Declaração Antecipada de Não Cumprimento

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Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria

A HIPTESE DA DECLARAO (LATO SENSU)


ANTECIPADA DE INCUMPRIMENTO
POR PARTE DO DEVEDOR (*)
JOS CARLOS BRANDO PROENA (**)
1. CONSIDERAES INTRODUTRIAS
Como sabido, se, em regra, o devedor no cumpre quando omite, no
termo do prazo ou logo que interpelado, a conduta central a que estava obri-
gado ( paradigmtica a figura da mora debitria), tambm ocorre, com
alguma frequncia e particularmente nos contratos de cumprimento no
instantneo ou que apresentam uma estrutura de formao progressiva
(como o caso do contrato-promessa), essa forma de possvel leso con-
tratual traduzida tipicamente numa declarao do devedor anunciadora
da sua recusa em vir a cumprir o acordo (por ex., um determinado cantor,
alguns dias antes do concerto, faz saber entidade organizadora que no
ir actuar). Na verdade, para l dos casos inequivocamente hipotizados pelo
(*) Cumprimos agora a promessa, feita em estudo anterior (ver Do incumprimento do
contrato-promessa bilateral A dualidade execuo especfica-resoluo, 1987, p. 90), de
tratarmos de forma mais sistemtica o problema das atitudes do devedor reveladoras de um
projectado desejo de no cumprimento do contrato. E o momento escolhido no podia ser
o melhor, aproveitando a feliz ocasio da merecida homenagem a um jurista brilhante, a um
excelente pedagogo e a um orientador exemplar. A dvida do sentimento de gratido que temos
para com o Professor Doutor JORGE RIBEIRO DE FARIA tem por fonte vrios momentos, dos
quais destacamos o ter-nos aceite como seu assistente na cadeira de Direito das Obrigaes
no primeiro ano (ano lectivo de 1980-1981) em que prestmos servio no Curso de Direito
do Porto da Universidade Catlica e a orientao prestada na preparao da nossa disserta-
o de doutoramento, defendida em 1997 na mesma Universidade Catlica.
(**) Professor auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Catlica e da Facul-
dade de Economia do Porto.
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legislador do Cdigo Civil como de incumprimento definitivo e tempor-
rio imputveis ao devedor, e em que as condutas factuais omissivas
(e activas) valem por si, sendo elas mesmas o incumprimento, no de
excluir que o devedor, mesmo na presena de uma clusula penal estrita-
mente sancionatria, e numa fase em que o cumprimento, ou pelo menos
o seu resultado, ainda no de exigir, declare sua contraparte que no
tenciona cumprir ou que o no poder fazer (
1
). , pois, o devedor que,
espontnea e voluntariamente, manifesta, antes do termo do vencimento (
2
),
esse propsito de fuga ao vnculo contratual. E esta sem dvida a hip-
tese dogmaticamente mais rica comparativamente s recusas ocorridas nas
obrigaes puras, no decurso do prazo razovel inerente a uma interpela-
o cominatria ou posteriormente constituio em mora, na medida em
que, se, no primeiro caso, o devedor pode tornar evidente a desnecessidade
da interpelao (
3
), j nos dois ltimos o sentido normal da declarao
ser o de reforar a omisso de cumprimento (
4
). E o colocarmos nfase
nas palavras do devedor no significa esquecer que tambm a pura nega-
o da obrigao contrada ou a prtica de actos materiais ou jurdicos
podem ser reveladores inequvocos do desejo de repudiar o compromisso
assumido (pense-se, por ex., na alienao do bem prometido vender).
Diga-se, ainda, en passant, que a nossa hiptese pode ser considerada
como o reverso da atitude do devedor que declare querer cumprir ante
Jos Carlos Brando Proena 360
(
1
) Nesse caso necessrio que a impossibilidade no esteja conexionada com
eventos que nos remetam para a zona da repartio do risco contratual e que delimi-
tada, em geral, pelo regime no estanque dos artigos 795. e 796. Se for esse o caso,
ou no sendo exigvel o cumprimento, a atitude declarativa do devedor (que, por ex., pre-
veja como certa a impossibilidade de cumprir atendendo doena de que padece ou ao
facto de uma greve impeditiva da chegada dos instrumentos musicais necessrios sua
actuao) confunde-se com o cumprimento de um dever lateral fundado no princpio da
boa f.
(
2
) Havendo um prazo estabelecido exclusivamente a favor do credor, no certa-
mente de subsumir hiptese que vamos trabalhar a recusa do devedor face ao pedido de
cumprimento antecipado.
(
3
) Para a indiferena da declarao, ver CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Recusa de
cumprimento declarada antes do vencimento (Estudo de Direito Comparado e de Direito
Civil Portugus), in Estudos em Memria do Professor Doutor Joo de Castro Mendes, 1995,
p. 307.
(
4
) HANS LESER, Die Erfllungsweigerung Ein Tip der Leistungsstrungen, in
Festschrift fr RHEINSTEIN, 1969, 2. Band, p. 648, aplica directamente a anterior redaco
do 326 do BGB recusa posterior mora, fundando a dispensa da interpelao cominatria
na sua inutilidade e no em qualquer renncia do devedor.
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diem (
5
) e equivale ao comportamento do credor que venha a declarar
antecipadamente ao devedor que no ir receber a prestao ou colaborar
com ele (
6
). Sendo certo que a declarada inteno de incumprimento pres-
supe a existncia de um contrato validamente celebrado, no atrada para
esta zona o caso de existir previamente uma vontade deliberada de no ser
assumida uma das obrigaes fundamentais do contrato (por ex., o com-
prador declara que quer comprar sem querer pagar o preo). Nesta reserva
mental desconhecida da outra parte, como a obrigao do vendedor est
interligada obrigao do comprador, a ausncia desse sinalagma gentico
leva-nos a propender para a nulidade ou mesmo para a inexistncia de
uma compra e venda por carncia da declarao de vontade de um com-
prador (
7
).
O tema, sendo clssico, tem implicaes prticas importantes se pen-
sarmos na perturbao que os comportamentos descritos podem implicar nas
relaes contratuais conexas com aquelas em que o devedor manifestou o
seu propsito de no vir a cumprir. E da que juristas, como E. CON-
TINO (
8
), chamem a ateno para a necessidade dos credores vigiarem a
execuo do acordo com o escopo de prevenirem uma possvel situao
comprometedora do fim contratual. Juridicamente, esse interesse prtico
reflecte-se, sobretudo, nos planos do sentido dos comportamentos (maxime
atendendo forma e ao contedo da comunicao do devedor) e da sua efi-
ccia (para o devedor e o credor), tendo essencialmente em conta o
momento da sua manifestao.
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 361
(
5
) Sem o acordo do credor o devedor no pode cumprir antecipadamente se no gozar
do benefcio do prazo.
(
6
) O credor pode ter um comportamento concludente (por ex., compra do bem refe-
rente a um aluguer ainda no cumprido) susceptvel de preencher o fim da prestao, mas
gerador de uma impossibilidade de cumprimento subsumvel ao quadrante do artigo 795.,
n. 2, do CC.
Nos casos mais tpicos de recusa, U. NATOLI/L. GERI, Mora accipiendi e mora debendi,
1975, pp. 47 e ss., mesmo afirmando a natureza no vinculativa da posio creditria,
entendem que o oferecimento posterior da prestao intil desde que a declarao tenha
sido sria e inequvoca. Cfr., igualmente, U. HFFER, Leistungsstrungen durch Glu-
bigerhandeln, 1976, pp. 234-235, para essa necessidade de certeza na recusa do credor
e a suficincia da mera oferta verbal prevista no 295 do BGB.
(
7
) Sobre a interessante hiptese, ver G. SICCHIERO, Linadempimento preordinato e
causa di nullit del contratto, in CeIm, 2, 2000, pp. 613 e ss.
(
8
) Casi e questioni in materia di inadempimento prima del termine e possibili
rimedi, in Qua, n. 2, 1988, p. 246.
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Percorrendo a sistemtica legal-geral do incumprimento imputvel ao
devedor chegamos concluso que deparamos com uma lacuna de previso
j que o legislador de 1966 omitiu qualquer referncia hiptese em causa,
ao hipotizar apenas o incumprimento unilateral, ocorrido tipicamente num qua-
dro de exigibilidade-vencimento da obrigao. Nem parece estarmos perante
uma lacuna aparente na medida em que nada faz crer que o legislador, em
funo dos sinais de inequivocidade e explicitao da declarao do devedor,
a quisesse valorar como facto objectivo de incumprimento (da ligao assu-
mida) e, enquanto tal, a integrar, mesmo que por analogia, na fattispecies
nuclear da impossibilidade do cumprimento. O nico dado certo que VAZ
SERRA, sustentado na doutrina alem mais tradicional (ENNECCERUS/LEHMANN),
se referiu figura como mero caso de violao contratual positiva equi-
parando aos casos em que o devedor declara terminantemente que no far
a prestao devida as hipteses em que rescinde, anula ou resolve o con-
trato, ou que no se considera vinculado por ele (
9
). No estudo dedicado
mora do devedor, e sempre no pressuposto de uma declarao escrita (
10
),
VAZ SERRA props a dispensa de interpelao (
11
) e, na esteira dos Cdigos
suo e grego, a desnecessidade da fixao de um prazo razovel de cum-
primento sempre que se pudesse depreender da atitude do devedor que
no daria resultado (
12
). Conquanto VAZ SERRA, at pela referncia que
faz a VON TUHR, estivesse a pensar precipuamente na declarao posterior
constituio em mora, no recusou formular uma idntica soluo para as con-
dutas (significativas) adoptadas antes desse momento.
Apesar de todos esses enunciados no terem transitado sequer para o
texto da 1. reviso ministerial do Projecto do Cdigo Civil (
13
), ficou-nos
Jos Carlos Brando Proena 362
(
9
) Ver Impossibilidade superveniente e cumprimento imperfeito imputveis ao deve-
dor, in BMJ n. 47, pp. 70 e 83-84, nota 146. Atender, igualmente, ao artigo 12. do arti-
culado proposto (p. 97), sob a epgrafe Conduta reveladora de que a prestao no ser
feita, e no qual VAZ SERRA atribua ao credor a alternativa resoluo-indemnizao se o
devedorse comportar de maneira a manifestar clara e definitivamente que no far a
prestaoquando o devedor tenha manifestado por escrito essa determinao.
(
10
) Mora do devedor, in BMJ n. 48, p. 61. O jurista, apoiado na soluo prevista
no artigo 1219., n. 2, do Codice Civile, justificava o formalismo com razes probatrias
e de ponderao.
(
11
) BMJ n. 48, cit., pp. 60-62 e 300 (artigo 7., n. 1: Se o devedor declara, por
escrito, terminante e definitivamente, que no cumpre, no carece o credor de o interpelar,
para que ele se constitua em mora).
(
12
) BMJ n. 48, cit., pp. 260-262 e 308 (artigo 21.).
(
13
) Cfr. os artigos 788., 794. e 795. no BMJ n. 119, pp. 180-181.
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o legado do pensamento do jurista nacional com as pedras de toque rela-
tivas aos pressupostos e efeitos da declarao do devedor, ou seja, a
necessidade de escrito, a exigncia do seu tom peremptrio e definitivo,
a dispensa de interpelao, a desnecessidade da fixao do prazo razo-
vel e a opo (a exercer num prazo curto) entre a indemnizao e a reso-
luo. Ser este, na realidade, a montante e a jusante, o iderio da
figura (
14
)?
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 363
(
14
) Com excepo do regime mais completo previsto no Cdigo Civil holands
de 1992 (enquanto o artigo 80., n. 1, do Livro 6. antecipa os efeitos do incumprimento
nos casos em que a declarao do devedor faa crer ao credor de que no haver cumpri-
mento ou este tenha boas razes para retirar tal concluso e o devedor no se mostre dis-
posto a retractar-se por escrito, j o artigo 83. retira uma mora automtica daquela decla-
rao do devedor) no se encontram nas principais legislaes europeias sinais significativos
da nossa figura (mesmo os artigos 108., n. 1, do Cdigo suo das Obrigaes, 358.
do Cdigo Civil grego e 1219., n. 2, do Codice Civile tratam meros aspectos pontuais).
Mais recentemente, o direito alemo do BGB, atravs da Gesetz zur Modernisierung des
Schuldrechts, de 11 de Outubro de 2001 (em vigor desde 1 de Janeiro de 2002), incorporou
nos 281 II (desnecessidade de uma Fristsetzung), 286 II 3 (desnecessidade da inter-
pelao) e 323 II 1 e IV (desnecessidade de uma Fristsetzung nos contratos bilaterais e
possibilidade da sua resoluo) uma doutrina mais desenvolvida sobre a recusa definitiva
e categrica.
Em legislao uniforme j constituda (artigo 72. da Conveno de Viena de 1980
sobre o contrato de compra e venda internacional de mercadorias) ou a constituir (artigo 7.3.3.
dos Princpios UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais, artigo 9:304.
dos Princpios do direito contratual europeu elaborados por uma comisso presidida por OLE
LANDO e HUGH BEALE e os artigos 90. e 91. do Projecto do Livro I do Cdigo europeu
dos contratos, fruto do trabalho dos juristas da Academia de Pavia, coordenados por G. GAN-
DOLFI) que o chamado (correctamente?) incumprimento por antecipao pode implicar,
em termos praticamente semelhantes, a resoluo do contrato (cfr., para a Conveno,
M. NGELA BENTO SOARES/RUI MOURA RAMOS, Do contrato de compra e venda interna-
cional, 1981, pp. 228 e ss., e, para os segundos princpios, a RCDP n. 3, 2000). Fora da
Europa, ver, pelo seu interesse, o artigo 1597. do Code Civil do Qubec de 1994 (na linha
da norma do Cdigo italiano e do artigo 83. do Cdigo holands) e, no direito americano,
os 250 e ss. do Restatement of contracts 2d de 1981.
A pouca ateno legislativa no impediu, contudo, uma referncia generalizada
figura, por parte da dogmtica jurdica, sob as designaes (equivalentes) de rifiuto ad
adempiere (ver, para a crtica da expresso, F. ROMANO, Valore della dichiarazione di non
voler adempiere fatta prima della scadenza del termine, in RDC II, 1965, pp. 607-608), Erfl-
lungsverweigerung e anticipatory breach or repudiation (ver, para o direito anglo-saxnico,
C. FERREIRA DE ALMEIDA, cit., pp. 293-296, F. R. DAVIES, Contract, 3. ed., 1977, pp. 211
e ss., M. WHINCUP, Risarcimento dei danni per inadempimento contrattuale nel diritto
inglese, in RDC I, 1993, pp. 128-129, e E. FARNSWORTH, On contracts, 2. ed., II, 1998,
pp. 527 e ss.).
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2. FORMAS DE EXTERIORIZAO DA RECUSA DO DEVE-
DOR E DEMARCAO FACE AOS ACTOS UNILATE-
RAIS LEGTIMOS. CARACTERSTICAS DA RECUSA
(MAXIME DECLARATIVA) E ELEMENTOS REVELADO-
RES DE UM CONTEDO SIGNIFICATIVO
do entendimento comum que, em regra, a deciso do devedor reve-
lada de forma expressa mediante uma declarao (Erklrung) dirigida ao
credor e em que faz saber como seu contedo a vontade de no cum-
prir o chamado programa contratual. No seu desiderato de anunciar essa
inteno, a declarao do devedor pode manifestar-se obliquamente com
alegaes de inexistncia ou invalidade contratual, sob a forma de motiva-
es subjectivas de desinteresse (em vista, porventura, de um ulterior e mais
proveitoso negcio) e pretenses sem justificao contratual, ou ir implcita
na atitude mais radical de repdio ou rejeio do prprio contrato, revelada
atravs de pedidos de anulao, resoluo (potenciada com um pedido indem-
nizatrio) (
15
), denncia ou impugnao do vnculo assumido (
16
).
Diga-se, contudo, que se verdade que a tentativa de uma desvin-
culao ilegtima, activada por alguma dessas formas jurdicas, pode que-
rer branquear a evidncia de um facto lesivo, apresentando-se, pois, como
sinal concludente de uma recusa antecipada de cumprimento, tambm no
se afasta que o desejo desvinculativo possa repousar num fundamento jus-
tificado (
17
) ou compreender-se por razes dogmticas, sustentadas por
alguma doutrina (
18
). Independentemente dessa ambivalncia, mesmo que
Jos Carlos Brando Proena 364
(
15
) Por ex., nos acrdos do STJ, de 26 de Setembro de 1996, in CJ IV, III, p. 24
e de 26 de Janeiro de 1999, in CJ VII, 1, p. 61 e ss., foi considerada como manifestao
inequvoca de incumprimento a resoluo declarada pelos promitentes-vendedores.
(
16
) Para a integrao da Erfllungsverweigerung na Vertragsaufsage, ver TEUBNER,
Gegenseitige Vertragsuntreue, 1975, p. 55, e K. FRIEDRICH, Der Vertragsbruch, in AcP
178 (1978), p. 490. Para uma posio mais cautelosa, ver, com o apoio de DUBISCHAR, BAP-
TISTA MACHADO, in RLJ, ano 118., p. 275, nota 2, em anot. ao acrdo do STJ, de 8 de
Novembro de 1983.
(
17
) No sumrio da deciso da Corte di Cassazione, de 29 de Outubro de 1973, e que
nos relatado por P. TARTAGLIA (Dichiarazione di risoluzione del contratto per fatti impu-
tabili alla controparte e inadempimento prima del termine, in RDC II, 1977, pp. 20 e ss.)
colocada a hiptese da declarao de resoluo estar apenas conectada com uma repre-
sentao no culposa do incumprimento alheio.
(
18
) No caso sobre que versou o acrdo do STJ, de 26 de Maio de 1998, in CJ VI, 2,
p. 100, o promitente-vendedor declarou o contrato resolvido apesar da mora do outro pro-
mitente.
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a declarao de recusa tenha inerente esse plus da rejeio do contrato ou
esta rejeio no signifique mais do aquela recusa, bvio que estamos fora
do crculo em que o legislador ou as partes legitimam o exerccio de cer-
tos direitos dotados de eficcia extintiva ou suspensiva, como so os casos,
entre muitos outros, da resoluo legal ou convencional (fundamentada
ou ad nutum), do pactum displicentiae no contrato-promessa, da desistn-
cia da empreitada (
19
), da revogao do mandato, da denncia do arren-
damento e, em geral, da excepo de no cumprimento (
20
). Efectiva-
mente, a vontade de no cumprir um contrato, que no tenha na sua raiz
uma determinada cobertura legal (
21
), convencional ou a prpria inexigi-
bilidade do comportamento devido (o caso da chamada impossibilidade
moral), traduz uma atitude de marginalidade jurdica, de arbitrariedade,
ao escorar-se numa liberdade formal que contradiz a liberdade da vin-
culao e a fidelidade contratual (
22
).
A vontade negativa do devedor pode tambm ser retirada de factos sig-
nificantes (a repudiation by conduct do direito anglo-saxnico) activos ou
omissivos, de natureza material ou jurdica, como suceder nos casos em
que o empreiteiro abandone a obra (
23
), o trabalhador fuja do local de tra-
balho, o obrigado preferncia celebre uma promessa de venda sem reserva
de desvinculao ou o devedor negligencie os preparativos do cumpri-
mento (
24
), (atraso comprometedor no cumprimento de um contrato com
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 365
(
19
) Para a demarcao do direito de desistncia previsto no artigo 1229. do C.C. face
s pretenses de reviso ou substituio do contrato, ver ANTUNES VARELA, in RLJ,
ano 121., pp. 216-217, nota 2, em anot. ao acrdo do STJ, de 5 de Novembro de 1983.
(
20
) Para uma hiptese em que a exceptio foi invocada com fundamento numa cor-
respectividade funcional (falta de entrega dos documentos do veculo vendido), ver o acr-
do da RP, de 26 de Setembro de 1996, in CJ XXI, 4, p. 201.
(
21
) Ver, por ex., o artigo 6. do Decreto-Lei n. 143/2001, de 26 de Abril (protec-
o dos consumidores em matria de contratos celebrados a distncia), com a previso do
direito de livre resoluo nos contratos celebrados a distncia.
(
22
) J. GERNHUBER, Die endgltige Erfllungsverweigerung, in Festschrift fr DIETER
MEDICUS, 1995, p. 152, refere-se a um Unrechtsgehalt. Tambm F. ROMANO, cit., p. 613,
alude a um acto de exerccio unilateral (e ilegtimo) do poder resolutivo.
(
23
) Ver para esse acto concludente, o acrdo do STJ, de 3 de Outubro de 1995, in
CJ III, 3, p. 42.
(
24
) Para a inrcia ou cumprimento tardio dos actos preparatrios, ver BIANCA, Dell
inadempimento delle obbligazioni, in Commentario del Codice Civile, sob a direco
de A. SCIALOJA/G. BRANCA (artigos 1218.-1229.), 2. ed., 1979, pp. 29-30 (anot. ao
artigo 1218.) e M. FRAGALI, La dichiarazione anticipata di non volere adempiere, in
RDCDO, I, 1966, p. 251, com o exemplo clssico do empreiteiro que no tenha iniciado
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termo essencial), no afaste dificuldades colocadas por terceiros, destrua o
bem devido ou viole mesmo o contrato atravs da alienao do objecto pro-
metido-vender (
25
). H-de tratar-se, pois, de uma conduta que inserida
circunstancialmente permita afastar um mero receio e concluir segura-
mente ou com muita probabilidade por um desejo inequvoco de querer fugir
ao cumprimento. Como afirma MURARO (
26
), pensando basicamente no
comportamento omissivo, o devedor torna-se agente de uma conduta
intencional, inexpressiva e passiva, perante o credor, tornando previsvel
o incumprimento.
Jos Carlos Brando Proena 366
a construo de um imvel que deva entregar a curto prazo (cfr., para a hiptese, o acr-
do da RE, de 30 de Outubro de 1986, apud MENEZES CORDEIRO, Direito das Obriga-
es, III, 1991, p. 525, nota 7). Ver igualmente o caso, que se encontra em CONTINO cit.,
p. 267, do cantor lrico que no queira participar nos ensaios com o coro ou o caso do for-
necedor que descure o aprovisionamento de matrias-primas necessrias ao cumprimento
de um contrato de fornecimento peridico.
Relativamente s empreitadas, G. CONTE, Appunti in tema di mancato compimento
dellattivit preparatria e di risoluzione anticipata del contratto, in RDCDO, 3-4, 1990,
p. 172, sintoniza a certeza do incumprimento com uma avaliao tcnica da capacidade de
cumprimento, ou seja, com a possibilidade concreta de o devedor poder utilizar os meios
de construo mais avanados e as tcnicas laborais mais modernas.
(
25
) Para L. MOSCO, La risoluzione del contratto per inadempimento, 1950, p. 41, o
consumo, a destruio, a transformao e a alienao do bem devido so sinais que evi-
denciam uma determinada predisposio do devedor. Diga-se, no entanto, que a alienao
pode ser feita com a clusula a retro ou de reverso.
Regime especial est associado insolvncia falncia do devedor tendo em con-
siderao alguns dos factos-ndice (fuga do titular da empresa, abandono do estabeleci-
mento, dissipao ou extravio de bens) includos no artigo 8., n. 1, do Decreto-Lei
n. 132/93, de 23 de Abril (Cdigo dos Processos Especiais de Recuperao da Empresa e
de Falncia). Cfr. ROSRIO EPIFNIO, Os efeitos substantivos da falncia, 2000, pp. 222 e ss.,
para os efeitos da falncia do comprador e do vendedor.
(
26
) Linadempimento prima del termine, in RDC I, 1975, p. 261, nota 24. Para a
jurisprudncia alem (apud F. PETERS, Die Ablenhungserklrung des Glubigers, in JR
1998, p. 690), suficiente uma conduta que para um observador objectivo gere dvidas
fundadas na capacidade de cumprimento do devedor.
Nas situaes em que o comportamento no seja esclarecedor, pode relevar uma justa
causa resolutiva (com interesse no seio dos artigos 1140. e 1190. do CC), ser activada outra
tutela creditria (aco de cumprimento, sano pecuniria compulsria) ou suscitada uma
providncia cautelar (por ex., no caso de negociaes existentes entre um promitente-vendedor
e um terceiro ver, infra, nota 132). Naturalmente que so inequvocos os actos de um
promitente-vendedor que coloque o andar venda, publique anncios, reclame um preo
mais elevado e proponha a devoluo do sinal ao outro contraente (cfr. o acrdo do STJ,
de 15 de Maro de 1983, in BMJ n. 325, p. 561).
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Regressando tpica declarao-manifestao directa de vontade, ela
caracteriza-se pelo normal tom expresso (
27
) e por uma justificada natureza
receptcia (
28
) (mesmo na presena de formas pblicas de comunicao),
no porque o declarante pretenda necessariamente certos efeitos, mas
porque, no sendo a recusa um mero comportamento (
29
), ela cria deter-
minada situao fctica, implica, pelo menos, um determinado valor sin-
tomtico e, sobretudo, pode motivar um conjunto de reaces do credor.
A afirmao do normal teor expresso da declarao no implica sufra-
gar a tese italiana, defendida entre ns por VAZ SERRA (
30
) e GALVO TEL-
LES (
31
), e integrada no Projecto do Cdigo europeu dos contratos (
32
), da
necessidade de uma formalizao escrita do desejo do devedor (
33
). Se no
artigo 1219. do Codice Civile, relativo constituio em mora, a exi-
gncia de escrito feita por razes de coerncia e, segundo alguns (
34
), para
comprovar a certeza e a seriedade da declarao, de entender que, inde-
pendentemente da resposta questo da classificao do acto declarativo,
a regra da liberdade formal a mais sustentvel, at porque reflecte a pre-
valncia do contedo sobre a exteriorizao da manifestao volitiva do
devedor.
Estando ns perante uma declarao de vontade (
35
), pelo menos no
seu sentido mais amplo, o pensamento jurdico dominante considera a
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 367
(
27
) MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigaes, cit., II, 1980, p. 457, e RIBEIRO DE
FARIA, Direito das Obrigaes, II, 1988, p. 447, exigem apenas que a recusa seja expressa.
Ver na doutrina italiana e contra o formalismo escrito, MURARO, cit., p. 290.
(
28
) Aderindo ao ponto de vista de G. GIAMPICCOLO, Dichiarazione recettizia, in
ED XII, p. 385, pode dizer-se que a necessidade de recepo da declarao prende-se com
uma determinada lgica (inerente, por ex., s comunicaes para preferir, s propostas
contratuais e s interpelaes) e com a afectao da esfera jurdica do credor. Ver, no
entanto, MURARO, cit., p. 289, nota 77, para a rejeio dessa natureza, ao considerar a
recusa como mera declarao de inteno.
(
29
) OLIVEIRA ASCENSO, Teoria Geral do Direito Civil, III, 1992, p. 167.
(
30
) Ver, supra, 1.
(
31
) Direito das Obrigaes, 7. ed., 1997, p. 258.
(
32
) Ver o artigo 90.
(
33
) Ver o nosso Do incumprimento, cit., p. 92.
(
34
) Cfr. CONTINO, cit., p. 260.
(
35
) Em rigor, trata-se mais de uma actuao ou manifestao de vontade sem sen-
tido obrigacional- negocial, isto , o devedor no se obriga a no cumprir o acordo (cfr.
MIRABELLI, Latto non negoziale nel diritto privato italiano, 1955, pp. 387 e ss.). U. HUBER,
Leistungsstrungen, II, 1999, p. 576, recusando igualmente a configurao negocial da
declarao, alude, contudo, a uma conduta fctica.
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recusa antecipada de cumprimento como acto jurdico em sentido res-
trito (
36
), integrando-a no ncleo dos actos jurdicos quase-negociais e no
no dos meros actos reais ou actos meramente exteriores, como defendido
por GERNHUBER (
37
). Digna de ponderao a concepo de alguns sec-
tores da doutrina italiana (
38
) de integrar a recusa (atto di rifiuto) nas cha-
madas participaes de vontade, isto , no grupo dos actos jurdicos
constitudos por declaraes de factos ou de intenes, ao lado da inter-
pelao (simples e cominatria) e, segundo pensamos, da comunicao
para preferir e da excepo do cumprimento do contrato-promessa.
Diga-se, no entanto, que a manifestao volitiva de recusa tem um sen-
tido e uma funo diferentes no s das verdadeiras declaraes negociais
(como o caso, entre outras, da resoluo, da renncia e da ratificao),
mas tambm da participao interpelativa, com natureza ou no (
39
) de
intimao-admonio. Se, na manifestao lcita de interpelao, o decla-
rante quer obter determinados efeitos concretos, projectando-os na contra-
parte e gerando-se uma normal sintonia entre essa vontade e a sua con-
formao normativa (
40
), j a declarao de recusa no constitutiva, por
ausncia de licitude-potestatividade (
41
), pode gerar efeitos danosos (cons-
tituio em mora, indemnizao e, para alguns, a perda do benefcio do
Jos Carlos Brando Proena 368
(
36
) Assim, C. FERREIRA DE ALMEIDA, cit., p. 313 (com a invocao do artigo 294.),
A. RAVAZZONI, Mora del debitore, NDI X, p. 907, A. MAGAZZ, Mora del debitore, in
ED XXVI, p. 943, M. BIANCA, Diritto civile La responsabilit, 5, 1994, p. 97,
N. MATASSA, in FI I, 1982, col. 2525, em anot. sentena da Corte di Cassazione, de 17
de Maro de 1982 (tratou-se de um caso em que uma editora declarou em definitivo no
publicar um dicionrio da lngua italiana, rompendo um contrato celebrado para durar vinte
anos) e K. FRIEDRICH, cit., p. 490.
(
37
) Cit., supra nota 22, p. 152.
(
38
) Assim, MIRABELLI, cit., pp. 313 e ss., SANTORO-PASSARELLI, Atto giuridico, in
ED IV, p. 212, MURARO, cit., p. 289, nota 77 (ver, supra, nota 28), e P. SCHLESINGER,
Dichiarazione (teoria generale), in ED XII, p. 383 (distinguindo as partecipazioni das
declaraes de cincia). Em sentido crtico, admitindo um certo contedo negocial da decla-
rao, ver TARTAGLIA, cit., p. 26 e nota 26.
(
39
) No unanimemente aceite a sua qualificao de mero acto jurdico, pois CAS-
TRO MENDES, Natureza jurdica da interpelao, in DJ, II, 1981/1986, pp. 19 e 22, sustenta
a sua natureza negocial tendo em conta o efeito primrio do vencimento.
(
40
) V. PANUCCIO, Le dichiarazioni non negoziali di volont, 1966, p. 153, alude a efi-
ccia determinativa.
(
41
) Para uma recusa lcita, ver o artigo 429. Concordamos com GERNHUBER, cit.,
p. 152, quando afirma no existir qualquer exteriorizao de uma vontade final lcita,
nem uma comunicao com efeitos legais.
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prazo) para o devedor-declarante, criando uma situao que parece ter os
contornos jurdicos (que no fcticos) de um incumprimento (
42
), mas sem
que haja necessariamente aquela sintonia ou o declarante manifeste uma von-
tade heternoma. Como quer que seja, no se trata de uma pura infor-
mao-comunicao dirigida ao credor, nem de uma mera revelao, des-
tituda de valor prprio, pois a declarao de recusa tem um contedo
tpico que ultrapassa esse tom enunciativo mesmo sem qualquer desejo
de libertao do contrato e a circunstncia da sua eficcia no estar
explicitada na lei embora possa retirar-se dos princpios e de certos
esteios normativos nem se sintonizar, eventualmente, com a vontade do
devedor, secundrio relativamente ao facto em si e manifestao directa
de vontade.
Independentemente da questo da sua considerao como mero acto
jurdico (e possvel acto de participao), a declarao de recusa, para sus-
citar determinadas reaces do credor, precisa de possuir certas caractersticas
subjectivas e objectivas. Este ponto da caracterizao da recusa impor-
tante j que o maior ou menor alcance atribudo aos elementos caracteri-
zadores acaba por influenciar a resposta a outras questes, como a da
revogabilidade ou no da inteno manifestada pelo devedor (
43
).
Para l da declarao ter que ser assumida por um devedor imput-
vel (
44
) e apresentar-se como manifestao intencional, pessoal e unilate-
ral (
45
), ela deve ser suficientemente clara, unvoca (
46
) e sria (
47
), de
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 369
(
42
) Ver, infra, n. 4. Como afirma MIRABELLI, cit., p. 388, o rifiuto ad adem-
piere provoca uma alterao no eliminvel na situao factual e jurdica .
(
43
) Ver, infra, n. 3.
(
44
) Mais no sentido de ser pressuposta uma capacidade de entender e querer do
que ser exigida a culpa, pois a recusa pode fundar-se num mero no poder, no subsu-
mvel a uma impossibilidade no imputvel de cumprimento. Ver PANUCCIO, cit., p. 198,
para uma aplicao analgica da norma correspondente ao nosso artigo 488., com o
fundamento de que a recusa tende ao incumprimento e a um ilcito contratual.
Para o autor italiano, o credor no poder invocar a recusa desde que conhea ou devesse
conhecer a incapacidade do devedor. J quanto incapacidade natural do credor, PANUC-
CIO considera-a irrelevante, atendendo aos efeitos da prpria declarao, a no ser no caso
em que o declarante conhea a incapacidade do credor data da recepo da recusa
(p. 199).
(
45
) Est ultrapassada a tese negocial sufragada por autores mais antigos (cfr. CUNHA
GONALVES, Tratado de Direito Civil, IV, 1931, p. 500, e ORLANDO M. LEITO, A interpe-
lao do devedor Necessidade Natureza Requisitos, in ROA, ano 9., 1-2, 1949,
pp. 213-214) e que condicionava a declarao aceitao. Mesmo em autores mais moder-
nos, como TARTAGLIA (cit., pp. 25-26, nota 26 e 27), aparece a defesa de uma proposta de
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modo a justificar o exerccio de certos direitos e a defesa perante preten-
ses do declarante. Uma declarao unvoca uma comunicao no
viciada, precisa, com ausncia de pedidos de esclarecimento ao (pelo) cre-
dor e que mostra a inteno categrica, o propsito claro do devedor no
cumprir. Se a declarao de recusa fundada na convico desculpvel da
inexistncia da obrigao ou na ignorncia acerca do quantum devido no
preenche naturalmente o requisito da univocidade, j a declarao do com-
prador de que no tem dinheiro para pagar o que comprou (e no sim-
plesmente para pagar imediatamente, pagar tudo ou para cumprir no prazo)
Jos Carlos Brando Proena 370
resoluo convencional ou de uma revogao por mtuo acordo, nos casos em que a
declarao no esteja envolvida por um comportamento inadempiente, ou seja, pessoal,
efectivo e relativamente definitivo.
(
46
) Para a defesa do tom inequvoco da declarao de recusa, ver, entre outros,
ORLANDO M. LEITO, cit., p. 214 (aviso claro e concreto), CALVO DA SILVA, Sinal e con-
trato-promessa, 5. ed., 1996, p. 103 (certa, sria e segura), e Estudos de direito civil e pro-
cesso civil (Pareceres), 1996, p. 137 (sria, clara e categrica), PESSOA JORGE, Lies de
Direito das Obrigaes, 1975-1976, p. 297 ( em termos categricos), GALVO TEL-
LES, cit., p. 258 (categrica e terminantemente), ALMEIDA COSTA, Direito das Obriga-
es, 8.. ed., 2000, pp. 932, nota 2, e 970 (declarao categrica, declarao inequvoca
e peremptria), ANTUNES VARELA, RLJ, ano 121., cit., p. 223 ( declarar peremptoria-
mente que no cumprir), GIORGIANNI, Inadempimento (Dir. Priv.), in ED XX, p. 862,
FARNSWORTH, cit., p. 535 ( sufficiently positive to be reasonably understood), e LESER,
cit., p. 648 (wenn die Weigerung ernstlich und deutlich). Ver, na jurisprudncia,
e a ttulo exemplificativo, os acrdos da RL, de 4 de Novembro de 1993, in CJ XVIII, 5,
p. 115 (o promitente-vendedor impediu o promitente-comprador de tomar posse da frac-
o, no entregando as chaves e recusando fazer a escritura aps este ter conseguido obter
o emprstimo bancrio) e do STJ, de 24 de Outubro de 1995, in CJ III, 3, p. 78 (os pro-
mitentes-vendedores comunicaram que o contrato ficava sem efeito, com reteno do sinal
a seu favor), de 26 de Maio de 1998, cit., supra, nota 18 (os promitentes-vendedores deram
por resolvido o contrato com base na mora da promitente-compradora) e de 26 de Janeiro
de 1999, cit., supra, nota 15 (a resciso declarada pela promitente-vendedora foi tida como
manifestao inequvoca e categrica da inteno de no cumprir).
(
47
) Pondo em destaque esse sinal, ver MENEZES CORDEIRO, cit., p. 457, e Viola-
o positiva do contrato Cumprimento imperfeito e garantia de bom funcionamento da
coisa vendida; mbito da excepo do contrato no cumprido (acrdo do Supremo Tri-
bunal de Justia de 31 de Janeiro de 1980), in ROA, I, 1981, p. 143 e nota 39, BAPTISTA
MACHADO, RLJ, ano 118., cit., p. 275, nota 2, e p. 332, nota 35, MOSCO, cit., p. 37,
MURARO, cit., p. 290, e FRAGALI, cit., p. 252 e nota 49 (no sria a declarao feita por
raiva, represlia ou retorso).
C. FERREIRA DE ALMEIDA, cit., p. 313, desvaloriza, desde logo, o requisito da serie-
dade, com a assero de que o fundamental reside na questo interpretativa. Sem pormos
em causa essa considerao, tambm no nos parece que os resultados interpretativos pres-
cindam da caracterizao com que o pensamento jurdico vem tipificando a recusa.
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ou do cnjuge do promitente-vendedor de que no quer vender (
48
) ou
no quer vender nas condies contratadas inculcam manifestamente um
desejo certo de incumprimento. De uma forma geral, deixa de ter um
sentido unvoco toda a declarao (ou comportamento (
49
)) que no afaste
o cumprimento pontual o caso do devedor mostrar em dois momentos
vontades no coincidentes ou que no provoque uma imediata perda de
confiana nesse mesmo cumprimento (como suceder se o devedor decla-
rar que no sabe se poder cumprir). Estes ltimos aspectos so tambm
comuns seriedade da declarao, ou seja, pretende-se a ausncia de simu-
lao ou reserva mental, de modo a gerar no credor, como diz FRAGALI (
50
),
um receio fundado, resultante de um facto que no seja meramente
psicolgico e subjectivo.
Relativamente s declaraes genricas ou de contedo pouco claro
quanto ao seu significado, cremos que o dever lateral de cooperao con-
duzir o credor a pedir ao devedor que esclarea devidamente o sentido da
sua manifestao. Este esclarecimento til nos casos em que o devedor
se afaste (desculpavelmente ou no) dos termos da vinculao, pois a inr-
cia do credor pode lev-lo a concluir tacitamente por uma aceitao
desses termos.
Se bem que o tom peremptrio da recusa equivalha quase sempre a
uma presuno absoluta de uma vontade no provisria de incumprimento
o que certo que a dogmtica jurdica exige igualmente, como requisito
autnomo e que delimita a figura pelo alto, a natureza definitiva (
51
) da
declarao.
Relativamente ao critrio que serve para aferir essa caracterstica,
parece suficiente a concludncia do comportamento ou que a declara-
o qua tale crie no declaratrio a convico que o devedor no ir
cumprir a prestao no prazo integrante da interpelao cominatria (
52
).
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 371
(
48
) No caso sobre que versou o acrdo do STJ, de 21 de Maio de 1998, in BMJ
n. 477, pp. 460 e ss., a atitude inequvoca foi confirmada na contestao da aco de
fixao de prazo.
(
49
) Ver supra.
(
50
) Cit., p. 259.
(
51
) Para essa exigncia, ver GALVO TELLES, cit., p. 258, PESSOA JORGE, cit., p. 297,
MOSCO, cit., p. 37, MURARO, cit., p. 290, e LESER, cit., p. 648.
(
52
) JAKOBS, Unmglichkeit und Nichterfllung, 1969, junta a essa exigncia o no
acatamento voluntrio de uma sentena condenatria (ver as observaes crticas de WER-
TENBRUCH, cit., pp. 193-194).
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Esta condicionante, que constitui a nota mais tpica ou marcante da figura
em anlise, complexa atendendo sua possvel eficcia bilateral, isto ,
de dispensar o credor do cumprimento de certos nus (maxime o de fazer
uma interpelao cominatria) e de poder representar para o devedor uma
espcie de ltima palavra, ficando como que obrigado a no modificar
o seu acto de manifestao volitiva e gerando-se, assim, uma autovinculao
ou mesmo um dever unilateral de no trair a vontade revelada. Veremos
j a seguir se o declarante pode ou no retractar-se, retirando a sua
recusa, mas, neste momento, importante que fique assinalado que no
devem subsistir dvidas quanto a certas intenes do devedor, pois dife-
rente ele afirmar que no ir cumprir no prazo (ou dentro do prazo) ou que
nunca ir cumprir (
53
) (nem no prazo nem em aco de cumprimento).
As caractersticas que nos permitem concluir por uma recusa mais
sintomtica foram, de certa forma, incorporadas nalguns Cdigos e em
legislao uniforme, ou com predisposio para tal (
54
), ao ser requerido,
como requisito condicionante do exerccio de certos direitos (maxime o
direito de resoluo), que o credor possa concluir pelo incumprimento ou
que a declarao revele manifestamente que ele ir ocorrer.
3. DA POSSVEL RELATIVIDADE DA AFIRMADA NATUREZA
DEFINITIVA DA VONTADE DE NO CUMPRIMENTO
Mesmo quando a declarao e o comportamento factual do devedor tra-
duzam uma vontade definitiva de no haver cumprimento, de questionar se
o devedor poder revogar a sua inteno, retirando a recusa ou colocando-se
de novo em condies de vir a cumprir (distratando, por ex., uma venda a ter-
ceiro). Ser que o devedor, depois de ter comunicado ao credor a sua inten-
o, pode voltar atrs por um acto unilateral de manifestao de uma vontade
(contrria) de cumprimento? Ou ser que, afinal, o tom categrico e defini-
tivo da declarao vincula o devedor, sendo uma espcie de ltima palavra,
com eficcia potestativa, fixando inexoravelmente a posio dos contraentes
e retirando quele a possibilidade de ainda oferecer o cumprimento?
Jos Carlos Brando Proena 372
(
53
) Ver BAPTISTA MACHADO, cit., p. 332, nota 35, para a colaborao dos contraen-
tes na eliminao das dvidas da declarao.
(
54
) Cfr., supra, nota 14, para a referncia ao Cdigo holands, aos Princpios UNI-
DROIT e aos Princpios de um direito contratual europeu.
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Esta questo da possvel relatividade da caracterstica subjectiva mais
marcante emprestada declarao do devedor controversa at porque
no imune s vrias concepes sustentadas a propsito da natureza jur-
dica e do valor do prprio acto (maxime o declarativo) de recusa.
Aceitando a tese dominante de conceber a declarao de recusa como
simples acto jurdico, parece que, por fora do disposto no artigo 294., a
revogao-retractao do acto do devedor ficaria sujeita aos apertados limi-
tes advogados pelas teorias da recepo e do conhecimento (
55
). Esta tese
geomtrica no , contudo, forosa, como o prova o preceituado naquele
normativo e, por outro lado, de salientar que a declarao do devedor,
mesmo traduzindo uma vontade definitiva, no tem natureza potestativa, no
gera uma obrigao-vinculao de no se vir a cumprir, pois, como diz
C. FERREIRA DE ALMEIDA (
56
), no afecta, por si mesma, a subsistncia da
obrigao, porque o devedor no tem legitimidade para unilateralmente
extinguir a sua prpria obrigao. Efectivamente, como a recusa defini-
tiva no afasta, em regra, a possibilidade material e jurdica de o devedor
ainda vir a cumprir (
57
), no parece legtimo tratarmos a declarao como
o acto de escolha, referido no artigo 542., n. 1, a declarao de renn-
cia ao exerccio de um direito, a interpelao cominatria prevista no
artigo 808., n. 1, ou como uma vulgar proposta contratual (inserida ou no
num pacto de opo), vendo-a, para proteco (?) do credor, como decla-
rao receptcia, sujeita, pura e simplesmente, aos princpios dos arti-
gos 224. e ss. Se, por ex. na declarao de resoluo, a necessidade pro-
tectora do co-contraente afasta outra opo do titular do direito a partir do
momento em que aquela se torna irrevogvel, j na nossa hiptese a efi-
ccia da recusa no gera, de per si, a sua irrevogabilidade, pois no se
justifica proteger automaticamente o credor contra uma declarao anteci-
pada de incumprimento, retirando ao devedor a possibilidade de se con-
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 373
(
55
) A questo no se coloca para os antigos partidrios das teses contratualistas
j que no possvel ressuscitar um contrato resolvido. Ver, contudo, no direito ameri-
cano, para o relevo da aceitao da repudiation, E. FARNSWORTH, cit., p. 543.
(
56
) Cit., p. 311. No mesmo sentido, ver CONTINO, cit., p. 252, e P. TARTAGLIA, in
RDC II, 1977, cit., pp. 27-28, conquanto no possa ser esquecida, como vimos, supra
(nota 45), a sua parcial concepo contratualista (la dichiarazione di non volere adem-
piere ex se non costituisce inadempimento).
(
57
) O ponto evidenciado por MURARO (Linadempimento prima del termine, in
RDC II, 1965, p. 148, e RDC I, cit., supra, nota 26, p. 290) ao referir-se relativa defi-
nitivit della dichiarazione.
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tradizer legitimamente. E assim que GERNHUBER (
58
), partindo do acto
real ilcito, ou seja, no aceitando ver a recusa como declarao de von-
tade, s exclui a retractao (Widerruf) do devedor se o credor transfor-
mar a relao obrigacional numa relao obrigacional secundria ou numa
relao de liquidao.
Por outro caminho, mais centrado na eficcia a conceder prpria
recusa, parte da doutrina italiana (
59
) admite igualmente que o devedor
possa ainda cumprir at data do vencimento ao negar recusa valor de
incumprimento, isto , diferindo a eficcia da declarao para o momento
da exigibilidade ou no vendo nela gravidade suficiente para justificar um
procedimento resolutivo.
Mas tambm no se v que possa haver incompatibilidade profunda
entre o possvel arrependimento do devedor e a violao da obriga-
o (
60
), sabendo-se que o incumprimento (maxime a mora) no afasta
necessariamente um cumprimento posterior, quer por vontade do credor, quer
por vontade do devedor (atravs da purgao da mora ou de uma possvel
excepo do cumprimento (
61
)), quer por vontade de ambos (cumprimento
no decurso do prazo da interpelao cominatria). E, na verdade, que a
questo no derimida liminarmente pelos que consideram a recusa como
um incumprimento antecipado -nos provado, por ex., pelo posicionamento
de um MURARO (
62
) ao admitir a resipiscenza do devedor, mediante
una controdichiarazione specifica od anche un espressivo e inequivoco
comportamento contrario. Nesta mesma orientao, a concepo
norte-americana, que acolhe a existncia de um breach of contract (dife-
rente do breach by nonperformance), sustenta que o devedor possa exer-
cer, em certos termos, o seu power of retraction antes da parte lesada rea-
gir repudiation, isto , antes de a aceitar ou de comunicar ao outro
contraente que considera o contrato resolvido (
63
). A este propsito
Jos Carlos Brando Proena 374
(
58
) Cit., p. 154. De uma forma geral a dogmtica jurdica alem defende a Rck-
nahme da recusa de cumprimento, como se v em U. HUBER, cit., pp. 636 e ss. e a
nota 102.
(
59
) Ver os autores citados por CONTINO, cit., p. 252, notas 21 e 24. Relativamente
a MIRABELLI de salientar, igualmente, o que diz na p. 388 da obra cit., supra, nota 35.
(
60
) Ver C. FERREIRA DE ALMEIDA, cit., p. 314, para a defesa dessa incompatibilidade.
(
61
) Pensamos na soluo consagrada no artigo 442., n. 3, 2. parte, do CC.
(
62
) RDC II, 1965, cit., p. 148, e RDC I, 1975, cit., p. 290.
(
63
) Cfr., para o direito americano, E. FARNSWORTH, cit., pp. 542 e ss. (com a indis-
pensvel referncia ao caso, de 1853, Hochster v. De la Tour, numa hiptese em que o
segundo comunicou ao futuro patro o desejo de no cumprir o contrato) e, para o direito
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posta em relevo a atitude do credor no sentido de conseguir a retrac-
tion, com o fim de conservar, assim, a fora primitiva do acordo.
A nossa doutrina trata muito pontualmente o problema, parecendo
admitir, contudo, e em certos termos, o repensar da posio do devedor.
Na verdade, se PESSOA JORGE (
64
) invoca a possibilidade de arrependi-
mento do devedor como obstculo ao vencimento antecipado da obrigao
com prazo, CALVO DA SILVA (
65
) sustenta que a oferta posterior reso-
luo cai na proibio de venire contra factum proprium. , no entanto,
C. FERREIRA DE ALMEIDA (
66
) quem desenvolve mais a questo embora
o faa ao discorrer sobre o problema do fundamento da recusa e ao
avocar para tal a figura relevada por CALVO DA SILVA. Conquanto
defendam enquadramentos diferentes CALVO DA SILVA reconduz a
recusa antecipada ao incumprimento os dois juristas parecem encon-
trar-se no ponto que agora nos ocupa, j que das consideraes de
C. FERREIRA DE ALMEIDA parece resultar que o arrependimento s fica
precludido se o devedor vier oferecer o cumprimento aps a reaco
do credor. Vendo na declarao da inteno de no cumprir o factum
proprium, e a posio contraditria tanto na invocao do direito ao
benefcio do prazo como na oferta tardia da prestao, C. FERREIRA DE
ALMEIDA admite a revogao enquanto o credor no tenha alterado os
seus planos de aco, isto , enquanto se no tenha verificado um inves-
timento de confiana (
67
).
Para ns, e margem da resposta que iremos dar questo do fun-
damento-eficcia da recusa antecipada, a questo agora em causa no deve
ser resolvida aprioristicamente com a sua negao, a pretexto da intensi-
dade transmitida pelo devedor sua vontade. Efectivamente, a eventua-
lidade de o devedor querer voltar atrs com uma declarao que pretendeu
definitiva compreensvel se pensarmos na possibilidade (mesmo que
rara) da alterao do quadro circunstancial que originou a declarao, bem
como num ulterior juzo autocrtico do devedor ou na percepo mais tar-
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 375
ingls, F. R. DAVIES, Contract, 3. ed., 1977, pp. 211-213, e A. RIBEIRO MENDES, Aspectos
gerais da responsabilidade contratual em direito comparado ingls e portugus, in ROA
I, 1977, pp. 19 e ss.
(
64
) Cit., p. 297.
(
65
) Sinal e contrato-promessa, cit., p. 105, e Estudos, cit., p. 138. Ver, no mesmo
sentido, MAGAZZ, cit., p. 943, nota 56.
(
66
) Cit., pp. 311 e ss.
(
67
) Cit., p. 314.
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dia dos efeitos inerentes recusa do credor em satisfazer a sua contra-
prestao (
68
). Mesmo na perspectiva do credor essa nova avaliao do
devedor, traduzida eventualmente na prestao de garantias de cumpri-
mento, pode vir de encontro aos seus interesses se pensarmos numa pres-
tao infungvel ou nas dificuldades (temporais, conjunturais e econmicas)
para celebrar contratos de cobertura. Independentemente deste duplo inte-
resse, que justifica, nas palavras de WERTENBRUCH (
69
), que o devedor se
declare disposto a cumprir perante o pedido de cumprimento do credor,
impressiona o argumento de GERNHUBER, acima referido, da excluso, como
bem jurdico a proteger, da confiana do credor na manuteno do ilcito do
devedor (
70
). S no pensar assim quem der nfase excessivo s palavras
do devedor, vinculando-o irremediavelmente a uma posio unilateral que
deixou de corresponder aos interesses dos contraentes (
71
). Ser que o tom
definitivo da recusa conduz, de per si, consolidao da sua eficcia?
E que o devedor, ao oferecer-se para cumprir (mesmo sem pedido do cre-
dor), abusa do direito-faculdade de invocar o benefcio do prazo?
Repare-se que no se trata de o devedor paralisar, em qualquer caso,
o legtimo exerccio dos direitos do credor, mas apenas de lhe ser permi-
tido cumprir alterando uma vontade inicial divergente. A precluso da
possibilidade de cumprimento e C. FERREIRA DE ALMEIDA admite-a por
outras palavras s dever ocorrer a partir do momento em que, de
acordo com os interesses do credor, tenha ficado consolidado o tom defi-
nitivo da recusa, levando o credor a exercer direitos incompatveis com o
arrependimento ou a perder interesse no cumprimento voluntrio, o que no
pressupe necessariamente a existncia de um investimento de confiana
ou de aces concretas. Por outras palavras, a eficcia da recusa fixa-se
no apenas em funo do tom emprestado pelo devedor sua declarao,
mas, sobretudo, pela reaco (dentro de um prazo razovel (
72
)) do credor
Jos Carlos Brando Proena 376
(
68
) Sobre o ponto, ver CONTINO, cit., p. 264.
(
69
) Cit., p. 197.
(
70
) Atente-se que, por ex., o artigo 81., n. 2, do CC admite a revogao de cer-
tas vinculaeslcitas. Para o duplo limite revogao da consignao em depsito,
ver o artigo 845., n. 2, do CC.
(
71
) essa, por ex., a posio de BLOMEYER, Allgemeines Schuldrecht, 4. ed., 1969,
p. 163, ao articular o venire contra factum proprium com uma espcie de autoresponsabi-
lidade do devedor visvel na sua declarao.
(
72
) No artigo 90. do Projecto do Cdigo europeu dos contratos est previsto que o
credor, se no declarar, no prazo de oito dias, que considera a obrigao no cumprida, j
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perda de funcionalidade do contrato, particularmente quando este adop-
tar uma posio contrria conservao negocial, j que a mera declara-
o de que recusar a prestao ou de que considera o contrato definiti-
vamente no cumprido no excluem forosamente procedimentos de
cumprimento coactivo (
73
).
Temos a convico de que s abusiva a conduta do devedor que
pretenda, com a oferta de cumprimento, reverter a seu favor um estado de
coisas desfavorvel, retirando vantagens indevidas de uma situao que
criou (
74
) (por ex., pretendendo agora com o cumprimento escapar ao
pagamento de uma indemnizao mais pesada). Tanto a pretenso de criar
uma posio jurdica favorvel (ou mais favorvel), como o impedimento
ao surgimento de posies favorveis ao credor (por ex., oferecendo garan-
tias para evitar uma mais que provvel resoluo) legitimam a invocao do
brocardo turpitudinem suam allegans non auditur. J nos casos em que a
oferta de cumprimento tenha apenas subjacente um assumir (tardio) da vin-
culao existente, essa pretenso encontra uma barreira natural na consoli-
dao do anncio do devedor, isto , na reaco concreta (
75
) conduta (por
palavras ou actos) do devedor. Com o devido respeito pela opinio contrria,
no nos parece que exista um dolus praesens numa posterior alegao
do benefcio do prazo mas uma precluso natural derivada da perda de sen-
tido do arrependimento, tendo em conta o desinteresse (objectivamente fun-
dado) revelado pelo credor nesse cumprimento (
76
). Ao pretender que a sua
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 377
no poder recusar um cumprimento posterior (cfr. S. PATTI, Riflessioni su um progetto di
codice europeo dei contratti, in RDCDO, 9-10/11-12, 2001, pp. 496-497).
(
73
) Segundo U. HUBER, cit., pp. 638 e ss., enquanto o credor no reagir sobre ele
que recai o risco de negcios de cobertura ou de simples negociaes com vista a um
futuro contrato.
(
74
) Para a figura da conduta anterior indevida, ver ALMENO DE S, Execuo pblica
pelo autor, direitos conexos e gesto colectiva, separata do BFDC, LXXV, 1999, pp. 46 e ss.
(
75
) A reaco do credor, como limite temporal da oferta de cumprimento, poten-
ciada se, ao abrigo da solidariedade contratual, for antecedida da insistncia daquele na con-
servao do contrato mediante o pedido de retirada da recusa, a concesso de um prazo de
reflexo para o devedor reafirmar a recusa ou manifestar outra inteno ou pela
via, acolhida em certas solues normativas, da pretenso de garantias de cumprimento. Ver,
infra, n. 5, para o problema da conexo entre a atitude mais conservadora do credor, a
interpretao que dela retire o devedor e a questo do agravamento dos danos.
(
76
) Parece-nos que j no funcionar essa precluso ou que o devedor poder reen-
trar no bom caminho sempre que o credor, no recusando a prestao, venha pedir o cum-
primento (forado) do contrato (e por que no considerar a recusa categrica como caso de
perda do benefcio do prazo?) ou a sua execuo especfica. Neste ltimo caso (ver, a pro-
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conduta no veja consolidada a sua eficcia (com ressalva bvia dos efei-
tos danosos j produzidos) o devedor no quer, como pensa C. FERREIRA DE
ALMEIDA, perturbar a confiana gerada, at porque duvidoso que a con-
duta negativa do devedor, desprovida de natureza vinculativa, crie sempre
no credor, e margem da sua reaco, a convico de que ele tambm no
futuro se comportar, coerentemente, de determinada maneira (
77
).
4. DO ENQUADRAMENTO DOGMTICO DA RECUSA ANTE-
CIPADA: ATRACO PARA O QUADRANTE DA MORA,
DO INCUMPRIMENTO DEFINITIVO (POR IDENTIFICA-
O DAS HIPTESES OU DAS ESTATUIES), DA
VIOLAO CONTRATUAL POSITIVA OU DA
VIOLAO CONTRATUAL ESPECFICA?
Os juristas nacionais, com honrosas excepes, mostram pouca ou
nenhuma preocupao com a configurao dogmtica da recusa anteci-
pada de cumprimento, preferindo abordar lateralmente a questo na refe-
Jos Carlos Brando Proena 378
psito o nosso Do incumprimento do contrato-promessa, cit., p. 94), colocvel a prop-
sito da execuo especfica de um contrato-promessa, cujo cumprimento tenha sido recusado
categoricamente, a oferta de cumprimento, por mera vontade do declarante, s ser de
negar se pudermos equiparar a hiptese execuo especfica de um contrato-promessa defi-
nitivamente no cumprido por via do fracasso da interpelao cominatria (para a exign-
cia desta interpelao mesmo havendo comunicao categrica e definitiva do devedor,
ver JANURIO GOMES, Em tema de contrato-promessa, 1990, p. 17).
O contrato-promessa coloca tambm a dvida de saber se a recusa categrica de
cumprimento cabe na chamada contra-excepo do artigo 808. (por remisso do artigo 442.,
n. 3, 2. parte) como forma de paralisar, mediante a chamada excepo do cumprimento
(cfr. MENEZES CORDEIRO, A excepo do cumprimento do contrato-promessa, in TJ n. 27,
1987, p. 1), o direito do credor-promitente comprador ao pedido de uma indemnizao
pelo valor. Para ns, a excepo s ser de rejeitar se o promitente-vendedor cair na
alada de um comportamento abusivo (por especular com o valor) ou se o promi-
tente-comprador vier alegar que a declarao lhe fez perder o interesse no cumprimento, quer
por razes objectivas (de tipo econmico), quer por motivos subjectivos, juridicamente
relevantes, e fundados, por ex., numa segunda declarao de recusa por iniciativa do mesmo
credor (para a defesa, que tem o nosso sufrgio, de uma mais lata aplicao do meca-
nismo da excepo do cumprimento, ver JANURIO GOMES, cit., p.25).
(
77
) BAPTISTA MACHADO, Tutela da confiana e venire contra factum proprium, in
RLJ, ano 118., p. 171. MENEZES CORDEIRO na ROA II, 1998, em anot. ao acrdo do
Supremo de 12 de Novembro de 1998, p. 964, exige como pressupostos do venire contra
factum proprium uma situao de confiana, uma justificao para essa confiana,
um investimento de confiana e uma imputao da confiana.
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rncia que fazem aos efeitos ou a alguns efeitos ligados ao teor inequvoco,
definitivo e (para alguns) expresso da declarao do devedor.
A nossa doutrina divide-se entre aqueles que, como GALVO TEL-
LES (
78
), sufragam simplesmente uma aliana da mora automtica com os
efeitos do vencimento imediato da obrigao, no prescindindo, pois, e
implicitamente, do recurso aos mecanismos previstos no artigo 808., e
aqueles (
79
) (a que se junta a jurisprudncia (
80
)) que defendem, mais ou
menos explicitamente, a existncia antecipada (directa ou por equiparao)
de um incumprimento definitivo. Num outro ncleo podemos colocar os
juristas que, como PESSOA JORGE, PEDRO ROMANO MARTINEZ e C. FERREIRA
DE ALMEIDA, assumem posies mais cpticas e particulares, repudiando o
duplo pensamento dominante. Vejamos mais em pormenor esta dialctica.
CALVO DA SILVA (
81
) quem explana mais convicta e desenvol-
vidamente a tese do binmio declarao antecipada-incumprimento, ao
considerar, apoiado em FRAGALI e com argumentos relevados pelos que
sufragam a tese da violao contratual positiva ( um intermdio e
instrumental dever de conduta que mantenha a fiducia do credor)
que o devedor no livre de declarar que no quer cumprir, no s
pela traio da confiana depositada no cumprimento, mas ainda pelas
repercusses que aquela declarao poderia ter sobre o valor do crdito.
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 379
(
78
) Cit., pp. 255 e 258. Para um mesmo entendimento, ver ALMEIDA COSTA, cit.,
pp. 970 e 932, nota 2, MENEZES CORDEIRO, in ROA I, cit., p. 143 e nota 39 (sendo o prazo a
favor do devedor, h uma renncia ao benefcio do prazo), RIBEIRO DE FARIA, cit., p. 447,
JANURIO GOMES, cit., p. 17, e MENEZES LEITO, Direito das Obrigaes, II, 2002, p. 230.
(
79
) Cfr. ANTUNES VARELA, Das Obrigaes em Geral, II, 7. ed., 1997, p. 92, Emen-
das ao regime do contrato-promessa, in RLJ, ano 121., p. 9 e nota 1, col. esq., e em
anot. ao acrdo do STJ, de 5 de Novembro de 1983, cit., supra (nota 19), pp. 223-224,
e BAPTISTA MACHADO, RLJ, ano 118., cit., p. 275, nota 2 (com a invocao do artigo 801.),
e p. 332, nota 35. MENEZES CORDEIRO no seu Direito das Obrigaes, II e III, cit., res-
pectivamente pp. 457 e 525-526, defende tratar-se de um incumprimento definitivo.
(
80
) Ver, entre outros, os acrdos do STJ, de 7 de Janeiro de 1993, in CJ I, 1, p. 15,
de 21 de Maio de 1998, cit., e de 26 de Janeiro de 1999, cit., supra, nota 15, todos no dom-
nio do contrato-promessa.
(
81
) Sinal e contrato-promessa, cit., pp. 102-105, e Estudos, cit., p. 137. Para uma
adeso ao pensamento de CALVO DA SILVA ver o Parecer de RAL GHICHARD/SOFIA PAIS,
Contrato-promessa: resoluo ilegtima e recusa terminante de cumprir; mora como fun-
damento de resoluo; perda do interesse do credor na prestao; possibilidade de des-
vinculao com fundamento em justa causa; concurso de culpas no incumprimento;
reduo da indemnizao pelo sinal, in DJ I, 2000, p. 317 ( (no observando o dever
de omitir esse comportamento), haver uma violao do crdito).
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E mais frente o ilustre jurista, para justificar a atitude desvinculativa do
credor, afirma que a relao jurdica perdeu a fora originria e
desapareceu como vnculo em cuja actuabilidade final o sujeito activo
possa confiar.
J PESSOA JORGE (
82
), e particularmente quanto s obrigaes a prazo,
assume uma posio bastante mais cautelosa, ao pr em causa o efeito do
vencimento automtico ligado declarao do devedor, esgrimindo basi-
camente com o seu possvel arrependimento e com a excepcionalidade
das causas legais de antecipao do vencimento. Em PEDRO ROMANO
MARTINEZ (
83
) encontra-se o pensamento de que uma declarao expressa
de incumprimento, emitida antes do vencimento, no faz surgir qualquer
incumprimento definitivo, embora o ilustre jurista ressalve, em termos
pouco ntidos e relativamente aos quais temos dificuldade em atingir o
seu alcance, a ocorrncia dos pressupostos do artigo 780. e a possvel
interveno da boa f.
C. FERREIRA DE ALMEIDA junta-se a PESSOA JORGE e a PEDRO ROMANO
MARTINEZ no repdio s teses dominantes ao afirmar, na concluso do seu
estudo, que no direito portugus, a recusa de cumprimento declarada
antes do vencimento no se configura como um caso de incumprimento
antecipado (
84
). Qual o fundamento que leva o jurista lisboeta a ver na
declarao apenas uma ameaa de no cumprir conducente possibili-
dade de desconsiderao do vencimento (
85
)?
Depois de passar em revista as teses (da antecipao do vencimento,
da violao positiva do contrato e da proibio de venire contra factum pro-
prium) que segundo C. FERREIRA DE ALMEIDA so as mais sustentveis
face ao nosso sistema jurdico, o ilustre jurista adere, como j vimos atrs,
ltima das teses para encontrar a, isto , na contradio entre a decla-
rao do devedor (que para o jurista no vai contra a boa f) e a invoca-
o do benefcio do prazo quando confrontado (o devedor) com alguma
das pretenses que o credor tem sua disposio, em caso de incumpri-
mento (
86
) a base dogmtica da sua posio final.
Jos Carlos Brando Proena 380
(
82
) Cit., pp. 296-298. Mesmo nas obrigaes puras, PESSOA JORGE acha mais sen-
sato continuar a exigir-se a interpelao.
(
83
) Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, 1994,
pp. 66 e 136.
(
84
) Cit., p. 317.
(
85
) Ibidem.
(
86
) Cit., p. 311.
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J vimos que aquilo que C. FERREIRA DE ALMEIDA discute com o
fundamento que adopta (e que, como veremos, sufragado na Alemanha
pelos seguidores de RABEL) mais a questo do possvel arrependimento
do devedor, pois no vemos que seja suficiente para resolver o problema
do enquadramento terico da figura esgrimir com a proibio de venire con-
tra factum proprium, a existncia ou a ausncia do investimento de con-
fiana ou com o ponto (lateral) da perda ou no do benefcio do prazo.
Quando, na crtica aos adeptos da violao positiva do contrato, C. FER-
REIRA DE ALMEIDA afirma que no h violao da obrigao principal,
mas apenas uma ameaa de incumprimento, no considera a diferena
entre o plano da vinculao e o do contedo dessa vinculao. Para ns,
como veremos, o primeiro que fortemente perturbado, violado mesmo,
condicionando naturalmente o segundo. Mas tambm no vemos o que
impede C. FERREIRA DE ALMEIDA de defender a tese de um incumpri-
mento antecipado, quando o vemos aludir ao prognstico quase seguro
de incumprimento da obrigao principal e quando, referindo-se ao cre-
dor, afirma que ele deve agir como se o incumprimento j se tivesse
verificado (
87
) ou que tem o direito potestativo de antecipar as preten-
ses que do incumprimento decorreriam (
88
). Ser que a fico legi-
tima o exerccio desse direito? Por que que a recusa torna contradit-
ria a invocao do direito ao benefcio do prazo, quando a declarao
no parece ter subjacente a renncia a esse benefcio? E se a declarao
vincula o devedor, margem de qualquer investimento de confiana,
poder conceber-se um arrependimento sem cair no crivo da proibio
de venire contra factum proprium? E por que que, apesar de haver
um quase-incumprimento, o credor pode ficar inactivo, assistindo ao
agravamento dos danos, como se no tivesse culpa ou fugisse aplicao
do artigo 570., n. 1? E se o credor deve actuar imediatamente, ao fin-
gir-se que existe um incumprimento, por que que C. FERREIRA DE
ALMEIDA recusa o direito execuo especfica antes do vencimento?
No h no recurso a esse expediente um intento de prevenir imediata-
mente as consequncias danosas do incumprimento futuro? No ser a
inrcia prejudicial para ambos?
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 381
(
87
) Cit., p. 310.
(
88
) Para uma apreciao crtica, ver MENEZES LEITO, cit., p. 230, nota 449, ao
considerar como uma excessiva penalizao, por desproporcionado, o exerccio imediato
dos remdios prprios do incumprimento definitivo.
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Antes de expormos as grandes linhas da nossa posio, vejamos, en
passant, a perspectiva de alguma doutrina estrangeira que tem debatido a
questo.
Comeando pelo pensamento alemo, cujo fio condutor anterior
reforma de 2001 e consequente eroso dos conceitos de impossibili-
dade e mora (
89
), um nmero assinalvel de juristas germnicos clssicos
(como ENNECCERUS) e modernos (sobretudo comentaristas) e a jurispru-
dncia dominante (do RG (
90
) e do BGH (
91
)) demarcam a Erfllungs-
verweigerung do negativismo omissivo patente na mora e no incumpri-
mento definitivo, integrando-a, enquanto conduta anti-contratual lesiva
de certo dever de conduta, na violao contratual positiva, categoria
teorizada por STAUB nos incios do sculo XX e que, entre ns, ter
influenciado VAZ SERRA (
92
).
Assim, se em LARENZ (
93
), a recusa culposa tida por leso grave
antecipada, valorada como caso particular de violao contratual posi-
tiva, e se, em SCHLECHTRIEM (
94
), o dever de omitir tudo o que possa
fazer perigar um cumprimento ainda no exigvel surge como corolrio
de um imperativo genrico de fidelidade contratual (Verletzung der Pflicht
zur Vertragstreue), de no fazer perigar o fim contratual ou dever de manu-
teno da confiana do credor no cumprimento (
95
), j em GERNHUBER (
96
)
Jos Carlos Brando Proena 382
(
89
) Cfr., para a funo central do dever de prestar (Pflichtverletzung) nos
novos normativos dos 280 e ss. do BGB, HANSJRG OTTO, Die Grundstrukturen des neuen
Leistungstrungsrechts, in Jura 1/2002, pp. 1 e ss.
(
90
) Ver, para essa fase, LEONHARD, Allgemeiner Schuldrecht der BGB I, 1929,
p. 531 (com certo tom crtico, apesar de se inserir na orientao ao aludir forte pertur-
bao dos vnculos pessoais do credor), GERNHUBER, cit., p. 148, nota 13 (aceitando na
p. 149 reconduzir a figura violao do Leistungstreuepflicht), e WERTENBRUCH, in AcP
193, cit., pp. 191-192, nota 2.
(
91
) Cfr. SCHLECHTRIEM, Schuldrecht, Allgemeiner Teil, 1992, p. 163, nota 102.
(
92
) Cfr. o BMJ n. 48, cit., p. 61. Na RLJ, ano 100., p. 255, em anot. ao acrdo
do STJ, de 27 de Maro de 1976, VAZ SERRA considerou violador da boa f (e incumpri-
mento antecipado) a alienao a terceiro feita por um promitente-vendedor.
(
93
) Lehrbuch des Schuldrechts, I, Allgemeiner Teil, 14. ed., 1987, p. 365, nota 8. Pr-
ximo de LARENZ est de certa forma U. HUBER, cit., pp. 577 e ss., ao considerar a recusa
como um tipo prprio de perturbao contratual ao lado da mora e da impossibilidade.
(
94
) Cit., p. 163.
(
95
) Na linha do relevo da infidelidade ao contrato e da tutela da confiana, ver
os autores referidos por LESER, cit., p. 651, nota 34. Para uma crtica, em nome da sua des-
necessidade, a esse Leistungstreuepflicht, ver SCHNEMANN, Die positive Vertragsverlet-
zung eine kritische Bestandsaufnahme, in Jus 1987, p. 7. Essa e outras reservas encon-
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a recusa definitiva, enquanto acto real ilcito, contende, atravs da inob-
servncia do dever de fidelidade ao contrato, com as prprias aces
de prestao. Aquela violao, dirigida por outros (
97
), para o dever de
colaborao, se tem naturalmente por corolrio a aplicao dos remdios
prprios do tipo de incumprimento em que se insere (em particular a dua-
lidade recusa do cumprimento-indemnizao) tambm no deixa de recor-
rer via analgica, aproveitando-se da norma do BGB ( 326) (
98
) que tinha
sido fonte do nosso artigo 808.
A mesma negao da violao de qualquer dever (lateral ou de pres-
tao) surge nos juristas, que na esteira de RABEL (
99
), colocam a tnica na
vinculao do devedor sua declarao de vontade, trazendo, pois, para pri-
meiro plano, as caractersticas dessa recusa, isto , a seriedade e o tom defi-
nitivo das palavras (der Glubiger kann den Schuldner beim Wort neh-
men) dirigidas ao credor (mesmo que traduzam um mero no poder
cumprir). Esse factum proprium compromete o devedor, impedindo-o,
por contrariar a boa f (
100
), de adoptar condutas contraditrias (
101
) e
retirando ao credor a possibilidade de exercer direitos que colidam com a
vontade revelada.
Um outro grupo de juristas germnicos aproxima a nossa figura do
incumprimento tout court atravs da integrao da recusa no seio da impos-
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 383
tram-se em ESSER/SCHMIDT, Schuldrecht Band I, Allgemeiner Teil, 2, 7. ed., 1993, p. 120,
LESER, cit., pp. 653 e ss., JAKOBS, cit. (pp. 50 e ss.), FRIEDRICH, cit., p. 493, e HFFER
(cit., p. 243).
(
96
) Cit., pp. 152 e ss. Ver, igualmente, o seu Das Schuldverhltnis, 1989, pp. 21-22.
(
97
) GERNHUBER, cit., p. 149, nota 20, refere KPCKE.
(
98
) Segundo STAUDINGER/OTTO (apud HANSJRG OTTO, cit., p. 6, nota 66) os nor-
mativos que permitem enquadrar actualmente a consequncia indemnizatria ligada recusa
antecipada so os 281 II e 282.
(
99
) GERNHUBER, cit., p. 150, nota 22, atribui a paternidade da tese a KRCKMANN e
a FRITZ.
(
100
) No caso, relatado por SCHLECHTRIEM (cit., p. 163), e relativo a um contrato de
empreitada, o BGH seguiu uma via prxima ao defender a aplicao da doutrina do 162
do BGB (correspondente ao nosso artigo 275., n. 2), estabelecendo a doutrina que ningum
se deve aproveitar da no verificao de um certo pressuposto quando essa falta foi por si
provocada e contra as regras da boa f.
(
101
) Cfr. BLOMEYER, cit., pp. 162-163, e os autores citados por LESER, cit., p. 652.
Para uma crtica, centrada no recurso da orientao em causa figura da proibio de
venire contra factum proprium e na sua aproximao anticipatory repudiation do direito
ingls, ver GERNHUBER, cit., pp. 150-151. Em sintonia com a primeira objeco est HF-
FER, cit., p. 243.
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sibilidade de forma a atribuir ao credor determinados direitos (
102
)
fazendo-lhe aplicar as normas da mora (utilizando, de preferncia, o expe-
diente analgico (
103
) a partir da anterior redaco do 326 do BGB) ou,
numa perspectiva mais global, e digna de ponderao, considerando-a uma
pura negao do contrato (do Hauptpflicht), isto , uma forma particular
de violao contratual culposa (
104
), em que o fundamento da desvin-
culao (activada por uma declarao potestativa do credor), e no s,
reside na prpria Weigerung.
Na literatura italiana a discusso menos difusa, pois, tal como nos
apresentada por CONTINO (
105
), revela num dos lados a orientao (domi-
nante a partir de finais da dcada de 50) que faz equiparar a recusa ao
incumprimento, desvalorizando a inexigibilidade da prestao, avocando a
aplicao do artigo 1453. do Codice Civile (semelhante ao artigo 801.,
n. 2, do nosso Cdigo) e invocando, por fundamentos, a violao da boa
f (e a prpria proibio de venire) e a crise da confiana do credor na
manuteno de um vnculo face mutao culposa da vontade assumida
na contratao (
106
) (
107
).
Jos Carlos Brando Proena 384
(
102
) o caso de JAKOBS, cit., pp. 50 e ss., ao aplicar as normas que correspondiam aos
280 e 325 do BGB, como j tinha sido, segundo LESER (cit., p. 651), a posio de FRITZ.
Apesar de JAKOBS entender que a recusa no ainda a violao do dever de prestar, acaba por
fundar os direitos de indemnizao e de resoluo na pressuposio de um incumprimento tido
por certo. GERNHUBER (cit., p. 147) critica com razo JAKOBS por este alargar o conceito e o
sentido da impossibilidade da prestao. Para a fico de uma impossibilidade da prestao,
embora no seio de um incumprimento bilateral, ver CH. RABL, Glubigerverzug und beider-
seits zu vertretende Unmglichkeit der Leistung, in JBl, 1997, p. 502.
(
103
) Para l dos autores referidos por GERNHUBER, cit., p. 148, nota 11, de acres-
centar o nome de HFFER, cit., pp. 243-244.
(
104
) o caso de LESER, cit., pp. 653 e ss. e, como vimos supra, nota 93, de
U. HUBER, cit., p. 580.
(
105
) Cit., pp. 247 e ss.
(
106
) SACCO (apud CONTINO, cit., p. 247) alude mais precisamente violao do
interesse imediato do contraente a ver salvaguardada a integridade dasexpectativas.
(
107
) Como autores mais representativos destacam-se FRAGALI, MURARO, M. BIANCA,
GIORGIANNI e TARTAGLIA, embora com uma linha de pensamento algo diferente. Se os
dois ltimos exigem, respectivamente, que haja uma manifestao certa e unvoca (cit.,
pp. 861-862) ou factos objectivamente significativos de uma situao de incumpri-
mento (cit., pp. 25-26), j BIANCA, cit., pp. 97-98, e Diritto Civile Lobbligazione, 4,
1993, p. 223, justifica a tese do incumprimento antecipado com a aplicao analgica do
artigo 1186. (correspondente ao nosso artigo 780.) e MURARO, in RDC II, 1965, cit.,
pp. 142 e ss. valora essa obbligo di condotta que exige um comportamento pessoal
necessrio e contnuo, sem contradizer a inteno actual de querer cumprir. Mais frente
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No outro lado da polmica est a doutrina que, entendendo no haver
incumprimento sem exigibilidade, questiona que o devedor, com a sua
declarao ps-contratual, possa ter uma linha de comportamento que se
sobreponha que foi fixada no contrato (
108
), pondo em causa a estrutura
e a funcionalidade da relao existente. Nem os adeptos desta tese se
cobem de invocar a boa f ao considerarem que este princpio vale tanto
na fase do cumprimento como no perodo subsequente ao contrato (mas
anterior quele). Por outras palavras, o devedor no poderia, com a sua
declarao negativa, pr em causa a execuo contratual. Como corolrio
desta concepo (defendida, entre outros, por BIGLIAZZI/GERI, ZANA e PRIN-
CIGALLI (
109
)) est, como vimos, a possibilidade do devedor repensar a sua
atitude, cumprindo dentro do prazo, no se afastando, para alguns (
110
), a
viabilidade da declarao poder equivaler a uma proposta de resoluo
susceptvel de gerar um acordo extintivo.
O que dizer desta panplia de posies?
Para ns, a questo do enquadramento terico do acto de recusa
(lato sensu) condicionada pelas respostas que puderem ser dadas a
quesitos essenciais: a declarao de vontade do devedor ou no uma
mera declarao de intenes? No algo de autnomo relativamente
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 385
(p. 147) MURARO entende que a vinculao implica uma sujeio contnua da liberdade do
devedor a uma conduta diligente dirigida necessria prestao final. Em estudo poste-
rior (RDC I, 1975, cit., pp. 248 e ss.) MURARO valora a concepo dinmica da relao obri-
gacional e o valor econmico do crdito, aplicando os critrios do incumprimento resolu-
tivo para aferir da gravidade da recusa.
FRAGALI (cit., pp. 254 e ss.), por seu lado, para l de tecer reservas considerao
exclusiva dos deveres de conduta e da boa f em que repousam (no que acompanhado
por uma referncia a RAVAZZONI), entende, em crtica a MURARO, que a inteno de cum-
prir no objecto de uma actividade do devedor, nem a sua no contradio pode figu-
rar como objecto de uma obrigao (p. 253). Para FRAGALI o que est em causa a
obrigao de no revogar a vontade de cumprimento expressa ao tempo do contrato, aten-
dendo confiana depositada pelo credor no cumprimento voluntrio da obrigao (p. 256).
Para uma rplica de MURARO s objeces de FRAGALI, ver a RDC I, 1975, cit., pp. 278-279,
nota 58.
(
108
) F. ROMANO, cit., p. 611. Para o jurista italiano a vontade de no cumprir s
tem significado se for acompanhada de um efectivo comportamento inactivo. Da que
F. ROMANO, ao entender que o rifiuto no pode influir na sostanza contrattuale, o
valore apenas como proposta de resoluo, que, a ser aceite, ir acompanhada de uma
indemnizao por danos negativos (p. 614).
(
109
) Cfr. CONTINO, cit., pp. 252-253, notas 21 a 24. Para autores mais antigos, ver
MURARO, in RDC I, 1975, cit., pp. 275-276, nota 54.
(
110
) o caso j referido de F. ROMANO.
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vinculao assumida e ao inerente dever de prestar? Existe contradio
entre o acto negativo e a ligao contratual, de modo a revelar-se uma
patologia jurdica imediatamente relevante? A recusa sria de cumpri-
mento um acto ilcito (Unrechtsgehalt, para citarmos GERNHUBER (
111
))
por colocar em causa, no presente, a juridicidade do vnculo existente, pela
sua repercusso no momento (futuro) da exigibilidade? E no incidindo
o comportamento declarativo sobre a eficcia normativa da contratao,
poder representar uma quebra de solidariedade, por ser contrrio boa
f, enquanto violao do dever de no manifestar a inteno de no
cumprimento?
Sabendo-se que durante a vida de qualquer contrato ocorrem eventos
que o podem atingir, no se estranha que o legislador tivesse previsto,
para alguns deles, determinados mecanismos de reaco (por ex., outorgando
remdios para a alterao anormal de circunstncias, repartindo o risco da
impossibilidade da prestao, permitindo, a ttulo preventivo, a estipulao
de poderes de desvinculao, autorizando a regulao convencional da res-
ponsabilidade). No nosso caso, na ausncia, no direito codificado, de
dados legais que afrontem a questo, a(s) resposta(s) no pode(m) avocar,
outrance, o quadro de solues da teoria geral do incumprimento, toda
ela estruturada com base em comportamentos de outra ndole e com um
diferente momento de verificao temporal. Na verdade, se, em rigor,
no pode falar-se do incumprimento de obrigaes ainda no vencidas, o
enquadramento que se pretende no pode ser conseguido por aplicao
directa dessa situao fctica e da o recurso identificao e equi-
parao-fico , gerando-se, quando muito, e como veremos, algum
aproveitamento do seu regime jurdico (como alis se pode passar com o
incumprimento bilateral).
Na perspectiva do devedor, conquanto a sua obrigao seja violvel,
a revelao de uma inteno de no cumprir, quer seja assumida de
forma subjectiva (por declarao contraparte), quer se apresente de
modo objectivo, e com base num facto concludente (
112
), no pode pr
em causa o valor vinculante do contrato (
113
) ou, nas palavras de GER-
Jos Carlos Brando Proena 386
(
111
) Cit., p. 152.
(
112
) H casos em que a revelao objectiva , em si, o incumprimento, como na hip-
tese do vendedor partir um objecto infungvel antes da data da entrega ou o promi-
tente-vendedor alienar o bem sem qualquer clusula de reverso.
(
113
) F. ROMANO, cit., p. 613.
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NHUBER, as aces de prestao assumidas, mesmo quando, e mais ati-
picamente, a declarao no exclua a possibilidade do cumprimento
voluntrio. Sendo certo que o devedor no manifesta uma pura inteno
como tal, juridicamente neutra mas pretende, na maioria dos casos,
libertar-se do contrato mediante a recusa do seu cumprimento, h que dizer
que essa atitude e aquela em que o mesmo devedor apenas categ-
rico na recusa negam (
114
) o contrato, so desviantes do dever de
prestao, fazendo daquele um instrumento provisrio, que possibilita
ao devedor escolher as sanes aplicveis e que confere ao credor uma
mera expectativa de cumprimento. Se verdade que a celebrao do con-
trato no garante a certeza do seu cumprimento, tambm manifesto
que com o seu no irei cumprir (ou semelhante) o devedor manifesta,
pelo menos, um desejo contrrio vontade livre plasmada no acordo
contratual, potenciando-se a eficcia dessa vontade a partir do momento
em que a interpretao da declarao (ou do comportamento positivo ou
negativo) permita concluir pelo desejo inequvoco e definitivo de no
cumprimento. O devedor no tem legitimidade para se colocar em con-
flito com o seu prprio dever, renunciando sua obrigao essencial,
assumindo uma promessa unilateral de incumprimento (com a conse-
quente perda do direito do credor) e provocando unilateralmente uma
situao evidentemente perturbadora (
115
). Parece, pois, dogmaticamente
consistente que nos situemos primacialmente no plano da vinculao
assumida e da ruptura com a palavra dada, visvel no esvaziamento do
compromisso assumido, na incoerncia manifestada, na alterao anormal
(subjectiva) do plano vinculativo.
Na perspectiva do credor, e particularmente dos seus interesses econ-
micos, no h diferena substancial na atitude do devedor que recuse cum-
prir no vencimento, no decurso da interpelao cominatria ou antes do
prazo da exigibilidade. A crise da funcionalidade do contrato, aferida pela
interpretao inequvoca da declarao e pelo desejo de uma ilegtima des-
vinculao do devedor, prevalece sobre a viso atomstica de um prazo
ainda no vencido, justificando-se uma reaco clere do credor para fazer
face perturbao dos seus planos. E isto independentemente da questo
de sabermos se estamos ou no perante um incumprimento antecipado.
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 387
(
114
) LESER (cit., p. 653) sustenta precisamente que a recusa antecipada nega o
prprio dever principal de prestao.
(
115
) MURARO, cit., p. 149, fala da malattia del rapporto.
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Sem fugirmos ao problema, diremos que estamos menos com aqueles que
se movem no quadro da violao dos deveres laterais (
116
) ou que preten-
dem encontrar a soluo na proibio de venire contra factum proprium (ao
considerarem abusiva a liberdade fctica do devedor), parecendo-nos mais
adequada a via especfica de LESER (
117
) e HUBER (
118
) e a explorao da
diferena entre a falta da prestao e a leso do prprio dever de presta-
o. Efectivamente, e para ns, a crise de confiana do credor no est
tanto relacionada com a violao da chamada fidelidade contratual, isto
, com um modelo de conduta que envolve comportamentos instrumentais
necessrios para uma satisfao global dos interesses, mas com a repercusso
da atitude (ou do comportamento) do devedor no comportamento devido,
fragilizando substancialmente o dever jurdico. A declarao insere-se,
alis, num quadro de comportamentos sintomticos (
119
) que, sem coloca-
rem directamente em causa o cumprimento, o tornam improvvel, levando
o sistema jurdico a conceder aos credores expedientes apropriados, situa-
dos, quase todos, no campo da autotutela. Mas tambm se pode dizer
que a recusa injustificada do devedor cria uma justa causa (
120
) de liber-
tao do credor, em funo do seu receio consistente (no cumprimento
futuro), da perda do valor patrimonial do seu crdito ponto eviden-
ciado por MURARO (
121
) ao entender que a vontade de cumprimento deve
manter-se entre a concluso e a execuo contratuais sob pena de se colo-
carem em causa as exigncias da previso econmica e de se justificar
a inexigibilidade de uma sua conduta expectante. Estas consideraes, se
Jos Carlos Brando Proena 388
(
116
) Dever lateral tpico est consagrado, por ex., no artigo 9., n. 2, do Decreto-Lei
n. 143/2001 (cit., supra, nota 21), na medida em que o fornecedor, caso no possa cum-
prir por indisponibilidade do bem, deve informar do facto o consumidor.
(
117
) Ver, supra, nota 114.
(
118
) Cit., p. 579 (trata-se simplesmente de violar o dever cujo cumprimento
recusado. No apenas o incumprimento no vencimento que constitui uma leso contra-
tual, mas igualmente o seu anncio.
(
119
) Estamos a pensar no regime consagrado nos artigos 780., 781., 1140. e 1235.
Ver tambm, para a tutela antecipada do credor, os artigos 674., 701., 702. e 725.
(
120
) Cfr. BAPTISTA MACHADO, Pressupostos da resoluo por incumprimento, in
Obra dispersa, I, pp. 138 e ss. e RAL GHICHARD/SOFIA PAIS, cit., pp. 325 e ss. Apoiados
em BAPTISTA MACHADO (cit., pp. 143-144, e RLJ, ano 118., p. 331) podemos dizer que a
recusa antecipada um facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou que funciona
como violao contratual que torna inexigvel para a parte no inadimplente a continuao
da relao contratual.
(
121
) Cit., p. 286.
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permitem negar a existncia de uma mera antecipao de vencimento, no
nos obrigam, contudo, a um enquadramento foroso na teoria do incum-
primento, de modo a afirmarmos a existncia de um incumprimento ante-
cipado (
122
), de um incumprimento por equiparao ou de um incumpri-
mento ficcionado (
123
), quando o mais importante reside na natural aplicao
de remdios exigidos pelo estado de debilidade do vnculo, dada a perda
da sua funcionalidade.
Diremos, pois, e em sntese, que a recusa antecipada no , de per si,
um incumprimento tout court, como a mora, mas sim uma conduta vio-
ladora especfica, integrada por um regime jurdico em parte prprio (em
funo das caractersticas da declarao, da possibilidade do arrependi-
mento e da no precluso da execuo especfica) e em parte importado,
por adaptao, da teoria geral do incumprimento (normativamente fun-
dado nas normas dos artigos 798., 801. e, at certo ponto, no 808., para
o caso de o credor pretender a liquidao do contrato). A chamada vio-
lao do dever de fidelidade contratual dilui-se na leso culposa do
estrato superior do contrato, ou seja, a posio do devedor perante a
prpria conduta de prestao que coloca em perigo real o seu cumpri-
mento e, mediatamente, o seu resultado (
124
). A conexo declara-
o/comportamento-dever de prestao implica uma situao factual grave
a partir do momento em que o contedo do primeiro adquira um signifi-
cado sintomtico para os interesses do destinatrio e a economia contratual.
E radica, precisamente, nessa violao negligente do dever principal, a
fundamentao encontrada por determinados juristas (
125
) para a inrcia
do devedor na fase preparatria do cumprimento.
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 389
(
122
) Contrariamente posio mais cautelosa do Cdigo Civil holands (artigo 6:80.,
n. 1), parece ser essa, como j vimos, a perspectiva consagrada nos Princpios de direito
contratual europeu (artigo 9:304.) e nos Princpios UNIDROIT (artigo 7.3.3.).
(
123
) Para a reserva do recurso s fices, ver FRIEDRICH, cit., p. 490.
(
124
) No haver uma identidade de fundamento entre a atitude antecipada do deve-
dor que obsta satisfao voluntria do credor e a recusa voluntria (e deliberada?) do
credor que impea o cumprimento do devedor? Embora o ponto no possa ser aqui tra-
tado, de referir que, por ex., BERND-RDIGER KERN (Zur Dogmatik des 324 I BGB), in
AcP 200 (2000), pp. 700-701, depois de afastar a explicao assente na boa f (no dever
de fidelidade contratual), entende que o credor no viola um dever contratual mas o
dever jurdico fundamental de cumprir o contrato celebrado. Defendendo a ideia de que
o credor tem a faculdade de impossibilitar o cumprimento, ver M. DE LURDES PEREIRA,
Conceito de prestao e destino da contraprestao, 2001, p. 230.
(
125
) Assim, CONTE, cit., p. 173.
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5. EFEITOS (BILATERAIS) DA CONDUTA REVELADORA DA
INTENO DE INCUMPRIMENTO
A partir do momento em que o comportamento do devedor (maxime
declarativo e de repdio ou no) provoca a disfuno da relao (
126
), aler-
tando o credor fiel para o perigo efectivo do incumprimento ou, por outras
palavras, criando-lhe a convico fundada do fracasso da vinculao, o
mesmo credor, desde que no assuma uma improvvel, mas no ilegtima
atitude expectante, pode actualizar, dentro de um prazo razovel, mas ten-
dencialmente curto, um jus electionis centrado no exerccio mais racional
dos direitos de indemnizao e (ou) resoluo do contrato (
127
), mas sem
que se excluam as possibilidades de uma aco de cumprimento ou de
uma execuo especfica. E se a recusa de cumprimento gera a necessi-
dade de uma tutela imediata do credor, atendendo s suas repercusses
no valor e na utilidade da prestao recusada, tambm no se pode esque-
cer o relevo (secundrio) que a prpria declarao assume relativamente ao
devedor e que no tem apenas a ver com a questo, j considerada, do res-
surgir da vontade de cumprimento.
Comeando pela eficcia da recusa no tocante ao devedor, como a
declarao no traduz o exerccio unilateral e legtimo do poder resolutivo,
produz-se um determinado contedo de auto-responsabilidade integrado
pela manuteno da vinculao o devedor provoca o incumprimento
sem que se extinga o dever de prestao , pelo reconhecimento do
direito do credor (
128
) e pelo surgimento de possveis consequncias des-
favorveis, traduzidas num dever de ressarcimento dos danos, na excluso
do direito contraprestao e, segundo alguns, na perda do benefcio do
prazo (
129
). Relativamente penltima perda, conquanto o nosso Cdigo
Civil no contenha uma norma idntica do artigo 1460., n. 2, do Codice
Civile, e que permitiria valorar positivamente a atitude do credor, quer em
nome do princpio da boa f, concretizado positivamente na norma do
artigo 762., n. 2, quer defendendo uma extenso do quadro legal do
artigo 429., o credor, interpelado ou no pelo devedor, pode recusar o
Jos Carlos Brando Proena 390
(
126
) F. ROMANO, cit., p. 614.
(
127
) Na legislao referida supra, nota 122, e no artigo 72., n. 1, da Conveno de
Viena de 1980, h apenas uma referncia expressa resoluo (e indemnizao cumulvel).
Para o exerccio do direito de resoluo, ver o 323 IV do BGB.
(
128
) Cfr. E. CONTINO, cit., pp. 262-263.
(
129
) Ver, infra, 5.3.
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cumprimento face peremptoriedade da declarao ou concludncia do
comportamento do devedor (
130
).
5.1. A (atpica) atitude expectante do credor
Se o devedor deixou clara a sua inteno de no ir cumprir, como
que anunciando a morte do contrato, a circunstncia de no ficar limi-
narmente excluda a possibilidade de uma ulterior ponderao mesmo
a insistncia do credor s em casos muito contados conduzir a parte
fiel a uma posio de ignorncia da declarao, tanto mais que o cre-
dor, mesmo sem resolver imediatamente o contrato, poder precludir
aquela eventualidade se contra-declarar, por ex., que recusar um cum-
primento posterior (
131
), desde que no se esteja, naturalmente, perante
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 391
(
130
) A suspenso do cumprimento est prevista, por ex., no artigo 7.3.4 dos Princ-
pios UNIDROIT e no artigo 9:201 dos Princpios de direito contratual europeu. No pri-
meiro preceito, como j vimos, d-se ao credor, cumulativamente, a faculdade de exigir
garantias suficientes de cumprimento pontual (ver, igualmente, o artigo 91. do Projecto
do cdigo europeu dos contratos).
C. FERREIRA DE ALMEIDA, cit., p. 317, propende antes para a aplicao analgica
do artigo 428., embora nos parea melhor o fundamento alternativo que prope, ou seja,
o de considerar abusivo o pedido do devedor. J M. ZANA, La regola della buona fede
nelleccezione di inadempimento, in RTDPC 1972, p. 1393, tende para a aplicao anal-
gica do artigo 1460., n. 2, do Codice.
(
131
) Face anterior redaco do 326 do BGB, inteiramente no coincidente com
a do nosso artigo 808., se havia quem considerasse vinculativa a declarao de recusa
por parte do credor quando fosse exercida no quadro da chamada interpelao cominat-
ria (assim, H. OETKER, Ablehnungserklrung bei verzugsbedingtem Interessenwegfall i. S.
Von 326 Abs. 2 BGB berflssiger Formalismus oder dogmatische Selbstverstn-
dlichtkeit?, in JZ 1999, pp. 1032-1033, partindo da necessidade de tutelar a contraparte e
de conferir eficcia clarificadora recusa), tambm j no parecia de afastar a hiptese de
uma retractao bilateral, com aptido para satisfazer interesses recprocos, no caso em
que o credor, aps ter recusado o cumprimento posterior como reaco recusa categrica
de cumprimento, viesse a revelar disponibilidade para aceitar o cumprimento (ou uma
dao em cumprimento) se, entretanto, no tivesse resolvido o contrato. No quadrante do
326 I do BGB, onde a declarao de recusa era exigida, F. PETERS, Die Ablehnungserk-
lrung des Glubigers (in JR 1998, p. 190), sustentando um ponto de vista oposto ao de
OETKER, no considerava vinculativa essa declarao, mas meramente preclusiva da pretenso
de cumprimento. A este propsito diga-se, en passant, que, entre ns, face redaco do
artigo 808., n. 1, ANTUNES VARELA (in RLJ, ano 128., pp. 119 e 138, notas 1, em anot.
ao acrdo do STJ, de 2 de Novembro de 1989), para l de defender, fracassada a inter-
pelao cominatria, que o credor conserva o direito realizao coactiva da prestao,
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um comportamento do devedor que seja (mais rigorosamente) subsum-
vel a uma violao irremedivel (
132
).
A questo essencial que a ausncia de uma escolha vinculativa e sig-
nificativa por parte do credor coloca a de saber se o devedor, depois de
ter alertado o credor para o perigo srio de o contrato no vir a ser cum-
prido, pode aproveitar-se do silncio e da inaco do ltimo. Parecendo
certo que o devedor no pode retirar desse silncio uma qualquer aceita-
o do seu comportamento, nem ver na inrcia do credor uma genrica con-
duta contra a boa f, tambm ser difcil submeter ao controlo da Verwir-
kung o exerccio dos direitos do credor aps a espera infrutfera.
Quanto resoluo e pretenso indemnizatria autnoma ou cumu-
lvel com aquela, o problema que se levanta contende com o agravamento
dos danos nos casos em que o credor, podendo e devendo t-lo feito, no
reagiu efectivamente declarao do devedor (no o demoveu da sua ati-
tude, nem exigiu garantias de cumprimento, nem manifestou a vontade de
um cumprimento coactivo) ou apesar de certa reaco (por ex., manifes-
tando o interesse de no querer mais o cumprimento) no concretizou num
prazo razovel essa opo, resolvendo o contrato ou pedindo uma indem-
nizao. No alterando o devedor a sua posio, nem indiciando poder vir
a cumprir, de questionar quem deve suportar esse plus de uma indem-
nizao compensatria mais agravada ou de uma contratao de cobertura
feita em condies mais onerosas. Recair sobre o credor, transcorrido um
prazo razovel de reflexo (
133
), um nus de conteno do dano, ao cor-
rer o risco de uma mais que provvel ratificao da declarao do deve-
Jos Carlos Brando Proena 392
entende que nem sequer fica o interpelante vinculado sua declarao de ir resolver o
contrato.
No actual quadro de solues do BGB de assinalar que o 323 confere o direito
de resoluo, transcorrido o prazo da interpelao cominatria, mesmo que o credor no tenha
feito a declarao de recusa. Esse mesmo normativo ( 323 VI) preclude a resoluo nos
casos em que o credor tenha tido culpa exclusiva ou preponderante no incumprimento.
(
132
) Atente-se, contudo, na possibilidade, defendida na nossa mais alta instncia
judicial, de o credor poder prevenir esse estado de coisas (no caso sobre que recaiu o
acrdo do STJ, de 11 de Novembro de 1997, in BMJ n. 471, pp. 304 e ss., tratou-se de
conferir legitimidade a um promitente-comprador para requerer uma providncia cautelar
no especificada contra um promitente-vendedor, tendente a proibir este ltimo de alienar
o prdio prometido vender. No acrdo do mesmo tribunal, de 5 de Maro de 1996, in CJ
IV, I, p. 115, a verificao de certas circunstncias conduziu a que se considerasse abusiva
a alienao feita pelo promitente vendedor.
(
133
) Ver, supra, nota 72, para a soluo consagrada no Projecto do cdigo europeu
dos contratos e que, alis, nos parece algo rgida.
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dor? Ou ser abusiva a pretenso do devedor de querer pagar uma menor
indemnizao?
C. FERREIRA DE ALMEIDA (
134
), sustentando no s que o nosso sistema
ignora o dever de conteno do dano, mas tambm que o artigo 570.
inaplicvel ao credor por ausncia de culpa na sua inrcia, defende que no
pode o devedor pretender que a indemnizao se restrinja aos prejuzos
que o credor sofreria se tivesse agido imediatamente. Salvo o devido
respeito, discordamos em parte dessa posio, na medida em que a atitude
do credor, concausa do agravamento dos danos, pode no ser legtima no
quadro circunstancial colocado acima, isto , quando, estando consciente
da quase certa confirmao da inteno do devedor, no se mostrou
interessado em demov-lo, nem exigiu quaisquer garantias, podendo ter
evitado os maiores danos mediante a resoluo do contrato e uma nova
contratao feita em condies menos onerosas. Consequentemente, a
omisso do credor mesmo quando o incumprimento no seja certo
sendo fruto de uma deciso devidamente ponderada poder ficar sub-
metida ao quadro normativo do artigo 570., n. 1 (
135
), de nada valendo
o argumento de que o prazo de cumprimento ainda no se esgotara (
136
).
O que ser necessrio demonstrar que o credor foi negligente nesse
silncio ou nesse no exerccio tempestivo, especulando com a situao,
ao no aproveitar uma altura favorvel para revender com lucro ou evi-
tar as perdas decorrentes de uma compra ou locao feitas em condies
mais agravadas.
Dir-se-, em suma, que a inrcia qualificada pode sujeitar o credor
a um indesejvel cumprimento no vencimento, como o sujeita invocao
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 393
(
134
) Cit., p. 315.
(
135
) Ver o nosso A conduta do lesado como pressuposto e critrio de imputao
do dano extracontratual, 1997, pp. 659 e ss., para o sentido, contedo e limites da con-
teno dos efeitos danosos. Para a atenuao do prejuzo, ver os artigos 77. da Conveno
de Viena de 1980 sobre a compra e venda internacional, 7.4.8. dos Princpios UNI-
DROIT e 9:505. dos Princpios de direito contratual europeu. Para o comentrio que-
les primeiros preceitos, outras consideraes volta do artigo 1227., n. 2, do Codice
Civile e para a deciso do tribunal de Roma, de 22 de Janeiro de 1975, a propsito
da extino antecipada do arrendamento pelo inquilino, ver A. PINORI, Il danno con-
trattuale, 1998, pp. 398 e ss. e 433 e ss.
Para as questes do duty to mitigate no direito americano, ver S. DI PAOLA, Il dovere
di non aggravare il danno: spunti per una rilettura, in FI I, 1984, 2825 e ss.
(
136
) Contra a invocao do 254 com base na primazia da pretenso de cumpri-
mento, ver U. HUBER, cit., p. 625.
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da excepo do agravamento do dano por ter resolvido o contrato ou
pedida uma indemnizao em condies menos favorveis. O que o deve-
dor no pode, por abusivo (
137
), colocar a sua atitude ao servio de uma
forma inteligente de gerir a seu belo prazer o montante da indemnizao
e o momento mais adequado da resoluo. Naturalmente que nem sempre
ser fcil encontrar o ponto de equilbrio entre a necessidade de valorar o
comportamento (com dano para o devedor) do credor e de evitar um apro-
veitamento (em prejuzo do credor) pelo devedor infiel da sua prpria tor-
peza.
5.2. A (tpica) tutela resolutiva e indemnizatria
Atendendo perda de funcionalidade do vnculo existente, se o cre-
dor pretender tornar irretractvel a opo do devedor dever exercer um
direito de resoluo ou pedir uma indemnizao. A dvida que surge, em
geral, e que aqui no vamos tratar, a de saber se esses meios de tutela
tem por pressuposto a converso da relao contratual perturbada (por uma
clara e definitiva inteno de incumprimento) numa relao de liquida-
o (
138
) ou se eles geram, como nos parece ser aqui o caso, essa mesma
liquidao. Alguns dos nossos juristas e a jurisprudncia (
139
), bem
Jos Carlos Brando Proena 394
(
137
) Cfr. o princpio que aflora no artigo 275., n. 2, do CC. Ver tambm, supra,
n. 3.
(
138
) A fundamentao contratual do direito de resoluo corresponde, segundo
BRUNO SCHMIDLIN, La risoluzione del contratto nella prospettiva storico-dogmatica: dalla
nullit ex tunc al rapporto di liquidazione contrattuale, in Europa e diritto privato, 4,
2001, pp. 825 e ss., a uma viso moderna do instituto, presente, por ex., na Conveno de
Viena e nos Princpios de direito contratual europeu, e distante dos modelos assentes na dog-
mtica jusnaturalista e pandectstica. Como se sabe, o regime da resoluo, tal como est
codificado entre ns, filia-se basicamente nessa ltima referncia.
(
139
) Como vimos, supra, n. 1, VAZ SERRA, no seu articulado sobre a mora do
devedor (BMJ n. 48, p. 308), propunha a dispensa da fixao de prazo sob condio de
o credor ter obtido a confirmao da atitude do devedor (artigo 21., n. 1). Para o
sufrgio actual desse pensamento nuclear, ver CALVO DA SILVA, Sinal, cit., p. 104, BAP-
TISTA MACHADO, in RLJ, ano 118., cit., p. 332, nota 35, C. FERREIRA DE ALMEIDA, cit.,
pp. 314-315 (considerando abusiva a invocao pelo devedor do artigo 808.), e RAL
GUICHARD/SOFIA PAIS, cit., p. 317. Expressamente em sentido contrrio, no abdicando
da intimao admonitria, ver JANURIO GOMES, cit., p. 17. Quanto jurisprudncia,
ver, entre outros, os acrdos do Supremo de 3 de Outubro de 1995, cit., supra, nota 23,
de 24 de Outubro de 1995, cit., supra, nota 46, e de 26 de Janeiro de 1999, cit., supra,
nota 15.
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como a doutrina estrangeira mais significativa (
140
), alm de entenderem que
a declarao do devedor supre a falta de interpelao, sustentam que a
opo resolutiva concedida, em regra, com base na tcnica da fico dos
antecedentes (
141
), dispensa o credor dos nus (patentes no artigo 808. do
nosso Cdigo) de provar a perda de interesse ou de fixar um prazo razo-
vel mas peremptrio, nus esses de observncia normal para converter a
mora em incumprimento definitivo. Se, no concernente perda do inte-
resse na prestao, entendemos que no possvel abdicar sempre de uma
valorao objectiva, que a declarao s por si incapaz de demonstrar, j
concordamos com a assero de que a nota forte da declarao, isto , o
seu tom definitivo e peremptrio, dispensa a interpelao admonitria do
credor por esta carecer da finalidade de outorgar uma ltima oportunidade
ao devedor (
142
). Assim como o devedor, que recuse cumprir categorica-
mente aps ter entrado em mora, manifesta tacitamente uma renncia ao
benefcio constante do artigo 808., tambm no tem sentido forar o cre-
dor a uma interpelao tida liminarmente por intil, sobretudo se procurou
obter a confirmao da inteno do devedor (
143
).
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 395
(
140
) Para a dispensa do Nachfrist, previsto na anterior redaco do 326 I do BGB
(e actualmente nos 281 II e 323 II), a partir de uma reduo teleolgica ou de uma inter-
pretao restritiva, ver, respectivamente, GERNHUBER, Die endgltige cit., p. 156, e STAU-
DINGER/H. OTTO, Kommentar zum Brgerlichen Gesetzbuch mit Einfhrungsgesetz und
Nebengesetzen, 12. ed., 1979, 326, n. 135. Cfr., igualmente, LARENZ, cit., p. 365,
nota 8, ESSER/SCHMIDT, cit., p. 120 (com o apoio da soluo simplificada prevista, no 295
do BGB, para a recusa do credor em receber a prestao), e FIKENTSCHER, Schuldrecht,
7. ed., 1985, 45, p. 254.
Se no Cdigo Civil holands so importantes os artigos 6:80., n. 1, e 83., no direito
suo o fundamento normativo para a desnecessidade da fixao do prazo razovel encon-
tra-se no artigo 108., n. 1, do Cdigo de 1911 (cfr. W. WIEGLAND, Kommentar zum
Schweizerischen Privatrecht Obligationenrecht I Art. 1 529 OR, 1992, p. 579).
A questo menos ntida na doutrina italiana dada a autonomia das hipteses previstas nos
artigos 1453. e 1454. do Codice. Como quer que seja, parece-nos que se o credor pre-
tender recorrer faculdade da risoluzione su diffida, no tendo obtido previamente uma con-
firmao da recusa, no poder prescindir da fixao do prazo razovel (para a defesa de
uma aplicao adaptada do artigo 1454., ver MURARO, in RDC II, 1965, cit., p. 148).
(
141
) OLIVEIRA ASCENSO, O Direito. Introduo e Teoria Geral. Uma perspectiva
luso-brasileira, 11. ed., 2001, p. 503.
(
142
) Segundo OETKER, cit., p. 1032, o nus da fixao um privilgio do credor
ao servio da primazia do cumprimento relativamente liquidao contratual.
(
143
) Nos casos de clusulas (maxime em contratos pr-formulados como os contra-
tos de seguro) com prazos peremptrios j fixados duvidoso que a declarao do segu-
rado possa fazer antecipar a prevista resoluo automtica.
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Por outro lado, e quanto necessidade de uma tutela imediata, fazer
esperar o credor, a coberto do argumento lgico de que o prazo ainda no
se venceu, representaria a prevalncia da viso estrutural da obrigao
sobre a dialctica dos interesses em jogo (
144
), obstando reaco enr-
gica do credor para evitar, atravs de negcios de cobertura, danos irre-
parveis (
145
). Mesmo no tocante ao pressuposto da gravidade do funda-
mento resolutivo, a conduta (lato sensu) do devedor grave, na medida em
que manifesta uma vontade deliberada de no cumprir, embora, em regra,
sem um desejo de prejudicar intencionalmente o credor.
Pode questionar-se se o devedor no ter a faculdade de fixar ao cre-
dor um prazo razovel para que exera o direito de resoluo, sob pena de
s o poder fazer sujeitando-se aos pressupostos normais do artigo 808.
O ponto discutido na doutrina alem (
146
), existindo, quanto a ns, obs-
tculos para a aplicao do artigo 436., n. 2, se pensarmos na ausncia
do seu pressuposto rigoroso de aplicao, ou seja, a existncia de uma
reserva de resoluo conferida por clusula expressa ou ad nutum. Efec-
tivamente, a natureza da perturbao em causa no deve permitir ao
devedor tomar a iniciativa das coisas, forando o credor ao exerccio
deste ou daquele direito e vinculando-o sua falta de resposta, de modo
a retirar benefcios de uma situao a si atribuvel. Alis, seria estranho
que o devedor pudesse pedir a colaborao do credor com o escopo de
condicionar as suas prprias opes. Mesmo que a finalidade da iniciativa
tivesse apenas a ver com a manuteno ou no da possibilidade de o deve-
dor ainda vir a cumprir, pensamos que o credor, no querendo receber a
prestao, no deixar, em regra, de o declarar ao devedor. Nesta ltima
hiptese, de recusa do credor em aceitar o cumprimento, que talvez se
possa justificar que o devedor fixe um determinado prazo para o credor
resolver ou no o contrato.
Sendo exercido o direito de resoluo pelo credor, de modo a permi-
tir a recuperao do j prestado ou a liberao da contraprestao, legiti-
mando a eventual contratao de cobertura a sua eficcia imediata (e no
diferida para a data originria do vencimento), podendo o credor formular
Jos Carlos Brando Proena 396
(
144
) A. BELFIORE, Risoluzione per inadempimento, in ED XL, p. 1314.
(
145
) Ver o exemplo de MURARO na p. 283 do artigo cit., RDC I, 1975.
(
146
) Ver a diferente posio de GERNHUBER (cit., pp. 157-158) e de LESER (cit.,
p. 657), aplicando este ltimo o pensamento contido no antigo 355 (actual 350) do
BGB, fonte do artigo 436., n. 2. A propsito do artigo 436., n. 2, ver o nosso A reso-
luo do contrato do direito civil Do enquadramento e do regime, 1982, pp. 168-169.
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uma pretenso indemnizatria com um determinado contedo. E dizemos
assim porque, como se sabe, o pensamento dominante nacional tende para
a indemnizao do interesse contratual negativo, enquanto a doutrina mino-
ritria (
147
), certa legislao convencional (
148
) e os estudos legislativos
mais modernos (
149
) propendem para uma certa indemnizao positiva.
Como os danos a reparar se prendem com o incumprimento de contratos
com terceiros, a frustrao das utilidades de utilizao/negociao da pres-
tao, o esvaziamento do valor patrimonial do crdito pecunirio recusado
(por ex., cesso abortada ou sujeita a um preo menor) e com contratos de
cobertura mais onerosos, no se estranha, por ex., que alguma legislao
confira concretamente ao credor, que venha a recorrer a esses negcios
de substituio, o direito a ser compensado da diferena entre o preo
fixado inicialmente e o preo acordado nesses contratos. Relativamente ao
momento relevante para calcular os danos globais ou os danos relaciona-
dos com as contrataes de cobertura, parece razovel fix-lo no na data
da recusa ou do vencimento, mas na altura que pode ser imediata em
que o credor reage concretamente declarao/comportamento do devedor,
rejeitando o cumprimento primrio do contrato. Como vimos, o contedo
desse pedido indemnizatrio do credor poder ficar sujeito ao filtro do
artigo 570., atendendo ao nus de conteno que recai em certos termos
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 397
(
147
) Ver, por todos, BAPTISTA MACHADO, Pressupostos da resoluo por incum-
primento e A resoluo por incumprimento e a indemnizao, in Obra Dispersa, I,
1991, respectivamente, pp. 175 e ss. (maxime 181-183) e 195 e ss. Por ltimo, para a
doutrina dominante, ver MENEZES LEITO, cit., pp. 259-260. No nosso direito consti-
tudo, cremos que, pelo menos, a indemnizao pelo valor, prevista no artigo 442.,
n. 2, do CC, e que pressupe a resoluo, uma determinada indemnizao pelo inte-
resse positivo.
(
148
) Referimo-nos aos artigos 74. e ss. da Conveno de Viena de 1980 sobre os
contratos de compra e venda internacional de mercadorias. Para uma sinopse da doutrina
nacional e para a constatao da inequvoca opo por uma indemnizao dos danos posi-
tivos, ver M. NGELA COELHO/RUI MOURA RAMOS, Os meios disposio do comprador,
no caso de violao do contrato pelo vendedor, na Conveno de Viena de 1980 sobre os
contratos de compra e venda internacional de mercadorias, in RDE 8 (1982), pp. 91 e ss.
e a nota 22.
(
149
) Pensamos nos artigos 7.3.5. (o n. 2 afirma categoricamente que so indemni-
zados os danos do incumprimento), 7.4.5. e 7.4.6. dos Princpios do UNIDROIT, nos arti-
gos (semelhantes) 9:501., 9:506. e 9:507. dos Princpios de direito contratual europeu e,
mais recentemente, no novo 325 do BGB (cfr. HANSJRG OTTO, cit., p. 10, e SONJA
MEIER, Neues Leistungsstrungsrecht: Anfngliche Leistungshindernisse, Gattungsschuld
und Nichtleistung trotz Mglichkeit, in Jura 3/2002, pp. 195-196).
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sobre o credor (
150
). Como quer que seja, o critrio fixado no deixa de
tutelar o devedor ao pedir-se ao credor que conclua esses contratos de
cobertura num prazo breve e em termos razoveis.
5.3. A (menos tpica) tutela conservatria do contrato e a ques-
to da alegada perda do benefcio do prazo
GERNHUBER (
151
) considera evidente a possibilidade de o credor
recorrer aco de cumprimento desde que se mantenha a possibilidade
material e jurdica da prestao, sob pena de o devedor provocar uma
espcie de expropriao unilateral do crdito. S que, exceptuando a hip-
tese mais interessante da execuo especfica do contrato-promessa fundada
na circunstncia de um dos promitentes ainda manter interesse no cum-
primento (
152
) eventualmente assegurado com o recurso prvio s pro-
vidncias cautelares o recurso tutela conservatria no se apresenta
como mecanismo atraente mesmo que o credor pressione o devedor reni-
tente com uma sano pecuniria compulsria.
A viabilidade do recurso imediato a essa forma de tutela parece pres-
supor, contudo, que o devedor, com a sua atitude, perca o benefcio do prazo
ou que seja defendido um incumprimento antecipado. E , por isso, que
Jos Carlos Brando Proena 398
(
150
) Se, apesar da resoluo, o credor no tiver realizado um contrato de substituio,
o artigo 7.4.6. dos princpios UNIDROIT toma como referente o preo corrente data da
resoluo (no mesmo sentido o artigo 9:507. dos Princpios de direito contratual europeu).
Como informa E. CONTINO, cit., pp. 250-251, nota 17, o direito anglo-saxnico, no
caso Phillpotts v. Evans, firmou o princpio de que a recusa antecipada por parte do ven-
dedor (tratou-se de um fornecimento de carvo) confere ao comprador o direito a ser
indemnizado em funo do preo de mercado em vigor no dia em que provavelmente o con-
trato teria sido executado. Ao lado deste critrio, tambm se entende que sero de excluir
os danos que o credor poderia ter evitado (ver, supra, 5.1.) e que o fim da indemnizao
dever ser o de colocar o credor na situao em que estaria se o contrato tivesse sido
cumprido. Para a diferente e mais correcta valorao do momento em que o credor faz valer
os seus direitos e para a possibilidade do vencimento imediato da indemnizao (com
incluso dos lucros cessantes) mesmo sendo a recusa declarada antes da exigibilidade, ver
U. HUBER, cit., pp. 632 e ss. (com a atribuio ao devedor, por causa da liquidao ante-
cipada, do direito a uma certa compensao).
(
151
) Cit., p. 155.
(
152
) ALMEIDA COSTA, cit., p. 391, nota 1 (cfr., igualmente, a RLJ, ano 124., pp. 94-96,
em anot. ao estranho acrdo do STJ, de 8 de Novembro de 1988) ao que cremos, e con-
tra o posicionamento de ANTUNES VARELA, no admite a execuo especfica do con-
trato-promessa fundada numa recusa categrica de cumprimento.
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C. FERREIRA DE ALMEIDA, ao relevar apenas a desconsiderao do venci-
mento, e pese a aluso ao interesse que o credor tem numa reaco ime-
diata (
153
), entende no ser admissvel recorrer via da execuo especfica
antes da data do vencimento ou que o que no bem a mesma coisa
sendo intentada a aco antes do vencimento no pode a execuo
antecipar os efeitos que do cumprimento voluntrio derivariam (
154
). Ao
optar por uma perspectiva assente nesta ltima fico, fruto da distino sub-
til entre desconsiderao e antecipao (do vencimento), o ilustre jurista
manteve-se fiel sua linha de pensamento, outorgando ao devedor a pos-
sibilidade da invocao (no abusiva) do benefcio do prazo. O que dizer
deste ponto de vista?
Para ns, e de acordo com a perspectiva que defendemos acerca do
enquadramento terico da recusa de cumprimento, a questo em apreo s
se justifica como problema terico, na medida em que o recurso ime-
diato aco de cumprimento justificado por aquela mesma teoriza-
o. No tocante a este ponto, a doutrina italiana dominante (
155
),
baseando-se no teor taxativo do artigo 1186. do Codice Civile, ao sustentar
que a recusa de cumprimento no implica perda ou renncia ao benefcio
do prazo, entra em querela com os juristas (
156
) que recorrem via ana-
lgica para chegar a uma concluso diferente, com o argumento de que
tambm aqui se verifica o fundamento em que repousa aquele norma-
tivo, ou seja, a tutela do credor face a alteraes econmicas que tornem
o cumprimento pouco provvel.
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 399
(
153
) Ver, respectivamente, as pp. 317 e 312 do estudo cit. A leitura da p. 309, na cr-
tica movida a MENEZES CORDEIRO, deixa-nos, contudo, algo confusos quanto exacta dou-
trina do jurista (ver, no entanto, a nota seguinte).
(
154
) Cit., p. 316. A, C. FERREIRA DE ALMEIDA afirma que, para haver perda de
benefcio do prazo, tem que se associar declarao algum dos fundamentos previstos no
artigo 780. (cfr., no mesmo sentido, PEDRO ROMANO MARTINEZ, cit., p. 136).
(
155
) Ver U. NATOLI, Lattuazione del rapporto obbligatorio, I, 1974, pp.138-139,
TARTAGLIA, cit., pp. 26-27, FRAGALI, cit., p. 302, ZANA, cit., p. 1392, MURARO, in RDC I,
1975, cit., p. 252, BIGLIAZZI/GERI, cit., pp. 260 e ss., e E. CONTINO, cit., pp. 260-262 (res-
salvando o caso de, aps a declarao, o devedor cair em insolvncia por enfraquecimento
voluntrio do seu patrimnio).
(
156
) Cfr. PERSICO, Leccezione dinadempimento, 1955, p. 112, MOSCO, cit., pp. 37-38,
nota 3 (bis), DISTASO, Lesecuzione specifica dellobbligo legale a contrarre, in RDCDO,
1972, p. 192, nota 62, RAVAZZONI, cit., p. 907, e BIANCA, La responsabilit, 4, cit., p. 223,
e 5, pp. 97-98 (retirando o incumprimento desse artigo 1186.). Ver, igualmente, na dou-
trina alem, FRIEDRICH, cit., p. 178 (com a interpretao extensiva do 271 I, correspon-
dente ao nosso artigo 779., n. 1) e, para a posio contrria, U. HUBER, cit., pp. 577-578.
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Tomando por pano de fundo o nosso direito positivo, se o quadro
legal dos artigos 780., 781. e 934. no favorece uma interpretao ten-
dente integrao da nossa hiptese (
157
), tambm certo que no h
razes fortes que apontem para um ius singulare e para a consequente
excluso do procedimento analgico. Mas tambm no se afasta uma lei-
tura no centrada em exclusivo sobre os argumentos patrimoniais se pen-
sarmos que a hiptese descrita no artigo 781. est sintonizada com um
incumprimento sintomtico aparentemente no to grave como o da decla-
rada inteno do devedor. E se, nos casos legais, a possibilidade de o
credor poder exigir imediatamente o cumprimento se sintoniza com uma
perda de confiana na capacidade de cumprimento do devedor, parece-nos
que esse temor potenciado quando o prprio devedor se torna suspeito,
isto , reconhece e manifesta, por vontade sua ou conduta material, essa
mesma incapacidade. Se certo que a declarao em si no se repercute
sobre a situao patrimonial (
158
) do devedor, tambm verdade que o
credor confrontado objectivamente com a fora subjectiva da inteno
revelada. E a ser possvel, como cremos, esta extenso teleolgica, dela
tambm beneficiar o artigo 429., de modo a justificar a exceptio por
parte do credor, obrigado a cumprir antes do devedor (
159
).
Mesmo que no seja sustentvel o alargamento defendido e mesmo que
a aco de cumprimento se justifique pela conduta violadora do devedor,
parece-nos que a perda do benefcio do prazo se legitima no plano dos prin-
cpios na medida em que uma declarao categrica enfraquece grave-
mente o sentido desse favor debitoris. E se o credor no quiser exigir ime-
diatamente o cumprimento, h que entender que tambm no pode recusar
um cumprimento posterior com interesse ou no para si no sendo
abusiva a invocao de um benefcio de que o credor abdicou (
160
).
Maro de 2002
Jos Carlos Brando Proena 400
(
157
) Como se sabe, entre ns, PESSOA JORGE, cit., p. 297, defende uma sua inter-
pretao taxativa, enquanto MENEZES CORDEIRO, in ROA cit., p. 143, sustenta a antecipa-
o do prazo de vencimento por renncia ao benefcio e MENEZES LEITO, cit., p. 230,
advoga directamente a perda do benefcio do prazo.
(
158
) J um comportamento concludente (por ex., doao de bens) poder vir a gerar
uma situao de insolvncia directamente conducente perda do benefcio do prazo.
(
159
) Para uma interpretao correctiva do artigo 429., no sentido de lhe conferir um
alcance maior do que aquele que est contido na sua remisso, ver VAZ SERRA, in RLJ,
ano 108., pp. 154 e ss., em anot. ao acrdo do Supremo, de 26 de Abril de 1974.
(
160
) Ver, mais detalhadamente, supra, n. 3.
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SIGLAS
AcP Archiv fr die civilistische Praxis
BFDUC Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
BGB Brgerliches Gesetzbuch (Cdigo Civil alemo de 1896)
BGH Bundesgerichtshof (Tribunal Federal alemo)
BMJ Boletim do Ministrio da Justia
CC Cdigo Civil de 1966
CeIm Contratto e Impresa
CJ Colectnea de Jurisprudncia
DJ Direito e Justia
ED Enciclopedia del Diritto
JBl Juristische Bltter
JR Juristische Rundschau
Jura Juristische Ausbildung
JuS Juristische Schulung
JZ Juristische Zeitung
FI Il Foro Italiano
NDI Novissimo Digesto Italiano
Qua Quadrimestre
RCDP Rivista Critica di Diritto Privato
RDC Rivista di Diritto Civile
RDCDO Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni
RDE Revista de Direito e Economia
RE Relao de vora
RG Reichtsgericht (antigo tribunal do Reich)
RLJ Revista de Legislao e de Jurisprudncia
ROA Revista da Ordem dos Advogados
RP Relao do Porto
RTDPC Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile
STJ Supremo Tribunal de Justia
TJ Tribuna da Justia
A hiptese da declarao (lato sensu) antecipada de incumprimento 401
Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria
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