutora e seu par (Dr. Antnio)
haviam sido colegas de faculdade, contemporneos, numa poca muito
polmica, a ditadura militar, havendo entre eles forte afinidade:
Com a sala arrumada, os tutores sentam-se de frente ao grupo. Eles esto
sentados um ao lado do outro e muito sorridentes, parecem estar felizes
pela parceria. (...) Dra. Anita conta ter sido caloura de Dr. Antonio e
comenta terem enfrentado a poca da ditadura na universidade. Ela
comea a falar do regime militar, das greves na faculdade e dos alunos
que foram presos naquela poca. Os dois falam sobre o assunto e contam
sobre a base que o exrcito montou na universidade. Dr. Antonio
interrompe, de maneira delicada, e continua sua apresentao pessoal,
contando da importncia de sua experincia como mdico no exterior e de
sua atuao nos dias de hoje. Os alunos esto muito atentos e neste
momento recebendo as informaes dos tutores. Dra. Anita apresenta-se
logo em seguida, fala de sua especialidade, fica contente ao contar que
tambm considerou muito importante sua experincia como mdica no
exterior assim como o Dr. Antonio, compartilhando com ele da mesma
83

opinio - eles sorriem um para o outro e esto em sintonia. (OBS 2)

- Luta e fuga
O suposto bsico de luta e fuga, em que o grupo se une para
enfrentar um suposto inimigo ameaador, seja este uma pessoa, uma idia
ou um trabalho, foi aquele que se fez presente em maior frequncia e
intensidade no grupo de tutoria.
Esse funcionamento pde ser observado nos momentos em que os
alunos, mostravam ter opinies contrrias s de sua tutora ou, ainda,
quando o grupo como um todo, evitava determinada ideia ou tema que
geravam angstias.
Um episdio bastante ilustrativo foi quando um colega dos alunos
(mas no membro do grupo de tutoria) adoeceu gravemente.
Os alunos respondem que acabaram de chegar de frias e que receberam
a noticia que um colega de turma est doente (...). Dra. Anita: Nossa,
mesmo?! E vocs sabem do estado dele?. Mirna responde: eu no sei
muito bem, pois no somos muito prximos, o pessoal enviou alguns e-
mails sobre o que estava acontecendo com ele, sei que ele est na UTI, e
inconsciente., e olha para baixo (...). Os alunos esto abatidos. Parece at
que no acreditam em todas essas noticias. E como pode um colega
estudante de medicina vir a ser um paciente? (os alunos continuam a falar
do assunto por um bom tempo). Dra. Anita: bom, j que no chegou mais
ningum at agora, eu acho que o ponto que temos aqui o
desconhecido, no ? E que devemos estar preparados para o
desconhecido! Os alunos se calam, eles esto abatidos e parecem
responder atravs do silncio que o desconhecido no bem vindo e gera
medo! Fico com pena deles, pensando em todo as angustias que esto por
vir nessa jornada da vida medica, a sorte que penso nas alegrias que
eles iro ter tambm. (OBS 5)

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Na reunio seguinte, esse assunto foi retomado pela tutora, que
questionou os alunos, de maneira enftica e firme, sobre a ausncia de
notcias sobre o colega e o que isso mostrava a respeito da unio e
companheirismo entre eles.
Dra. Anita retoma o assunto da tutoria passada sobre o calouro doente: e
o colega de vocs, como est? Gustavo diz eu no tenho noticias muito
recentes dele, sei que ele perdeu os dedos dos ps, t mal informada. Os
alunos fazem silncio. Todos esto silenciosos e olhando para baixo e
depois entre si. Dra. Anita: ento vocs no sabem sobre ele? Mas, como
assim no sabem? (...) A tutora: mas vocs no foram visit-lo?! (...) Eu
sinto que todos esto perdidos e que a tutora no est conseguindo
alinhavar a situao criando um clima de desconforto. Os tutorados esto
sentados eretos com olhos abertos e tensos, parecem querer sair
correndo. (OBS 6)

Importante dizer que, em geral, nos momentos de tenso e
questionamento, os alunos evitavam entrar em discordncia direta e franca
com a tutora, optando por fugir das situaes de confronto. Esse movimento
se fazia especialmente presente quando a tutora se manifestava insatisfeita
em relao a situaes ou a comportamentos adotados pelos alunos como,
por exemplo, faltas e atrasos s reunies, no resposta a comunicaes por
e-mail e relao com a comida durante a tutoria, entre outros. A angstia no
grupo, nesses momentos, era intensificada quando a tutora forava os
alunos a se posicionarem e aplicava lies de moral.
Havia, em geral, certa obedincia na maneira como se
relacionavam com ela e essa atitude do grupo pode ser entendida como a
manifestao do suposto bsico de dependncia descrito anteriormente.
Nesses momentos, fuga e dependncia se apresentavam
85

concomitantemente, seja na forma de angustiantes silncios no grupo ou na
apresentao de respostas baseadas naquilo que imaginavam ser o que a
tutora queria ouvir.
Houve ainda momentos de fuga devido a alguns constrangimentos
no manejo da tutora de certas situaes, como ao fazer a apresentao de
uma caloura, nomeando-a por nipnica pelo fato de ser japonesa. Ou
tambm o desconcerto de um calouro, sentindo-se invadido pela tutora
quando essa, sem muito cuidado, questionou o grupo sobre qual deveria ser
o posicionamento do aluno frente escolha de sua especialidade mdica,
uma vez que seu pai gostaria que ele fizesse Cirurgia.
A tutora interrompe o assunto para receb-los, ela apresenta Rosa s
novas alunas dizendo: essa a rika, ela bem nipnica. rika olha para
tutora e para todos com uma expresso deslocada parecendo querer dizer:
eu no acredito no que estou ouvindo. Em sua timidez, suas
sobrancelhas se contraem e ela d uma bufada contida e desgostosa.
(OBS 10)

Se, nos momentos de tenso, a fuga predominava entre os alunos,
havia, por parte de uma aluna, em especial, uma exceo, em direo ao
movimento de luta.
Rosa no se intimidava pela maneira firme de ser da tutora,
enfrentando-a com seus prprios posicionamentos, no tinha medo de entrar
em desacordo com sua tutora. De uma maneira muito interessante, era
justamente essa exceo, a aluna que optava pela luta, que acabava
gerando discusses muito interessantes e mostrava ao grupo, com o passar
do tempo, que as divergncias de pensamentos tambm eram possveis,
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sem maiores danos.
Houve alguns encontros onde percebi ser esta aluna uma espcie
de porta voz das insatisfaes grupais. O grupo, quando no se sentia
amedrontado pelas calorosas discusses entre ela e a tutora, ficando quieto
e assustado, por vezes expressava estar gostando das investidas de luta
de Rosa. De alguma forma, seus argumentos de luta, que tiravam o grupo
de um funcionamento tranquilo de trabalho, tambm o movimentava,
aquecendo e apimentando o encontro.
A tutora pergunta o que eles acharam da tutoria conjunta e eles
respondem, de forma geral, que gostaram. Rosa, que hoje sentou em um
canto, e causou em mim a impresso de estar se escondendo, diz: ainda
acho que podia ter tido um lanche!. A tutora diz: Doutora Rosa, eu sou a
favor da tutoria por amor e no por comida! A Srta. j sabe disso! Acho que
no deve haver comida na tutoria, ns estamos aqui para conversar e
trocar e no para comer! E no hora para comer, vocs vo comer
quando saem daqui, vo almoar! E, se vocs comem aqui prejudicam o
almoo!. Rosa responde: , tudo bem, mas tem vrios grupos que eu sei
que comem!. A tutora responde: sei, tem sim, e cada tutor determina o
que considera melhor para o seu grupo: eu no acho legal! E, outra coisa,
acho que isso deveria ser algo trabalhado em tutoria, pois um tal de
comer no hospital e comer na sala de aula! Isto tem haver com o
comportamento de vocs. O assunto mobiliza e gera um zumzumzum no
grupo e por um breve perodo, os tutorados falam ao mesmo tempo em
tom mediano. Falam sobre comer em sala de aula. Gustavo diz: no
podemos comer em sala de aula, no permitido!. Rosa diz: alguns
comem e so questionados e os professores pedem para parar. A tutora
diz: sim, as salas de aula estavam ficando uma sujeira! E sala de aula no
local para comer!. [...] Rosa contesta e continua em tom forte: a
professora tendenciosa!. Rosa est irritada e com uma cara feia: sei
que h gente que exagera, eu mesma j comi em sala de aula, mas agora
no como mais, e h professores que comem tambm!. A tutora
responde: os tutores tm posturas diferentes! E como eu disse, eu no
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acho legal!. Todos escutem a calorosa discusso entre tutora e tutorada e
eu em particular gosto de assistir percebendo que h espao para
discusses quentes no grupo! Mas os demais esto com expresses de
angstia, testas franzidas, bocas torcidas, ombros contrados, eretos em
suas cadeiras! (OBS 3)
Rosa est agitada em sua cadeira e com uma expresso irritada. Ela
comea a falar de sua experincia com as aulas prticas, (o tom de
irritao em sua voz e no contedo persiste): estou passando raiva nas
minhas aulas prticas! insuportvel, so muitas pessoas para apenas um
professor. A tutora corta e diz afirmando: mas voc est falando de um
caso especifico! Nem todas as aulas prticas so assim. Rosa diz: ah,
so sim! muita gente e os professores passam raiva!. A tutora
responde:professor no passa raiva!. Rosa replica: professor no passa
raiva?! Passam sim, todos passam! um bando de gente para um
professor! Os alunos no conseguem ver direito, todos se aglomeram
insuportvel, da tem aqueles que conversam e no deixam ningum
escutar, uma zona!. (OBS 3)

Em nenhum momento, entretanto, mesmo com maior presena de
angstia, o grupo chegou a se paralisar, permanecendo num estado mais
regredido.
Havia sempre algo, ou algum, que salvava, o grupo de um estado
de total regresso. Isso se dava pela mudana de assunto, proposta por
algum do grupo, pela chegada de um novo membro, ou ainda habilidade da
tutora em dar continuidade discusso. Essas intervenes mudavam a
dinmica do grupo, interrompiam os supostos bsicos regredidos e o
funcionamento cooperativo de trabalho voltava a acontecer. Muitas vezes me
surpreendi com a capacidade do grupo em sair vivo e funcionando bem de
situaes bastante angustiantes:

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So 11h45 e penso que nem senti o tempo passar. E que embora a tutoria
ter tido momentos de discusso tensa o clima agora est harmonioso e
acolhedor. (OBS 3)

Aps longo desconforto chega a aluna do quinto ano Las, que com seu
sorriso e simpatia sempre leva ao grupo um sentimento de bem estar e
leveza, ela pede licena para entrar, e a tutora conta a ela sobre o que
esto conversando. Depois a tutora diz: Las explique para eles a
dinmica do internato! A pergunta faz os alunos se arrumarem em suas
cadeiras, e se inclinarem ainda mais para frente. O grupo perdeu todo o
mal estar sentido no momento inicial do encontro. (...) Las conta, longa e
calmamente: bom, voc pe em prtica tudo o que aprendeu. O residente
te ajuda e tira suas dvidas, muito legal. Discutimos os casos clnicos,
tm os assistentes, voc faz visitas. Todos os dias voc tem obrigaes,
voc tem que examinar os pacientes, tem os plantes. Da nos plantes
tem as especificidades de cada um. s vezes na enfermaria, voc tem que
internar ou dispensar, pedir exames... Eu sinto que, aps a angstia vivida
pelo grupo, estamos no ponto alto do encontro e a angstia foi vencida.
(OBS 6)


A DEVOLUTIVA AO GRUPO

No dia da devolutiva dos resultados, diferente dos dias de
observao, onde eu passava despercebida, senti o grupo agitado e curioso
para ouvir o que tinha a dizer, e, eu mesma, estava bastante ansiosa para
comear.
Embora tivesse se passado um longo tempo desde a ltima
observao senti proximidade com o grupo e um afeto genuno entre ns.
Senti tambm um alivio e creio que no era somente meu, pelo fato de ter
89

cumprido a etapa final das observaes. Percebi alivio vindo tambm do
grupo, talvez pelo fato de que minha presena ali, neste momento, servisse
para validar os encontros em que estivemos juntos, desmistificando minha
presena, outrora silenciosa.
O tempo parecia no haver passado, como se a ltima observao
tivesse sido feita no dia anterior. Ao mesmo tempo, a passagem dos meses
e seu efeito, causou-me espanto: a expresso facial dos calouros da poca
da observao no era to fresca quanto antes, assinalava palidez e
cansao, e, a fisionomia dos j veteranos demonstrava o quanto haviam
amadurecido, perdendo aquele aspecto arredondado da adolescncia,
sinalizando assim uma maior proximidade com a vida adulta. Igualmente
surpreso com o tempo, ficou o grupo ao me encontrar grvida e barriguda,
o que gerou interesse sobre o tempo de gravidez em que me encontrava e o
sexo do bebe.
Tal como nos demais encontros, aguardamos alguns minutos para
que todo o grupo chegasse e, durante este tempo, conversamos sobre o
atual ano acadmico de cada um, conversa essa permeada pela sensao
de como o tempo passou rpido. Mirna disse: j estou no segundo ano,
indo para o terceiro. Nossa! Como o tempo passa!. O grupo, nesse
momento, trocou olhares, confirmando essa realidade e pareciam surpresos,
e at mesmo assustados, em suas expresses faciais.
Tambm como um tpico encontro de tutoria observado, no foi este
um encontro numeroso, mas havia calouros e veteranos, alunos com alta e
baixa frequncia na atividade.
90

Preparei a devolutiva segundo o roteiro de observao e apesar
dessa padronizao, o encontro, tal como idealizei, teve uma dinmica
flexvel e fluda: os alunos interagiram verbal e fisicamente com o relato e
nele, para meu contentamento, se reconheceram. Priorizei os aspectos mais
aparentes, frequentes e interessantes do grupo e no deixei de pontuar,
embora com delicadeza, os momentos difceis atravessados por eles.
Comecei pelo espao fsico, dizendo que seu aspecto apertado e
pouco confortvel, onde nem todos os alunos conseguiam manter o contato
visual, no servia de empecilho para que o espao subjetivo da relao
acontecesse. Ou seja: embora no fosse um espao fsico ideal, o encontro
acontecia em toda a sua complexidade.
O grupo, neste momento, olhou para o espao fsico, houve certo
alvoroo e produo de falas de constatao sobre essa realidade, como se,
at ento, no tivessem se dado conta desse aspecto. A tutora, ela mesma,
olhou ao seu redor, dizendo: No que , mesmo?!. Esse primeiro
apontamento aqueceu o grupo, deixando-o interessado para o que viria a
seguir. Alm de comentarem sobre o espao fsico, a postura dos alunos nas
cadeiras mostrava posio de ateno.
Comentei em seguida sobre as chegadas e as sadas dos alunos
nas reunies, dizendo a eles que essas pareciam refletir o pouco tempo que
o curso dava a eles para atender todas as suas necessidades. Nesse
sentido, disse a eles que, neste contexto, a participao deles parecia
apontar uma clara necessidade em estar ali, na tutoria, para ouvir e/ou falar
sobre algo. Em outras palavras, quando havia demanda, havia presena.
91

Assinalei que a tutora, atenta movimentao grupal, muitas vezes
assinala ao grupo e verbalizava sua insatisfao com as faltas e os atrasos,
buscando, algumas vezes, motivos para justificar tais comportamentos.
Apesar disso, demonstrava-se sempre aberta, recebendo-os com satisfao.
Os alunos, nesse momento, se entreolharam, olharam para a tutora e
concordaram balanando a cabea positivamente. A tutora, de bom humor,
completou: a gente sempre quer que todos venham! Tem aluno que nunca
veio e anuncia ser contra tutoria! Tem a Rosa sempre atrasada! (olhando
para a aluna). Risadas no grupo. A aluna em questo ento respondeu: A
professora pega no meu p declaradamente!. Aproveitei o clima de
descontrao, dizendo: isso foi observado!. O que gerou muitas e mais
risadas no grupo. A tutora, em rplica disse: mas isso porque eu gosto de
voc!. Complementei, aproveitando para dizer que a professora era uma
tutora afetiva, que verbalizava sua identificao ou preferncia por certos
alunos, geralmente os mais falantes ou polmicos! A tutora acenou
positivamente com a cabea, parecendo muito entusiasmada, remexendo-se
na sua cadeira. A descontrao continuou e o grupo todo pareceu adorar,
sorrindo e comentando paralelamente essas observaes.
Sobre o manejo do tempo durante o encontro, disse ao grupo que a
tutora, atenta a essa questo, conduzia a atividade sempre pontualmente.
Disse ainda aos alunos que, por suas caractersticas, e da sua tutora, os
encontros obedeciam a uma ordem fluida de comeo, meio e fim. Disse a
eles que, ao longo do tempo, e na maioria das vezes, tudo parecia ocorrer
naturalmente naquele grupo: eles deixavam que um assunto levasse a outro,
92

ou introduziam novos temas, que eram facilmente aceitos. Faziam ligaes
entre os contedos discutidos no decorrer da atividade e, muitas vezes, eles
terminavam a atividade retornando ao assunto inicial.
Pontuei que, muitas vezes, a chegada de algum veterano, enquanto
o grupo estava em andamento, mudava sua dinmica e alterava seu estado
de nimo: aquecendo-o, polemizando e algumas vezes ajudando-o a sair de
estados de angstia.
Disse ainda que, em alguns encontros, por motivo das angstias
presentes no grupo, cheguei a pensar que o desfecho da atividade no
fosse ser construtivo, e sim iatrognico. Mas, para a minha surpresa, eles
conseguiam dar a volta por cima, e o encontro, alm de continuar fluido,
terminava em clima de descontrao, o que mostrava toda a flexibilidade do
grupo. Nesse momento, ilustrei com o caso do colega doente. Ressaltei a
capacidade do grupo em suportar sentimentos de frustrao e angstia na
ocasio, resultantes dos questionamentos feitos por sua tutora, que no
abria mo de entrar em discordncia com seus alunos, confrontando-os com
assuntos que considerava importantes, como por exemplo, neste caso, a
falta de unio dos alunos do grupo. Disse a eles que, quando isso acontecia,
o grupo, em sua maioria, exceto por Rosa, preferia no confrontar sua tutora
verbalizando suas divergncias apenas em ltimo caso. A aluna Rosa sorriu
e concordou com minha observao.
Coloquei que, em particular, este encontro, em que foi tratado o
assunto do colega doente, foi o mais angustiante para o grupo. Este ficou,
de certo modo, por um tempo, paralisado, no apenas pelos
93

questionamentos de sua tutora, mas pelo fato de um colega do curso, e
futuro mdico, poder vir a ser paciente, mostrando o quanto todos somos
suscetveis a ficar do outro lado: o lado fraco, doente e que necessita de
ajuda. Disse que na poca, foi mencionado pelo grupo que o colega estava
em coma induzido e que talvez tivesse que amputar alguns membros.
Compartilhei com eles minha interpretao de que esta angustiante
constatao pode ter mobilizado no grupo o seguinte questionamento: ser
que meu sonho pode ser amputado?
O grupo pareceu sentir-se muito acolhido neste momento. Ficaram
quietos por um tempo, como se estivessem surpresos, e depois, sorriram
para mim empaticamente, concordando e relembrando a situao. Pareciam
aliviados e, at mesmo, gratos, em suas expresses faciais. Talvez a
lembrana desse material, num segundo momento, estando eles amparados
por uma compreenso psicolgica, tenha possibilitado a elaborao daquela
situao. Mirna, por exemplo, chegou a dizer: no havia pensado nisso, faz
muito sentido! E esse dia foi tenso mesmo, essa situao dele foi horrvel!
Impressionante como tudo captado.... Rosa completou: foi assim mesmo,
no escapa nada!.
A tutora, nesse momento, mostrou-se sria e surpresa com a minha
interpretao. Acenou positivamente com a cabea, dizendo: Pois ,
podemos sim ficar do outro lado da moeda, todos ns. Continuou: Nem
sempre a tutoria para agradar. Faz parte do nosso papel, tem coisas que
temos que dizer e contestar, chacoalhar vocs!. Complementei dizendo que
foi interessante observar que, apesar de nem sempre concordarem, o grupo
94

aceitava as diversidades e continuava a existir. A tutora pareceu satisfeita e
surpresa com a minha capacidade de observao: simultaneamente torceu a
boca para baixo, acenou positivamente com a cabea e arregalou os olhos.
Neste momento, aproveitei para dizer que, de certo modo, ao longo
do tempo, os calouros, ao observar a relao que a tutora estabelecia com
seus alunos veteranos, principalmente com a Rosa, puderam se familiarizar
com o estilo da tutora e esta proposta de que ela no estava ali somente
para agradar ou concordar com seus alunos e vice-versa. Disse aos
calouros que eles,no principio, pareciam amedrontados com este estilo, mas
depois entenderam que havia espao para discusses polemicas e
acaloradas, sem maiores danos integridade de cada um ou do grupo.
Depois de todas essas consideraes, acenei empaticamente com a
cabea, olhei para todos e, com uma expresso suave, busquei mostrar
minha imparcialidade e ausncia de julgamento moral. Observei que o grupo
estava leve, sem apresentar resistncias, e a tutora, apesar de sria,
pareceu reconhecer-se em minhas falas, mostrando orgulhar-se como tal.
Continuei dizendo que a tutora no apenas era firme e confrontava
seus tutorados, desafiando-os e fazendo-os refletir, mas era tambm
suportiva, servindo de maestro para seu grupo. Era ela que, na maioria dos
encontros, propunha temas pertinentes, facilmente absorvidos pelo grupo,
gerando longas conversas. Ela incentivava a troca entre todos, fazia ligaes
sobre temas e assuntos, costurando-os e arrematando-os com maestria.
Disse ao grupo, que ela tambm se interessava pela procedncia de seus
alunos: cidade de origem, composio familiar e a formao profissional de
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seus pais e irmos, prolongando a conversa quando havia formao mdica
na famlia. A tutora tambm contava sobre suas experincias pessoais na
faculdade: no passado e na atualidade e, com vivacidade contagiante,
narrava acontecimentos da faculdade e da histria da Medicina. Ressaltei
que todo esse contedo era muito apreciado pelos alunos e, aproveitei para
dizer, igualmente por mim.
Assinalei que, mesmo tendo a tutora essa caracterstica mais
diretiva, na maioria das vezes, ela tambm respeitava o tempo e os temas
trazidos pelos seus alunos. Era disponvel para atender suas duvidas dentro
e fora da tutoria e atenta s mudanas em seus alunos ao longo do tempo,
reconhecendo seu desenvolvimento. Mas, no deixe de dizer tambm que a
tutora era pouco solidria com comportamentos considerados inadequados
por ela, como: atitudes imprprias do aluno de medicina no hospital e na
faculdade, no ler e responder a e-mails, comes e bebes na tutoria, etc.
Pontuei que nesses momentos a tutora acabava desempenhando um papel
educativo, aconselhando seus alunos a adotarem certos tipos de
comportamentos, mais adequados a um futuro mdico.
Os alunos ficaram alvoroados nesse momento. Relembraram
assuntos dos encontros observados como a histria de Florence Nightingale,
me da enfermagem, e as histrias contadas pela tutora da poca da
ditadura, assim como o impedimento de comer durante a reunio de tutoria.
Mirna comentou sobre a disponibilidade da tutora em ajud-la no seu
trabalho sobre o anel de Arnaldo e Gustavo disse o quanto era interessante
ouvir as histrias da tutora. O grupo e a tutora mostraram-se, nesse
96

momento, muito satisfeitos e felizes.
Conversei ento sobre como o grupo lidou com a minha presena.
Disse que acreditava que minha presena como observadora no havia sido
uma tarefa fcil para a tutora, lembrando que ela havia vetado o uso do
gravador antes mesmo de consultar os alunos. E complementei em tom bem
humorado: a observadora j era demais! Com gravador ainda?. A tutora
deu risada, nesse momento, e concordou dizendo: Foi um desafio! Quando
recebi o convite, fiquei com a pulga atrs da orelha, vou no vou... resolvi
topar, e seja o que Deus quiser! Sobre a gravao das reunies, eu no
permiti, e no deixei vocs (alunos) se manifestarem; achei complicado, pois
gravar poderia atrapalhar o andamento da reunio.
Eu concordei com a tutora dizendo que a realizao da observao,
mais ainda com o uso de gravador, uma questo delicada em grupos
humanos, podendo mesmo vir a alterar seu funcionamento. E, sobre a sua
deciso de participar da pesquisa, enfatizei dizendo que havia sido corajoso
de sua parte, pois, geralmente, a condio de ser observada muito difcil,
gerando medo de ser avaliada, ou de tornar-se objeto de comparao.
Lembrei que, ao apresentar a pesquisa ao grupo, a tutora questionou se
haveria comparao de seu grupo com o outro grupo que eu observaria. A
tutora acenou positivamente com a cabea e os alunos disseram no
lembrar sobre o episdio do gravador. Eu disse ainda, que apesar da
dificuldade, participar da observao pareceu soar a ela como um desafio.
Considerei que a tutora, alm de desafiar seus alunos com certos
questionamentos, tambm desafiava a si mesma.
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Assinalei ainda que, ao longo do tempo, apesar de todo esse
contexto difcil que envolve a observao, a tutora pde aceitar minha
presena com naturalidade, e isso, pareceu refletir no grupo, que agiu com
espontaneidade na minha presena. Ainda, dentro desse contexto, eu disse
que as manifestaes e posicionamentos ideolgicos da tutora eram, em sua
maioria, respeitados pelos alunos. Talvez, por isso, a postura aberta da
tutora em me receber tenha servido de ajuda ao grupo para que eu no me
tornasse um outro intolervel e perseguidor, podendo ser aceita e
incorporada, mesmo como um outro, diferente, naquele espao do grupo.
Conclui este pensamento, dizendo que, aps alguns encontros, me senti, e
de fato, fui incorporada como parte do grupo. Disse a eles que deixei de ser
a psicloga que no faria terapia de grupo, como muitas vezes fui
apresentada, ao ingressar na atividade, passando a ser denominada a
nossa observadora.
Sobre a relao com os alunos, disse que esses, em sua maioria,
no manifestaram interesse, ou protesto, em relao pesquisa ou
pesquisadora, assinando o termo de consentimento sem qualquer
questionamento. Relembrei que, no meu primeiro dia, aps a minha
apresentao, apenas Rosa manifestou-se, contando de sua insatisfao
com o servio de psicologia que atende aos alunos na faculdade, dizendo
que isso poderia ser um tipo de protesto em relao pesquisa ou a
observadora, que, havia se apresentado como psicloga. Rosa respondeu
concordando e reafirmando sua opinio da poca, assinalando nunca ter se
oposto ao estudo. Complementou dizendo que a observao nunca
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modificou seu jeito de ser! O restante do grupo me olhou, com uma
expresso de interrogao, como se quisessem dizer: deveramos ter
questionado a pesquisa? O que esperado de ns?!.
Nesse momento, senti o grupo um pouco acuado. Mas sorri
empaticamente, e continuei, contando que, por vezes, percebi olhares
curiosos em minha direo, e tambm enquanto anotava brevemente alguns
dados durante a atividade. Nesse momento o grupo sorriu envergonhado.
Disse ao grupo que pude observar manifestaes fsicas, de seu
interesse ou descontentamento, atravs do posicionamento corporal e
expresses em suas faces: eles se agitavam, se voltavam para frente nos
momentos mais quentes de debates e interesse, outras vezes se retraiam.
Essa observao voltou a aquecer o grupo, que disse: Nossa! Que
interessante, no que acontece mesmo?, e lembraram at do livro O
corpo fala!
Disse tambm aos alunos que eles, muitas vezes, conduziam as
discusses, sendo acompanhados de perto pelo olhar atento da sua tutora.
Nas poucas vezes que esta se ausentou, o grupo prosseguiu sozinho, com
intensa troca de ideias, e com tamanha habilidade, que me fez ficar
orgulhosa de sua maneira madura de agir sem a presena da tutora.
Assinalei que era caracterstica do grupo a curiosidade e os
questionamentos, dos mais novos para os veteranos, e desses para a tutora.
Os alunos do grupo acolhiam os colegas que expunham suas dvidas,
problemas e angstias: o prazer da troca e da escuta por parte do grupo era
evidente. Complementei apontando que o grupo valorizava e gratificava sua
99

tutora, com manifestaes do tipo nosso grupo bom mesmo, e gosto
muito mais do nosso grupo (depois da reunio conjunta).
Sobre os temas discutidos, disse que os mais polmicos, de maior
discusso, trocas e aconselhamentos, por parte dos mais velhos, eram os
relacionados prtica mdica, ao internato, s ligas e rotina da faculdade,
e que muitas dvidas foram expostas e sanadas na atividade de tutoria. Para
exemplificar disse que foram discutidos temas como: a violncia no curso e
nas atividades esportivas, os esportes, a qualidade de vida do mdico, o
sistema nico de sade, a bandeira, ligas, iniciao cientfica, rotina no
internato, vacinao, unio do grupo (turmas A e B), tutoria, residncia
mdica, currculo, entre outros. Destaquei que, a residncia mdica era um
tema de angstia para todos, inclusive para os calouros, os quais, nessas
ocasies, desabafavam sobre o clima de competio entre os alunos do
curso. Tanto os temas propostos pela tutora, como pelos alunos, eram bem
vindos, sendo que, poucas vezes, a tutora limitou ou cortou algum tema.
Terminei meu relato dizendo que a tutora sempre encerrava os
encontros pontualmente e, mesmo o grupo aparentando cansao, no final da
atividade, alunos mostravam-se aquecidos e entusiasmados, apresentando,
algumas vezes, resistncia para ir embora! Geralmente eles saiam
conversando corredor a fora, como se estendessem o encontro para outra
esfera, alm da sala do laboratrio. Arrisquei dizer que talvez a tutoria
continuasse viva dentro deles aps o termino da reunio. O grupo sorriu
empaticamente.
Perguntei ento ao grupo como se sentiam em relao minha
100

devolutiva. O grupo comentou ter ficado surpreso com tudo o que foi
observado: voc ficava a sempre quietinha, e apesar do seu silencio,
observava tudo o que acontecia, em detalhes!. Comentaram a riqueza
desses detalhes: tem coisas que ns fazemos e nem nos damos conta!
Como as expresses faciais e aquela histria de que o corpo fala, e
mesmo!.
Rosa, mais uma vez, disse que no se sentiu incomodada com a
presena da observadora e por isso continuou sendo exatamente como era:
acho que a gente ficou vontade e no se sentiu perseguido! Voc deixava
a gente vontade, nunca achei que voc (observadora) tinha olhares
julgadores ou moralistas aqui no grupo. Completou dizendo ter gostado das
observaes sobre a tutora: aqui na faculdade tem o mito do tutor, eu
discordo, posso dizer que a professora sempre me ajudou, uma segunda
me para mim, uma me que compreende os assuntos mdicos. Rosa
disse isso olhando nos olhos de sua tutora, que se emocionou neste
momento.
O grupo ficou atento e interessado. A aluna Cntia disse ento:
apesar de eu no ter vindo muito nos encontros de tutoria, fico com a
impresso que a observadora frequentava diariamente o meu circulo de
amizades, voc fala dos nossos assuntos com tanta compreenso! Parece
que estava dentro das nossas conversas, nas salas de aula e pela
faculdade! Tambm achei bem interessante como voc consegue perceber
as nossas angstias com tanta clareza.
O aluno Paulo disse reconhecer a tutora nos meus relatos e que
101

esperava que ela pudesse receber as crticas como construtivas. A tutora
disse nesse momento que as crticas eram bem vindas e que gostou muito
da devolutiva: foi alm do que eu imaginava!. Nesse momento, todos
pareceram satisfeitos, as perguntas cessaram e perguntei a eles se queriam
dizer mais alguma coisa, tendo eles respondido que no.
Despedi-me do grupo dizendo que naquele momento eu os estava
deixando de fato. Eles se levantaram, beijei a todos, deixando o tempo
restante da tutoria para que eles continuassem a atividade sem a minha
presena. Fui-me embora com o corao apertado.
Apesar disso, estava muito feliz ao sair e satisfeitssima com o
resultado de minhas observaes. Caminhei pelos corredores, pensando
que aquela reunio foi de fato um encontro.
Enquanto deixava a faculdade, aliviada, e ainda me despindo dos
ltimos resqucios da observadora que fui, arrisquei pensar que a devolutiva
pode ter ajudado a desmistificar a presena silenciosa de antes e, at
mesmo, tenha sido teraputico para o grupo. Creio que, pelo fato das
observaes terem sido bem sucedidas, o grupo pde se sentir
genuinamente identificado com as minhas palavras, reconhecendo a si
mesmo no relato das observaes, tal como uma imagem no espelho.
102

5. CONCLUSES

Este estudo buscou, adotando um olhar de perto e dentro, e a
teoria psicanaltica sobre grupos de Bion, aproximar-se do cotidiano de um
grupo de tutoria e aprofundar a compreenso da relao de mentoring numa
escola mdica.
O conhecimento proporcionado pelo modo de operar da etnografia,
por meio da observao participante, e pela Psicanlise, com a
considerao dos fenmenos grupais inconscientes, permitiu apreender
aspectos da dinmica do grupo de tutoria que passariam despercebidos, se
enquadrados exclusivamente pelo enfoque das vises macro e dos grandes
nmeros (Magnani, 2002, p.16).
A proximidade e a intimidade com o grupo de tutoria observado
revelaram elementos importantes a respeito do que acontece na relao de
mentoring, dentro de um enquadre grupal, e no contexto da escola mdica.
Em sntese, o estudo de caso realizado indica que:

1. Grupos de tutoria, compostos por alunos aleatoriamente
designados a um tutor, so grupos de formao artificial e de complexo
manejo. Fatores internos e externos, pessoais e institucionais, conscientes e
inconscientes, participam e influenciam no estabelecimento e
desenvolvimento da relao de mentoring.

103

2. Um tutor, neste enquadre, para desempenhar suas funes, tem
que conseguir criar condies que favoream a ligao entre os
participantes. Para isso, ele prprio tem que acreditar no potencial da
atividade de mentoring, valorizando e se comprometendo com a proposta.
Caractersticas pessoais do tutor como autenticidade, empatia, habilidades
de comunicao, entre outras, so essenciais para que o grupo funcione
como um grupo de trabalho, isto , de forma colaborativa, com
compartilhamento de experincias e formao de vnculos.

3. Os alunos tambm precisam estar dispostos e ter condies,
externas e internas, de se ligar atividade. Generosidade, curiosidade,
espontaneidade, entre outras, so caractersticas pessoais dos alunos, que
colaboram para colocar o grupo funcionando como grupo de trabalho.

4. O cotidiano da formao mdica, como fator externo, tem grande
impacto no funcionamento do grupo de tutoria - ao mesmo tempo em que
promove a necessidade de aes de orientao e suporte, dificulta o acesso
aos recursos disponveis, entre eles o mentoring.

5. Reservar oficialmente um tempo para a atividade mostra-se
importante, mas no suficiente para que ela acontea. Esse tempo protegido
somente ser usufrudo para o mentoring se as ligaes entre os
104

participantes, seja entre os alunos e a tutora, seja entre os alunos de
diferentes anos, forem da ordem do interessante, do prazeroso e da
descompresso das angstias.

6. Desperta o interesse dos alunos a possibilidade de, na tutoria, via
tutor ou veteranos, conhecer mais e melhor o curso, assim como de
antecipar e se projetar no futuro.

7. Gera prazer entre os alunos o contato intergeracional com o
compartilhamento de histrias que apresentam a formao mdica segundo
pontos de vista diversos, sejam eles temporais ou pessoais.

8. Diminui a angstia dos alunos a possibilidade de, por meio da
identificao, perceberem-se sendo os nicos a terem dificuldades, medos e
inseguranas.

9. necessrio tempo para a relao acontecer, um tempo no
cronolgico e sim subjetivo. O mesmo vale para as questes do espao que,
mais do que fsico, deve oferecer lugar para a real interlocuo de diferentes
idias.

105

10. Grupos de tutoria, como todas as formaes grupais, so
permeados por fatores inconscientes que o desviam, por vezes, do
funcionamento refinado, levando-o para o nvel de funcionamento dos
supostos bsicos, tal como proposto teoricamente por Bion.

11. Momentos de luta ou fuga podem surgir quando, no manejo do
grupo, a relao fica marcada pela cobrana e pelo julgamento. Quando o
tutor exige posicionamento diante de temas difceis, ou julga o
comportamento dos alunos segundo condutas socialmente esperadas, estes
tendem, na maior do tempo, a fugir do confronto ou, raramente, de acordo
com caractersticas individuais de personalidade, a enfrentar a situao.

12. O suposto da dependncia pode manifestar-se em um grupo de
tutoria quando o tutor e sua experincia so intensamente valorizados pelos
alunos, ou quando o grupo, ao fugir, passa a obedecer ou corresponder ao
esperado pelo tutor constituindo, inclusive, um risco para o pensamento
autnomo do grupo e para a relao de mentoring.

13. O acasalamento tambm pode permear a relao de mentoring
quando as identificaes levam a formao de pares no produtivos no
grupo. Colaboram para a identificao tanto as caractersticas pessoais dos
membros quanto o momento em que eles se encontram dentro do processo
de formao acadmico.

106

14. Um estilo de liderana reparador, por parte do tutor, isto , sua
capacidade de, depois de momentos difceis, retomar o funcionamento
frutfero do grupo, associado s caractersticas dos integrantes, tambm
desejos da volta a esse estado, permitem que o grupo no permanea por
muito tempo nos estados regredidos dos supostos bsicos.

















107

6. IMPLICAES

Os pontos destacados nesta investigao, embora derivados de um
estudo de caso, permitem algumas consideraes com implicaes para a
atividade de mentoring em geral.
Tutores precisam ser vocacionados, apresentar certas caractersticas
pessoais e, ao mesmo tempo, receber suporte ao longo do trabalho.
Para isso o recrutamento deve atrair pessoas que se interessem,
genuinamente, por esse tipo de relao. A seleo, por sua vez, precisa ser
capaz de identificar aqueles que possuem as habilidades refinadas to
importantes para o manejo de um grupo no sentido da cooperao e do
trabalho. Nesse sentido, seria interessante se os candidatos a tutor
pudessem vivenciar, tambm como observadores participantes, alguns
encontros de grupos em funcionamento. Com isso ele poderia, de perto e
de dentro, se aproximar da natureza da atividade grupal, se familiarizar com
a proposta, suas potencialidades e limitaes. Essas etapas iniciais,
associadas a um treinamento onde o conceito e os objetivos da atividade
fossem apresentados, discutidos e clarificados, permitiriam uma entrada
informada na atividade.
Este trabalho, ao salientar tambm os aspectos inconscientes dos
encontros, aponta para a fundamental importncia da manuteno da
atividade de superviso ao longo do tempo. Uma superviso que possa
desvelar os contedos latentes que podem colocar em risco o
funcionamento refinado do grupo de tutoria. Profissionais com essa
108

formao, isto , psiclogos e psicanalistas, com um olhar e uma escuta
para a dimenso inconsciente das relaes, seriam especialmente indicados
para essa tarefa.
Em relao aos alunos, vale a pena considerar a introduo de
incentivos, suficientemente fortes, para que o contexto da formao mdica
no impea os potencialmente interessados, e com condies de aproveitar
o mentoring, de participar da atividade. Como o futuro profissional
valorizado intensamente, desde o primeiro dia de aula, a participao na
tutoria poderia ser formalmente, includa e reconhecida nos momentos
futuros de avaliao do estudante como, por exemplo, na seleo para a
Residncia Mdica. A observao mostrou que os alunos participantes
desenvolvem habilidades de pensamento e reflexo sofisticadas, exercitam
a capacidade de comunicao, argumentao e crtica, analisam eticamente
as prprias condutas e o que se esperado do mdico, assim como o
importante exerccio do relacionamento com pessoas e idias diferentes.
No h dvida de que todas essas habilidades so essenciais ao futuro
mdico, justificando-se a incluso da tutoria no processo seletivo.
A prpria instituio, isto , a faculdade, tambm teria um importante
papel a desempenhar para que os grupos de tutoria possam funcionar num
estado mental evoludo. A valorizao dos tutores, o reconhecimento e o
incentivo formal para a participao dos alunos, daria atividade um lugar
de importncia real dentro do processo formativo dos alunos. O mentoring
estabelecido como rea de ensino (capacitao docente), assistncia
(suporte aos alunos) e pesquisa (gerao de conhecimento) estaria, dessa
109

forma, intimamente ligado ao ideal universitrio. Por fim, a explicitao de
que, de fato, a filosofia do mentoring adotada e valorizada pela escola,
contribuiria para o comprometimento de seus membros com a manuteno e
o aprimoramento do programa ao longo do tempo.























110

7. REFERNCIAS
1


Angrosino M. Etnografia e observao participante. Porto Alegre: Artmed;
2009.

Assis MBAC. Tutor Aluno: dos desencontros ao encontro possvel? In:
Bellodi PL, Martins A. Tutoria: mentoring na formao mdica. So Paulo:
Casa do Psiclogo; 2005.p.253-60.

Bardin L.Anlise de contedo. Lisboa: Edies 70. 1977

Barondess JA. On Mentoring. J R Soc Med.1997; 90:347-9.

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