1) O narrador encontra o Anjo da Morte na estrada e treme de pavor ao vê-lo.
2) O Anjo da Morte diz ao narrador que chegou a hora dele partir deste mundo.
3) No entanto, o narrador pede para adiar sua morte pois ainda não se sente preparado para deixar sua amada vida.
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1) O narrador encontra o Anjo da Morte na estrada e treme de pavor ao vê-lo.
2) O Anjo da Morte diz ao narrador que chegou a hora dele partir deste mundo.
3) No entanto, o narrador pede para adiar sua morte pois ainda não se sente preparado para deixar sua amada vida.
1) O narrador encontra o Anjo da Morte na estrada e treme de pavor ao vê-lo.
2) O Anjo da Morte diz ao narrador que chegou a hora dele partir deste mundo.
3) No entanto, o narrador pede para adiar sua morte pois ainda não se sente preparado para deixar sua amada vida.
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1) O narrador encontra o Anjo da Morte na estrada e treme de pavor ao vê-lo.
2) O Anjo da Morte diz ao narrador que chegou a hora dele partir deste mundo.
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MALBA TAHAN
OS SECREDOS DA ALMA FEMIAIAA
AAS LEADAS DO ORIEA1E
Ilustraes de. Calmon Barreto, Solon Botelho e Renato Silva
Traduo e Notas. Prof. Breno Alencar Bianco
Digitali:ao e Reviso ARLINDO_SAN 2
BIOGRAFIA DE MALBA TAHAN
(Do livro 'Crestomathie Arabe, do Dr. A. Van Gennep)
Ali Ye::id I::-Eddin Ibn-Salin Hank Malba Tahan, Iamoso escritor arabe, descendente de tradicional Iamilia muulmana, nasceu no dia 6 de maio de 1885, na aldeia de Muzalit, nas proximidades da antiga cidade de Meca. Fez os seus primeiros estudos no Cairo, e, mais tarde, transportou-se para Constantinopla, onde concluiu oIicialmente o seu curso de cincias sociais. Datam dessa epoca os seus primeiros trabalhos literarios, que Ioram publicados, em idioma turco, em diversos jornais e revistas. A convite de seu amigo, o Emir Abd el-Azziz ben Ibrahim, exerceu Malba Tahan, durante varios anos, o cargo de queima 1 na cidade de El-Medina, tendo desempenhado as suas Iunes administrativas com rara inteligncia e habilidade. Conseguiu, mais de uma vez evitar graves incidentes entre peregrinos e as autoridades locais; e procurou sempre dispensar valiosa e desinteressada proteo aos estrangeiros ilustres que visitavam os lugares sagrados do Isl. Pela morte de seu pai, em 1912, recebeu Malta Tahan 2 valiosa herana; abandonou, ento, o cargo que exercia em El-Medina e iniciou uma longa viagem atraves de varias partes do mundo. Atravessou a China, visitou o Japo, percorreu a Russia e grande parte da india, observando os costumes e estudando as tradies dos diIerentes povos. Entre as suas obras mais notaveis, citam-se as seguintes: Roba-el-Khali, Al-Samir, Sama Ullah, Maktub. Lendas do Deserto, Martires da Armnia e muitas outras.
1- PreIeito. 2- Malba ou Malbe e o nome de uma pequena povoao que Iica no sul da Arabia; Tahan signiIica 'o moleiro. A traduo do nome seria, portanto: 'O moleiro de Malba. 3
DEDICATRIA
Escuta, beduina, escuta' Quando abandonaste a minha tenda tomei do cala e escrevi o teu nome na capa do meu Alcoro'
E todos os dias, no silncio da prece, a saudade Jem, como o tigre dos funcais, bramir no fundo de meu corao.
Es-san-aleifa' A minha promessa, o beduina', no foi escrita na areia incerta do deserto. Por isso, e que veras o teu nome repetido em todas as paginas deste livro.
So Allah sabe a verdade' Uassal'
Oasis de Halib, 1 da lua de Rabiah de 1904.
Malba Tahan 4
RADI! RADI!
m diluvio de luz cai da montanha. O silncio, na claridade suave da tarde, era como uma dadiva de Allah sobre a terra. Parecia-me ouvir, ao longe, o doce som de Ilautas e adjuaks vibradas por artistas invisiveis. A porta da tenda surge, de repente, a Iigura altiva do quebir, cheIe da caravana. Vamos, beduino! gritou, arrebatado. A grande caravana vai partir! Iremos para alem da Persia; atravessaremos a india; levaremos os nossos camelos ate os conIins da China e do Tibet. Teras a Iortuna de conhecer as cidades e os recantos mais prodigiosos do Isl: encontraras os mercadores mais ricos do mundo; os teus lucros sero Iabulosos. Vamos! Por Allah, o Exaltado! A caravana vai partir! Respondi: Sim, valente quebir! Sempre desejei conhecer as maravilhas desses paises cheios de lendas e misterios. Estou convencido de que essa longa e curiosa viagem seria para mim Ionte de incalculaveis riquezas. Mas... Naquele momento a encantadora Radia, com sua graa inIinita de inum, colocava cocrals 1 de ouro em torno de seus tornozelos morenos. A caravana vai partir? Vai em busca da Riqueza? Deixa-la ir, a caravana... PreIiro, o quebir! Continuar aqui, recostado nestas almoIadas, vendo a querida Radia prender colares de ouro em torno de seus tornozelos morenos...
* * *
A baraca 2 protegia a minha conIortavel tenda na orla do deserto. O narguile 3
embriagador parecia mais doce que o sorriso nos labios da noiva apaixonada. Alguem chama por mim. Ouo o meu nome repetidas vezes. Reconheo a voz de um taleb 4 . Por que me procuras, o veneravel taleb? perguntei. Vem comigo, jovem poeta! respondeu o sabio. O rei de Cabul e o imperador da China, em viagem para Meca, pararam, esta tarde, no oasis de Bled-Djerid 5 . Falei em teu nome. Ja leram os teus versos. Admiram-te. Fazem questo de conhecer-te. Vamos ate ao
1- Cocral pea de ouro ou marIim em Iorma de pulseira larga. Inum, Iada; Ieiticeira. Criatura dotada de encantos irresistiveis. 2- Baraca bno especial de um santo. A tenda, sob a proteo de uma perIeita baraca, esta livre dos maus olhares e dos espiritos daninhos e perturbadores. 3- Aarguil pea usada pelos Iumantes. Ha diIerentes tipos de narguiles. Em geral a Iumaa e aspirada por um tubo longo e passa por uma pequena camada de agua. 4- 1aleb ProIessor. 5- Bled-Djerid pais das tmaras. 5 oasis antes que eles partam. Por Allah! E uma oportunidade unica em tua vida! Receberas as homenagens dos soberanos mais ricos e generosos! Seras o poeta mais aIamado do mundo: Ficaras mais celebre do que Antar 6 e mais invejado do que Moslim 7 . Sim, judicioso taleb! Sempre ambicionei receber as homenagens daqueles que tm em mos o ouro e o poder. O imperador da China e o rei de Cabul so os monarcas mais ricos e mais generosos, entre quantos vivem sobre a Iace da terra. Recebido em audincia especial, por esses soberanos, tornar-me-ei celebre. O meu nome, emoldurado pela Gloria jamais sairia da memoria dos homens. Mas... Naquele momento a deliciosa Radia cantava. A sua voz era to meiga como a lua e mais doce que as tmaras brancas do Imen. O Rei e o Imperador esperam por mim? Encontrarei no oasis de Bled-Djerid a Gloria que deslumbra e seduz os mortais? A Gloria? Deixa-la ir, a Gloria... PreIiro, o taleb!, continuar aqui, recostado indolente sobre estas almoIadas, ouvindo a querida Radia cantar, com indizivel ternura os seus sonhos de amor...
* * *
Pouco Ialtava para a hora melancolica do ezz 8 . Uma poeira de luz envolvia a minha tenda onde as sombras procuravam reIugio. Mac Allah! 9 Chamam por mim. Quem sera? Abre-se a porta. Acha-se, diante de mim, o meu grande e dedicado amigo. Venho buscar-te, meu caro exclamou, cheio de alegria. Todos os habitantes da aldeia esto reunidos na mesquita. MaIoma, o enviado de Deus, vai Ialar aos Iieis, depois do ezz. Aquele que ouvir as palavras do ProIeta estara salvo e tera o seu nome incluido entre os bem-aventurados! Vem, o irmo dos arabes, vem comigo! Respondi: Sim, meu grande e incomparavel amigo! Sempre almejei obter, pela mo do Enviado de Allah, a minha reabilitao aos olhos de Deus! Certo estou de que hoje na mesquita, entre cheiques 10 e ulemas 11 , obteria a remisso de meus erros e a salvao de minh`alma. Ficaria, para sempre, livre do peso de meus pecados. Mas... Naquele momento a sombra do desejo aparecia, bem nitida, nos olhos negros de Radia.
6- Antar (Antara Ibn-Cheddad) poeta arabe notavel, anterior ao Islamismo. Tornou-se Iamoso por causa do 'Romance de Antara no qual o poeta aparece como heroi ao lado de Abla, a sua apaixonada, encarnando todas as virtudes que eram atribuidas aos paladinos errantes das tribos pags. 7- Moslim (Moslim ben el-Valid) nasceu no ano 747 e morreu em 803. Teve, durante grande parte de sua vida, a proteo de varios generais e ministros. Foi conhecido pelo apelido de 'Cari el-Asavani, cuja traduo e: 'Vitima das lindas mulheres. 8- Ezz As preces obrigatorias para os arabes so em numero de cinco; a primeira (mogreb) e Ieita ao nascer do sol; e a ultima (ezz) e realizada a noite. 9- Mac Allah Exclamao usual entre os crentes. Corresponde aproximadamente ao nosso 'Deus seja louvado. 10- Cheique tratamento cerimonioso atribuido, em geral, aos homens respeitaveis pela idade ou pela posio social. CheIe de tribo. 11- Ulem doutor; homem de grande cultura. 6 O ProIeta vai Ialar na mesquita? Devo ouvir a sua palavra que redime e salva? A Salvao Eterna! Deixa-la ir, a Salvao Eterna... PreIiro, o inesquecivel amigo! continuar aqui, recostado indolente nestas almoIadas, pois a sombra do desejo aparece, neste momento, bem nitida nos olhos negros e sedutores de Radia...
* * *
Minha pobre tenda esta triste e vazia na orla do deserto. Radia desapareceu de meus olhos como um asIir 12 que Iugisse da priso. De nosso amor, que parecia eterno, restam apenas as tmaras amargas da saudade. Radia! Radia! 'Chovam lirios e rosas em teu colo! Chovam hinos de gloria na tua alma! Lembra-te, Radia! Por ti sacriIiquei a Riqueza, a Gloria, a Salvao Eterna!... Resta-me, ainda, a Vida! Sim, a Vida... Deixa-la ir, a Vida...
12- Asfir passaro verde do Sul. 7
MINHA VIDA QUERIDA
a ultima curva da estrada Te-ha-ta parou e olhou para o ceu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encanecidos que vigiavam silenciosos as Ironteiras do Tibet. O sol, ja perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as ultimas preces com que os lamas 1 imploravam a misericordia do Senhor da Compaixo 2 . A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-ta tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolao 3 . O corao tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraa. Te-ha-ta, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a Iormosa Li-Tsen-li. Te-ha-ta dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino. Han-Ru, o gnio desapiedado! exclamou. Que procuras aqui, quase a sombra da casa da encantadora Li-Tsen-li? Bem sei que a tua presena vale por uma sentena de morte. Respondeu Han-Ru, com a pacincia de um enviado do Eterno: A tua inquietao e legitima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a tua noiva Li- Tsen-li. Chegou, pela determinao do Destino, o termo de sua existncia neste mundo. Li- Tsen-li vai morrer! Piedade, Han-Ru! Piedade! implorou Te-ha-ta. Ela e to jovem, e to prendada! Pelo amor de Maia Devi 4 deixa viver Li-Tsen-li! O Anjo da Morte meditou em silncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse: Muito Iacil sera, para aquele (e e esse o teu caso!) que tem o amparo de Maia Devi, prolongar a vida de Li-Tsen-li. Sei que tens direito a uma vida longa e tranqila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderas ceder a tua noiva a metade do tempo que te cabe, no Iuturo, para viver. Li-Tsen-li Iicara, portanto, com direito a metade de tua vida e vivera em tua companhia, vinte e trs anos. Findo esse prazo, morrero ambos no mesmo instante! Aceitas essa proposta?
1- Lamas Sacerdotes budistas entre Mongois e Tibetanos. O cheIe supremo e o grande Lama ou Dalai-Lama. 2- Deus. 3- Han-Ru Na complicada mitologia hindu Iiguram nada menos de 17 deuses. Os trs primeiros, Brama (o principio criador), Vishnu (o principio conservador) e Siva o principio destruidor), Iormam a celebre trindade hindu. Alem dos 17 deuses, os hindus incluiram entre as divindades os planetas, alguns rios (o Ganges, por exemplo, e adorado sob a Iorma de uma deusa) e certos animais. Siva, cuja esposa e Maia Devi ou Bhavni, tem varios auxiliares. Han-Ru e um dos gnios que se encarregam de cumprir as determinaes do Deus da Destruio. 4- Maia Devi tambem denominada Bhavni. E a esposa de Siva, terceiro deus da trindade hindu. Essa deusa e, em geral, representada sob a Iorma de uma linda mulher, em atitude ameaadora, montada num tigre. 8
A sombra de um vulto surgia, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-ta tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anfo da Morte, o mensageiro da dor e da desolao.
As palavras de Han-Ru Iizeram hesitar o jovem Te-ha-ta. Quem, decerto, no Iicaria indeciso antes de sacriIicar, cedendo a outrem, a metade da propria vida? A tua sugesto, Han-Ru, implica uma deciso de inIinita gravidade para a minha vida. No poderei tomar uma deciso nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus trs grandes amigos. Poderas esperar que eu oua a opinio daqueles que sempre me auxiliaram e orientaram na vida? Farei como pedes, meu amigo respondeu o Anjo da Morte. Ate o Iindar da noite que vai comear, aguardarei a tua palavra Iinal. Deveras voltar, com a tua deciso, a minha presena, antes do amanhecer.
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Partiu Te-ha-ta em busca dos amigos, cujos sabios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacriIicar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada? O primeiro amigo de Te-ha-ta era um artista tibetano de assinalados meritos. Su- Liang sabia esculpir com admiravel perIeio, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram mais apreciados do que os olhos negros das Apsaras que enchem de encanto o ceu de Indra 1 .
1- Cu de Indra Da multiplicidade de deuses que so apontados na Mitologia Hindu decorre a crena, geralmente aceita, de que existem varios ceus. O ceu de Indra parece ser o mais notavel. Erguem-se, nessa regio divina, palacios de ouro ornados de pedras preciosas, grutas, jardins prodigiosos cujas Ilores exalam cem mil perIumes diIerentes. Um Ioco luminoso mais intenso do que o sol derrama uma claridade sobre todos os recantos do paraiso hindu. O ceu de Indra e povoado por uma inIinidade de ninIas encantadoras denominadas Apsaras. 9 Eis como Su-Liang, o escultor, Ialou a Te-ha-ta: A vida, meu amigo, so tem sentido quando a sua Iinalidade e traduzida por um grande e incomparavel amor. E o amor que dispensa sacriIicios e renuncias no e amor; e a expresso grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu corao medindo-a pela extenso de um ingente sacriIicio. Pela mulher amada deve o homem sacriIicar, no apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te- ha-ta, uma existncia longa, torturada pela dor de uma incuravel saudade? PreIerivel, mil vezes, que vivas a metade de tua vida a sombra Ieliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu no teria hesitado, um so instante, em aceitar a proposta do terrivel Han-Ru. O segundo amigo de Te-ha-ta chamava-se Niansi. Era habil caador e auIeria consideraveis lucros mercadejando peles. Ao ouvir a consulta do jovem, Niansi no se conteve: E uma loucura, Te-ha-ta! Onde se viu um moo, rico e cheio de saude, sacriIicar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontraras, pelo mundo, milhes e milhes de mulheres lindas, muitas com as sete ou talvez, com as oito perIeies indicadas no Livro Sagrado 1 . Aqui mesmo (no Tibet) poderas topar, em qualquer aldeia, com centenas de meninas, algumas das quais nada Iicariam a dever, julgadas pelos seus predicados de graa e beleza, a tua noiva Li-Tsen-li! Desgraada a ideia de quereres adiar o termo da existncia de uma mulher com o sacriIicio de vinte e tantos anos de.tua vida! E quem podera prever o Iuturo? Amanh, essa mulher, arrebatada por uma nova paixo e deslembrada do sacriIicio que por ela Iizeste, abandonar-te-a e ira viver, nos braos de outro, a vida que e a tua propria vida! Que Iaras, ento, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosario de tua existncia? Penso que no deverias ter hesitado ante a proposta descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.
* * *
A divergncia entre os dois amigos mais Iez crescer a indeciso e a incerteza no corao de Te-ha-ta. Vou ouvir pensou o jovem a opinio do prudente Kin-S. So ele podera indicar-me o caminho a seguir. Kin-S, citado no Tibet como um estudioso das leis e dos ritos, assim Ialou ao apaixonado noivo: Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a metade do tempo que te resta para viver. Convem, entretanto, impor uma condio. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, podera ser retomada por ti, em qualquer momento. Teras, assim, a tua tranqilidade garantida no caso de uma inIidelidade de tua Iutura esposa. Se ela, por qualquer motivo, no se mostrar digna de teu sacriIicio, perdera o direito ao resto
1- Livro Sagrado A religio dos hindus e, em parte, explicada nos Vedas, que no passam, aIinal, de uma coleo de hinos, preces e conceitos morais. O Livro Sagrado a que se reIere o heroi do conto deve ser, naturalmente, o Codigo de Manu, cuja origem e anterior ao IX ante-seculo. Todos os conceitos e principios religiosos no livro de Manu aparecem, alias, citados nos Vedas. Ha quatro Vedas, sendo cada um deles dividido em duas ou trs partes. O primeiro e constituido exclusivamente por varios hinos religiosos e preces; o segundo estuda os principios religiosos e analisa as controversias teologicas; o terceiro discute certos pontos obscuros de Teologia. O quarto Veda no e, em geral, aceito pelos doutores hindus. Os Vedas no podem ser atribuidos a um unico autor; em cada um deles colaboram varios personagens de epocas diversas. Os diversos escritos Ioram reunidos sob a Iorma atual no seculo XVI, antes de Cristo. 10 da vida que lhe cabia viver! Fora dessa condicional, qualquer outra soluo para o caso no passaria de irremediavel loucura! E concluiu o seu conselho com estas palavras: Fizeste bem em hesitar. A Hesitao e irm da Prudncia. So os loucos e temerarios e que nunca hesitam.
* * *
Achou Te-ha-ta bastante prudente e razoavel a proposta sugerida pelo douto Kin-S, e levou-a sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte. Han-Ru aceitou a condio imposta pelo noivo: Esta bem, Te-ha-ta. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai viver os vinte e trs anos. Esta parcela de vida no Ioi, porem, dada, mas sim 'emprestada.
* * *
Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-ta, e os dois eram citados como os esposos mais Ielizes do Tibet. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocabulo que signiIica 'minha vida querida. Um dia, aIinal, Te-ha-ta Ioi obrigado a Iazer uma longa viagem para alem das Ironteiras de sua terra. Deixou 'Minha vida querida e seu Iilhinho, que ja contava algumas semanas, em companhia de seus pais. Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus trs amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoao. Onde esta 'Minha vida querida? perguntou, ansioso, aos amigos. Por que no veio? Estara doente? Que aconteceu a 'Minha vida querida? Disse um dos amigos: Enche de nimo e de coragem o teu corao, o Te-ha-ta! Uma grande desgraa, ha trs dias, caiu sobre a tua vida! Desgraa? repetiu, aIlito, Te-ha-ta. E horrivel esta angustia! Vamos! Quero saber a verdade! Onde esta 'Minha vida querida? Morreu! Morreu! gritou Te-ha-ta, desesperado. No e possivel! No podia morrer! Eu sacriIiquei por ela, metade de minha vida! E Te-ha-ta, dominado pela dor e revoltado pelo inIortunio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasIemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixo. Erguia os braos para o ceu; rolava, por vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador. Os amigos aIastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o inIeliz Te-ha-ta dar plena expanso a indizivel angustia que lhe esmagava o corao. Em dado momento Te-ha-ta viu surgir diante de si a Iigura de Han-Ru, o Anjo da Morte. Han-Ru! bradou, num tom de incontido rancor. Faltaste com a tua palavra. Que Iizeste de 'Minha vida querida? Escuta, Te-ha-ta respondeu Han-Ru. Preciso dizer-te a verdade, para que no continues a blasIemar desse modo. A tua esposa deveria viver vinte e trs anos. Um dia, porem, o seu Iilhinho adoeceu gravemente. O pequenino ia morrer. Que Iez a tua esposa? 11 Pediu, em preces, que a sua vida Iosse dada ao Iilhinho enIermo para que ele pudesse viver! Salvou-se o teu Iilho, mas tua esposa morreu! E, ante a estupeIao de Te-ha-ta, o Anjo da Morte concluiu: E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida, ela me extremosa, no hesitou um segundo em dar, pelo Iilhinho, a vida inteira!
12
A MULHER E O CASTIAL
So a mulher pode abenoar o lar. As mulheres piedosas salvam o mundo.
(Do Talmude)
sombra Iugaz de um vulto Ieminino esgueirou-se ao longe, no Iundo da rua sombria. Os mais desencontrados pensamentos, nascidos da inquietao de seu corao, baralhava-se, naquele momento, no cerebro de Daniel Leib. Sentia-se envolvido numa atmosIera de tristeza, que ele no sabia explicar. Como se lhe aIigurava angustiosa aquela insatisIao eterna e acabrunhante! Encontraria, aIinal, em seu pai, sempre prudente e sensato, o amparo moral de que tanto precisava? O velho Renato Leib ergueu-se vagaroso, aproximou-se do Iilho e, tocando-lhe o ombro com a mo larga e trmula, disse-lhe, bondoso: Daniel, ouve ca. E preciso que conIies em mim. Devo dizer-te a verdade com Iranqueza e lealdade que convem a um homem de bem, quando Iala ao Iilho. As queixas e recriminaes que acabaste de Iormular e as palavras de negra revolta que proIeriste so, a meu ver, uma grande e dolorosa injustia. Revoltas-te contra o Destino, julgas aniquilada a tua vida, e, no entanto, o Destino tem sido, para contigo, prodigo em beneIicios de toda especie. A partir da epoca de teu acertado casamento... Acertado casamento? repetiu Daniel, sublinhando, irnico, as palavras paternas. Esse casamento que todos enIeitam com as lantejoulas dos elogios Iaceis, no passou, aIinal, de um erro deploravel de minha vida. O judicioso Renato esboou um sorriso de tolerncia e bondade. Toquei precisamente no ponto vital, visto que dele julgas irradiarem todas as desditas e contrariedades de tua vida: o teu casamento! No te sentes Ieliz com tua esposa: mais de cem vezes tenho ja entrevisto em tuas palavras queixas e censuras que visam diretamente aquela que escolheste para me de teus Iilhos. 'Falta-me quem me compreenda dizes. 'Tenho junto de mim alguem de uma intoleravel vulgaridade. E, levado pela eterna insatisIao dos teus desejos, envolves a tua boa Lenida num veu de deIeitos e Iraquezas, tornando-a a menos desejavel de todas as esposas. Como explicar essa atitude de tua parte em relao a uma mulher que ja obteve em tempo no muito distante, as preIerncias de teu amor? Sei, ou melhor, adivinho tudo, meu caro Daniel. Insistes, naturalmente, em Iazer paralelos entre Lenida e as outras mulheres, e esses paralelos em que as duas partes so vistas desigualmente, levam-te a ver sempre com olhos desIavoraveis a tua esposa. Com as Iantasias de tua imaginao impetuosa, enIeitas as esposas ou amantes de teus amigos, com predicados raros e encantos admiraveis, ao passo que de tua paciente companheira so sabes realar os deIeitos, 13 esquecido, por completo, de suas boas qualidades. Lembra-te de que no tive ingerncia em teu casamento. AIligi-me, no poucas vezes, com a ideia de que poderias, arrebatado por insoIrida paixo, Iazer uma escolha inIeliz, e trazer para o recesso do teu lar, sob o escudo de teu nome, uma criatura pouco digna de teus aIetos. Um erro dessa natureza e, bem sei, Ionte perene de cruciantes arrependimentos e desgostos. Com o perpassar dos anos, entretanto, procurei observar, dia a dia, a tua esposa, para ver se eram justas ou no as tuas queixas. Mais de uma vez tive impetos de abrir os teus olhos (como agora o estou Iazendo) e revelar-te a verdade que desconheces. Se o no Iiz ha mais tempo, Ioi unicamente por acreditar que seria mais nobilitante que ao teu corao a verdade chegasse guiada pelo teu bom-senso de marido e de pai. Lenida e carinhosa e simples; esIorada e econmica; ativa e zelosa. Muito longe esta, talvez, de ser brilhante como uma artista ou de possuir talento excepcional; mas e sensata e agradavel no conversar, discreta nas atitudes e modesta nas maneiras. Jamais se queixa da pobreza em que vive, nem inveja os belos colares e vestidos que algumas amigas ostentam. Nada exige; nada reclama. Se alguma vez pareceu Ialtar-te Ioi porque no a procuraste como devias. Julgavas, por vezes, que ela estivesse muitas leguas longe de ti, quando, na realidade, e em pensamento, tinhas-la a teu lado. Me extremosa, jamais se descuidou um so momento dos Iilhos, para os quais tem sido de uma dedicao incomparavel. Sera linda? Nada quero aIirmar a tal respeito, mas pelo que tenho ouvido de bocas insuspeitas, Lenida seria capaz de Iazer boa presena entre as moas mais requestadas da cidade. So tu, meu Iilho, es cego, inteiramente cego, para apreciar as belas qualidades que adornam tua esposa. Mas, meu pai... No me interrompas, Daniel continuou o ancio. Falei-te com a Iranqueza de um amigo sincero e com a lealdade de um pai dedicadissimo. Ser-me-ia Iacil provar-te (sem lograr, talvez, convencer-te) que no es digno, talvez, da esposa que tens. Estou certo, entretanto, de que so poderas compreender perIeitamente o sentido de minhas palavras, se te dispuseres a ouvir, com pacincia, uma lenda, ou melhor, uma simples historia, quase inIantil. E a historia de um castial. Queres ouvi-la? Conta-a, meu pai.
* * *
Era uma vez (por que no comear assim?), era uma vez, repito, um pobre jardineiro, humilde e muito pobre, que se chamava Tagil. Ao regressar, um dia, de uma excurso a Iloresta, avistou Tagil um viajante desconhecido que se achava em perigo ao ser assaltado por dois ladres, em estrada deserta. Tagil, alma nobre e nimo valente, sem medir as conseqncias de seu destemor, atirou-se, em socorro do viajante e conseguiu, graas a sua Iora e coragem, pr em Iuga os dois bandidos. O desconhecido (que era, alias, um rico mercador), ao chegar a cidade, disse ao corajoso Tagil: Meu amigo, no Iosse o seu providencial auxilio, e eu seria, com certeza, assassinado pelos Iacinoras que me atacaram na estrada. Devo-lhe, pois, a vida. E, como lembrana de minha inIinita gratido, quero dar-lhe um presente. E o mercador entregou ao jardineiro uma pequena caixa amarela de couro lavrado. Tagil, nem bem chegado a casa, abriu soIregamente, cheio de curiosidade, a misteriosa caixa para conhecer as preciosidades que ela deveria conter. 14 Com grande espanto encontrou, apenas, um castial de Iorma estranha e de metal escuro e pesado. Ora, um castial! exclamou ele, proIundamente decepcionado com aquela triste descoberta. Um castial! Ora vejam! Arrisco a vida, luto contra salteadores de estrada e, ao cabo de tudo, ganho esta droga! Que vou Iazer com isto? Em que podera um simples castial melhorar ou remediar a minha vida? Seria preIerivel que o mercador me tivesse presenteado com um punhado de pataces de prata! E, certo de ter sido logrado em suas esperanas, vencido pela desiluso que lhe trouxera o desvalor do presente, Tagil atirou com o castial para um canto e deixou-o para ali esquecido, abandonado como coisa inutil e desprezivel. Ora, um castial! E Tagil quando nele punha os olhos, vinha-lhe a lembrana, com tristeza, o logro que soIrera ao receber a caixa amarela do rico mercador. Ora, um castial! O certo e que o misero castial rolava, como se Iora uma inutilidade, de um lado para outro em casa de Tagil. Tendo, certa vez, caido pela janela abaixo esteve muitos dias ao relento, perdido no terreiro imundo. De outra Ieita, serviu de calo a um movel partido e, por ultimo, ate de martelo manejado pelas mos Iortes e calosas do seu dono. Um dia, aIinal, Tagil, oprimido pelas diIiculdades da vida, deixou a casa em que morava e Ioi residir numa cidade proxima, onde esperava achar trabalho. Levou consigo quase todos os objetos que possuia; deixou apenas, sobre uma mesa tosca e suja, como coisa imprestavel, o pesado castial com que o presenteara o rico mercador a quem salvara da sanha mortiIera de dois execrados de Allah! Ora, aconteceu que a casa deixada por Tagil Ioi ocupada, dias depois, por um musico de proIisso. Leonardo (assim se chamava ele) era homem pobre e trabalhador; ao encontrar o castial abandonado, teve a impresso de que se tratava de uma pea curiosa e digna de ateno. Cuidando, desde logo, de livra-lo do po que o cobria e das manchas que o enIeavam, notou que apresentava na superIicie da base certas linhas e Iiguras dispostas de modo muito singular. Deslumbrado com a inesperada descoberta, Leonardo entrou a examinar com toda a meticulosidade o desprezado utensilio e teve ensejo de veriIicar que se tratava de uma verdadeira maravilha. A Iigura da base era, sem duvida, execuo paciente de um artista genial. Via-se gravado no metal, com traos admiraveis, quase imperceptiveis, a Iigura de uma soberba galera que deslizava impavida num mar imenso, beijada brandamente pela escumilha das ondas irrequietas; inclinando-se um pouco o castial ja a cena era inteiramente diversa. Distinguia-se uma bailarina com seus veus, a danar no meio de um lindo jardim. Desviando-se o olhar um pouco mais para a direita, notava-se que a bailarina desaparecia ocupando-lhe o lugar uma imponente mesquita com suas almenaras 1 apontadas para o ceu; procurando-se, com cuidado, uma disposio conveniente, graas a um Iluxo de
1- Almenaras torres de que so providas as mesquitas. Das almenaras ou 'minaretes, o muezin chama os Iieis a prece. 15 um Iluxo de luz, via-se, ainda, um corcel negro a galopar sobre uma montanha de nuvens. Tudo isso o genial gravador Iizera, com o buril, na superIicie polida do castial. Sem perda de tempo, Leonardo levou o maravilhoso objeto a diversas pessoas, e todas tiveram oportunidade de admirar a extraordinaria perIeio do originalissimo trabalho. E Leonardo, ao desIazer-se do precioso castial ganhou uma Iortuna incalculavel. Como e singular o destino das coisas! O que nas mos de Tagil era uma pea inutil e desvaliosa, tornara-se uma verdadeira preciosidade aos olhos inteligentes de Leonardo. Este, mais habil, soube, com Iinura, ver as maravilhas que o outro jamais conseguira vislumbrar. Quantos homens no ha, por este mundo, a quem cercam tesouros inapreciaveis, mas cujos olhos, desorientados por sentimentos maus, no chegam, sequer, a perceber o brilho oIuscante das pedrarias que o rodeiam? Tens, meu Iilho, em tua casa, um precioso castial que o Destino depositou em tuas mos. Cuida dele com carinho e cuidado. No queiras ser o ridiculo Tagil da lenda, que no soube avaliar as grandezas do tesouro que possuia.
* * *
Terminada a narrativa, Daniel Leib ergueu-se, aIinal. As ultimas palavras de seu pai vibraram no ar e ecoavam-lhe impertinentes aos ouvidos. No queiras ser o ridiculo Tagil da lenda... A tarde caia lentamente. As primeiras sombras acomodavam-se ja pelos recantos que a luz ia, pouco a pouco, abandonando. Lembrou-se Daniel, daquele momento, de que sua esposa Lenida, sempre bondosa, estaria, com certeza, resignada, a sua espera. Estranho remorso, de que ele no podia desvencilhar-se, oprimia-lhe Iortemente o corao. Teve impetos de correr a casa, abraar a mulher, abraa-la muito, beija-la como ja no o Iazia ha muito tempo. Vai, meu Iilho, vai.
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O PASTORZINHO ADORMECIDO
encido pela Iadiga, o pobre pastorzinho deitou-se a sombra de uma grande arvore, a margem da estrada, e dormiu placidamente. Que idade poderia ter aquele pegureiro de Ieies to delicadas? Quinze ou dezesseis anos, talvez... Era um adolescente. Passou pela grande estrada o rei com sua rutilante guarda de nobres e cavaleiros. O poderoso monarca no tinha Iilhos e procurava ansioso pelo mundo um herdeiro digno de sua invejavel coroa. Ao avistar, pois, o jovem zagal, o Rei parou e dirigindo-se ao oIicial que o acompanhava, disse-lhe. Que belo menino vejo ali, a dormir, sob aquela arvore! Se a boa-sorte o colocou no meu caminho, para que contrariar o Destino? Tenho o pressentimento de que poderei realizar agora o sonho admiravel de minha vida! Vou levar aquele jovem para o meu palacio e Iaz-lo herdeiro do meu trono e de meus tesouros. E o rei desceu de sua bela carruagem e aproximou-se cuidadoso do pastorzinho adormecido. Mas... como e incerto e caprichoso o destino das criaturas! O pastorzinho dormia to sereno, to tranqilo, que o poderoso monarca Iicou com pena de acorda-lo. No, no o despertarei agora exclamou aIinal. Seria uma crueldade arranca- lo as delicias do sono. Voltarei depois. E, deixando o pastorzinho adormecido, seguiu a jornada, pela estrada longa, para nunca mais voltar...
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Momentos depois, pela estrada silenciosa, passou uma Iormosa princesa, com suas aias e damas de companhia. Acentuadamente romntica no hesitava em satisIazer as Iantasias mais extravagantes que lhe ditava o arrebatado corao. Ao pousar os olhos no pastorzinho adormecido, encheu-se de subita alegria e exclamou: Que lindo rapaz, vejo ali, a dormir, descuidado, sob aquela arvore! Tem, precisamente, as Ieies admiraveis do noivo que sonhei para mim. Vou leva-lo, agora mesmo, para o palacio de meus pais e eleg-lo meu Iuturo esposo. Sinto-me, desde ja, loucamente apaixonada por esse louro pastorzinho! E a sentimental princesa aproximou-se leve e delicadamente do eleito de seu corao. Mas... como e incerto e caprichoso o destino das criaturas! O jovem dormia to placido, to tranqilo, que a princesinha romntica Iicou com pena de acorda-lo. No! Seria impiedade desperta-lo agora! bem possivel que esteja ate a sonhar comigo! Voltarei depois, ao cair da tarde! 17
Ao pousar os olhos no pastor:inho adormecido, encheu-se a princesa de subita alegria e exclamou. Que lindo rapa: vefo ali, a dormir, descuidado, sob aquela arvore'
E a encantadora Iilha de reis, deixando o pastorzinho adormecido, seguiu jornada, pela longa estrada, para nunca mais voltar.
* * *
Continuava, ainda, o pastor a dormir sob a arvore, quando cruzou a estrada um dos bandidos mais perigosos da regio. Pesavam-lhe sobre os ombros os crimes mais crueis e revoltantes. Ao deparar-se-lhe o pastorzinho adormecido, o assassino encheu-se de odio e Iuror. Em seus olhos brilhava a perversidade dos loucos Iuriosos. Ola! Que vejo! Um menino a dormir como um ebrio no caminho! Vou mata-lo, e e para ja. Assim me vingo das perseguies que tenho soIrido nesta maldita terra. E, arrancando de um aIiado punhal, o Iacinora aproximou-se, pe ante pe, do pobre pastorzinho. Mas... como e incerto e caprichoso o destino das criaturas! O jovem dormia to sereno, to tranqilo, que o bandido hesitou em sacriIica-lo. No resmungou aIinal. No o matarei agora! O sono no permitiria, por certo, que ele sentisse a morte. Voltarei mais tarde, e, ento, liquidaremos as nossas contas. E o impiedoso assassino, deixando em paz o pastorzinho, seguiu jornada, pela longa estrada, para nunca mais voltar!
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18 Meus amigos, reparai bem. Quantas vezes, em meio do turbilho de vossa existncia, no Iicastes, como o pastorzinho da lenda, adormecido a margem da grande estrada da Vida? E de vos tambem se aproximaram, em certos momentos, sem que pudesseis perceber a Fortuna, o Amor e a Morte...
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O PAI QUE CASOU CINCO FILHAS
a celebre e turbulenta cidade de Bagda a dileta dos caliIas Vivia outrora um negociante que se chamava Chebac, homem dotado de bom-senso e cuja vida era equilibrada e conduzida ao ritmo suave da honestidade tranqila. Esse bom mercador era viuvo e tinha cinco graciosas Iilhas cujos nomes (se Allah quiser!) sero indicados no decorrer desta singular narrativa. O extraordinario cuidado que Chebac dispensava a educao de suas Iilhas poderia merecer o excepcional qualiIicativo de al-monetib vocabulo que os IilosoIos no sabem (e pena!) traduzir com verdadeira Iidelidade. A sua ambio maxima, na vida, era v-las casadas, e vivendo em perIeita harmonia com os seus esposos. Que sonho mais radiante poderia iluminar a imaginao de um pai? Casar bem cinco Iilhas! Eis o grande e terrivel problema que o diligente mercador cumpria resolver, dentro de um prazo relativamente curto. Obter para uma Iilha um noivo desejavel e rico ja e tareIa bastante delicada e diIicil. Mas casar bem cinco Iilhas... So mesmo com o auxilio de Allah, o Altissimo, o Unico, o Onipotente! Allahur Akbar! exclamam os verdadeiros crentes. Allahur Akbar quer dizer: Deus e grande! No deve haver na vida lugar para desnimo e Iraquezas! O Iraco e como o camelo atacado de congestes. Continuemos, porem, a historia. Quis a vontade do Onipotente que o mercador Chebac se sentisse obrigado, pelos seus deveres religiosos, a Iazer uma peregrinao a Meca, a Cidade-Santa. Como partir para uma jornada to longa, durante a qual a Iadiga, sendo imensa, ainda e menor do que o perigo, deixando as suas queridas Iilhas ao desamparo num centro populoso como a tumultuosa Bagda? Leva-las? Eis uma soluo que qualquer pasteleiro da aldeia repeliria sem hesitar um segundo. O deserto, como todos sabem, e inIestado por beduinos Ierozes que sonham com viagens impossiveis. Sentindo-se embaraado, em duvida, sobre a melhor resoluo a tomar, o mercador achou que seria de bom-aviso ouvir a opinio de seu judicioso amigo Al-Tarik, que exercera o cargo de Primeiro-Conselheiro na Corte do saudoso caliIa Al-Mamum. Al-Tarik era um ulem, isto e, um cheique dotado de notavel saber. (Allah, porem, e mais sabio). O teu caso e muito serio, meu caro Chebac respondeu o ulema. No posso aconselhar que leve as tuas cinco Iilhas no meio da caravana; seria sacriIica-las no deserto, Iazendo-as, talvez, cair nas mos dos audaciosos beduinos traIicantes de escravos, homens que so mais perigosos que o simum. Deixa-las, porem, sozinhas em Bagda, no e medida que um arabe prudente e sensato possa aprovar. As sedues da cidade, e a perniciosa 20 companhia dos maus, arrastam as jovens para o Iundo dos abismos e dos erros mais degradantes.
Ao chegar a casa reuniu as meninas e repetiu, com paternal carinho, para que elas ouvissem, a Iantasiosa historia das cinco perolas, salientando o grave embarao em que se achava.
E, depois de meditar algum tempo, disse o sabio Al-Tarik: So vejo, no momento, uma soluo, para o caso que se me aIigura complicado. Quando chegares, hoje, a tua casa, diras as tuas Iilhas o seguinte: 'Minhas queridas meninas! O dever sagrado de crente obriga-me a Iazer uma peregrinao a Meca, a cidade de Deus, o Santuario da Fe. Tenho, entretanto, cinco perolas que so para mim de inestimavel valor. No posso levar comigo esse tesouro, pois a jornada que vou empreender e longa e no isenta de graves riscos. Parece-me que no seria prudente deixar as preciosas perolas e partir; durante a minha ausncia, quem podera livra-las, como sempre tenho Ieito, da cobia insaciavel dos aventureiros, rapinantes e ladres? Que devo, pois, Iazer, nessa emergncia, minhas Iilhas? Ouviras com a maior ateno todas as respostas das jovens. Interessa-me conhecer a opinio de cada uma delas. So ento poderei dar um conselho acertado e seguro sobre a melhor Iorma de resolver a diIiculdade. Combinado? Uassal! O negociante Iez precisamente como lhe havia aconselhado o discreto ulema. Ao chegar a casa reuniu as meninas e repetiu com paternal carinho, para que elas ouvissem a Iantasiosa historia das cinco perolas, salientando o grave embarao em que se achava. E interpelou-as aIinal: 21 'Que devo, pois, Iazer, minhas Iilhas? A mais velha, que se chamava Quetir (Quetir dos Olhos Verdes), assim Ialou: Acho, meu pai, que deveis vender as cinco perolas por bom preo e comprar um terreno em boas condies. O negocio sera altamente vantajoso e seguro. Durante a vossa ausncia o terreno Iicara valorizado e podera ser vendido, mais tarde, com um bom lucro. O dinheiro ganho nessa transao sera, para o Iuturo, um descanso tranqilo para a vossa velhice, justa recompensa as vossas Iadigas e trabalhos. Respondeu a segunda, a deliciosa e meiga Ahizil: Penso, meu pai, que seria mais prudente deixar as vossas perolas nas mos de um homem serio, honrado, que Iosse de absoluta conIiana. No possuis, meu pai, um amigo digno da vossa conIiana? A boa amizade, para os ricos, serve de gloria; para os pobres, de renda; para os desterrados, de patria; para os Iracos, de esIoro; para os enIermos, de medicina; e ate para os mortos, de vida! ConIiai o vosso tesouro aos cuidados de vosso maior amigo! Amine, a terceira, convidada a Ialar, no hesitou. Em Amine, o principal trao de Iormosura era o sorriso de bondade e candura que bailava em seus labios. Disse Amine: Se o dever religioso vos obriga, meu pai, a uma jornada, por que vos preocupais tanto com os bens materiais que nada valem? ConIiai em Deus, meu pai! Allah pode ouvir as queixas surdas de nosso corao e ler os nossos desejos na cor invisivel de nossos pensamentos. Allah e poderoso, e justo, e sabe premiar, com inIinita bondade, os crentes dedicados e sinceros! Esquecei as cinco perolas que no passam de um misero tesouro da terra, para pensar apenas nas cinco preces diarias que so os grandes tesouros do Ceu. A orao, meu pai, e uma das expresses mais intimas e delicadas da vida piedosa. Allahur Akbar! Deus e grande! Se colocardes Deus em tudo o que Iizerdes encontra-lo-eis em tudo o que vos suceder. A Iormosa Astir, que admirava os poetas e sonhava com as coisas mais romnticas da vida, no soube conter os arroubos e Iantasias de sua imaginao exaltada. Eis como Astir resolveria o caso: Tenho uma ideia, meu pai, que parece genial. Com as cinco perolas Iareis um lindo adereo, que sera, por vossas mos, entregue ao caliIa, nosso amo e senhor. O monarca surpreendido exclamara: 'Que belo diadema! E perguntara a razo de ser daquele rico presente. Direis ento: 'O rei poderoso, sombra de Allah na terra! Essas cinco perolas colhidas nos mares da Arabia, no passam de humilde homenagem de um pobre e esIorado peregrino viuvo, pai de cinco Iilhas solteiras. Esquecer o desvalor deste insigniIicante presente e a maior caridade que podeis Iazer ao oIertante! Encantado com essa delicada resposta, to cheia de modestia, o caliIa, que e generoso e bom, dira, com toda certeza: 'Se vais Iazer uma peregrinao, o muulmano!, precisas, imediatamente, de um bom auxilio. E determinara que sejam postos a vossa disposio cinco mil dinares de ouro; uma caravana; dez cameleiros e cinco guardas bem armados. E o glorioso caliIa (que Allah o conserve!) acrescentara aIinal: 'Com os valiosos recursos que ponho agora a tua disposio, o peregrino, poderas ir a Cidade Santa, levando, em tua companhia, as tuas cinco Iilhas, que devem ser lindas como a lua de Ramad 1 . Essa viagem, cheia de episodios, sera utilissima para elas! E assim, meu pai, iriamos todos conhecer o Santuario
1- Ramad periodo do ano muulmano (28 dias) durante o qual o jejum e obrigatorio aos crentes do Isl. Esse jejum so deve durar entre o nascer e o por do Sol. Quando a Lua aparece no ceu (lua-cheia) comeam logo as Iestas e banquetes. A lua de Ramad e, por esse motivo, apontada como a 'lua mais linda do ceu. 22 da Fe, a milagrosa Caaba, no corao do Isl 1 . A mais moa de todas, a encantadora Leila, compreendendo que chegara, enIim, a sua vez de Ialar, disse: Essa original historia, meu pai, das cinco perolas, que acabais de nos contar, no passa, a meu ver, de um simbolo muito bem-imaginado. As cinco perolas que aIirmais possuir, somos nos, com certeza, as vossas Iilhas. Aconselha a prudncia que um pai no leve suas Iilhas moas a jornadear pelos caminhos inseguros dos desertos, inIestados de chacais e aventureiros da pior especie. Ao vosso corao, entretanto, no agrada deixar-nos sozinhos no burburinho desta Bagda. Se o problema e assim to grave, deveis, a meu ver, consultar os vossos amigos mais serios e judiciosos, antes de tomardes qualquer resoluo. Atentai, meu pai, nas palavras do IilosoIo: 'A perIeio moral consiste em Iazermos por inspirao do amor o que Iariamos por exigncia do dever.
* * *
O mercador Ioi ter novamente com o prudente Al-Tarik e repetiu-lhe Iielmente as diversas respostas Iormuladas por suas Iilhas. Disse o judicioso e nobre ulema: Esse caso tornou-se interessantissimo e merece ser analisado com a maior ateno. Logo mais, depois da ultima prece, devo Iazer, a pedido do caliIa, uma conIerncia na mesquita. Nessa conIerncia, que e destinada aos nobres e cheiques, vou tomar por tema os diversos aspectos sob os quais se apresentam as respostas de tuas Iilhas. Quero conhecer sobre o caso, a opinio dos homens mais cultos da cidade. A conIerncia Ieita pelo ilustre Al-Tarik causou proIunda impresso ao seu numeroso auditorio. No dia seguinte, na alta sociedade de Bagda, no se comentava outra coisa seno a situao complicada do mercador e a diversidade das originais sugestes Iormuladas pelas cinco jovens. E a palestra do sabio polemista teve, ainda, outras conseqncias mais interessantes que passaremos a relatar. Ao cair da tarde achava-se o bom Chebac trabalhando em sua loja, quando Ioi procurado por cinco rapazes, pertencentes as Iamilias mais ricas e prestigiosas da cidade. Intrigado com a inesperada visita dos nobres, o mercador perguntou-lhes o que desejavam. Ao ser interpelado, disse o primeiro cheique: Alimentei sempre a esperana de casar com uma jovem boa, sensata, e que tivesse uma compreenso clara, perIeita e pratica da vida. A vossa Iilha Quebir revelou, a meu ver, qualidades excepcionais. Aquela lembrana de vender as perolas e comprar um terreno e maravilhosa! Venho, portanto, pedi-la em casamento, pois e com uma mulher ajuizada e perita em transaes, que eu desejo vivamente casar. O segundo visitante, que era um dos rapazes mais brilhantes de Bagda, assim Ialou: Fui inIormado hoje da admiravel resposta proIerida pela vossa Iilha Ahizil no caso das Cinco Perolas. Demonstrou ser uma jovem sensata e prudente. Sabe conIiar naqueles que so dignos e repelir os perversos. Fez da verdadeira amizade o maior elogio que ja ouvi. Essa jovem demonstrou possuir uma alma boa, limpida, livre do peso das desconIianas torturantes que nublam os aIetos e perturbam a vida. Venho, pois, pedir em casamento a vossa Iilha Ahizil.
1- Isl signiIica 'resignao. Conjunto de paises cujos povos adotaram a religio de MaIoma. Caaba e um templo, de Iorma cubica, que e venerado em Meca. 23 Aproximou-se o terceiro visitante e dirigindo-se ao mercador declarou o seguinte: O meu sonho dourado, senhor Chebac, era escolher, sem possibilidade de erro, uma esposa dotada de elevados sentimentos religiosos. Sou adepto da moral religiosa; a moral sem Deus e Ialsa e ridicula. A esposa religiosa e, a meu ver, a esposa ideal. Virgem, esposa, me ou Iilha, a mulher religiosa e sempre um agente de Deus nas obras de Seu amor. Deus I-la balsamo de todas as dores, alivio de todas as tristezas, amparo de todas as desventuras, e no ha uma so miseria na vida de que Deus no tenha Ieito da mulher o anjo libertador. A vossa Iilha Amine, pela resposta que proIeriu, demonstrou possuir um nobre corao e ser uma crente sincera. E, pois, Amine que eu venho pedir em casamento. Queira Allah que ela possa ter por mim o mesmo e inIinito amor que eu sinto, desde ja, por ela. Antes que o bom Chebac pudesse despertar do assombro em que se achava, o quarto cheique, que era prosador e poeta, tomou da palavra e conIessou sem mais prembulos: A vossa Iilha Astir, o mercador!, e um sonho de poeta que os gnios bondosos Iizeram viver neste mundo. A sua imaginao prodigiosa deslumbrou-me; o seu talento incomparavel arrebatou o meu corao. Os atos do corao parecem ridiculos quando e o espirito que os julga. Estou loucamente apaixonado por Astir e considerar-me-ia o mais Ieliz dos mortais se ela se dignasse aceitar-me por esposo! O quinto cheique aproximou-se do velho Chebac, Iez um respeitoso sal 1 e declarou, com voz Iirme e pausada: Todas as vossas Iilhas, o mercador!, revelaram possuir predicados excepcionais. As respostas que elas Iormularam, no caso das Cinco Perolas, dariam assunto para dez lindos poemas em prosa e verso. Leila, a mais moa, demonstrou, porem, ser a mais inteligente de todas, pois Ioi a unica que compreendeu o simbolismo do caso. A mulher inteligente, cordata e obediente (dizem os maiores IilosoIos) e a companheira ideal, e a esposa invejavel. A mulher perIeita, segundo ensina o Alcoro, deve possuir trs predicados, cinco virtudes e sete atributos. Os trs predicados so: bondade, inteligncia e beleza. Venho, pois, pedir em casamento a mo de vossa Iilha Leila, a criatura mais Iina e mais espirituosa do mundo! Exaltado seja Allah, que criou a Mulher, a Beleza e o Amor! * * * Allahur Akbar! Foi assim que Chebac, o mercador, resolveu o complicadissimo problema das 'Cinco Perolas. Casou muito bem as suas Iilhas e partiu tranqilo, em meio de uma grande caravana de peregrinos, para ir beijar, como bom devoto, a pedra negra da Caaba, na Cidade Santa de Meca. E, dois anos depois, quando regressou a Bagda, veio encontrar as suas Iilhas diletas, vivendo Ielizes e radiantes com seus dedicados esposos: Ioi recebido, tambem, por cinco lindos netinhos que ja exclamavam em arabe (parece incrivel!) estendendo, risonhos, os braos morenos: Jed! Jed! (Vov! Vov!).
1- Sal quer dizer paz. E a expresso de que se servem os arabes em suas saudaes. 24
A NOIVA DO CHEIQUE
o dia em que meu pai deliberou casar-me com o cheique Ornar Bahil, assaltou-me um desespero sem limites. Triste destino o de tornar-me esposa do homem mais odiento da cidade! A velha Zenuja, vendedora de perIumes, tintas e colares, que vinha diariamente ao nosso harem 1 , vendo-me aIlita e chorosa, perguntou-me, penalizada, qual a causa daquela angustia que pesava sobre mim. Ao saber da triste verdade exclamou, exaltada: No e possivel, Jamile querida! Por Maome! No poderas te casar com esse velho Bahil, Ieio e perverso! Seria um crime! Nada poderas Iazer em meu Iavor, Zenuja! respondi, desolada. Meu pai e teimoso e, alem do mais, conta desde ja com o valioso dote que o cheique prometeu. Zenuja, depois de meditar um momento, perguntou-me muito seria: Dize-me uma coisa, o Jamile. O cheique ja viu alguma vez o teu rosto mimoso? Nunca, o Zenuja! Nunca! Meu pai Ioi o unico homem que ate hoje me viu de rosto descoberto. A velha Iitando-me severa insistiu: So teu pai, menina? So teu pai? AIligindo-me o remorso e o receio de ocultar a verdade balbuciei envergonhada: Meu pai e... aquele jovem mercador que viste ha trs dias acenar para mim a entrada do cemiterio! Esta bem Jamile! Pelas barbas do ProIeta! Se assim e poderei salvar-te do cheique. Exijo apenas uma condio: Ficarei encarregada de preparar-te para a noite de teu casamento. Tranqiliza o teu namorado para que ele no Iaa alguma loucura e deixa o resto por minha conta. E, sorrindo, cheia de orgulho, acrescentou: Estou certa de que o cheique ira desIazer o compromisso de casamento! ConIiei cegamente na velha amiga e a ela entreguei a minha sorte. Preocupava-me, entretanto, de modo impressionante, o meu proximo casamento. Que artiIicio iria empregar a astuciosa Zenuja para aIugentar de mim o noivo detestavel? InIormei, nessa mesma tarde, o meu namorado de tudo que se passava no harem e aguardei serenamente o dia indesejavel de minhas nupcias. * * * Nesse dia a nossa casa encheu-se de parentes e convidados. Do meu quarto ouvi as risadas dos amigos de meu pai que comentavam Iutilidades e relembravam as pequeninas intrigas da cidade.
1- Harm Parte da habitao destinada exclusivamente as mulheres. 25 Dezenas de amigas vieram admirar as peas mais ricas de meu enxoval, as rendas, as toalhas e os veus. As vizinhas, sempre indiscretas, bisbilhotavam tudo. A velha Zenuja, duas horas antes da cerimnia, apareceu no seu papel de 'encarregada da noiva. Vestiu-me uma camisa branca com pequeninas Ilores bordadas e uma graciosa melahfa de cor clara, que se prendia aos ombros por Iitinhas cor-de-rosa. Zenuja teve, ainda, ao pentear-me, cuidados especiais, e em meus cabelos que, na vespera, tingira de castanho-escuro, colocou uma meherma de seda vermelha com barras brancas. O meu vestido azul-claro, com Iios de ouro nas mangas e nas pontas da cambusa 1 era, na verdade, encantador. A habilidosa Zenuja modiIicou, com uma tinta muito Iorte, a cor das minhas sobrancelhas; transIormou os meus labios em dois rubis unicos e tentadores; e, com um creme muito Iino e perIumado, chegou a Iazer-me morena como Fatima e muito mais belo do que eu era realmente. Ao ver-me, to Iormosa, ao espelho, exclamei: Pela gloria do ProIeta, o Zenuja! Este alindamento que a tua arte incomparavel me empresta ao rosto vai ser a causa de minha desgraa! O cheique ao ver-me assim Iicara apaixonado e jamais querera deixar-me! Cala-te, menina! O teu nome e Jamile e 'Jamile signiIica beleza! Tens que parecer bela ao teu esposo, pois so assim poderas Iicar livre dele. Essa velha esta louca, pensei, horrorizada. Julga aIugentar um noivo enchendo de encantos a noiva desejada. Pobre de mim! Para que Iui eu conIiar nessa criatura sem senso nem criterio? A minha escrava predileta cantava, numa cadncia triste:
Allah e grande' A menina vai casar... O henne 2 e raro na casa da noiva... A me saudosa deixa-se estar no tamena E re:a ao Profeta...
Para com essa cantoria! gritou Zenuja, irritada. E com a ponta escura de um pequenino basto Iez um sinal negro bem no meio de minha Iace direita. Era o ultimo retoque a maquilagem.
* * *
Com o rosto coberto por um espesso veu Iui levada a presena do cadi 3 e das testemunhas. Realizado o casamento e proIeridas as preces do ritual, o meu noivo conduziu-me aos aposentos que ja estavam reservados. Notei que o cheique parecia dominado por uma ansiedade inIinita, incalculavel. E era natural. Qual e o marido que no deseja ver o rosto encantador daquela que vai ser sua esposa?
1- Melahfa, pea do vestuario Ieminino de uso corrente em Marrocos. E uma especie de corpinho. Meherma, veu muito Iino que as Jovens adotam para prender o cabelo. Cambusa, especie de saiote que Iica sob o vestido com a barra aparecendo. 2- Henn substancia empregada para pintar as palpebras e as sobrancelhas; tamen, varanda da casa. 3- Cdi Juiz entre os muulmanos. Julga, em geral, todas as causas de direito civil, criminal e religioso. 26 Ao erguer o veu o cheique Iicou trmulo, tomado de indizivel espanto. O meu semblante, que a velha Zenuja tanto aIormoseara, parecia causar-lhe uma impresso terrivel e dolorosa. Por Allah! vociIerou cheio de incontida colera. Teu pai garantiu-me que no eras trigueira e que os teus cabelos eram castanhos-claros! E horrivel! Vejo que es muito diIerente daquela que eu imaginava! E, arrebatado por um rancor inexplicavel, exclamou como louco: Oh! Jamile! Nosso casamento e impossivel! Eu te repudio trs vezes! 1
Oh! Jamile! O nosso casamento e impossivel! Eu te repudio trs vezes!
Com essa terrivel declarao o meu tresloucado marido desIazia, para sempre, o nosso casamento e tornava-me livre, no podendo mais exigir a restituio do dote que ja havia pago a meu pai. A velha Zenuja no pde receber de mim os agradecimentos do que se Iizera merecedora, pois, apareceu morta, no dia seguinte, sob as tamareiras do oasis de Asbor. Trs meses depois, passada a impresso causada pelo escndalo do meu divorcio, casei-me com o jovem mercador que o meu corao elegera para meu esposo.
1- Segundo as instituies muulmanas, quando um marido repudia a esposa uma ou duas vezes, pode recupera-la, sem mais Iormalidades, ao Iim de trs meses e dez dias; quando, porem, o repudio e Ieito pela terceira vez, ou mediante a Iormula: 'Eu te repudio trs vezes o casamento esta deIinitivamente rompido e o ex-marido no pode contrair novo casamento com a mesma mulher, seno depois de se ter ela casado com outro homem e pelo novo marido ter sido, igualmente, repudiada. 27 Um dia meu pai perguntou-me: Que ideia Ioi aquela, minha Iilha, de Iazeres-te, na noite de teu casamento, parecida com Zobeida, a primeira esposa do cheique? No sabias, ento, que ele, preso por um juramento, estava impedido de casar-se com mulher que se parecesse com Zobeida? Essa pergunta veio esclarecer, para mim, o misterioso episodio do meu divorcio. A velha Zenuja conhecia o segredo do cheique e valeu-se disso para salvar-me. E ainda hoje, nas preces que Iao, rogo ao Altissimo que tenha em sua eterna paz a bondosa e Iiel Zenuja, minha amiga e salvadora. Uassal!
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O TEMPO PASSA (Lenda japonesa)
odos os deuses notaram, naquele dia, que Izanaghi, o Setimo, preparava-se para partir em companhia de sua adoravel esposa Izanami 1 . Kuni-toko-datis, o Primeiro, senhor do Ceu e da Luz, indagou, apreensivo: Pela suprema Vontade, o Izanaghi!, para onde pretendes partir com a tua Iormosa companheira? Respondeu Izanaghi: Quero observar como vivem, na Terra, os homens esses seres inIeriores, criados pela inIinita bondade dos deuses. Minha esposa deseja auxiliar os mortais e torna-los Ielizes. E por isso que partimos. Kuni-satsu-tsu o Segundo, o eterno deIensor da Justia, observou: No vos esqueais, ao julgar os homens, que a indulgncia Iaz parte da Justia. Ensinai aos mortais acrescentou Toio-Munon-Su, o Terceiro que o desespero e o maior dos erros. Os outros trs deuses, Wan-hri-su, Oototsi e Omotaron, nada disseram. Que poderiam eles aconselhar ao poderoso Izanaghi, o mais sabio dos deuses?
* * *
Izanaghi e sua esposa Izanami desceram a Terra e Ioram ter a ilha de Awadsi. Essa ilha, protegida pelos Iamosos rochedos de SikoII, e um dos recantos mais belos do mundo. Que Ielicidade para os homens poderia advir da presena dos deuses entre as montanhas de Awadsi? Izanami disse ao seu esposo: Os mortais so simples e bondosos; souberam receber-nos com alegria e aIeto. Acha que merecem recompensa. Que desejas Iazer, querida? indagou Izanaghi em beneIicio dos homens? A deusa respondeu: Ja pude observar que o grande terror de todas as criaturas e a morte. No ha um so homem que no se encha de angustia e pavor, ao ver chegar o termo de seus dias. E a morte e conseqncia Iatal do tempo. Faamos, pois, para a Ielicidade da Terra, que o tempo no passe mais para os homens, embora continue a passar para os outros seres que povoam o Universo. Esta bem, querida respondeu Izanaghi Assim Iarei. Deste momento em diante, o tempo no mais passara para os homens. Ficaro todos exatamente como esto e
1- Izanami Todos os deuses citados nesta lenda, Iaziam parte da mitologia dos primitivos habitantes do Japo. Vide A. Humbert 'Le Japon. 29 permanecero, assim, inalteraveis, numa existncia tranqila e Ieliz. Izanaghi e Izanami continuaram a viver sob ceu de Awadsi, entre os rochedos de SikoII.
Esta bem, querida respondeu Izanaghi Assim Iarei. Deste momento em diante, o tempo no mais passara para os homens. Ficaro todos exatamente como esto e permanecero, assim, inalteraveis, numa existncia tranqila e Ieliz.
* * *
Um dia, aIinal, Ioram os deuses despertados por estranho rumor. Grande multido, em atitude de protesto, rodeava o palacio. Que deseja essa gente? indagou Izanaghi. Os jovens e adolescentes disseram: Senhor! A vossa deciso sobre o tempo Ioi, para nos, um castigo tremendo. Se o tempo no passar, jamais chegaremos a viver. Queremos que o tempo passe, para que possamos chegar a idade de casar, constituir Iamilia realizar, enIim, a nossa misso na vida e dela tirar a nossa parcela de Ielicidade! Que adianta viver sem sentir passar a vida? Os homens de meia-idade tambem Ialaram ao Setimo Deus: O tempo, senhor, continua impassivel para nos! Como e triste e monotona a vida que no passa! Queremos ver o perpassar dos dias, pois alimentamos a ambio de apreciar os nossos Iilhos crescidos, trabalhando Ielizes ao nosso lado! Tambem nos, senhor! acudiram os velhos desejamos que o tempo passe. Torturados pelos achaques de nossa idade, que pode valer a vida para nos? A nossa Ielicidade e o reIlexo da Ielicidade daqueles que amamos. Queremos que o tempo passe, pois so o passar do tempo Iara a alegria de nossos Iilhos e de nossos netos! Arrebatado pelo desespero (que e o maior dos erros) Izanaghi esqueceu-se de que a indulgncia Iaz parte da justia. Tomado de vivo rancor contra os homens rebeldes, exclamou: 30 Insensatos! Quereis que o tempo passe para que possais viver cada momento iludidos pelas Ialazes esperanas do Iuturo! A lembrana bondosa de minha esposa Ioi repelida pela ingratido que vive em vossos coraes. Quereis que o tempo passe? Pois bem, o tempo passara! E rematou: Mas o passar do tempo sera sempre ao contrario de vossos desejos, ao arrepio de vossas aspiraes. Sera rapido e Iugaz nas horas Ielizes e lento, muito lento, nos periodos de dor e tristeza. E o castigo dos deuses caiu impiedoso sobre os homens. O tempo passa esse Ioi o desejo de todos; passa, entretanto, celebre e Iugidio nas horas de alegria e Ielicidade; vagaroso, tardo e torturante nos minutos inIindaveis de angustia e soIrimento.
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O AMOR E O VELHO BARQUEIRO
hegando, aIinal, a margem do grande rio, o Amor avistou trs barqueiros que se achavam indolentes, recostados nas pedras. Dirigiu-se ao primeiro: Queres, meu bom amigo, levar-me para a outra margem do rio? Respondeu o interpelado, com voz triste, cheio de angustia: No posso, menino! E impossivel para mim! O Amor recorreu, ento, ao segundo barqueiro, que se divertia em atirar pedrinhas no seio tumultuoso da correnteza. No. No posso recusou secamente. O terceiro e ultimo barqueiro que parecia o mais velho, no esperou que o Amor viesse pedir-lhe auxilio. Levantou-se, tranqilo, e, estendendo-lhe, bondoso, a larga mo Iorte, disse-lhe: Vem comigo, menino! Levo-te sem demora para o outro lado. Em meio da travessia, notando o Amor a segurana com que o velho barqueiro barquejava, perguntou-lhe: Quem es tu? Quem so aqueles dois que se recusaram a atender ao meu pedido? Menino respondeu, paciente, o bom remador o primeiro e o SoIrimento; o segundo e o Desprezo. Bem sabes que o SoIrimento e o Desprezo no Iazem passar o Amor! E tu, quem es, aIinal? Eu sou o Tempo, meu Iilho atalhou o velho barqueiro. Aprende para sempre a grande verdade. So o Tempo e que Iaz passar o Amor! E continuou a remar, numa cadncia certa, como se o movimento de seus braos possantes Iosse regulado por um pndulo invisivel e eterno. SoIrimento, desprezo... Que importa tudo isso ao corao apaixonado? O Tempo, e so o Tempo, e que Iaz passar o Amor.
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HOMENS EXTRAORDINRIOS
a gloriosa cidade de Bagda a perola do Isl vivia a jovem Arusa, uma menina que, na opinio dos poetas de seu tempo, era mais linda e mais encantadora do que a quarta lua do ms de Ramad. Raras vezes saiu Arusa do grande serralho do pai, onde vivia como prisioneira, vigiada por eunucos impiedosos, de rostos macilentos e olhos empapuados. Graas, porem, aos bons oIicios de uma velha intrigante que a pretexto de negociar em veus se metia em todos os harens a Iormosa menina travou relaes com um jovem bagdali chamado ChaIik e com ele mantinha constante e secreta correspondncia. O pai de Arusa, na ignorncia completa das inclinaes amorosas da Iilha, resolveu da-la em casamento a um rico cheique chamado Hamed Khamil, homem generoso e nobre, que oIerecera pela mo da graciosa menina um dote de vinte camelos e dez mil dinares. Quando Arusa Ioi inIormada de que o pai, movido por odiosa ambio, pretendia casa-la com outro homem separando-a para sempre do seu apaixonado ChaIik tamanho desespero a invadiu que chegou a desmaiar. Muitos dias passou Iechada em seus aposentos, triste e abatida, sem subir ao terrao em que a tarde galeava as suas graas para encanto de todos os olhares. Com o indispensavel auxilio da ardilosa anci, conseguiu a jovem encontrar-se, em rapida entrevista, com o seu namorado, a quem contou a desventura que os ameaava se, na verdade, o Gnio da Separao estendesse sobre eles a sua asa negra, partindo-lhes o lao de to pura aIeio. No vale a pena descrever o eloqente desespero do nosso heroi bagdali, ao saber que pretendiam atirar a sua Arusa para os braos de um muulmano rico, velho amigo do cadi e homem cheio de prestigio na corte do caliIa Harum al-Raschid. Que inIeliz que sou! deplorava o mancebo. Como poderei arrancar-te impunemente das garras desse homem que tem o ouro e o poder nas mos? No te preocupes com a minha sorte disse-lhe, carinhosamente, a linda menina, procurando consola-lo. Nem tudo esta perdido. Allah e grande! No dia do meu casamento Iugirei da casa de meu marido e juntos iremos para onde ninguem nos possa encontrar. Diante de tal promessa, acalmou-se o arrebatado ChaIik, vendo desanuviar-se o seu sonho de amor, e esperou o dia em que Arusa deveria desposar o seu invencivel rival. Alguns meses depois, com inexcedivel pompa, realizou-se o brilhante casamento da Iormosa Arusa com o rico Hamed Khamil. O suntuoso palacio encheu-se de convivas e to grande Ioi a concorrncia de amigos, parentes e admiradores que a noiva rodeada sempre pelas esposas e companheiras, no encontrou ensejo para a almejada Iuga. Ja bem adiantada ia a noite, quando o ultimo convidado deixou o palacio dos recem- casados. Hamed Khamil tomou delicadamente a esposa pela mo e conduziu-a aos seus luxuosos aposentos; ai, pediu-lhe que erguesse o veu e o deixasse ver, pela primeira vez, o rosto em que as graas se esmeraram em proIusos dons. 33 Quando Arusa retirou o veu, Hamed Khamil Iicou deslumbrado. No poderia imaginar que a esposa Iosse to linda, to sedutora. Louvado seja Allah, o Exaltado, que soube reunir tantas graas em dois Iulgidos olhos, tanta beleza e harmonia na curvatura dos labios rubros! Grande, porem, Ioi a surpresa do rico Khamil, quando notou que Arusa parecia muito triste e dominada por inIinito desgosto. E como no peito se lhe acendesse, desde logo, grande paixo pela jovem, Iicou apreensivo por v-la to acabrunhada e perguntou-lhe: Por que estas to pesarosa? No Ioi por tua vontade que casaste comigo? Vamos, conta-me, o Flor do Isl, o motivo da magoa que de to quentes lagrimas enche os teus lindos olhos! Arusa, sem poder ja reprimir os seus sentimentos, contou aquele que acabava de ser seu esposo toda a verdade, sobre o seu antigo namoro, e relatou-lhe, minuciosamente, a combinao estranha que Iizera com seu apaixonado, para Iugir daquela casa, no proprio dia das nupcias. Desgraadamente, porem soluava a jovem no me Ioi possivel eIetuar qualquer plano de Iuga e vou, por isso, deixar de cumprir a palavra que dei ao noivo de meu corao. Pelo manto do ProIeta! exclamou o marido. No seja isto motivo para to grande magoa. No quero servir de empecilho a realizao de teus projetos e no posso obrigar-te a quebrar um juramento. Ja que prometeste, vais cumprir Iielmente a tua louca promessa! E o rico Khamil, com grande serenidade, tomou novamente pela mo a linda esposa, levou-a atraves de longos corredores ate a porta que dava saida para um lano deserto da rua e disse-lhe, delicadamente: Es livre, completamente livre, o Iilha de meu tio. 1 Podes partir. Iras para a companhia de teu namorado e com ele poderas Iicar o tempo que quiseres. Se algum dia te arrependeres do passo que hoje das, poderas voltar sem receio para a minha companhia, pois es, pela vontade de Allah, a minha esposa legitima e inspiras-me grande e puro amor! A jovem noiva mal podia disIarar o espanto que a dominava. Custava-lhe acreditar na sinceridade do marido. A principio julgou que o nobre Khamil estivesse a gracejar. Depressa, porem, se convenceu de que o rico cheique nunca Ialara to serio e lhe concedia estranha e inteira liberdade, permitindo que ela Iosse, naquela mesma noite, para onde muito bem lhe aprouvesse. Depois de agradecer a generosidade do esposo, a apaixonada Arusa partiu, apressada, pela rua escura e silenciosa, no Iim da qual Iicava a casa do namorado. Diz, porem, o velho proverbio arabe, que tem passado de gerao em gerao, atraves dos seculos: 'A imprudncia e irm do arrependimento. Mal a jovem se havia aIastado da casa do marido, Ioi surpreendida por audacioso ladro, que, oculto num vo de muro, esperava certamente pelo momento propicio a algum ataque. Pelas barbas de Omar! murmurou o beduino. Parece-me que vejo, ali sozinha, uma mulher ricamente trajada! Se no me iludo, ela traz muitas joias! Positivamente estou hoje muito Ieliz! E o salteador, que era um desses terriveis nmades do deserto, surgindo pela Irente de Arusa, intimou-a a parar imediatamente, e ameaando-a com um punhal, ia despoja-la das
1- O arabe denomina a propria esposa de 'Iilha de meu tio. 34 ricas joias de noivado quando notou que a mulher que assaltava era uma encantadora menina, linda como uma das quarenta mil huris que povoam o Ceu de Allah! Que ventura a minha pensou o ousado beduino. Encontrar uma Iormosa donzela coberta de preciosos adornos! Vou rapta-la e leva-la sem perda de tempo para a minha tenda no deserto. Veio-lhe, entretanto, o desejo de saber por que motivo se encontrava aquela deidade perdida em hora to tardia, a caminhar sozinha pelas ruas mais perigosas da cidade. Interrogada pelo Iacinora, a jovem contou-lhe o que havia ocorrido, o seu plano de Iuga, o seu desespero, repetindo-lhe Iinalmente as palavras de seu generoso marido. Mac Allah! exclamou o ladro posso garantir que o teu marido e um homem extraordinario! No e possivel admitir-se que haja no mundo outro Iilho de Ado capaz de proceder do mesmo modo na noite do casamento! Depois de pequena pausa, o beduino ajuntou: Eu, porem, quero provar, de modo expressivo, que sou um homem mais extraordinario ainda do que o teu espantoso marido. Sabes por que? Poderia, neste momento, entregue e abandonada, como estas, ao meu capricho, poderia, repito, despojar- te de tuas riquissimas joias e raptar-te, levando-te para a minha tenda. Tal, porem, no sera a minha Iorma de proceder. Ao contrario. Vou conduzir-te, com toda segurana, ate a casa de teu namorado. No quero que continues sozinha o teu percurso, pois algum sacripanta ou aventureiro sem alma poderia Iazer-te grande mal! E, isto dizendo, o ladro acompanhou a jovem ate a casa de ChaIik, e so se aIastou depois de a ter visto entrar na residncia do namorado. Seria diIicil, seno impossivel, descrever todas as mostras de alegria, todo o arrebatamento do apaixonado ChaIik ao ver chegar a sua amada, em exato cumprimento de to bela promessa de amor. Louvado seja Allah, o Clemente! exclamou, abraando a jovem. Conseguiste, enIim, iludir o teu ciumento marido? Conta-me tudo o que se passou, pois estou ansioso por conhecer as peripecias de tua Iuga! Muito te enganas, o ChaIik retorquiu a jovem. No iludi meu marido e no seria possivel ludibriar um homem to generoso e inteligente. Se aqui vim ter a esta hora, Ioi unicamente porque ele proprio assim o quis! E a encantadora Arusa relatou ao namorado tudo o que se passara, repetindo-lhe Iielmente as palavras do marido, e narrando-lhe tambem, sem nada ocultar, a singular aventura ocorrida com o beduino ladro que a surpreendera sozinha em rua deserta e escura. Quero crer, minha querida, que o teu marido e um homem extraordinario conIessou ChaIik. Estou certo de que no havera no mundo de Allah outro marido que proceda como ele procedeu! E evidente, porem, que o ladro que encontraste casualmente no caminho e ainda mais extraordinario do que o teu marido! Quero, entretanto, provar que sou um homem mil vezes mais extraordinario do que ambos! E, como a jovem o Iitasse surpreendida, sem compreender o sentido de tais palavras, ChaIik prosseguiu: Bem sabes quanto te amo. Bem conheces a ansiedade com que, ha mais de dois anos, eu contava os dias a espera deste dia venturoso! Bem podes avaliar o meu tormento, vendo-te casada com outro! Pois bem: apesar de tudo, vou levar-te, agora mesmo, a casa de teu marido e entregar-te aquele meu odiento rival! 35 E isto dizendo, tomou-a nos braos Iortes e, carregando-a como a uma criana, encaminhou-se pela rua extensa que ia ter ao palacio do rico cheique Hamed Khamil...
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A ESPOSA E A MORTE
a pequena aldeia Bhir, na india, a encantadora Sananda era citada como uma das cinco maravilhas da terra. Tinha dezoito anos, pertencia a casta dos brmanes 1 e conservava-se solteira. O velho Malua, seu pai, chamou-a um dia e disse-lhe: Querida Sananda! Bem sei que tens no ombro direito o sinal eterno de Siva, mas apesar disso, sinto-me preocupado com o teu Iuturo. Todas as tuas amigas e companheiras casaram aos oito anos e tu ainda no escolheste marido. E Ioroso que te resolvas, o mais cedo possivel, a tomar estado. Respondeu Sananda: Trs so, meu pai, os que me pretendem para esposa; Sardu, o belo mercador de Calcuta; Sivala, o rico e generoso senhor de Tandjor, e o inteligente Niassin, que construiu o templo de Bajapor. Asseguro que hesito, apenas por me sentir receiosa ante as incertezas do Iuturo. Com qual dos trs serei realmente Ieliz? Minha Iilha volveu, tranqilo, o velho brmane no ha motivos para duvidas e hesitaes. Conheo um sabio Iaquir que l o Iuturo de qualquer pessoa. Tenho motivos para exigir tudo desse iogue 2 , pois o livrei de morrer sob as garras de um tigre. Esse bom goru 3 e um santo e Iaz prodigios. Vou pedir-lhe que leia o teu Iuturo. Queres conhecer a sentena do iogue? Quero ouvi-lo, meu pai!
* * *
Duas semanas depois chegou a Bhir o milagroso iogue que sabia ler na areia o kismet de qualquer mortal. Sananda trouxe-lhe um espelho redondo sobre cuja superIicie polida o santo gora espalhou vagarosamente um punhado de areia branca e Iina, que dizia ter sido colhida nas nascentes do Ganges, o rio sagrado. Sobre a leve camada de areia escreveu os nomes dos trs jovens que pretendiam a mo da graciosa menina. Agitou depois o espelho, batendo nele onze vezes com as pontas dos dedos e pronunciando certas palavras magicas.
1- Brmane o povo hindu e dividido em castas que vivem completamente separadas; no se admite, por exemplo, o casamento entre individuos de castas diIerentes. Este sistema de distines sociais Iunda-se, em parte, na diversidade de raas e, de certo modo, na natureza das proIisses. As quatro mais importantes so: os Brmanes (sacerdotes); os Chtrias (militares); os Jaicias (negociantes) e os Sudras (operarios e servos domesticos). Alem dessas quatro castas ha uma inIinidade de subcastas. Uma das castas mais inIimas (mas no a mais InIima) e a dos parias. 2- Iogue Individuo ja iniciado nas grandes verdades IilosoIicas. Espirito adiantado. 3- Goru Iluminado. Individuo capaz de atingir a um perIeito desenvolvimento espiritual. 37 A curiosidade de Sananda era, nesse momento, sem limites. Por Iim, o iogue Ialou: Sardu, o mercador, pretende a tua mo de esposa. Se o aceitares para marido seras muito Ieliz durante trs anos e trs meses. Findo este prazo, Sardu, arrastado pelo seu espirito inquieto e voluvel, comeara a ser inIiel ao seu amor conjugal. E viveras, ento, menina, muitos anos atormentada por um ciume negro e torturante. No me convem essa vida! aIirmou logo Sananda. Quero ter a meu lado um marido para sempre dedicado e Iiel. Com Sivala, o rico proprietario prosseguiu o iogue o teu destino sera completamente diverso. Viveras muito Ieliz durante dois anos e dois meses. Terminado esse periodo, o teu marido sera tomado de grande paixo pela caa, e passara a viver nos juncais sombrios, preocupado com os laos e as armadilhas. Esquecido, por completo, do amor de sua esposa, o valente caador so tera atenes para tigres e panteras... Detesto os homens indiIerentes ao amor replicou Sananda. Sonho com um companheiro que viva so para mim, que seja escravo de meus carinhos. No quero ser esposa de Sivala! Resta-me, ainda continuou o iogue descrever a vida que teras como esposa de Niassin, o arquiteto. Casando com esse jovem teras sempre a teu lado um marido carinhoso, Iiel e apaixonado. Durante um ano e um ms a tua existncia sera ditosa e invejavel. Passado esse breve lapso de tempo, o teu marido sera arrebatado pela Morte, e teras, ao perd-lo, o corao despedaado pela dor e pela saudade! Quero casar com Niassin! exclamou, arrebatada, a bela Sananda. O judicioso Malua, que tudo ouvira em silncio, no se conteve: A tua deciso e quase uma loucura, minha Iilha! Medita um instante sobre o destino que te aguarda. Seras, certamente, mais Ieliz com Sardu, ou com Sivala, do que com aquele que impensadamente escolheste. Esposa de Niassin, que teras aIinal? Pouco mais de dez meses de Ielicidade, e a seguir muitos anos esmagada por uma torturante e interminavel viuvez! Procura ser sensata e razoavel minha Iilha! No, meu pai discordou a jovem. Ja escolhi deIinitivamente o caminho a seguir. PreIiro a viuvez irremediavel a inIidelidade ou a indiIerena do homem que soube conquistar o meu corao. Sinto-me apaixonada por Niassin e quero casar com ele. Peo, apenas, segredo absoluto para o meu caso e que a sentena proIerida pelo iogue no chegue, de modo algum, ao conhecimento do meu noivo. Seja pois esse o teu kismet 1 , o encantadora Sananda!
* * *
Dias depois realizou-se o casamento de Sananda com Niassin. Dizem os poetas que ate hoje, na india, no houve dois esposos to Ielizes e apaixonados. Na noite em que terminava o prazo Iixado pelo iogue, a jovem Sananda deixou-se Iicar de vigilia na varanda de sua casa. E eis que v surgir, como uma sombra, a Iigura inconIundivel de Sennia, o Anjo da Morte 2 . Que desejas aqui, impiedoso Sennia? perguntou Sananda, dirigindo-se impavida ao mensageiro de Iama, o Deus dos InIernos.
1- Kismet O destino. Corresponde ao maktub dos arabes. Fatalidade. 2- Sennia E um dos auxiliares de lama, o decimo primeiro deus da mitologia hindu.
38 O Anjo da Morte, erguendo o veu que lhe cobria o rosto Iormoso, respondeu, sereno: Venho buscar o teu marido, o bondosa e querida Sananda! A vida de Niassin, neste mundo, deve terminar hoje! Assim quis o Destino e lama ordenou-me que executasse a sentena.
A vida de Niassin, neste mundo, deve terminar hoje! Assim quis o Destino e lama ordenou-me que executasse a sentena.
Escuta, sedutor Sennia retorquiu Sananda. Quando eu era pequenina, minha me deixou-me, certa vez, adormecida sobre um gramado, perto de nossa casa. O Touro Sagrado, ao sair do templo, na direo do pasto, passou sobre o meu corpo e pisou-me o brao. Conservo ate hoje, junto ao ombro direito a marca de sua pata divina. Tenho, pois, o direito (por ter sido pisada pelo Touro Sagrado) de Iazer um pedido ao enviado de Iama! Tens razo. Sananda respondeu o Anjo da Morte. O Touro Sagrado concedeu-te esse grande privilegio. Podes pedir o que quiseres, exceto a vida de teu marido. Quero, o poderoso Sennia! declarou Sananda ter um Iilho aos trinta anos de idade! Respondeu o Anjo da Morte: O teu pedido, menina, e sagrado, e seras atendida. Teras como desejas, um Iilho aos trinta e dois anos de idade! E acrescentou: Vou agora buscar Niassin, o teu esposo! Espera, Sennia! interveio com energia Sananda. Que vais Iazer? Esqueceste de que eu perteno a casta dos brmanes. Uma mulher de minha casta (bem o sabes!) quando perde o marido no pode casar com outro homem. Como queres que eu tenha um 39 Iilho aos trinta e dois anos, se pretendes arrebatar-me Niassin e condenar-me a eterna viuvez! Sennia, o Anjo da Morte, mensageiro de lama, vencido pelo estratagema de Sananda, viu-se Iorado a partir, deixando em paz os dois esposos Ielizes. Na india, os velhos brmanes, quando, repetem a singular historia de amor de Sananda, acrescentam, com a sabedoria dos vedas: A mulher apaixonada, para salvar o homem que ama e capaz de enganar a propria Morte!
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DUAS TENDAS DO DESERTO
erdido de meus companheiros contava-me um arabe em Medina caminhava um dia, sem rumo, pelo deserto, quando avistei uma grande tenda, junto da qual estava uma jovem muulmana com o rosto velado por espesso veu. Mal pousara em mim seus olhos negros e vivos, exclamou: A paz seja contigo, o irmo dos arabes! Que procuras pelos caminhos de Allah? Contei-lhe, em poucas palavras o que me acontecera e a razo por que me encontrava a vagar desnorteado pelo deserto, concluindo a minha narrativa com os versos Iamosos de Khayyam: E neste inIortunio, o Iormosa Iilha de Eva! A vagar, sem destino, tenho duas companheiras: a Fome e a Sede! Se assim e volveu, bondosa, a rapariga seras meu hospede nesta tenda! E pediu-me que descesse do cavalo e descansasse um pouco, enquanto ia preparar-me um saboroso manjar. To meiga era a voz daquela boa criatura, to amavel a sua maneira de Ialar, que no hesitei em aceitar o convite e apeei do cavalo junto a tenda. Momentos depois surgiu-me a jovem, trazendo, num prato Iinissimo, um po delicioso, Ieito de trigo e de mel. Graas a bondade da minha aIavel hospedeira, pude saciar a Iome que ja me atormentava, e beber, com grande satisIao, alguns goles de agua pura e Iresca. No me esqueci de agradecer ao Altissimo a merc que me proporcionara, conduzindo-me os passos ate aquela sombra acolhedora; e, Iora da tenda junto a um velho coqueiro, sob os olhares da jovem que no me desIitava, murmurei: Louvado seja Allah que Iez nascer a bondade e o carinho no corao das mulheres! E era minha inteno descansar mais algum tempo naquele aprazivel lugar quando surgiu de repente, vindo no sei de onde, um homem de ma catadura, com modos abrutalhados de salteador. Era o marido da jovem e o dono da tenda. Ao notar a minha presena, interpelou logo a esposa: Quem e esse homem? Que Iaz aqui? E um hospede replicou a rapariga. No quero saber de hospede! replicou, com azedume. Enxota-o ja daqui, antes que eu perca a pacincia! Ao ouvir tal ameaa, montei a cavalo e Iugi, a galope, daquele exaltado muulmano! Depois de caminhar muitas horas sem parar, cheguei, Iinalmente, perto de outra tenda que parecia maior e mais rica do que a primeira. Uma mulher que se detinha junto a porta perguntou-me com visivel rispidez? Quem es? Que desejas? Contei-lhe que era um viajante transviado pelo deserto e pedi-lhe que me desse um pouco d`agua, algumas tmaras e uma cdea de po. 41 Em minha tenda no ha lugar para hospedes atalhou logo. Detesto chacais que nos importunam implorando agua e po!
Uma mulher que se detinha junto a porta, perguntou-me, com visivel rispidez: Quem es? Que desejas?
Surpreendido por to grosseiras e impiedosas palavras (Allah se compadea daquela mulher), ja ia aIastar-me, quando surgiu por detras da tenda um homem, de Iisionomia bondosa, ricamente trajado. Era o marido daquela ma criatura e o dono da tenda. O cheique, aproximando-se de mim, estendeu-me amavelmente a mo: Bem-vindo sejas, o desaIortunado amigo! Seras meu hospede e aqui teras po, agua e boa sombra. E Iz-me apear do cavalo, convidando-me a entrar em sua tenda, e Ioi ele proprio quem me trouxe saborosas Irutas e doces secos. Achei graa a maneira como essa segunda acolhida contrastava com a primeira, inclusive a alternao de sentimentos dos dois casais, e pus-me a rir gostosamente. De que te ris? perguntou ele. Contei-lhe, sem nada ocultar, o que me havia acontecido na primeira tenda: a mulher me recebera bem, ao passo que o marido so tivera para mim palavras maldosas, cheias de rancor. E que o contrario, exatamente, sucedia ento: a mulher me recebera mal e o marido Iora para mim de uma bondade cativante e sem limites! No lhe vejo motivo para admirao ou riso respondeu-lhe o meu bom hospedeiro. Ate e bem natural que assim haja sucedido! E como eu o Iitasse muito admirado, ele acrescentou: Aquela mulher que te acolheu, na primeira tenda, e minha irm, ao passo que o seu marido e irmo de minha mulher! E concluiu, em voz baixa: 42 Quantos lares ha, pelo mundo, meu amigo, que so exatamente como as duas tendas que encontraste no deserto!
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UMA FBULA SOBRE A FBULA (Lenda Oriental)
LLAHUR Akbar! Allahur Akbar! 1 Quando Deus criou a mulher criou tambem a Fantasia. Um dia a Verdade resolveu visitar um grande palacio. E havia de ser o proprio palacio em que morava o sulto Harun Al-Raschid. Envoltas as lindas Iormas num veu claro e transparente, Ioi ela bater a porta do rico palacio em que vivia o glorioso senhor das terras muulmanas. Ao ver aquela Iormosa mulher, quase nua, o cheIe dos guardas perguntou-lhe: Quem es Sou a Verdade! respondeu ela, com voz Iirme. Quero Ialar ao vosso amo e senhor, o sulto Harun Al-Raschid, o Cheique do Isl! O cheIe dos guardas, zeloso da segurana do palacio, apressou-se em levar a nova ao gro-vizir: Senhor, disse, inclinando-se humilde, uma mulher desconhecida, quase nua, quer Ialar ao nosso soberano, o sulto Harun Al-Raschid, Principe dos Crentes. Como se chama? Chama-se a Verdade! A Verdade exclamou o gro-vizir, subitamente assaltado de grande espanto. A Verdade quer penetrar neste palacio! No! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nos, se a Verdade aqui entrasse? A perdio, a desgraa nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, no entra aqui! Voltou o cheIe dos guardas com o recado do gro-vizir e disse a Verdade: No podes entrar, minha Iilha. A tua nudez iria oIender o nosso CaliIa. Com esses ares impudicos no poderas ir a presena do Principe dos Crentes, o nosso glorioso sulto Harun Al-Raschid. Volta, pois, pelos caminhos de Allah! Vendo que no conseguiria realizar o seu intento, Iicou muito triste a Verdade, e aIastou-se lentamente do grande palacio do magnnimo sulto Harun Al-Raschid, cujas portas se lhe Iecharam a diaIana Iormosura! Mas... Allahur Akbar! Allahur Akbar! Quando Deus criou a mulher, criou tambem a Obstinao. E a Verdade continuou a alimentar o proposito de visitar um grande palacio. E havia de ser o proprio palacio em que morava o sulto Harun Al-Raschid... Cobriu as peregrinas Iormas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e Ioi novamente bater a porta do suntuoso palacio em que vivia o glorioso senhor das terras muulmanas.
1- Deus e grande! Deus e grande! 44 Ao ver aquela Iormosa mulher grosseiramente vestida com peles, o cheIe dos guardas perguntou-lhe: Quem es? Sou a Acusao! respondeu ela, em tom severo. Quero Ialar ao vosso amo e senhor, o sulto Harun Al-Raschid. Comendador dos Crentes. O cheIe dos guardas, zeloso da segurana do palacio, correu a entender-se com o gro-vizir. Senhor disse, inclinando-se humilde, uma mulher desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles, deseja Ialar ao nosso soberano, o sulto Harun Al-Raschid. Como se chama? A Acusao! Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta luz de Ramad, o cheIe dos guardas perguntou-lhe: Quem es?
A Acusao? repetiu o gro-vizir. aterrorizado. A Acusao quer entrar neste palacio? No! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nos, se a Acusao aqui entrasse! A perdio, a desgraa nossa! Dize-lhe que no, no pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de um zagal, no pode Ialar ao CaliIa, nosso amo e senhor! Voltou o cheIe dos guardas com a proibio do gro-vizir e disse a Verdade. No podes entrar, minha Iilha. Com essas vestes grosseiras, proprias de um beduino rude e pobre, no poderas Ialar ao nosso amo e senhor, o sulto Harun Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah! Vendo que no conseguiria realizar o seu intento, Iicou ainda mais triste a Verdade e aIastou-se vagarosamente do grande palacio do poderoso Harun Al-Raschid, cuja cupula cintilava aos ultimos clares do sol poente. Mas... 45 Allahur Akbar! Allahur Akbar! Quando Deus criou a mulher, criou tambem o Capricho. E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande palacio. E havia de ser o proprio palacio em que morava o sulto Harun Al-Raschid. Vestiu-se com riquissimos trajos, cobriu-se com joias e adornos, envolveu o rosto em um manto diaIano de seda e Ioi bater a porta do palacio em que vivia o glorioso senhor dos Arabes. Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do ms de Ramad, o cheIe dos guardas perguntou-lhe: Quem es? Sou a Fabula respondeu ela, em tom meigo e mavioso. Quero Ialar ao vosso amo e senhor, o generoso sulto Harun Al-Raschid, Emir dos Arabes! O cheIe dos guardas, zeloso da segurana do palacio, correu, radiante, a Ialar com o gro-vizir: Senhor, disse, inclinando-se, humilde uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audincia de nosso amo e senhor, o sulto Harun Al- Raschid, Emir dos Crentes. Como se chama? Chama-se a Fabula! A Fabula! exclamou o gro-vizir, cheio de alegria. A Fabula quer entrar neste palacio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda seja a encantadora Fabula: Cem Iormosas escravas iro receb-la com Ilores e perIumes. Quero que a Fabula tenha, neste palacio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha! E abertas de par em par as portas do grande palacio de Bagda, a Iormosa peregrina entrou. E Ioi assim, sob o aspecto de Fabula, que a Verdade conseguiu aparecer ao poderoso caliIa de Bagda, o sulto Harun Al-Raschid, Vigario de Allah e senhor do grande imperio muulmano!
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O SINAL DE RAMANITA
a poucos anos, quando visitei Calcuta, tomei para guia, a Iim de melhor conhecer as curiosidades religiosas da india, um brmane chamado Marichipa, que me Iora indicado pelo gerente do Hotel Dakka. Uma tarde, quando percorriamos o templo de Parvati, passou junto de nos, acompanhada de diversos turistas ingleses, uma mulher loura, elegantemente trajada, e que despertava a ateno de todos pelas linhas incomparaveis de sua Iormosura. Quem sera essa encantadora estrangeira? perguntei ao guia. DiIicilmente poderiamos encontrar, sob o ceu da Asia, criatura mais sedutora! E uma das hospedes do Grande Hotel explicou-me Marichipa. Disseram-me que veio da America e que pretende chegar, numa excurso de automovel, ate Alahabad. E rica, muito destemida e percorre o mundo a procura de idolos exoticos para uma coleo. Ao meu espirito de muulmano causou no pequena admirao aquela criatura maravilhosa que abandonava o conIorto da civilizao pata vir caar manipansos entre os adoradores do Ganges. Parecia-me impossivel que se me deparasse outra vez na vida to original colecionadora de idolos. Por Allah! exclamei, com entusiasmo. Essa americana do Grande Hotel e a verdadeira perIeio. Marichipa sorriu, exibindo os seus dentes amarelos. Verdadeira perIeio... repetiu ele. So mesmo um cego ou um apaixonado deixara de notar que aquela mulher traz no rosto o sinal de Ramanita! Fitei o guia hindu sem disIarar o grande interesse que as suas palavras haviam despertado em mim. Ja no era a primeira vez que me acontecia ouvir reIerir-se alguem ao sinal de Ramanita. Declarei-lhe, pois, que no hesitaria em gastar meia libra para ouvir uma explicao minuciosa a tal respeito. O ouro torna eloqente o individuo mais timido e acanhado. A meia libra prometida operou o milagre. O guia contou-me, numa linguagem obscura, cheia de realismos grosseiros uma interessante lenda que poderia ser intitulada 'O Sinal de Ramanita. Vou tentar traduzi-la.
* * *
No pais de Navayanta vivia uma jovem chamada Ramanita, que possuia as sete virtudes, os quinze atributos e era, alem do mais, de boa casta e de origem nobre. Os brmanes disseram-lhe um dia: Queres agradar ao incomparavel Indra, deus do ar? Vem servir no templo. Poderas acompanhar pelas ruas as vacas sagradas e receber, nos dias de Iestas, as dadivas dos Iieis. A Iormosa Ramanita no atendeu ao convite dos sacerdotes. Para servir no templo de Indra 1 seria ela obrigada a renunciar ao amor do jovem Deybek, principe do Adjimir. E a
1- Indra Um dos deuses da mitologia hindu. Vide nota 3 incluida no conto 'Minha vida querida. 47 menina, embora venerasse Siva e temesse Indra, no se sentia com coragem para to grande sacriIicio. Na India e assim: a mulher apaixonada pe o seu amor acima dos proprios deuses! Verdadeira perIeio!... repetia ele. So mesmo um cego ou um apaixonado deixara de notar que aquela mulher no rosto o sinal de Ramanita!
E os deuses hindus so poderosos; alguns ha que possuem quatro e ate oito braos! Vivem no mundo assim aIirmam os adeptos de Indra certos seres gigantescos e perversos chamados Rakshassas. E aconteceu que o pai de Ramanita caiu gravemente enIermo, Ierido pela maldade sem limites de um desses demnios 1 . Os brmanes procuraram novamente a jovem: O Ramanita! O teu velho pai soIre a inIluncia dos espiritos maus! Queres salva- lo? Ja vimos um Deityas rondando tua casa com o rosto coberto com veu preto! Que devo Iazer? perguntou Ramanita. Bem sei que os Deityas so mensageiros da morte! Vem servir em nosso templo durante um ano aconselharam os brmanes. Intercederemos junto a Indra por teu pai e, e certo, ele Iicara, em conseqncia de nossas preces, so e salvo. Pelas quatro Iaces de Brama, o Ramanita, salva teu pai! As palavras dos sacerdotes calaram Iundo no corao da jovem. O apelo Ieito pelas Iaces do Grande Deus no Ioi em vo e Ramanita resolveu servir ao templo durante um ano e assim o Iazia somente para livrar seu pai das garras impiedosas dos Rakshassas. Como esquecer, porem, durante to largo periodo, aquele que era o seu unico amor? E uma noite, quando Ramanita, ja presa no templo, Iiel a sua palavra, lamentava o seu triste destino, viu surgir na sua Irente a Iigura deslumbrante de Laidasa, que e uma das muitas ninIas, denominadas apsaras que habitam o ceu de Indra. Por que choras. Ramanita? perguntou, com voz carinhosa, Laidasa. Aqui estou, por ordem de Indra, para auxiliar-te. Dize, pois, o que desejas. Tudo Iarei para servir-te. Tenho saudades de meu noivo soluou Ramanita. E, alem dessa saudade vive dentro de mim um ciume torturante. Assalta-me o receio de que as mulheres, durante a minha ausncia roubem o corao daquele que sera meu esposo.
1- Rakshassas So gnios que so se preocupam com o mal que podem Iazer aos mortais. So tidos, por isso, como verdadeiros demnios. 48 Que queres que eu Iaa? perguntou a ninIa. Bondosa apsara acudiu a jovem apaixonada. sei que es dotada, como todos os gnios que pertencem ao paraiso de Indra, de um poder extraordinario. So poderei permanecer tranqila neste templo se Ior atendida no pedido que te vou Iazer. No quero que aparea no mundo, enquanto eu estiver aIastada do meu noivo, mulher alguma que seja dotada de uma beleza impecavel. Deixaras, bem visivel, em todas as mulheres, por mais Iormosas que sejam, um trao qualquer de imperIeio. Assim Iarei, minha Iilha respondeu a enviada celeste. Conserva em paz o teu corao, pois enquanto estiveres presa ao servio de Indra, no aparecera no mundo mulher alguma que possa dizer como Ramanita: 'A minha formosura e impecavel' E tendo pronunciado tais palavras, Laidasa desapareceu. Alguns meses depois soube Ramanita que o principe Deybek havia perecido, nas garras de um tigre, durante uma caada. A inIeliz serva do templo no resistiu a esse golpe da Iatalidade. E quando ela morreu, o seu corpo adoravel, conduzido pelos sacerdotes, Ioi atirado ao Ganges. Desaparecia com Ramanita, nas ondas do rio sagrado, a ultima mulher perIeita do mundo. E sabe por qu? Porque o deus Indra, Iiel a sua promessa, continuou a imprimir em todas as mulheres, por mais Iormosas que pretendam ser, um trao qualquer de imperIeio. Uma tem os olhos excessivamente pequenos; outras apresentam as Iaces descoradas; uma terceira no sabe disIarar o nariz deIeituoso. Esta tem o queixo saliente; envergonha-se aquela da pele toda manchada. Queixa-se uma da boca demasiadamente grande; lamenta a outra a pequenez ridicula do colo. Se algumas so baixas demais, outras ha exageradamente altas. Vesga e uma; parece-nos gaga a outra. Uma e Iormosa e no tem carater: outra e linda, mas estupida e pouco inteligente. Ali encontramos uma que e deslumbrante, mas tem o grave deIeito de ser Iria e inexpressiva: acola surge-nos outra que e interessante, cheia de encantos, mas e perIida e desonesta. Todas tm, enIim, no corpo, ou resvalando para o espirito, o inIalivel sinal de Ramanita.
* * *
Quando o guia terminava a sua curiosa narrativa, passou novamente pelo lugar em que nos achavamos a sedutora americana do Grande Hotel a original aventureira que caava idolos pela india. Olhei atentamente para o rosto da linda excursionista e reparei que ela tinha, realmente, sobre a Iace direita, uma pequena mancha escura que descendo do nariz vinha Iormar uma curva sinuosa junto ao labio. Era, com certeza, o sinal de Ramanita, o sinal terrivel que toma mil Iormas, um milho de aspectos, mas que, Ielizmente para as mulheres, os homens apaixonados nunca chegaro a ver. 49
A FILHA DO MUEZIM (Lenda rabe)
onta-se que o Iamoso caliIa Al-Mamum chamou um dia o seu gro-vizir, o Iiel e bondoso Abdel-Terik, e lhe disse: Quero casar amanh com uma jovem muulmana de espirito esclarecido e notavel talento. Encarrego-te, meu caro vizir, de ir aos mais suntuosos palacios, como as mais humildes choupanas procurar a moa que pelos seus dotes intelectuais possa superar todas as suas companheiras! Escuto-vos e obedeo-vos! respondeu o vizir, inclinando-se respeitoso. E nesse dia, ao cair da tarde, quando o pacato vizir regressava, como de costume, a casa, causava-lhe serias apreenses o delicado encargo que lhe dera o sulto. Como iria ele descobrir, entre tantas jovens de seu pais, a mais viva e inteligente! Como escolher, aIinal, com segurana e acerto, uma esposa digna do Emir dos Crentes? Caminhava o velho Abdel-Terik to preocupado e absorto em seus pensamentos, que no deu ateno a um viajante desconhecido que lhe vinha ao lado. Em meio do caminho avistou um homem a colher trigo no campo. O desconhecido, que se conservava sempre ao lado do vizir, deixando o mutismo em que ate ento estivera, observou, em voz alta: Ai esta um bom campons a enIeixar o seu trigo! Queira Allah que ele ja no tenha comido todo o trigo que esta agora colhendo! Abdel-Terik voltou-se para o seu companheiro de jornada e Iitou-o, cheio de espanto. Aquela observao inesperada e absurda era de Iazer rir o arabe mais ingnuo do Isl. Como poderia um homem comer o trigo antes da colheita? E um insensato pensou o vizir desconIiado. O melhor que Iao e no lhe dar resposta nem ateno. Momentos depois encontraram um cortejo Iunebre que se dirigia ao cemiterio muulmano. A Irente varios homens conduziam, em silncio, um caixo mortuario. Trs mulheres que pareciam viuvas choravam, cheias de desespero. Novamente o desconhecido observou, em voz alta, com a maior naturalidade: Ali vai um enterro pelo caminho de Allah! Quem sabe se aquele morto no estara ainda vivo entre nos? Aquela segunda observao causou ao gro-vizir no menor surpresa. So mesmo um louco poderia Iormular ideia to absurda! No resta duvida reIletiu o digno ministro. Este inIeliz que vem comigo e um demente, um pobre desequilibrado. Estou certo de que um homem, em seu juizo perIeito, seria incapaz de Iormular to desconchavada tolice! Depois de caminharem ainda algum tempo juntos, chegaram os dois viajantes a uma encruzilhada. 50 Voltou-se o desconhecido para o gro-vizir e disse-lhe: Antes que nos separemos devo dizer-vos, meu amigo, que poderiamos ter vindo pelo mesmo caminho, gasto o mesmo tempo, andado do mesmo modo, Iazendo, porem, uma viagem mais curta! E sem mais palavra, aIastou-se lentamente, deixando o gro-vizir mergulhado em proIundo pasmo. Dias depois, com grande pompa, realizou-se o casamento da jovem Nadima...
InIeliz! murmurou o bom do ministro, sinceramente penalizado. DesaIortunado Iilho de Ado! Esta ultima observao veio provar, bem claramente, que es um louco! Como seria possivel, vindo pelo mesmo caminho, andando do mesmo modo, gastando o mesmo tempo, Iazer uma viagem mais curta? E positivamente uma parvoice! Ao chegar a casa contou o gro-vizir a esposa o que lhe ocorrera em caminho, repetindo-lhe as trs observaes do seu original companheiro de jornada. Mal terminara o gro-vizir a sua narrativa, ouviu-se no aposento contiguo, alegre e viva risada Ieminina. Quem esta ai? perguntou, intrigado, o ministro. E uma pobre rapariga chamada Nadima respondeu a esposa. E a Iilha do muezim 1 , veio hoje, casualmente, a nossa casa oIerecer-me alguns trabalhos e bordados que pretende vender. Quero Ialar a essa jovem replicou o gro-vizir. Atendendo a esse chamado, surgiu a moa com o rosto coberto por espesso veu. Minha Iilha disse-lhe, carinhoso, o gro-vizir por que motivo achaste tanta graa no caso extravagante que acabei de contar? Allah que vos conserve, o vizir! replicou a jovem com humildade e respeito. Notei (perdoai a minha audacia!) que muito vos iludistes, julgando louco o original muulmano que Ioi vosso companheiro de viagem! Como assim? No reparaste nas observaes descabidas que ele Iez? Reparai, sim, o cheique veneravel! continuou Nadima com calma e modestia. A meu ver o vosso companheiro de jornada e um homem judicioso e de grande talento!
1- Muezim Pregoeiro. O muezim chama do alto das almenaras (minaretes) os Iieis a orao. Os muezins, em geral. So cegos. 51 As trs observaes Ieitas revelam claramente uma inteligncia invejavel, um raciocinio claro e um juizo equilibrado e perIeito! E sem dar ateno ao grande espanto que invadia completamente a Iisionomia do gro-vizir, a jovem assim Ialou: A primeira observao: 'Queira Allah que ele ja no tenha comido o trigo que esta colhendo!, signiIica que podia acontecer ja ter o campons vendido antecipadamente a colheita e gasto o dinheiro assim obtido. Teria, portanto, comido o trigo que estava colhendo. Quanto a segundo observao, explica-se ainda mais Iacilmente. Ao dizer ele: 'Quem sabe se aquele morto no esta vivo ainda entre nos?, quis signiIicar que muitas vezes uma pessoa, pelas obras notaveis que deixa, continua, mesmo depois de morta, na recordao e no pensamento de todos, como se na verdade estivesse entre nos! E a terceira observao? interrogou o ministro. No vejo como justiIicar to desarrazoada ideia. E muito Iacil acrescentou, com um encantador sorriso, a Iilha do muezim. Que disse o desconhecido ao chegar a encruzilhada? Que a viagem poderia ser mais curta, muito embora Iosse Ieita durante o mesmo tempo, do mesmo modo e pelo mesmo caminho! E isso teria, realmente acontecido, se tivessem tido a Ielicidade de encontrar um terceiro companheiro que Iosse capaz, em agradavel palestra, de contar historias e lendas maravilhosas que os distraissem durante a jornada, suavizando-a! Ao ouvir to habil e sensata explicao, exclamou o gro-vizir: Allah seja louvado! Encontrei na pessoa desta jovem a esposa ideal para o grande e generoso caliIa Al-Mamum, nosso amo e senhor! Dias depois, com grande pompa, realizou-se o casamento da jovem Nadima, Iilha do muezim, com o poderoso Abdala III Al-Mamum Emir dos Crentes, caliIa de Bagda e senhor do grande imperio muulmano!
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O MERCADOR DE SONHOS
ntrei. No meio da sala, mal-iluminada e Iorrada de tapetes amarelos, avistei um homem alto, palido, de barbas grisalhas, que se dirigiu para mim vagarosamente. Ostentava largo turbante de seda branca, onde cintilava uma pedra que no pude classiIicar. No seu semblante havia cansao e esse no sei qu de misterioso notado em todos quantos mercadejavam com a magia. Era o Iamoso Ieiticeiro hindu. Os marroquinos do bairro, com aquela preciso com que o vulgo geralmente apelida os tipos populares, haviam-no denominado 'o mercador de sonhos. Que desejais, o jovem? perguntou, Iitando em mim os seus olhos negros e perspicazes. AIirmaram-me respondi que o senhor possui, graas a certos Iluidos magicos, o estranho poder oculto de Iazer com que uma pessoa tenha o sonho que quiser. Sou curioso. Quero experimentar os encantos de sua magia, a Iora de seus Iluidos maravilhosos. Quero sonhar. E verdade, o muulmano! E verdade conIirmou o mago indiano. Tenho, realmente, esse dom raro e precioso de poder proporcionar as pessoas que me procuram todas as alegrias e todos os prazeres de um sonho desejado. E, apontando para uma larga poltrona escura que estava a um canto, disse-me com gentileza: Senta-te e dize-me: com quem desejas sonhar? Que especie de sonho mais te agrada, o maometano? Contei-lhe ento o motivo unico da minha visita aquele antro misterioso da magia- negra. Antes de tudo comecei devo dizer-lhe que sou um individuo excessivamente romntico e idealista. Sempre senti a Iorte atrao das Iantasias. Ultimamente, durante uma Iesta militar em Marraqueche, conheci certa jovem crist, Iilha de um Irancs de alta linhagem, que exerce Iunes diplomaticas na corte do sulto. Apaixonei-me loucamente pela rumie 1 , mas no sei ainda se sou correspondido. No obstante, desejo sonhar uma vez ao menos com a minha amada, um sonho claro e perIeito! Nesse sentido ja Iiz o possivel, mas os meus sonhos povoam-se de imagens quase sempre desconexas, em meio das quais nunca vislumbrei a dona dos meus enlevos, a inspiradora do meu grande amor! E qual e o nome dessa jovem ideal? perguntou-me o Ieiticeiro. Susana de Plassy. Curioso observou o Iamoso ocultista, passando vagarosamente a mo larga pela testa bronzeada muito curioso! Ontem, ao cair da tarde, Iui procurado por uma jovem
1- Apelido que os arabes do aos cristos Iranceses. 53 crist que aqui apareceu acompanhada por uma escrava moura: a minha Iormosa visitante pediu-me que a Iizesse sonhar com um dos oIiciais da guarda do sulto, Omar Ben-Riduan! Indaguei do seu nome e soube que a jovem se chamava Susana de Plassy! Ao ouvir semelhante revelao, um Irmito me percorreu o corpo todo e levantei-me como se Iosse impelido por alguma possante mola de ao. Omar Ben-Riduan? Omar Ben-Riduan e o meu nome! Omar Ben-Riduan sou eu! Se ela pediu que a Iizesse sonhar comigo, e certo que me ama tambem. Felicito-o, o jovem replicou o indiano, batendo-me, carinhoso, no ombro. E muito raro ver-se uma Iormosa crist apaixonada por um muulmano. Bem sabes o imenso abismo que separa os adeptos de MaIoma daqueles que proIessam a religio de Jesus! Louco de alegria, atirei um punhado de ouro ao velho Ieiticeiro e corri para casa. Sentia-me alucinado como se estivesse sob a ao perturbadora de Iorte dose de haxixe. Louco de alegria, atirei um punhado de ouro ao velho Ieiticeiro e corri para casa.
Reuni alguns de meus mais intimos, contei-lhes o que havia ocorrido e pedi-lhes que me ajudassem a encontrar uma soluo para o meu caso sentimental. El Hadj 1 Ben Cherak, homem sensato e muito relacionado na alta-sociedade marroquina, disse-me, sem hesitar: Conheo muito bem o pai de tua apaixonada. E um cristo mau como um emir e mais orgulhoso do que um paxa. Detesta os arabes e jamais consentira que sua Iilha se case com um muulmano! So vejo, portanto, uma soluo: teras de raptar a jovem Susana! E isso so conseguiras com a sua cumplicidade! Seguindo o conselho do prudente Ben-Cherak, Iiz, naquela mesma tarde, os preparativos para a minha Iuga com a linha rumie. Passei a Iil-leile 2 a conversar com os amigos sobre a minha singular aventura. Ja tarde da noite, chegou a minha casa, de volta, o portador que eu enviara ao rico palacete do nobre Irancs. Fui ento inIormado de que Susana oito dias antes havia partido para a Europa, a Iim de la se casar com um Iidalgo escocs. Percebi, no mesmo instante, que Iora vitima de vergonhosa mistiIicao do indiano.
1- El-Hadj titulo honroso que precede sempre o nome de todo muulmano que ja Iez a peregrinao a Meca. 2- Fil-leile expresso intraduzivel. SigniIica, mais ou menos, a parte da noite que se segue ao pr-do-sol. 54 Revoltado e Iurioso por causa do papel ridiculo que havia Ieito, voltei novamente ao antro do intrujo, resolvido a tirar tremenda desIorra. O velho hindu depois de atender a varios clientes que o esperavam recebeu-me calmo, cinico, o semblante placido de quem nunca praticara ao censuravel. Gritei-lhe, ameaando-o com o punho Iechado: Miseravel! Por que mentiu? Susana nunca veio aqui a este antro nojento! Vamos devagar, meu jovem amigo replicou o charlato, imperturbavel, segurando-me pela mo que o ameaava. No Iiz seno o que tu me pediste. Vi, casualmente, o teu nome gravado no cabo do rico punhal que trazes a cinta. Jogando Iacilmente com o teu nome, pude proporcionar-te o encanto de uma iluso eImera. Menti para que pudesses no somente sonhar com um amor impossivel como tambem acreditar nele! E concluiu, sardnico, terrivel: AIinal, o que vieste buscar aqui? No Ioi um sonho? No Ioi uma iluso? Pois bem, eis, precisamente, o que te vendi: Um sonho... uma iluso...
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AS INCONSOLVEIS DE HAMAD
cidade de Niampur, na india, conta-nos antiga lenda vivia outrora um santo hindu que se tornou Iamoso pelos proIundos conhecimentos que possuia acerca das leis, costumes e crenas de todos os povos do mundo. Chamava-se Kavira, o Bhagav 1 , esse grande e virtuoso sabio. Um dia Kavira (Allah o tenha em sua gloria!) e seu discipulo predileto Lahima Sen, como iam de peregrinao ao templo sagrado de Kasbin, caminhavam por uma larga e serpenteante estrada nos arredores de Hamad, quando ouviram um alarido singular, que parecia provir do Iundo da Iloresta. Assustou-se o jovem discipulo com a inesperada bulha. Mestre exclamou, dirigindo-se ao santo alguma coisa de muito grave e extraordinario se passa na Iloresta! Ouo um barulho espantoso, como se uma legio de gnios inIernais rompesse do seio da terra e viesse apupar o sagrado silncio que dormia, ha pouco, sob estas Iolhagens. Meu Iilho respondeu o sabio devemos procurar para os acontecimentos do mundo explicaes simples e naturais. Por que atribuir a Iatos mais correntes da vida origens milagrosas e Iantasticas? Deus seja louvado! Tudo o que se passa na terra, repito, se prende a causas simples e naturais. E. como o discipulo continuasse a mostrar-se atemorizado com o ruido que ouvia, o mestre prosseguiu: Esse grande ruido que perturba agora o silncio da Iloresta no e causado nem por gnios malignos nem por demnios em legio. Trata-se simplesmente de um eleIante domesticado que os lenhadores obrigam a arrastar um tronco cheio de ramos e Iolhagens, pela estrada que atravessa a Iloresta! Poucos passos depois, realmente, mestre e discipulo viram varios homens que conduziam, aos gritos, moroso e gigantesco paquiderme. Eia! Upa! Upa! Kab! e o herculeo animal arrastava, na verdade, um grande tronco, cheio de ramagens que remexiam o cascalho do caminho, produzindo um barulho ensurdecedor. E tudo assim na vida observou o bom do Kavira. E tudo assim na vida! Ouve-se um grande ruido, a inexperta Iantasia se apresenta em dar-lhe origens demoniacas. AIinal... no passa o caso de um velho eleIante a arrastar ramos secos pelo caminho! Tinha o Iamoso Bhagavo proIerido estas judiciosas palavras, quando avistou, sentadas a beira da estrada, trs mulheres que choravam. Eis ali, o mestre! exclamou o jovem Lahima trs mulheres debulhadas em pranto! Alguma coisa de muito grave e extraordinario por certo lhes aconteceu.
1- Bhagav - Aquele que esta salvo. Bem-aventurado. 56 No julgueis assim pelas aparncias, meu Iilho retorquiu Kavira. Aquelas mulheres choram, com certeza, por algum motivo muito simples e natural.
Eis ali, o Mestre' Exclamou o fovem Lahima Trs mulheres debruadas em pranto' Alguma coisa de muito grave e extraordinario por certo lhes aconteceu.
E tomados de viva curiosidade aproximaram-se das trs mulheres. O sabio dirigiu-se a primeira e interrogou-a: Por que choras, o inIeliz? Que inIortunio te Ieriu to cruelmente para que aqui te entregues ao desaIogo das lagrimas? Ah! Meu senhor! respondeu a mulher, entre soluos. Sou uma desgraada! Meu marido cada vez que se encontra comigo, nega-se a maltratar-me, no quer espancar- me! Insiste em dispensar-me o maior carinho e bondade! E de novo entregou-se a copioso e desIeito pranto. E incrivel! E extraordinario! exclamou Lahima, assaltado por indizivel espanto. Esta rapariga chora por um motivo singularissimo, nunca visto! Chora porque o marido no quer espanca-la! Como podemos explicar isto, o mestre? O santo Kavira (com ele a orao e a paz!), entreabrindo um sorriso de tolerncia e bondade, ciIrou nele a sua resposta. Aquele Iato que assumia aos olhos do discipulo a Ieio de um acontecimento absurdo e inconcebivel, deveria ter uma explicao simples e natural. Vejamos o que diz essa jovem volveu ele, apontando para outra mulher que tambem se entregava ao derivativo das lagrimas. Ah! Meu senhor lamentou a interpelada entre soluos. Allah tenha piedade de mim! Sou Iasmina, Iilha de Abdul Ben Hamed, a mulher mais inIeliz do mundo. Amo apaixonadamente meu marido. Tenho-lhe aIeio sem limites, e, no entanto, o ingrato insiste em no querer casar com outra mulher! No quer escolher outra esposa. E atraves do veu claro que ensombrava o rosto da jovem, viam-se as lagrimas a escorrer-lhe pelas Iaces. 57 E espantoso! E inverossimil! exclamou Lahima. Esta mulher chora por uma razo que jamais a Iantasia humana poderia conceber! Chora porque o marido, que ela tanto estima, sujeito ao seu aIeto, no quer casar com outra mulher! E. voltando-se novamente para o sabio, perguntou: Como explicas esta anomalia, o tu que es sapientissimo? O piedoso mestre mais uma vez esboou um sorriso que reIletia toda a sua benevolncia e brandura. Aquele Iato, na aparncia to estranho, deveria ter, na verdade, uma explicao bem simples e natural. Antes, porem, de justiIicar com palavras o seu elevado juizo sobre as estranhas razes de inIortunio alegadas pelas duas mulheres, aconselhou ao jovem que ouvisse tambem a terceira. E esta, que era mais Iormosa que a Ilor azul do lotus, interrogada, assim Ialou: Sou uma inIeliz, o generoso principe! Sou a mulher mais desventurada do mundo! Casei unicamente por interesse, com um homem riquissimo. Meu marido possui terras imensas, ricos palacios e numerosos escravos! Por sua morte todos os seus bens passaro para o meu poder. Ha cinco ou seis dias, porem, Ioi meu marido assaltado por uma enIermidade gravissima. Os medicos mais ilustres e Iamosos do pais, chamados a consulta, declararam-no perdido, sem cura possivel. Percebendo que ia Iicar viuva, ajoelhei-me a seus pes e pedi-lhe que me repudiasse antes de morrer. Eu no quero Iicar viuva, embora ambicione a riqueza que ele possui! E, entre soluos, a pobre mulher prosseguiu: Meu marido, porem, penalizado com a sorte de minha Iamilia, insiste em no querer deserdar-me! Hoje ou amanh morrera e eu serei a sua unica herdeira! Eis a minha enorme desdita, o senhor! E por isso que eu choro! E positivamente espantoso! observou Lahima, que mal podia exprimir-se de atnito que estava. As razes de que se serve esta mulher para lamentar-se so na verdade inconcebiveis. No quer ser viuva de um homem rico, ao qual se uniu unicamente por interesse! E positivamente absurdo! Pela terceira vez o grande sabio hindu (Allah, porem, e mais sabio!), ao ouvir as exclamaes do discipulo, deu mostras de branda alegria. E como estivesse habituado a deciIrar os mais complicados problemas da vida, Ialou desta sorte: Observei, raciocinei e posso, em concluso, garantir com absoluta certeza, que estas trs mulheres choram por motivos extremamente simples, Irutos naturais da alma Ieminina! A primeira, pela maneira de Ialar e pelos grossos brincos de osso que traz, deixa perceber que e natural do AIeganisto. Ora, segundo uma antiga lei deste pais, o marido que espanca a mulher e obrigado a dar-lhe, a titulo de indenizao, joias e vestidos novos! Ora, esta moa, como e muito vaidosa, chora porque o marido no a espancando de vez em quando no lhe da o direito de exigir dele joias custosas nem trajes vistosos. Chora, portanto, por um motivo simples e natural: chora por vaidade! E a segunda, o mestre! Como explicar o caso desta Iasmina, a rapariga apaixonada? O caso de Iasmina, Iilha de Abdul Ben Hamed, ainda e mais simples de esclarecer. Trata-se, como Iacilmente pude observar pelo veu, pelos trajos e pelo nome de uma jovem arabe maometana. Como e notorio, os muulmanos podem ter ate quatro esposas. Iasmina e, porem, a unica. Sente-se, entretanto, cansada com os trabalhos caseiros e tem grande vontade de que seu marido tome uma segunda esposa, de modo que ela tenha mais 58 descanso. Uma vida trabalhosa Iara Iacilmente com que ela cedo venha a enIear e envelhecer. Quer, portanto, poupar-se, conservar--se Iormosa e sedutora para prender com seus encantos um marido que ela ama apaixonadamente. E, ante o proIundo pasmo do jovem, o grande sabio concluiu: Quanto a terceira mulher que deseja ser repudiada pelo esposo moribundo a explicao de suas lagrimas no oIerece a menor diIiculdade. Trata-se de uma hindu, cujas seitas religiosas so intolerantes. Segundo as crenas de sua gente, a viuva e obrigada a atirar-se a Iogueira que consome o corpo do marido. No se sentindo com coragem para to grande sacriIicio, por um homem que ela no ama, essa mulher preIere ser repudiada a ter de acompanhar o marido ao Iogo! Que lhe podera importar a herana do marido se os bens superabundantes no lhe ho de evitar a morte? E Kavira, o santo hindu, concluiu, com um sorriso de bondade e candura: Esta, meu Iilho, chora porque tem medo da morte! E havera coisa mais natural do que o instinto de conservao? E. ao longe no seio da mata sombria, ouvia--se, ainda, vagamente, o ruido que o eleIante dos lenhadores Iazia, arrastando a pesada carga pela estrada aIora... E tudo assim na vida! Uassal!
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MAKTUB! (Lenda arabe)
Iirmam os historiadores que o tumulo de Sidi-Yakub, existente em Tlemcen, data do seculo XI. No nos move o desejo de contestar a opinio dos eruditos sobre um monumento quase em ruinas, perdido ou esquecido, talvez, no deserto. A unica coisa realmente interessante que se encontra nessa cuba outrora to venerada pelos crentes e uma inscrio ali deixada por um escravo. Resume-se essa legenda numa palavra Maktub gravada sobre a pedra que cobre as cinzas de Sidi-Yakub. E sabeis, o cristo! O que quer dizer Maktub? Essa palavra encerra a IilosoIia de um povo, o destino de uma civilizao. Maktub e um vocabulo arabe que signiIica apenas Estava escrito, ou melhor: Tinha que acontecer. Maktub e, assim, a expresso da Fatalidade 1 . Tal palavra, na laje tumular de Tlemcen, recorda um episodio ocorrido com dois namorados que o Destino caprichoso uniu para depois separar cruelmente. Conta-nos uma lenda que na cidade de Or, ao norte da Argelia, vivia certa moa, de origem Irancesa, chamada Heliete. Era Iilha de um negociante cristo, de Marselha, que se estabelecera, levado pelas necessidades de sua proIisso, sob o ceu da AIrica. Certa vez, durante uma Ieira, conheceu Heliete o jovem Iezid El-Massi, de origem nobre, descendente de uma das mais ricas Iamilias de Tlemcen. Viva simpatia, que deveria crescer de dia para dia, uniu desde logo, os dois namorados. Heliete, levada por seu temperamento excessivamente romntico, apaixonou-se pelo arabe, e este arrebatado como os homens de sua raa sentiu que a sua vida no mais teria sentido se lhe viesse a Ialtar o amor de crist. A pitoresca cidade de Or, por esse tempo sob o poder de Bey Mustapha Ben YusseI, Ioi testemunha silenciosa daquele amor. As tamareiras, sob o sol causticante, abriam suas palmas e estendiam no cho, da praia ate a montanha, um largo tapete de sombras, sobre o qual os dois jovens caminhavam Ielizes, longas horas esquecidas, em doces coloquios. Grande abismo de incompatibilidade separa, entretanto, uma crist de um adepto da religio de Maome. Os pais de Heliete, inIormados das inclinaes amorosas da jovem, opuseram-se tenazmente aquele casamento que se lhes aIigurava desonroso. E o primeiro brigue que levantou Ierro de Or transportou para Marselha a apaixonada menina. O InIortunio, na vida das criaturas, escreve, as vezes, varias paginas num periodo durante o qual a Felicidade mal teria tempo para esboar a curva da letra 'aleI. A inIeliz Heliete, Ierida to rudemente em seu delicado corao, no soube resistir; e adoeceu gravemente, em conseqncia daquele golpe, iniciado pela separao e concluido pela desesperana.
1- Maktub Participio do verbo 'catab, escrever. 60 Sentindo avizinhar-se dela a sombra da morte, mandou chamar, em segredo, um im 1 , que vivia no porto, entre aventureiros e embarcadios. Quero morrer conIessou ela, entre soluos, ao velho maometano na religio de Allah, que e a crena de meu noivo. A vida nos separou: quem sabe se a morte no vira pr termo a essa separao. E morrendo Iiel a religio que os arabes proIessam terei o consolo supremo de encontrar no ceu muulmano aquele que tanto amei na terra! Se o teu desejo e sincero, menina respondeu o im no porei duvida em servir de testemunha a tua converso. Basta, para isso, que pronuncies trs vezes a nossa proIisso de Ie! Heliete, sem hesitar, assim Ialou: Declaro que so ha um Deus, que e Allah, e que Maome e o proIeta de Allah! E trs vezes repetiu, solene, as suas palavras que constituem o dogma Iundamental da religio dos arabes. O im tirou, ento, as sandalias, abriu um exemplar do Alcoro, e voltando-se para Meca, a Cidade Santa, leu em voz alta o primeiro capitulo do Livro de Allah 2 : Bismillahi ahmair rahin! Em nome de Deus, Clemente e Misericordioso! Louvado seja o Onipotente, criador de todos os mundos! A misericordia e em Deus o atributo supremo! Nos Te adoramos, Senhor! E imploramos a Tua divina assistncia! Conduze-nos pelo caminho certo! Pelo caminho daqueles que so esclarecidos e abenoados em Ti. E quando Azrail, o anjo da Morte, veio buscar Heliete, encontrou-a convertida a religio do Isl. E a alma da boa e desditosa menina Ioi levada para o seio de Allah, Clemente e Misericordioso.
* * *
No mesmo dia em que Heliete expirava em Marselha, o cheique Iezid El-Hassin agonizava no Iundo de sua tenda, no oasis de Euddad, perto de Tlemcen Junto ao leito do desventurado moo achavam-se apenas duas pessoas: um escravo, que a dedicao extrema impedira de abandonar o cheique, e um Irade que ali Iora ter, anuindo a um chamado. O sacerdote era um desses missionarios que percorrem durante longos anos, os desertos aIricanos em trabalho de catequese. A declarao do jovem muulmano deixou-o, de certo modo, surpreendido. ConIessou o cheique que nutria o vivo desejo de morrer na paz da Igreja, pois so assim poderia encontrar-se entre os bem- aventurados, com sua noiva, que era crist. A salvao daquela alma iluminada pela Fe no derradeiro momento, comoveu o bom sacerdote. Fora Deus, na sua inIinita misericordia, que o conduzira aquela tenda. Cumpria- lhe, pois, salvar dos tormentos do InIerno, o jovem arrependido. E o padre, depois de ouvir a conIisso do cheique, e tendo-se certiIicado da sinceridade de sua resoluo deu-lhe a absolvio plenaria batizando-o segundo manda a Santa Igreja Catolica e I-lo, ainda, receber na hostia, em comunho, o corpo divino de Jesus, Nosso Senhor!
1- Im - O Isl no admite sacerdotes. O im desempenha apenas as Iunes de oIiciante nas oraes diarias nas mesquitas. O titulo de Im e dado a certos doutores e aos quatro Iundadores do Islamismo. 2- Livro de Allah Alcoro. 61 Assim, o rico cheique Yezid El-Hassin, principe de Tlemcen que em vida rezara nas mesquitas e erguera preces a Allah, Onipotente, cerrou os olhos para os desenganos do mundo como um bom cristo. Maktub! Estava escrito! A Iatalidade e cega e inexoravel. Estava escrito que para os dois namorados de Or nunca mais teria termo a cruel separao, e que nem mesmo com a morte veriam realizado o seu sonho de amor. E isso aconteceu. Ela morreu muulmana, ele morreu cristo. Maktub!
E o padre, depois de ouvir a confisso do cheique, e tendo-se certificado da sinceridade de sua resoluo deu-lhe a absolvio plenaria bati:ando-o segundo manda a Santa Igrefa Catolica
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A NOIVA DE ROMAIANA
a opulenta cidade de Badu, na india, vivia, Iaz muitos anos, um rico brmane, chamado Romaiana, que possuia as cinco virtudes desejaveis e era, alem disso, destro e valente no manejo dos corceis de combate. Trs encantadoras donzelas Nang, Laira e Lamit requestravam o corao do garboso e gentil Romaiana. Cada uma delas parecia exceder as demais em beleza de Iormas, lustres de avos e graas de gestos e sorrisos. No sabendo o generoso Romaiana qual das trs deidades escolher para esposa, procurou um velho sacerdote, chamado Vidharba, que morava na cidade pediu ao bom do goru lhe indicasse um meio seguro e discreto de averiguar qual das trs raparigas seria a mais prendada. Aconselho-te um artiIicio extremamente simples acudiu o sabio brmane ao jovem namorado. Da a cada uma das jovens um prato de arroz, no meio do qual teras, previamente, ocultado um brilhante, e pede-lhes que te preparem um gostoso manjar. Depois de aprontar cuidadosamente os trs pratos, conIorme determinara o sacerdote, Romaiana tomou-o sob as amplas vestes, Ioi a casa da Iormosa Nang, e disse-lhe, apresentando-lhe um deles. Venho pedir-te, minha querida, que me prepares, tu mesma, com este arroz, um manjar. Virei, dentro de sete dias, saborear a iguaria que Iizeres! Idntico pedido Iez Romaiana, logo depois, a Laira e a Lamit, deixando-lhes os dois pratos restantes. No dia marcado, ao cair da tarde, Ioi o moo brmane, em companhia do judicioso Vidharba, a casa de Nang. A jovem conseguira, com o alvo cereal que lhe dera Romaiana, um manjar Iinissimo e saboroso. Como es habilidosa, o bela Nang! Exclamou o moo, cheio de entusiasmo. Feliz o mortal que has de eleger para esposo! O velho goru disse, porem, baixinho, ao discipulo: Esta jovem e, realmente, como disseste, bastante habilidosa, mas no te podera servir para esposa. E desonesta, e egoista, pois, tendo encontrado o brilhante no meio do arroz, guardou-o sem nada dizer-te! E prosseguiu: A mulher desonesta e egoista, conIorme li no Hitopadexa 1 e como o tigre Iaminto da Iloresta, que tanto devora um ladro como um santo! Romaiana e seu mestre despediram-se de Nang, e dirigiram-se, em seguida, a casa em que morava Laira.
1- Hitopadexa Livro composto de uma coleo de Iabulas, contos morais e apologos. O Hitopadexa e muito usado na india para a educao dos meninos. 63 No menos delicioso estava o pudim que esta idealizara. Ao prova-lo, Romaiana Iicou maravilhado: No ha elogios dignos deste apetitoso prato! Jamais me Ioi dado saborear iguaria to Iina! Estou encantado. Mais encantada estou eu ainda retorquiu a jovem pois no meio do arroz achei um valioso brilhante, com o qual mandei Iazer, para mim, este lindo anel!
Aconselho-te um artificio extremamente simples acudiu o sabio bramane ao fovem namorado. Da a cada uma das fovens um prato de arro:, no meio do qual teras, previamente, ocultado um brilhante, e pede-lhes que te preparem um gostoso manfar.
E estendendo a mo Iina e perIeita, mostrou ao namorado a riquissima joia que lhe cintilava no dedo esguio e branco. Mas, sem que Laira o ouvisse, o sacerdote murmurou ao ouvido do jovem brmane: Esta moa e prendada, e honesta, mas tem, a meu ver, um grave deIeito: e egoista! A mulher egoista conIorme nos ensina o Hitopadexa e como o passaro que devora a semente para que ninguem possa aproveitar o Iruto! E rematou, em voz baixa: Deixemos esta casa. Vejamos como vai receber-nos a Iormosa Lamit! Romaiana seguiu, no mesmo instante, para a casa de sua terceira apaixonada. Acolheu-o Lamit com grande satisIao, oIerecendo-lhes um lauto banquete. Que vejo! exclamou Romaiana. Pedi-te que me Iizesses, apenas, um manjar com a pequena poro de arroz que te dei, e encontro iguarias to diversas e to Iinas que so mesmo na ceia de um principe poderiam Iigurar! Pois tudo isso que ai esta retorquiu a jovem preparei apenas com o arroz que me trouxeste! Como Ioi possivel tal milagre? Nada mais Iacil explicou Lamit. Ao examinar e lavar o arroz, achei um brilhante. Se esse brilhante veio com o arroz pensei deve contribuir para a preparao dos pratos! E. assim, resolvi empenhar o brilhante. Com o dinheiro obtido comprei varios ingredientes para as demais iguarias que ai esto. Mostrei-os as minhas vizinhas que, encantadas, me pediram lhes ensinasse a to bem Iaz-los. Aquiesci, 64 recebendo, de cada uma, dois thalungs 1 de ouro. Foi com esse dinheiro que consegui retirar o brilhante do penhor! E entregando a Romaiana a preciosa gema, disse: Aqui esta o brilhante! Guarda-o, que ele e teu! O sabio bramarxi 2 , conduzindo o rapaz para o canto da sala, segredou-lhe: Casa, meu Iilho, une-te hoje mesmo a esta meiga e preciosa menina! Ela e, a meu ver, habilidosa, honesta, boa e econmica! E concluiu, com Iirmeza, que os anos e a experincia lhe garantiam: A mulher econmica, segundo diz o Hitopadexa, e como a Iormiga que nunca leva Iora de sua vivenda os gros preciosos de seu celeiro. Romaiana seguiu, sem hesitar, o conselho do sabio Vidharba, e viveu, muitos anos Ielizes, sem jamais esquecer os proIundos ensinamentos do Hitopadexa: 'Em verdade, quem no tem, procure adquirir, adquirindo, guarde sem desperdiar, guardando, aumente convenientemente, aumentando, despenda nos lugares sagrados'
1- Thalung Moeda antiga do Sio. 2- Bramarxi Brmane dotado de grandes virtudes. Santo da casta bramnica. 65
A SEITA DOS IAKINIS
uando o principe Livati de Miapola voltava de uma caada, na grande Iloresta de Baladeva, viu, casualmente, junto a uma casa rustica da estrada, Iormosa rapariga, que trabalhava em grosseiro tear. Apaixonou-se o principe por essa jovem, e, como no pudesse reIrear os impulsos de seu corao, dirigiu-se, no mesmo instante, a encantadora desconhecida e pediu-a em casamento. No posso aceitar a vossa generosa proposta, o principe! Porque ja sou casada! E contou, pesarosa, o seu triste romance: Meu nome e Vitoria comeou e sou Iilha de um brmane muito pobre. Quando eu tinha doze anos de idade, meu pai vendeu-me a um homem perverso chamado Jaradgava, dando-me em troca de uma divida que Iizera no jogo. Meu marido, da casta dos vaixias, tem alma de chandala 1 ; trata-me com desprezo, e, no raras vezes, espanca-me impiedosamente! Pois Iujamos desse bruto! props o principe. Iremos para Hiamavanta e, la bem longe, casaremos! No posso Iugir replicou a moa. Embora no sinta a menor aIeio por meu algoz, estou presa por um juramento que Iui obrigada a Iazer! Vou oIerecer ao teu marido avultada quantia ajuntou o mancebo. Estou certo de que a cobia Iara com que ele, repudiando-te, consinta em nosso casamento! Nada conseguireis pelo dinheiro respondeu a moa. Jaradgava e caprichoso e ciumento. Ja apunhalou, por minha causa, um rico mercador de Benares. E a inIeliz, com voz repassada de proIunda magoa, ajuntou: So poderei ser vossa esposa se Ior levada ao vosso palacio e entregue aos vossos cuidados pela propria mo de meu marido! E isso e impossivel! Completamente impossivel! Quando o principe regressou, nesse dia, ao castelo, estava triste e abatido. Procurou um velho brmane, chamado Iama, seu conIidente e amigo, contou-lhe o que se havia passado e pediu-lhe que o auxiliasse a vencer a teimosia e o ciume do Iacinoroso Jaradgava. Estou certo respondeu o brmane de que V. Alteza so podera vencer esse vaicia 2 perverso, se quiser entrar para a seita dos Iakinis! O principe de Baladeva nunca ouvira Ialar em semelhante seita: mas resolveu seguir conIiante as instrues do prudente brmane. No dia seguinte Livati mandou convidar o perigoso Jaradgava para exercer o cargo de mordomo do castelo oIerecendo-lhe otimo salario. O ciumento vaicia que ignorava a
1- Chandala, na India, e o individuo expulso da sua casa. (Nota do T.). 2- Vaicia Uma das quatro maiores castas em que se divide o povo hindu. Veja a nota do conto 'A Esposa e a Morte. 66 paixo do principe por sua esposa aceitou, sem hesitar, o generoso oIerecimento. Alguns dias depois, o principe chamou Jaradgava e disse-lhe, em tom conIidencial: Naturalmente ja sabes, meu amigo, que eu perteno a grande seita dos Iakinis. Os Iiliados a essa doutrina secreta dedicam a todas as mulheres um amor puro e desinteressado. Quero, portanto, que tragas hoje, ao castelo, uma rapariga de casta elevada e que seja digna, pelos seus dotes naturais, de receber as homenagens que sou obrigado a prestar, segundo as Iormalidades prescritas pelos iakinistas. No se pode calcular a surpresa com que o vaicia ouviu estas palavras. Que seita seria essa? No estaria o rico senhor de Baladeva soIrendo das Iaculdades mentais? O principe, como se no percebesse o espanto que a sua inesperada revelao havia causado ao administrador, ajuntou: Quando trouxeres a rapariga, deveras leva-la ao salo de honra. E apresentando-a, deveras dizer: 'Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu! Jaradgava retirou-se, tendo prometido que tudo Iaria como Iora ordenado. Intrigava-o, porem, aquele caso. Vou desvendar esse misterio! pensou. E, no dia seguinte, procurou uma rapariga muito viva e alegre, chamada Noila, e props-lhe que o acompanhasse ate o castelo de Maipola. Noila, que cultivava toda sorte de aventuras, aquiesceu de bom grado. Jaradgava levou-a a presena do principe. Eis aqui exclamou, solene a mulher que Vossa Alteza pediu! O principe tomou Noila pela mo e conduziu-a, respeitosamente, ao salo de honra do castelo, cuja porta Iechou. Vamos ter belos idilios! murmurou o mordomo. Quando Noila, momentos depois saiu da sala, perguntou-lhe Jaradgava que galanteios lhe havia dito o principe.
Sua Alte:a afoelhou-se a meus pes e adorou-me como se eu fosse uma nova deusa'
Nada respondeu Noila. Sua Alteza colocou-me em um trono riquissimo, ajoelhou-se a meus pes e adorou-me como se eu Iosse uma nova deusa! Obsequiou-me, por Iim, dando-me vestidos, enIeites e joias! 67 E a jovem mostrou ao mordomo do castelo os ricos aneis, os colares, as pomadas e as rutilantes peas de ouro que recebera. E estranha essa religio! murmurou Jaradgava. Alguns dias depois, o principe ordenou a Jaradgava que lhe trouxesse outra rapariga, pois ja era chegada, novamente, a ocasio de prestar as homenagens devidas a deusa dos Iakinis. O mordomo trouxe, desta vez, uma donzela chamada Naraina. Passou-se tudo como da primeira vez. recebendo a jovem, que era da casta dos parias 1 , valiosa recompensa. E extraordinario! pensava Jaradgava, cada vez mais intrigado. Parece-me que essa seita dos Iakinis no passa de uma loucura do principe! No creio existirem no mundo dois homens que tenham, em relao as mulheres Iormosas, to estranha maneira de proceder! Um dia, porem, quando o desconIiado Jaradgava voltava de casa, encontrou sob uma arvore, junto a estrada, um velho brmane. absorto com a leitura de um grande livro. E Jaradgava, aproximando-se do velho, perguntou-lhe: E verdade, o brmane! Que existe no mundo uma seita chamada Iakinis? O brmane, que no era outro seno o prudente Iama, que naquele lugar Iora postar-se ja de proposito respondeu: E verdade, sim, meu Iilho! A grande seita dos Iakinis existe, ha mais de dez seculos, espalhada pelo mundo. Os adeptos dessa elevada doutrina Iaz o juramento sagrado de respeitar a mulher e de prestar homenagens constantes ao sexo Ieminino, reduzindo todo esse culto a uma admirao platnica, pura e desinteressada. E o sabio concluiu, gravemente: Os iakinistas, homens extremamente puros, so incapazes de tocar em uma mulher! Agradeceu Jaradgava ao bom brmane a preciosa inIormao e, nesse dia, quando regressou ao castelo, estava ja plenamente convencido de que a seita dos Iakinis era, na india, uma grande realidade. Uma semana depois, o principe pediu ao seu mordomo que trouxesse ao castelo, para o cerimnia iakinista, uma jovem de boa Iamilia. E se eu trouxesse minha esposa? pensou Jaradgava. E claro que no haveria nisso mal algum! Esses bons iakinistas so inoIensivos! E murmurou, cheio de ambio: Bela ideia! Com os presentes que Vitoria receber do principe estarei riquissimo em pouco tempo! O ambicioso vaicia Ioi nesse mesmo dia a casa e disse a esposa: Vou levar-te ao castelo do principe de Maipola. Deveras, ao chegar, obedecer a tudo o que o principe determinar! A jovem Iitou com indizivel espanto o seu terrivel marido. Quem teria Ieito mudar de ideia aquele homem caprichoso e mau? Jaradgava levou a esposa ao castelo e, na presena do principe, exclamou, como ja Iizera das outras vezes: Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu!
1- Parias Casta antiga, perIeitamente deIinida, que no e a ultima nem das ultimas. Os parias no se reputam miseraveis e abjetos nem so reIugo da sociedade: entretm o mesmo pundonor de sua casta - ou o 'castismo, como se diz na India que os brmanes e os xatrias e tratam as camadas que consideram mais baixas, como as de sapateiros e lavadeiras, com o puritanismo e desdem analogos aos das castas superiores. 68 O principe tomou-a pela mo, levou-a para o grande salo do castelo e, depois de ter Iechado cuidadosamente a porta, assim Ialou: Bem vs, querida Vitoria, que Ioi o teu proprio marido que para aqui te quis trazer! Estas desligada de teu juramento! Convencio-o de que ele deveria consentir em nosso matrimnio! E, ante o incalculavel espanto da moa, o principe ajuntou: Fujamos depressa! Jaradgava pode arrepender-se, de repente, do ato de generosidade que acaba de praticar. O principe abriu uma porta secreta que Iicava ao Iundo do salo. Foi por essa porta que os dois namorados Iugiram, sem que Jaradgava pudesse perceber. Algumas horas depois Ioi o rancoroso vaicia sabedor do logro em que havia caido. Era, porem, muito tarde para qualquer vingana. O principe e Vitoria ja estavam longe! E ainda hoje, na india, os velhos brmanes contam: Era uma vez uma moa chamada Vitoria, que entrou por uma porta, saiu por outra e... acabou-se a historia!
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UM NOIVADO EM BAGD
Quando eu tinha vinte anos de idade, Iui, certa vez, a Bagda. No dia seguinte ao de minha chegada tendo a necessaria licena do Valli 1 armei uma grande tenda junto a praa de Otm e preparei-me para vender aos vaidosos 'bagdalis perIumes, tapetes e as mil quinquilharias que lhe trouxera das terras longinquas da india e da China. Em dado momento aproximou-se de minha tenda uma mulher, ja velha, magra e esIarrapada, o rosto descoberto, o andar curto e arrastado. Depois de examinar, com o olhar distraido, talvez por mera curiosidade, as bugigangas espalhadas sobre grossos tapetes hindus, disse-me: O jovem e Iormoso mercador! Seja Allah o teu guia e o teu amparo! Ha quarenta anos passados, um homem do teu tipo escolheu-me para esposa e tirou-me do serralho de meus pais! E a Ielicidade sempre me sorriu no harem 2 de meu amado! Ao ouvir palavras to bondosas, cuja simplicidade parecia aliar-se a uma emoo sincera, Iiquei proIundamente lisonjeado. Agradeo-vos respondi-lhe a expresso amavel e a Iorma gentil do vosso sal! Seja a paz a vossa estrada e a alegria s e perIeita a luz dos olhos de vossos Iilhos! Uala! acudiu a velha. Vejo que es aIavel e eloqente. Desejo veriIicar agora se a generosidade que aIlora nos teus labios provem realmente de teu corao. Escuta, mercador: sou pobre e no tenho de meu um unico dinar. Queres, ainda, assim, Iazer comigo uma transao? Ouo a vossa proposta, senhora! retorqui, sem hesitar. Asseguro-vos, porem, que ja esta aceita. Da-me, ento atalhou a anci um Irasco de perIume. Prometo, em troca, ensinar-te alguns versos de um antigo poeta de Mossul. Tomei de um dos mais belos e valiosos Irascos de essncia e entreguei-o a misteriosa criatura. E ao tempo em que ela ocultava sob as vestes rotas, a obra-prima de um perIumista de Basra, disse-lhe: Aguardo ansioso o vosso pagamento, senhora! Oh, jovem bem dotado! exclamou os versos com que pretendo retribuir a tua desmedida generosidade jamais devero desamparar os teus pensamentos. Escuta-os: 'So e digno mil ve:es da misericordia infinita de Deus aquele que em si proprio encontra foras para resistir a tentao do pecado!
1- PreIeito da cidade, governador de uma provincia. 2- Harem Vocabulo derivado do arabe har proibido. Harem e a parte da casa de um muulmano onde Iicam suas esposas. 70 E, sem mais palavra, aIastou-se, o andar arrastado, impelindo para diante o cascalho do caminho. Era a hora triste do ezz 1 . A voz cantante do muezim 2 cego chamava os crentes a orao: Allah e grande e Maome e o Enviado de Deus! Vinde a prece, o muulmano; vinde a prece! Lembrai-vos de que, na vida, tudo e po, exceto Allah! Lembrai-vos de que... Voltei-me na direo da Cidade Santa 3 , retirei as sandalias, estendi o meu tapete e em Allah Onipotente, criador do ceu e da terra, concentrei meus pensamentos, isolando-me da vida material e vil. Uala' acudiu a velha. Jefo que es afavel e eloqente. Desefo verificar agora se a generosidade que aflora aos teus labios provem realmente de teu corao.
Lembrai-vos de que tudo e po, exceto Allah! E o eco ressoando ao longe, nas montanhas de Kilv, parecia repetir: Exceto Allah! Exceto Allah! Cinco dias volvidos achava-me descuidado junto a tenda, quando avistei um cheique que passava solene em garboso camelo que um escravo negro, seminu, conduzia vagarosamente pela redea. Cheique dos cheiques! exclamei, dirigindo-lhe amistoso sal. Maahaba ahl na Sahl na anastina' Aqui tenho a vossa disposio os unicos perIumes dignos das mulheres encantadoras do vosso harem. O desconhecido ergueu o rosto para mim, e num sorriso aIavel traduziu o agradecimento com que retribuia a saudao carinhosa que acabara de ouvir. Parecia ainda
3- Ezz Orao da tarde. 4- Muezim Pregoeiro. O muezim chama do alto dos minaretes os Iieis a orao. Os muezins, em geral, so cegos. 5- Meca. 71 relativamente moo. Os traos energicos de sua Iisionomia serena Iaziam pensar que um escudo possante de energia devia revestir-lhe a alma. Ostentava, num requinte de bom- gosto, riquissimo keIIie 1 de trs pontas, todo de seda branca, com barras azuis. O cheique Iez parar o camelo, ordenou ao escravo que o Iizesse apear-se do matuIl 2 e concedeu-me a honra de vir examinar de perto as ricas alcatiIas que eu vendia, com pacincia e probidade, sem Ierir um so versiculo do Alcoro! Quis a vontade de Allah (gloriIicado seja o Eterno!) que o olhar do cheique Iosse incidir sobre um pequeno quadro de madeira no qual eu escrevera em belos caracteres negros os tais versos que, a guisa de pagamento, ouvira da anci. Mostrou-se o cheique tomado do mais vivo espanto ao se lhe deparar a legenda poetica do quadro, as mos tremiam-lhe e uma onda de acentuada palidez invadiu-lhe as Iaces. Mercador interpelou-me, num tom seguro e autoritario quem te ensinou esses versos? Contei-lhe e no via razo para ocultar a verdade a invulgar transao que, dias antes, Iizera com a velha, repetindo-lhe Iielmente as palavras gentis que dela ouvira naquela tarde! Louvado seja Allah, o Justiceiro! exclamou o cheique. Acabo de descobrir, graas ao teu auxilio, o mercador, o paradeiro de uma criatura que ha trs anos procuro pelas terras do Isl. Naquele momento a desconIiana e a duvida invadiram-me o espirito. Teria o inIeliz cheique a razo perturbada pela loucura? Ou que sentido oculto haveria em suas palavras? O rico muulmano, esclarecendo o caso, contou-me o seguinte: Meu nome e Abd-el-Uhad, e sou Iilho do poeta El-Bagavi, de Mossul. Compelido pelas necessidades da vida e Iorado, muito cedo, por um destino ingrato, deixei minha Iamilia e Iui tentar a vida no pais de Candahar, na india, onde graas a Allah, tive um largo periodo de prosperidade. Passados vinte anos, como ja me satisIizessem as riquezas que ento possuia e tambem para livrar minha Iilha Salua de um raja perverso que a queria desposar, resolvi voltar ao meu velho torro natal. Soube, chegando a Mossul, que meu pai havia Ialecido alguns anos antes, mas do paradeiro de minha me no me souberam dar noticia alguma. E ha trs anos que a procuro inutilmente pelas cidades e aldeias. Ja desanimado, depois de Iatigantes pesquisas, deliberei, a conselho de um velho im 3 de Basra, Iazer uma peregrinao a Meca. Cheguei ontem a esta cidade e daqui pretendia partir dentro era breve, com uma caravana de xiitas 4 para o Santuario da Fe. Quis, porem, Allah, o Exaltado, que eu viesse agora encontrar na tua tenda naquele quadro que ali esta alguns dos mais belos versos de meu saudoso pai. No me Ioi diIicil inIerir na narrativa que Iizeste que a misteriosa anci que levou o teu perIume era precisamente aquela que Ioi a esposa unica de meu pai. Na certeza de que ela se acha nesta cidade, espero encontra-la sem mais canseiras nem jornadas. E, ao terminar, pousou no meu ombro a sua larga mo bronzeada e perguntou-me, como se tivesse tomado, no momento, uma resoluo inabalavel. Quanto queres, mercador, pela tua tenda, com tudo o que nela se encontra? Meditei, em silncio, durante algum tempo, e compreendi que o dadivoso cheique
1- Pea do vestuario. 2- Especie de palanquim que se coloca no camelo. 3- Im - Vide nota 1 da pag. 60. 4- Xiitas - Seita protestante dentro do Isl. 72 entendia ter encontrado uma Iorma delicada de maniIestar a sua gratido. O ceu e a generosidade do arabe ensina um proverbio no tem limites no possivel. Pela minha pobre tenda respondi, Iitando-o com desembarao nada quero! Considerai-a, desde ja, como coisa vossa! Mas pelos versos, que esto naquele quadro, quero se Ior possivel a mo de Vossa Iilha Salua! A minha audaciosa proposta causou no pequena surpresa ao rico Abd-el-Uhad. O mercador! exclamou. E singular! Acabas de pedir em casamento uma jovem sobre os predicados da qual no tens a menor inIormao 1 . Salua sera Iormosa ou tera os traos deIormados pela Ieiura? Cheique dos cheiques retorqui, no mesmo instante. Tenho sobre a beleza incomparavel de minha Iutura noiva, duas indicaes preciosas, de grande valor. Primeiro: Salua e vossa Iilha! E qual e a outra? indagou o cheique, lisonjeado na sua vaidade de pai. Houve um raja que a desejou para esposa. No conheo vossa Iilha, e certo, mas conheo muito bem os rajas; e sei que so homens que no caminham de olhos vedados pelas estradas da vida! Aceito o teu pedido replicou, risonho o cheique. Es, o jovem, mais inteligente do que eu pensava. Dou-te minha Iilha em casamento e tomo-te, de hoje em diante, sob minha proteo. Foi assim que Iiquei noivo em Bagda. O sol anunciava no horizonte azulado do Isl a hora da prece do crepusculo. A voz clara do muezim perdia-se em ondas vagarosas pelo ceu. E naquele momento, precisamente, em que o Destino parecia concluir a pagina mais Ieliz da minha louca existncia, apontando-me o caminho da Ventura e do Amor, chegava- me aos ouvidos aquelas palavras eternas, que me arrancavam do mundo dos sonhos para a realidade triste da Vida. Lembrai-vos de que tudo e po, exceto Allah...
1- Eram, em geral, as velhas que Ireqentavam os harens que davam aos namorados indicaes sobre os predicados das jovens casamenteiras. 73
O MARIDO ALUGADO
achid Biram, homem generoso e rico, que negociava em joias e sedas, procurou-me um dia, muito aIlito, em minha tenda. A sua situao era delicada e, na verdade, apresentava no pequena diIiculdade. Dentro de algumas horas, antes de surgir a lua, deveria partir com uma grande caravana de mercadores damascenos para a Ieira de Hil. Queria, porem, antes de iniciar essa longa jornada, casar-se outra vez com a encantadora Naziha, sua ex-esposa, que oito dias antes, num momento de exaltao, levado pelo ciume, havia repudiado segundo a Iormula sagrada. Conheo aqui em KuIa disse-lhe, sem muito hesitar, um certo Musa ibn- David 1 que se aluga para marido. Por que no o procuras? Deves obter, agora mesmo, um 'marido desligador. Antes de prosseguir, devo um esclarecimento aos leitores que ainda no percorreram, ao passo lento das caravanas, os interminaveis desertos da Arabia. Segundo as instituies muulmanas, quando um marido repudia a esposa uma ou duas vezes, pode recupera-la, sem mais Iormalidades, ao Iim de trs meses e dez dias; quando, porem, o repudio e Ieito pela terceira vez ou mediante a Iormula: 'Eu te repudio trs ve:es o casamento esta deIinitivamente rompido e o ex-marido so podera contrair novo casamento com essa mesma mulher, no caso em que ela se case com outro homem, sendo pelo novo marido igualmente repudiada! Tal exigncia do Alcoro que os doutores aIirmam ser justiIicavel em teoria e na pratica uma Ionte Iecunda de situaes cmicas e extravagantes, pois, muita vez, um marido, desejoso de reatar relaes com a esposa que repudiou impensadamente, prepara para ela a Iarsa ridicula de um casamento com um 'marido alugado. Homens ha que se prestam, mediante boa remunerao, a desempenhar o papel de marido 'desligador preenchendo as Iormalidades de um casamento burlesco que dura, as vezes, pouco mais de uma hora. Musa ibn-David era um dos tais que se 'alugavam para marido. Era provavel, pois, que servisse ao rico Rachid Biram. ' Ja o procurei declarou Rachid. OIereci-lhe uma boa recompensa, mas ele no a aceitou. Por Allah! exclamei. No e possivel! Musa sempre se prestou ao ignobil papel de marido alugado e no sera, portanto, capaz de recusar uma oIerta desta ordem. Montei a cavalo e, acompanhado de um guia negro, dirigi-me no mesmo instante para a tenda do marido mercenario. Encontrei sentado a porta um velho de longas barbas brancas. Era o pai de Musa.
1- Musa ibn-David. Musa, Iilho de David. 74 Naharak, sahid, ia qhawaja! 1 saudei-o, ao chegar. Onde esta Musa, o David? Partiu ha pouco para o deserto de Hajar respondeu-me o ancio e so voltara depois da outra lua! Sabes, o cheique! Perguntei por que motivo Musa no quis servir de 'marido desligador ao rico Biram? Sei, sahheb 2 respondeu-me. Meu Iilho, quando ainda muito jovem, conheceu Naziha e apaixonou-se por ela. E bem sabes que um homem digno no poderia Iazer, com a mulher amada, o papel de marido alugado! Uallah! exclamei. Ridicula desculpa! Arrojada tolice! Um homem que exerce a degradante proIisso de teu Iilho no pode ter semelhantes escrupulos! A Iormosa Naziha conhece-o bem e considera-o, por certo, mais desprezivel que o chacal! Por Maome! exclamou o velho erguendo-se, colerico. Es um covarde! Procuras oIender meu Iilho quando sabes que ja no tenho Ioras para repelir os teus insultos! Queira Allah que sejas castigado como mereces, pois o castigo de Deus esta mais perto do pecador do que as palpebras o esto dos olhos! E o eco dessa praga terrivel acompanhou-me os passos pelo deserto.
* * *
Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, achava-me sentado a porta de minha tenda, meditando sobre o caso de Musa ibn-David, quando de mim se acercou uma jovem, completamente velada, que se Iazia acompanhar de duas escravas. Saudei-as respeitosamente e perguntei-lhe o que de mim desejava. Respondeu-me, com voz terna e maviosa: Que Allah te cubra de dons, o jovem! InIormaram-me hoje, pela manh, que estavas de passagem por esta cidade com uma caravana de mercadores do Cairo e de Damasco, e que hoje mesmo partiras para Bagda e dai para Basra. Quero comprar alguns vestidos, peas de adornos e joias. E, enquanto Ialava, a jovem Ioi pouco a pouco erguendo o seu espesso veu, deixando descoberto o pequenino rosto, em cujas linhas o Divino Artista Iizera aparecer os mil segredos da seduo. Fiquei deslumbrado! Exaltado seja Allah, o Unico, que soube reunir tanta beleza no olhar e tanto encanto no sorriso de uma mulher Iormosa! Seduzido pela incomparavel beleza da jovem desconhecida, prontiIiquei-me a mostrar-lhe, no mesmo instante, todos os ricos artigos que levava: sedas, vestidos, tapetes, casemiras da india, colares, caIets de veludo, telas riquissimas do Indosto, veus bordados a ouro, sapatos da Persia, peles do Caucaso e mil outras coisas igualmente preciosas e deslumbrantes. Duas horas Iicou a jovem em minha tenda a examinar e escolher os objetos que pretendia comprar. Durante todo esse tempo, Hadija assim se chamava a linda muulmana Ialou-me de sua vida no harem de seus pais, que eram ricos e viviam num grande serralho junto ao EuIrates. Hadija declarei, aIinal, num impeto, tomando-lhe as mos entre as minhas devo partir amanh para Bagda. ConIesso-te, porem, que estou loucamente apaixonado por ti! Queres casar comigo?
1- Bom dia, o cheIe! 2- Sahheb Titulo honroso. Corresponde a Senhor. 75 Com um sorriso encantador, que por timidez parecia procurar reIugio nas covinhas das Iaces, ela assim me respondeu: O jovem to bem dotado! Teu pedido traz grande alegria ao meu corao! As tuas palavras, como o vento no deserto, erguem bem alto a areia ardente dos meus desejos! Quero ser tua esposa e acompanhar-te pelo mundo na tua vida aventureira e incerta de mercador! E, como no houvesse tempo a perder, Iicou resolvido que o casamento se Iaria imediatamente. Uma hora depois, no grande salo do palacio em que morava Hadija, realizou-se o casamento, segundo os preceitos muulmanos, na presena do cadi e das testemunhas. Terminada a cerimnia, deixei rapidamente o salo e Iui Ialar com alguns amigos e empregados que me tinham acompanhado. Quando voltei para junto dos convidados, aguardava-me a mais dolorosa das surpresas. Fui encontrar minha esposa, em um canto do salo reclinada sobre um rico div que um largo reposteiro ocultava; estava abraada a um jovem, que a beijava apaixonadamente nos olhos negros e na boca nacarina e Iresca. O Ialsa criatura! bradei, tomando de grande Iuror. Ainda no ha uma hora que nos casamos e ja tens um amante! Longe de mim, mulher indigna, Iilha de Cheit 1
E, revoltado com o procedimento da desleal que eu escolhera, para esposa, gritei, cheio de colera, a Iormula deIinitiva do divorcio:
falsa criatura' bradei, tomado de grande furor. Ainda no ha uma hora que nos casamos e fa tens um amante'
1- Cheit - Demnio. De ti me divorcio trs vezes! Ao ouvir tais palavras, ergueu-se a jovem, e, com voz calma, irnica, disse-me: 76 Julgas ento que eu tenho amante? Es um tolo, um pateta! Olha! Olha bem! Este 'fovem que me abraava e beijava e a minha boa escrava Zobeida, que Iiz vestir com trajes masculinos! Foste completamente ludibriado e estou de ti para sempre divorciada! Foi com espanto que percebi o engano que cometera num momento em que o ciume e a paixo me haviam tornado cego. A pessoa que estava com Hadija era realmente uma escrava disIarada com os cabelos cortados e vestida a maneira dos homens. Hadiji! exclamei. No sei como explicar o teu estranho proceder. Se no querias ser minha esposa, por que aceitaste o meu pedido de casamento? Devo-te uma explicao, o muulmano tornou a jovem. Ha dois meses, mais ou menos, meu marido, Salim Hamed, num momento de exaltao, divorciou-se de mim, pronunciando trs vezes a Iormula sagrada do divorcio. Ontem, porem, procurou-me e props a reconciliao e um novo casamento. InIelizmente, segundo as nossas leis, eu no poderia casar com ele sem ter casado antes com outro homem que me repudiasse. Na Ialta de um 'desligador de conIiana, resolvi lanar mo de um estratagema. Casei contigo e procurei dar-te um pretexto, embora Ialso, para que me rejeitasses imediatamente. Agora, sim, posso casar com Salim Hamed! E voltando-me as costas, deixou-me estupeIato diante do cadi e das testemunhas que se riam de mim. Eu havia Ieito, sem querer, o ridiculo e ignobil papel de marido desligador! O castigo de Deus esta realmente, mais perto do pecador, do que as palpebras o esto dos olhos!
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A DANARINA HINDU
o atravessar, naquela tarde, a secular praa de El-Madhi, avistei um jovem e elegante cheique, de turbante verde, que saia do 'ha-m 1 acompanhado de dois escravos negros. Mal pousara em mim os olhos, o desconhecido veio ao meu encontro e saudou-me a maneira classica dos arabes nobres: Allah badich, ia sidi! Deus vos conduza, senhor! Katter quhairag respondi, agradecendo. Que Allah torne Ielizes os dias de tua vida, o jovem! E certo de que no me seria diIicil, num rapido 'haddis 2 descobrir a identidade daquele amavel muulmano, disse-lhe com a inteno de provoca-lo a uma ligeira palestra: Ja sabes, meu amigo, que amanh, ao nascer do sol, se Allah quiser, partirei para Basra cheIiando a grande caravana de mercadores? Ja sei, sidi respondeu-me. Estou bem-inIormado de todos os recursos de que dispe a nossa caravana! E o cheique acentuou bem a expresso 'nossa caravana, Iitando em mim os seus olhos vivos, com o disIarado desejo de ler nos meus a surpresa que suas palavras deveriam causar-me. Uala! Nossa caravana? Eu conhecia todos os mercadores, guias e cameleiros; no havia, entre os homens que me acompanhavam desde o beduino sem nome ao mais orgulhoso chamir 3 um so que me Iosse estranho. Como admitir que aquele desconhecido pertencesse ao numero dos 'meus viafantes? Sou o cheique Fauzi Jabor, auxiliar do sulto Al-Mamum! disse-me. Devo ir a Basra levar uma ordem secreta para o governador. O gro-vizir ja no vos Ialou a meu respeito? Sim, era verdade. Recebera, dias antes, do primeiro-ministro, uma ordem para conduzir ate Basra um emissario do caliIa. Ja no era, alias, a primeira vez que me acontecia levar nos ricos cheqdeIs 4 da caravana mensageiros, escribas e agentes da corte muulmana. Sinto-me Ieliz, o cheique tornei eu por saber que vou t-lo como companheiro de jornada. Que as grandes alegrias e os violentos simuns nos encontrem sempre juntos. A amizade desinteressada dos nobres so pode honrar aos aventureiros do deserto!
1- Casa de banhos. 2- Haddis Conversa ligeira. Troca de palavras. 3- Chamir CheIe de caravana. 4- CheqdeI Especie de palanquim, colocado sobre o camelo. 78 E, enquanto conversavamos alegremente como velhos amigos, iamos caminhando, lado a lado, pelas ruas mais movimentadas. A pequena distncia, os dois escravos negros, os braos cruzados sobre o peito, nos acompanhavam solenes. Em que pretendeis ocupar, aIinal, as vossas horas, em Bagda, ate o momento da partida? perguntou-me o cheique. Penso em despedir-me de alguns amigos. Despedidas? E tarde demais para to ingrato passatempo! InIormado pelos meus auxiliares de que seria obrigado a partir amanh, a hora do 'sefer 1 ja apresentei aos bagdalis 2 o meu sal 3 da ausncia. Vou ver agora a Iamosa bailarina hindu que chegou ontem de Mossul. Dizem que e linda como a gazela. Queres ir comigo, cheIe? E vendo-me indeciso, insistiu, risonho, puxando-me pelo brao: Emchi narruhh! Vamos! Emchi narruhh! Ha duas coisas que o arabe no sabe recusar: a tmara quando e doce, e o convite interessante quando e amavel! Emchi naihbad! respondi. Vamos! * * * A escrava que nos recebeu a porta, ao ouvir o nome do cheique, deixou-nos entrar imediatamente e conduziu-nos por um longo corredor, ate uma sala espaosa, ricamente decorada, onde ja se achavam trs outros visitantes. Fauzi Jabor conhecia os presentes e a cada um deles dirigiu um aIetuoso sala: Masa al-qhair, cheique! KiI el-solha, cheique! Sentei-me numa grande almoIada. Uma circassiana trouxe-me belo narguile de prata com a brasa ja preparada. Sentia-se no ar um cheio embriagador de Iumo e haxixe. Um dos visitantes, depois de trocar algumas palavras com um velho que se achava a seu lado, descruzou, lentamente, as pernas, levantou-se vagaroso como um eleIante e veio acomodar-se junto de mim. Era barrigudo e disIorme; usava turbante alto, malIeito, sob o qual aparecia um rosto redondo, esverdinhado, cheio de maculas escuras. Tinha os olhos vidrados, aceticos, tristonhos. Uma palavra, cheique disse-me, quase em segredo. Es o chamir da grande caravana que parte hoje 4 para Basra? Julgo que sim respondi, sem procurar disIarar a ma vontade com que mal o podia tolerar. Insistiu, impertinente, com a voz cada vez mais elevada. Dize-me, ento, que ordem misteriosa e essa que o jovem Fauzi Jabor vai levar ao governador de Basra? Lamento no poder inIormar-vos. Excelncia 5 retorquiu, abespinhado. No sou um 'djin 6 , nem aprendi com os marabus da Persia a descobrir pela cor da lua o segredo das coisas ocultas. Posso assegurar-vos que nem mesmo o meu nobre amigo Fauzi Jabor conhece os termos da carta de que e portador. E uma ordem secretissima do nosso amo e senhor, o glorioso caliIa Al-Mamum, Emir dos Crentes. So Allah sabe a verdade!
1- SeIer Prece Ieita ao nascer do sol. 2- Bagdali Individuo natural de Bagda. 3- Sala Saudao dentro do Isl. 4- Para os arabes a noite precede o dia. A noite do dia 7, por exemplo, comea ao pr-do-sol do dia 6. 5- Excelncia Tratamento dado aos vizires do sulto. Aplicado a qualquer pessoa e ironia. 6- Djin Gnio dotado de grande poder. 79 O meu inquiridor Iez-se cor de cal, levantou-se visivilmente contrariado e Ioi retomar o lugar em que se achava, rosnando contra mim ameaas descabidas: Algum dia, 'chamir, a tua discrio sera causa de uma desgraa! E ia eu intimamente desejar que a alma daquele estupido Iosse presa de Cheit 1 , o Execravel, quando Fauzi Jabor, o cheique, surgiu conduzindo, orgulhoso, pela mo, a Iormosa danarina hindu. Ao v-la, Iiquei deslumbrado. Jamais o destino Iizera com que se me deparasse na vida criatura mais sedutora. No Iosse a barreira do pecado, no teria duvida em eleg-la, naquele mesmo instante, a sexta mulher perIeita do Isl 2 . Fauzi Jabor no Iazia empenho em ocultar que estava apaixonado pela inIiel. E quem seria capaz de censura-lo? A danarina tinha, a meu ver, as treze perIeies que Allah, o Clemente, concede as huris do Paraiso. Treze? Treze, no. Treze menos uma, com certeza! Com espanto dos circunstantes, a bailarina apontou para mim com seu brao nu: E aquele, Fauzi, o teu amigo cheIe da grande caravana? Levantei-me, respeitoso, e disse-lhe: Lala 3 , no passo de um humilde beduino do deserto. Seria, entretanto, capaz de enIrentar uma legio de panteras, se depois de tal proeza houvesse de ter por prmio, a honra de ser incluido no numero de vossos escravos! Nazira assim se chamava a bailarina sorriu, lisonjeada. Mach Allah! Se me permitissem os distintos amigos aqui presentes, eu gostaria de dizer algumas palavras, em segredo, ao chamir da caravana! Pois no! Pois no! exclamaram os cheiques. Fauzi Jabor disse-me: Acompanhai Nazira, o beduino Ieliz! Ela conIidenciou-me que tem um pedido a Iazer-vos! Atravessei a sala contando meus passos pela indizivel timidez que me dominava. Ao passar junto do indiscreto barrigudo esverdinhado, o repelente cheique segurou-me pelo brao e baIejou no meu ouvido: Cuidado, chamir! Essa mulher tem um misterio qualquer na vida! Cuidado! Levou-me a bailarina para um aposento vizinho. Uma escrava persa, com gestos lnguidos, oIereceu-me, num prato dourado, Irutas, doces secos e um delicioso vinho de Chipre. A bailarina, cruzando as pernas, numa atitude graciosa, sentou-se a meu lado. Um perIume esquisito evolava-se de rico hattarak 4 ; pequenina lmpada azul, sobre um camelo de bronze, derramava pelas coisas uma aparncia de misterio. Chegava vagamente aos meus ouvidos o som triste de um alaude. Ja te disseram, chamir comeou Nazira, num tom mavioso de pacincia que eu tenho na vida um misterio? E inutil negar. Ouvi perIeitamente a insinuao daquele detestavel chacal, que desde Mossul me vem perseguindo com suas toleimas. InIelizmente no e mentira. Pesa sobre a minha existncia o tormento de um segredo. Ja colhi a teu respeito, chamir, varias inIormaes; estou certa de que es honrado, valente e discreto. Senhora! Outra recompensa no quero seno os elogios que brotam dos vossos labios bondosos!
1- Cheit Demnio. 2- Segundo as crenas muulmanas, as mulheres perIeitas Ioram em numero de cinco, e Iiguram, imortais, no Alcoro. 3- Lala Tratamento respeitoso; signiIica senhora. 4- Vaso especial em que se queimam perIumes. 80 Nazira prosseguiu: Preciso do teu auxilio, chamir. E para que possas, com segurana, dispensar-me o teu amparo, e mister que conheas previamente o to Ialado 'misterio de minha vida. Aos treze anos comeou, com suave magoa casei-me, por imposio de meu pai, com um gramatico de Medina, homem perverso, avarento e sem escrupulos. Antes mesmo que nascesse o nosso primeiro Iilho, meu marido vendeu-me a um aventureiro sirio, chamado Kasl, que exibia pelas cidades bailarinas escravas. Foi ento que aprendi o triste oIicio que hoje exero. Quando nasceu o meu Iilho, resolvi consultar sobre o seu Iuturo um certo marabu de Medina, que sabia ler na areia o destino das criaturas. Disse o marabu: 'Tua beleza, mulher, sera a causa da morte de teu Iilho! Chorei, desesperada, ao saber que o Destino havia escrito na pagina de minha vida to tragico sucesso. Dizem os cristos que e possivel, as vezes, alterar-se a marcha dos acontecimentos. Que Iazer? Mutilar-me? Sim, pensei nessa soluo desesperada. Com dois ou trs golpes seguros de punhal eu conseguiria, como uma selvagem aIricana, deIormar para sempre as linhas perIeitas do meu rosto. Kasl, inIormado desse hediondo projeto, ameaou-me de morte! Por Allah! O gramatico avaliara a minha beleza em vinte camelos de sela! 'Se tens medo do Destino dizia-me separa-te de teu Iilho. Manda-o para outra cidade, para outro pais. Longe de ti ele estara salvo da previso do marabu; a tua beleza no lhe podera Iazer mal algum. Segui tal conselho, que me pareceu razoavel e certo. Mandei meu Iilho para Basra com alguns bons peregrinos que regressavam de Meca. E desde esse dia nunca mais tornei a v- lo. Sei que vive ainda; e Iorte, e belo! Tem agora dezoito anos; chama-se Tasib Zal e e muito estimado pela honrada Iamilia que o adotou. E agora, chamir concluiu Nazira, com voz trmula que estas de posse do grande segredo de minha vida, vou dizer-te qual o Iavor que espero merecer da tua boa- vontade. Quero que procures em Basra meu Iilho Tassib; perguntaras por ele ao muezim da mesquita de Shara-Sawa. A meu Iilho entregaras esta pequena caixa na qual reuni, durante dez anos, algumas economias. Com esse auxilio meu Iilho podera casar-se sem recear as mil diIiculdades da vida. E a bailarina colocou-me nas mos uma pequena caixa repleta de moedas de ouro. Lala exclamei o Iilho querido recebera o prmio da dedicao materna! Juro por Allah, o Exaltado, que empregarei todos os esIoros a Iim de Iazer com que esta valiosa dadiva chegue as mos daquele a quem e destinada! E voltamos em silncio para o salo. Fauzi Jabor e os outros cheiques divertiam-se com uma jovem escrava que cantava ao som de um alaude um belo poema de Antar. Todos os olhares convergiram, curiosos, sobre mim. Assaltaram-me com desencontradas perguntas: Que te disse a bailarina? Qual e o misterio de Nazira? Que desejava ela, antes de partir a caravana? No sei respondia sempre aos importunos. No sei. E no houve quem percebesse que eu escondia, sob o meu largo 'keIIie de seda, a pequenina caixa cheia de ouro. Nazira a pedido dos cheiques resolveu executar a chamada Dana do Drago. Aproximei-me de Fauzi e disse-lhe: Vou deixar-vos, cheique! Ja vai adiantada a noite. Pouco Ialta para que o muezim chame os Iieis a primeira prece. Quero veriIicar se os camelos esto carregados, as tendas arrumadas e se os guias esto nos seus lugares. 81 Esta bem respondeu-me o cheique. Vou Iicar aqui, neste delicioso reIugio, mais algum tempo. Na hora da partida e certo la estarei com meus ajudantes e servos. Por Allah! Qualquer atraso sera grande transtorno para a caravana! A Iormosa danarina, com seus trajes coloridos e vistosos, executava, diante de um grande tapete, onde aparecia a Iigura Iabulosa de um drago, uma das danas caracteristicas da Persia antiga. Tive a impresso de que o drago Iantastico rondava a bailarina, prestes a devora-la. A Iatalidade dizia El-Hadira 1 e como o drago da lenda; cai de repente sobre a vitima para esmaga-la com as garras do InIortunio!
* * *
A caravana estava pronta. Ate os ajudantes de Fauzi Jabor, com os seus trinta e cinco camelos perIilavam-se ja nos seus lugares. Terminada a prece, disse aos guias da Irente: No e possivel partir neste momento. O emissario do caliIa pessoa da mais alta distino, ainda no chegou, mas no deve tardar. Sem ele a caravana no partira. Esperemos. Fauzi Jabor, entretanto, apesar do prometido, no aparecia. Sentia-se que a impacincia agitava os beduinos. Um dos mercadores perguntou-me: Por quem esperamos, chamir? Sera possivel que a caravana Iique o dia inteiro parado ao sol, a espera de um principe Iolgazo que se diverte com bailarinas? Respondi-lhe, num tom aspero, que no admitia replica: Aqui quem manda sou eu! Se no te serve a caravana, o deserto e livre! Podes ir! E submissos, sem revolta, os homens por mim cheIiados esperaram. InIelizmente, porem, so no dia seguinte, ao pr-do-sol, Ioi que Fauzi Jabor deixou a casa da Iormosa bailarina. E a grande caravana, com um dia e meio de atraso, ganhou lentamente a estrada do deserto. Os cameleiros resmungavam, maliciosos: A bailarina e bela! A caravana que espere! Os grandes albornozes brancos, soltos no ar, pareciam passaros gigantescos que surgiam da terra.
* * *
Depois de uma jornada Ieliz assim quis Allah, entramos em Basra. Havia, quando chegamos, na praa de Moalhim, um grande ajuntamento de populares. InIormaram-me de que ali tambem se achava o governador Ahme-Ibn Makula, com seus auxiliares e escribas. Sem perda de tempo Iui ter a presena do cadi, saudei-o respeitosamente e apresentei-lhe, em seguida, o cheIe Fauzi Jabor, que se achava, ento, a meu lado. Allah conserve o cadi! exclamou o jovem Fauzi, aproximando-se. O caliIa Al-Manum, Emir dos Crentes, ordenou-me que Iizesse chegar as vossas mos esta mensagem. Que Allah conserve o cadi! O poderoso governador de Basra tomou da carta que o cheique trouxera, tirando-a com vagar do sobrescrito.
1- Antigo poeta arabe. 82 Lamentavel! exclamou o governador, mal havia terminado a leitura do breve documento. No posso inIelizmente atender ao que determina aqui o glorioso caliIa Al- Mamum, nosso amo e senhor! Esta ordem chegou-me tarde as mos! Como assim? interroguei, assustado. O atraso com que chegamos teria sido causa de alguma desgraa? E verdade, chamir concordou o cadi. Lamentavel! exclamou o Governador, mal havia terminado a leitura do breve documento. Esta ordem chegou-me tarde as mos.
A mensagem que o jovem Fauzi Jabor trouxe de Bagda era da maior importncia; tratava-se de uma ordem do sulto para que Iosse comutada a pena de morte de um condenado. O perdo do nosso generoso caliIa nada mais adianta; o inIeliz prisioneiro Ioi executado hoje, pela manh! Naquele momento sem que eu pudesse explicar o motivo , um terrivel pensamento atravessou-me o espirito. Era bem verdade que a Iamosa bailarina tinha sido, indiretamente, culpada da morte do condenado, pois Iora ela quem, com seus encantos, prendera o cheique em Bagda, retardando por muitas horas a partida da caravana! E como se chamava perguntei o inIeliz que Ioi executado por no ter chegado a tempo a ordem do caliIa? Um dos oIiciais do cadi respondeu: Chama-se Tassib Zal, o poeta, e era natural de Medina! Ouviu-se um Iorte ruido metalico. Era a caixa de Nazira, que eu trazia oculta, presa sob o brao, e que por descuido meu caira inesperadamente ao cho. As moedas de ouro espalharam-se pela areia. Fiz com que o valioso presente Iosse repartido entre os pobres. Na verdade, a pessoa, a quem era destinado aquele ouro rutilante, no precisava mais das recompensas do mundo, pois ja havia comparecido ao julgamento de Deus! 83 UMA LENDA SOBRE A BELEZA
o livro sagrado, que os sabios intitulam 'O Lotus da Lei Perfeita, encontraras, meu amigo, depois da decima pagina, uma lenda esquecida pelos homens, apesar de estudada por sete proIetas. ReIiro-me a Lenda da Beleza que venceu o Tedio e conquistou a Vida. Certa vez, por um triste capricho da Fatalidade, o poder do mundo Ioi cair nas mos odientas da Vulgaridade. Que Iez a Vulgaridade ao subir ao trono? Resolveu destruir e aniquilar a sua perigosa rival a Beleza. Chamando o Tedio, seu servo predileto, disse-lhe a execravel soberana: Detesto a Beleza! Quero Iaz-la desaparecer da Iace da terra. Tens ordem para pend-la e mata-la de qualquer modo. O tedio respondeu: Escuto e obedeo, senhora! Mas, aIinal, como e a Beleza? Como poderei encontra- la, se no a conheo? Ora, nada mais simples tornou a Vulgaridade. Interroga um poeta qualquer e logo saberas como e a Beleza. Partiu o Tedio. Encontrando um poeta interpelou-o: Como e a Beleza? Sem hesitar, respondeu o poeta: Ainda ignoras? A Beleza e loura, de olhos azuis da cor do ceu; a sua pele e clara e rosada, as suas mos... Basta! Tudo o mais que disseres seria Iastidioso e inutil. Ja sei como e a Beleza! Vou descobri-la por mais oculta que esteja. E o Tedio partiu em busca da Beleza... Depois de muito caminhar, chegou ao pais de Moab, para alem do grande deserto. Um campons repousava sob uma arvore. Teras visto, por aqui perguntou o Tedio a Beleza que procuro? Queres descobrir a Beleza! exclamou o campons. Ei-la precisamente ali, o Iorasteiro! E apontou na direo de uma jovem que se encaminhava para a ponte, levando ao ombro um pequeno cntaro. O Tedio procurou certiIicar-se. A graciosa rapariga era morena, de olhos verdes e cabelos castanhos como as Iilhas de Juda! Mas como diIeria da que Iora descrita pelo poeta! No, no podia ser a Beleza! A Beleza Iugiu para a China! inIormou um peregrino. Seguiu o Tedio para a China e indagou de um rico mandarim que soltava papagaios de seda: Senhor! Teria a Beleza aparecido em vossa terra? Apareceu, sim replicou, alegre, o mandarim. Ei-la! 84 E com o seu dedo de unha longa e angulada, apontou para uma rapariga ocupada em Iabricar lanternas de papel. O escravo da Vulgaridade preparou-se para executar a ordem que recebera. Enganara- se, porem, o inIormante. A jovem que o mandarim indicara era palida, esguia, tinha os olhos amendoados, os cabelos negros e ondulados. No; aquela no podia ser a Beleza! O Tedio deixou o pais dos chineses e Ioi em busca de outros climas. Diante dele a Beleza Iugia sempre, ocultando-se astuciosamente. Todo o seu esIoro tornou-se inutil. No conseguiu encontrar e destruir a Beleza! E o livro admiravel 'O Lotus da Lei Perfeita ensina com sua eterna e incomparavel sabedoria: Eis por que a Beleza Iloresce e domina, sob aspectos to diversos, quando a observamos, nos inconquistaveis recantos e paises do mundo. Aqui e morena e tem olhos negros, mais adiante e loura, de claros olhos de anil. Aqui e viva e alegre, para, alem, surgir sentimental e terna! E que a Beleza, para Iugir do mal do Tedio e ao perigo da Vulgaridade, varia sempre e sem cessar.
Partiu o Tedio. Encontrando um poeta interpelou-o. Como e a Beleza?
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PARBOLA DAS MES FELIZES (De um poema arabe do seculo XII)
ovem me ia, enIim, iniciar a grande jornada pela estrada incerta da vida. E perguntou, muito timida, ao Anjo Bom do Destino: E longo o caminho a percorrer, Senhor? Serei Ieliz com meus Iilhos que tanto amo e estremeo? Paciente e benevolo e com voz cheia de meiguice, respondeu-lhe o Anjo Bom do Destino: O caminho, que se abre diante de ti, e longo muito longo, semeado de angustias, recortado de dores e tapetado de Iadigas. Antes de alcanares a curva extrema, vira a impiedosa velhice ao teu encontro. Ainda assim, asseguro-te que os teus derradeiros passos sero mais cheios de alegria e ternura do que os primeiros. E a jovem me partiu. Sentia-se extremamente ditosa em companhia de seus Iilhinhos. O caminho, que se abre diante de ti. e longo, muito longo, semeado de angustias, recortado de dores e tapetado de fadigas.
A existncia lhe decorria sob o veu de um delicioso encantamento. Brincava com os pequeninos; colhia para eles, unicamente para eles, as mais lindas Ilores que adornavam os caminhos do mundo. E o sol brilhava, inundando a terra com a bno de suas torrentes de luz. E o dia se escoava to sereno, que a jovem me murmurou, Iitando, enternecida, o ceu azul: Nada havera, Senhor, de mais belo! Jamais serei, na companhia de meus Iilhos, mais Ieliz do que o sou agora! 86 O vento norte uivava como um chacal faminto. A noite veio, porem, alongando sobre a terra o seu manto pesado e sombrio. Nuvens disIormes amontoaram-se no Iirmamento; desabou o temporal. O vento norte uivava como um chacal Iaminto correndo tonto pelos areais sem Iim. Os pequeninos, tolhidos de Irio, trmulos de medo, soluavam. A jovem me destemida aconchegou-os a si, agasalhando-os sob sua tunica; e as crianas, bem abrigadas e protegidas, murmuraram docemente, docemente murmuraram: O mezinha querida! O medo ja no se abriga em nossos coraes! A teu lado, mezinha adorada, nenhum mal nos alcanara! E a jovem me exclamou num impeto de alegria: Isto para mim, o Deus! E mais belo e grandioso do que a jornada pelo caminho tranqilo, sob o esplendor do dia! Sinto-me, realmente, Ieliz! Mais Ieliz do que ontem! Contra a tormenta protegi meus Iilhos e lancei, para sempre, em seus coraes, a semente do destemor, da conIiana e da coragem! Passou a noite. Louvado seja Deus! A noite passou. Raiou, esplndida e balsmica, a alvorada. A estrada, naquele terceiro dia, se estendia, ladeirenta, pelo dorso de uma montanha alcantilada e perigosa. Era Ioroso subir. Subir muito. Os pequeninos sentiam-se Iatigados. A jovem me, quase desIalecida de sede e de cansao. Fazendo, porem, das Iibras corao, mostrava-se animosa, e, sem cessar, dizia aos Iilhos: Vamos! Para cima! Breve chegaremos ao alto! Vamos! Subamos sempre! Subamos! E essas palavras multiplicavam energias que o esIoro constante e excessivo queria aniquilar. E as crianas iam subindo, subindo... Chegaram, Iinalmente, ao cimo da montanha. A jovem me os enlaou, ento, em seus braos carinhosos. E eles lhe disseram: O mezinha querida, sem ti no teriamos conseguido vencer estas escarpas, contornar estes abismos e levar a bom-trmo esta jornada. Sem o teu auxilio incomparavel sucumbiriamos em meio da escalada. Sabemos, agora, como superar os grandes tremedais da sorte! E a delicada me, ao repousar naquele dia, semimorta, exclamou arrebatada: O Deus, clemente e justo! O dia de hoje Ioi para mim melhor ainda do que o de ontem! Sinto-me mais Ieliz! Mais Ieliz do que nunca! Ensinei meus Iilhos a enIrentar bravamente os revezes e as tristezas da vida! No quarto dia, estranhas nuvens cor-de-chumbo cruzaram o ceu. Um rugido surdo, que parecia partir das proIundezas ignoradas da terra, enchia o ar soturnamente. De subito, a imensa montanha tremeu; rochas descomunais desprenderam-se e rolaram com estrondo para os abismos apavorantes. Era o cataclismo que comeava. To altas e densas erguiam-se as colunas de po, que chegavam a cobrir a Iace do sol. E as trevas da noite desceram sobre a terra em pleno dia. A morte, com suas garras de Iogo, rondava por toda a parte. Nem tenda havia nem caverna ou abrigo, onde um ser humano pudesse 87 ter segura a curta vida. As crianas, presas de cruciante pavor, choravam. E a jovem me, serena e Iorte, lhes dizia: Em Deus conIiai, meus Iilhos! Olhai para cima! Deus no nos abandonara! E os pequenos conIiaram em Deus. E Deus os livrou da Iuria inIrene. Ao Iindar aquele dia a me exclamou, em xtase, erguendo humilde para os ceus os seus olhos cheios de gratido: Este Ioi o dia melhor da minha vida. Senhor! Ensinei a meus Iilhos a crer em Vos, a conIiar em Vos, so em Vos, o Deus misericordioso! Amontoaram-se os dias: sucederam-se os meses; os anos passaram. E a me, toda entregue a Ielicidade e ao bem-estar dos Iilhos, no sentiu o rolar intermino do tempo. Os seus Iormosos cabelos Iizeram-se brancos como a neve; o brilho desapareceu-lhe dos olhos; a Iace tracejou-se-lhe de rugas. Era, enIim, a velhice. Mas, que encanto para sua vida de me! Os Iilhos crescidos, Iortes, cheios de alegria, pareciam redobrar neles a boa seiva que dela partira. Ela, a me Ieliz, curvada ao peso da vida, ja mal podia caminhar. Os Iilhos, porem, ali estavam, a seu lado, para servi-la, honra-la e obedecer-lhe! O mais velho dizia-lhe, carinhoso e com desbordante aIeto: Mezinha! Quero hoje carregar-te em meus braos! Estas to Iraca e cansada! Protestava o mais moo com entusiasmo: Que egoismo e esse, meu caro! Hoje e meu dia. Eu, sim, e que irei carregar a mezinha querida! E a me Ieliz sorria a um, abraava a outro; beijava a ambos. Que bons e dedicados lhe eram os Iilhos. Sim, para o corao materno, Iizera pausa o tempo. Eles eram ainda os seus Iilhinhos, os Iilhinhos ternos, estremecidos... E ela sentia-se to Ieliz, to Ieliz, que no achava palavras com que agradecer a Deus! Um dia, aIinal, a me ditosa reuniu os Iilhos e disse-lhe, num Iiozinho de voz: A minha tareIa esta Iinda, meus Iilhos. Vou deixar-vos. Irei para longe, para muito longe daqui ... O mais velho acudiu logo, carinhoso: Pois iremos contigo, mezinha! Ninguem nos podera separar de ti! Ela no sustentou as lagrimas e deixando-as deslizar, insistiu com meiguice: No, queridos. Desta vez terei de ir so. Sozinha partirei. E eles, aIeitos a obedincia, mais uma vez obedeceram. E a boa velhinha partiu. Foi indo, vagarosamente, toda encurvada, trmula... Diante dela, no extremo do caminho, abriram-se dois largos portes que reIulgiam cheios de luz. Entrou. Uma voz, que mais parecia um cntico de gloria, lhe dizia com inIinita mansuetude: Vinde a mim, o me Ieliz! Vinde a mim! Os Iilhos, que a vigiavam de longe, viram-na de repente desaparecer: Ela partiu para sempre! No a veremos nunca mais! Nunca mais! exclamaram emocionados. Mas a santa lembrana dessa me querida vivera para sempre em nossos coraes! Eduquemos nossos Iilhos como ela nos educou: na bondade, na obedincia, no amor... E no silncio da tarde que caia, lentamente, ouvia-se o sussurro de um chorar longinquo. Calaram-se todos. Que seria? Era o Iilho mais moo. O rosto entre as mos, inconsolavel, soluava de joelhos, a margem da vida, com a dor da saudade a negrejar-lhe o corao: Minha Me! Minha Me querida!... 88
A LENDA SINGULAR DO VASO TORTO
ra assim. Louvado seja Allah! Era assim que Amid, o velho oleiro de Samarcanda, Iazia todos os dias. Terminada a tareIa, ao cair da tarde, examinava atentamente um por um, os vasos que o jovem Namedin, seu discipulo dileto, havia modelado. Orgulhava-se com o progresso daquele adolescente na diIicil e delicada arte da cermica. Revelava o principiante, na execuo das obras mais Iinas e delicadas, invulgar talento. Havia, entretanto, uma particularidade que Iazia negrejar a duvida no espirito do mestre. Todos os dias, entre os vasos impecaveis, esguios e bem torneados, repontava, Iabricada pelas mos ageis do artiIice, uma pea (e uma so!) lamentavelmente mal Ieita, torta e deIormada. Como explicar a presena daquele aleijo unico no meio de tantas perIeies e belezas? Decorreria a multido de uma Ialha insanavel ou no passaria tudo de um simples capricho do aprendiz? Amid, intrigado com o caso, resolveu desvendar o misterio. Como apurar a verdadeira origem daquele desacerto, daquela anomalia? Vou observar o trabalho (pensou o oleiro) a Iim de precisar o momento em que Namedin claudica e erra. E assim Iez. Um dia, da manh ate a quarta prece, o mestre acompanhou atento a Iaina do jovem. Era preciso descobrir a razo de ser do vaso torto... AIinal, o velho oleiro, sempre vigilante, viu satisIeita a sua curiosidade.
Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendi: desorientava- se, suas mos tremiam...
89 Todos os dias, a uma certa hora, graciosa menina que residia para alem da mesquita de Chan-Sindah, cruzava vagarosamente a rua. Namedin apaixonara-se por ela; e, por isso, ao v-la passar sentia-se conIuso, perturbado. Ali estava, aIinal, a explicao do misterio. Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mos tremiam e o vaso que se achava, naquele momento, na roda girante, sob os cuidados de seus dedos ageis, soIria as conseqncias daquela desateno. Como poderia o enIeitiado oleiro, naquele instante de comoo, guiar com segurana os seus dedos, dominar os vos de seu pensamento e aquietar os anseios de seu corao? Rejubilou-se o mestre de Samarcanda com a descoberta, e, a partir daquele dia, com mais carinho e interesse dedicou-se a nobre tareIa de orientar o discipulo querido. Ao amor, sim, e no a impericia do artista deveria ele incriminar o aparecimento do vaso deIeituoso. E que importava, aIinal, a mutilao de uma pea no meio das outras? A mulher amada, com a sua presena perturbadora, Iazia surgir uma obra deIeituosa; mas com sua ausncia, entretanto, inspirava dezenas de perIeies. E, ao ter noticia do caso, um poeta arabe, servo de Allah, escreveu trs ou quatro poemas admiraveis que Ioram gravados em ouro e bronze no deslumbrante palacio de Tamerlo. O terceiro poema lembra-me ate hoje, muito bem! comeava exatamente assim:
Ao ver aquele vaso torto Entre outros de Iorma esguia, Penso no destino, absorto: A mo do oleiro tremia!...
Louvado seja Allah que criou a Poesia, a Beleza e o Amor!
A delicadissima trova, citada no Iecho deste conto e de Xavier Junior, inspirado poeta goiano. 90
INDICE
BiograIia de Malba Tahan .................................... 02 Dedicatoria ........................................................... 03 Radia! Radia ......................................................... 04 Minha Vida Querida ............................................. 07 A Mulher e o Castial ........................................... 12 O Pastorzinho Adormecido .................................. 16 O Pai que Casou Cinco Filhas .............................. 19 A Noiva do Cheique ............................................. 24 O Tempo Passa ..................................................... 28 O Amor e o Velho Barqueiro ............................... 31 Homens Extraordinarios ....................................... 32 A Esposa e a Morte .............................................. 36 Duas Tendas do Deserto ....................................... 40 Uma Fabula Sobre a Fabula ................................. 43 O Sinal de Ramanita ............................................. 46 A Filha do Muezim ............................................... 49 O Mercador de Sonhos ......................................... 52 As Inconsolaveis de Hamad ............................... 55 Maktub! ................................................................ 59 A Noiva de Romaiana .......................................... 62 A Seita dos Iakinis ................................................ 65 Um Noivado em Bagda ........................................ 69 O Marido Alugado ................................................ 73 A Danarina Hindu ............................................... 77 Uma Lenda Sobre a Beleza ................................... 83 Parabola das Mes Felizes .................................... 85 A Lenda Singular do Vaso Torto .......................... 88