Resenha - A Esperiência Etnográfica - James Clifford
Resenha - A Esperiência Etnográfica - James Clifford
Resenha - A Esperiência Etnográfica - James Clifford
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998, p.17-62. Etnocentrismo uma viso do mundo onde um prprio grupo tomado como centro de tudo e todos os outros so pensados e sentidos atravs dos nossos valores, nossos modelos, nossas definies do que a existncia. A viso etnocntrica faz com que um grupo social privilegie seus valores, sua cultura, considerando este padro para julgar as culturas diferentes, tornando-se essa viso preconceituosa, onde podem as pessoas pensar que existe culturas menos desenvolvidas e outras mais avanadas. O fato de que o homem v o mundo atravs de sua cultura tem como consequncia pretenso em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Comportamentos etnocntricos resultam tambm em apreciaes negativas dos padres culturais de povos diferentes. Prticas de outros sistemas culturais so catalogadas como absurdos deprimentes e imorais. Pode-se entender o fato de que os indivduos de culturas diferentes podem ser facilmente identificados por uma srie de caractersticas tais como o modo de agir, vestirem, caminharem, comer, falar, sendo o ltimo uns dos mais evidentes na imediata observao emprico. O relativismo cultural sugere confirmar as diferenas culturais, no havendo hierarquia entre elas, por isso o relativismo se ope ao etnocentrismo. uma teoria que implica a ideia de que preciso compreender a diversidade cultural e respeit-la, reconhecendo que todo sistema cultural tem uma coerncia interna prpria. Originalmente, a concepo de relativismo cultural tinha seu uso relacionado a um princpio operacional, metodolgico. Assim pensado, o relativismo cultural um instrumento metodolgico fundamental para que o pesquisador realize, em culturas diferentes da sua, um trabalho antropolgico srio, compreendendo que os traos culturais tm um significado e compem o sistema cultural daquela sociedade ou grupo social.
Atravs do relativismo cultural, grupos diferentes podem conviver de forma harmnica sem se interrelacionarem e se interconstruirem. De forma mais bruta, os grupos diferentes toleram-se a fim de bem viver no mesmo espao. SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRFICA O frontispcio de 1724 do livro Moeurs des sauvages amricains, do Padre Lafitau, retrata o etngrafo como uma jovem mulher sentada numa escrivaninha em meio a objetos do Novo Mundo, da Grcia Clssica e do Egito. Ela est acompanhada por dois querubins que ajudam na tarefa de comparao e pela barbuda personagem do Tempo, que aponta para uma cena que representa a fonte primordial da verdade brotando da pena do escritor. A imagem para a qual a jovem mulher dirige seu olhar a de um conjunto de nuvens onde esto Ado, Eva e a serpente. Acima deles est o homem e a mulher redimidos do Apocalipse, de cada lado de um tringulo que irradia luz e ostenta a inscrio Yahweh, em alfabeto hebraico. (p. 17). J em Os argonautas do Pacco Ocidental o frontispcio uma fotograa com o ttulo Um ato cerimonial do kula. Um colar de conchas est sendo oferecido a um chefe trobriands, que est de p na porta de sua casa. Atrs do homem que presenteia o colar, est uma leira de seis jovens, curvados em reverncia, um dos quais sopra uma concha. Todas as personagens esto de per l, com a ateno aparentemente concentrada no rito da troca, um evento importante na vida melansia. Mas a um olhar mais atento parece que um dos trobriandeses que se curvam est olhando para a cmera. (p. 17-18). A alegoria de Lafitau menos familiar: seu ator transcreve, no cria. Seu relato apresentado no como um produto de observao de primeira Mao, mas como um produto da escrita em um gabinete repleto de objetos. Diferentemente da foto de Malinowski, a gravura no faz nenhuma referencia etnogrfica (...). Seu relato apresentado no como um produto de primeira mo, mas como um frontispcio de Os argonautas, como toda fotografia afirma uma presena (...) a do etnogrfica elaborando ativamente em fragmento da realidade trobiandesa. (p.18) O modo predominante e moderno da autoridade no trabalho de campo assim expresso: Voc est... porque eu estava l. (p.18) Esse estudo traa a formao e a desintegrao da autoridade etnogrfica na antropologia social do sc. XX. No uma explicao completa, nem est baseada
numa teoria plenamente desenvolvida da interpretao e da textualidade etnogrfica. Os contornos de tal teoria so problemticas (...). O dilema atual est associado a desintegrao e a redistribuio do poder colonial nas dcadas posteriores a 1950, e as repercusses das teorias culturais radicais dos anos 60 e 70. Aps a reverso do olhar europeu em decorrncia do movimento da negritude, aps a crise de conscincia da antropologia em relao a seu status liberal no contexto da ordem imperialista, e agora que o Ocidente no pode mais se apresentar como o nico provedor do conhecimento antropolgico sobre o outro, tornou-se necessrio imaginar um mundo de etnografia generalizada (p.18-19). Com a expanso da comunicao e da influncia intercultural, as pessoas interpretam os outros, e a si mesmas, numa desnorteante diversidade de idiomas- uma condio global que Mikhail Bakhtin (1953) chamou de heteroglossia. Este mundo ambguo, multivocal, torna cada vez mais difcil conceber a diversidade humana como culturas independentes, delimitadas e inscritas. A diferena um efeito de sincretismo nativo. (p.19). Os trabalhos de Edward Said e Paulin Hountondji levantaram dvidas radicais sobre os procedimentos pelos quais grupos humanos estrangeiros podem ser representados, sem propor, de modo definido e sistemtico, novos mtodos ou epistemologias. Tais estudos sugerem que, se a escrita etnogrfica no pode escapar inteiramente do uso reducionista de dicotomias e essenciais, ela pode ao menos lutar conscientemente para evitar representar outros abstratos e a-histricos. (p.19) O desenvolvimento da cincia etnogrfica deve ser compreendido junto com um debate poltico-epistemolgico mais geral sobre a escrita e a representao da alteridade. O autor utilizou como foco a antropologia profissional e a etnografia a partir de 1950. A atual crise- ou, melhor disperso- da autoridade etnogrfica torna possvel marcar em linhas gerais um perodo limitado pelos anos de 1900 e 1960, durante o qual uma nova concepo de pesquisa de campo se estabeleceu como norma para a antropologia americana e europeia. O trabalho de campo intensivo realizado por especialistas treinados na universidade, emergiu como uma fonte privilegiada e legitimada de dados sobre povos exticos. (p.20-21) Se a etnografia produz interpretaes culturais atravs de intensas experincias de pesquisa, como uma experincia incontrolvel se transforma num relato escrito e legtimo? Como, exatamente, um encontro intercultural loquaz e sobredeterminado,
atravessado por relaes de poder e propsitos pessoas, pode ser circunscrito a uma verso adequada de um outro mundo mais ou menos diferenciado, composta por um ator individual? (p.21). Analisando esta complexa transformao, a etnografia est do comeo ao fim, imersa na escrita. Esta escrita inclui, no mnimo, uma traduo da experincia para a forma textual. O processo complicado pela ao de mltiplas subjetividades e constrangimentos polticos que esto acima do controle do escritor. Em resposta a estas foras, a escrita etnogrfica encena uma estratgica especfica de autoridade. Esta estratgia tem classicamente envolvido uma afirmao, no questionada, no sentido de aparecer como provedora da verdade no texto. (p.21) Ao fim do sculo XIX, nada garantia, a priori, o status do etngrafo como o melhor interprete da vida nativa. (...) Durante este perodo, uma forma particular de autoridade era criada, uma autoridade cientificamente validade, ao mesmo tempo que baseada numa singular experincia pessoal. Durante a dcada de 20, Malinowski desempenhou um papel central na legitimao do pesquisador de campo, e devemos lembrar nesse sentido seus ataques a competncia de seus competidores no campo. (p.22) O que emergiu durante a primeira dcada do sculo XX com o sucesso do pesquisador de campo profissional foi uma nova fuso da teoria com pesquisa emprica, de anlise cultural com descrio etnogrfica. (p.23) A compreenso da dificuldade de se captar o mundo de outros povos tendia a dominar os trabalhos de Codrington ao final do sculo XIX. Tais suposies seriam em breve desafiadas pelo confiante relativismo cultural do modelo malinowskiano. Os novos pesquisados de campo se distinguiam nitidamente dos anteriores missionrio, administrador, comerciante e viajante cujo conhecimento dos povos indgenas, argumentavam, no estava informado pelas melhores hipteses cientificas ou por uma suficiente neutralidade. (p. 24) A gerao intermediria de etngrafos no vivia tipicamente num s local por um ano ou mais, dominando a lngua nativa e sofrendo uma experincia de aprendizado pessoa comparvel a uma iniciao. (p.25) Antes do final do sculo XIX, o etngrafo e o antroplogo, aquele que descrevia e traduzia os costumes e aquele que era o construtor de teorias gerais sobre a
humanidade, eram personagens distintos. Malinowski nos d a imagem do novo antroplogo: olhando, ouvido e perguntando, registrando e interpretando a vida trobiandesa. (p. 26) Malinowski como mostram suas notas para a crucial Introduo de Os argonautas, estava muito preocupado com o problema retrico de convencer os leitores de que os fatos eram objetivamente adquiridos, no criaes subjetivas. (p. 26) A persona do pesquisador de campo foi legitimada, tanto pblica quanto profissionalmente. No domnio popular, figuras de proe, tais como Malinowski, Mead e Marcel Griaule, transmitiram uma viso etnocntrica como cientificamente rigorosa ao mesmo tempo heroica. (...) Uma vantagem sobre os amadores, o etngrafo profissional era treinado nas mais modernas tcnicas analticas e modos de explicao cientifica; uma variedade de padres normativos surgiu: agora o pesquisador de campo deveria viver na aldeia nativa, usar a lngua nativa, investigar certos temas clssicos. (p.28) O domnio da lngua foi definido como um nvel de uso adequado para reunir um conjunto pequeno de dados num limitado perodo de tempo. (p.34) A experincia do pesquisador pode servir como uma fonte unificadora da autoridade no campo. (p.34) A autoridade experiencial est baseada numa sensibilidade para o contexto estrangeiro, (...) muitas etnografias ainda so apresentadas no modo experiencial, defendendo, anteriormente a qualquer hiptese de pesquisa ou mtodo especficos, o eu estava l do etngrafo como membro integrante e participante. (p.35) Certamente difcil dizer muita coisa a respeito da experincia. Assim como intuio, ela algo que algum tem ou no tem, e sua invocao frequentemente cheira a mistificao. Todavia, pode-se resistir a tentao de transformar toda experincia significativa em interpretao. Embora as duas estejam relacionadas no so idnticas. Faz sentido mant-las separadas, quanto mais no seja porque apelos a experincia muitas vezes funcionam como validaes para a autoridade etnogrfica. (p.35) Seguindo os passos de Dilthey, a experincia etnogrfica pode ser encarada como a construo de um mundo comum de significados, a partir de estilos intuitivos de sentimento, percepo e inferncias. (p.36)
Precisamente porque difcil pin-la, a experincia tem servido como uma eficaz garantia de autoridade etnogrfica. H sem dvidas uma ambiguidade no termo, de um lado, evoca uma presena participativa, e de outro, sugere um conhecimento cumulativo que vai se aprofundando. Os sentidos se juntam para legitimar o sentimento ou a intuio real, ainda que inexprimvel, do etngrafo a respeito do seu povo. importante notar, porm, que esse mundo quando concebido como uma criao da experincia, subjetivo, no dialgico ou intersubjetivo. O etngrafo acumula conhecimento pessoal sobre o campo. (p.38) A antropologia interpretativa desmitifica muito do que anteriormente passara sem questionamento na construo de narrativa, tipos observaes e descries etnogrficos. Ela contribui para uma crescente visibilidade dos processos criativos ( e num sentido amplo, poticos) pelos quais objetos culturais so inventados e tratados como significativos. (p.39) O que est exposto no ato de se olhar a cultura como um conjunto de textos a serem interpretados? Clifford Geertz, numa serie de estimulantes e sutis discusses, adaptou a teoria de Ricouer ao trabalho de campo antropolgico. A textualizao entendia como um pr-requisito para a interpretao, a constituio das expresses fixadas de Dilthey. Trata-se do processo atravs do qual o comportamento, a fala, as crenas, a tradio oral e o ritual no escritos vem a ser marcados como um corpus, um conjunto potencialmente significativo, separado de uma situao discursiva ou performativa imediata, onde este corpus significativo assume uma relao mais ou menos estvel com um contexto, e j conhecemos o resultado final desse processo em muito do que considerado como uma descrio etnogrfica densa. (p.39) A etnografia a interpretao das culturas. (p.40) Para entender o discurso, voc tem de ter estado l, na presena do sujeito. Para o discurso se tornar texto, ele deve ser transformado em algo autnomo, separado de uma locuo especifica e de uma inteno autoral. A interpretao no uma interlocuo. Ela no depende de estar na presena de algum que fala. (p.40) Se muito da escrita etnogrfica feita no campo, a real elaborao de uma etnografia feita em outro lugar. Os dados constitudos em condies discursivas, dialgicas, so apropriados apenas atravs de formas textualizadas. Os eventos e os encontros da pesquisa se tornam anotaes de campo. As experincias tornam-se narrativas, ocorrncias significativas ou exemplos. (p. 41)
A antropologia interpretativa ao ver as culturas como conjunto de textos, frouxa e, por vezes, contraditoriamente unidas, e ao ressaltar a inventiva potica em funcionamento em toda representao coletiva, contribuiu significativamente para o estranhamento da autoridade etnogrfica. (p.43) Torna-se necessrio conceber a etnografia no como a experincia e a interpretao de uma outra realidade circunscrita, mas sim como uma negociao construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente significativos. Paradigmas de experincia e interpretao esto dando lugar a paradigmas discursivos de dilogos e polifonia. (p.43) O trabalho de campo significativamente composto de eventos de linguagem; mas a linguagem, nas palavras de Bakhtin, repousa nas margens entre o eu e o outro. Metade de uma palavra, na linguagem, pertence a outra pessoa. A linguagem da etnografia atravessada por outras subjetividades e nuances contextuais especificas, pois toda linguagem, na viso de Bakhtin, uma concreta concepo heteroglota do mundo. (p.44) Mas se a autoridade interpretativa est baseada na excluso do dilogo, o reverso tambm verdadeiro: uma autoridade puramente dialgica reprimiria o fato inescapvel da textualizao. (p. 46) Dizer que uma etnografia composto de discursos e que seus diferentes componentes esto relacionados dialogicamente no significa dizer que sua forma textual deve ser a de um dilogo literal. (p.47) Quem na verdade o autor das anotaes feitas no campo? (Os nativos ou antroplogos). Pode-se afirmar que o controle nativo sobre o conhecimento adquirido no campo pode ser considervel, e mesmo determinante. A escrita etnogrfica atual est procurando novos meios de representar adequadamente a autoridade dos informantes. (p.48) Malinowski um complexo caso de transio. Suas etnografias refletem uma coalescncia ainda incompleta da moderna monografia. Se ele por um lado foi centralmente responsvel pela fuso da teoria e descrio na autoridade do pesquisador de campo profissional, por outro lado ele incluiu material que no sustentava diretamente sua ntida perspectiva de interpretao. (p.48-49)
So abundantes nas etnografias frases que no so atribudas a ningum, tais como: os espritos retornam a aldeia durante a noite, descries de crenas nas quais o escritor assume na verdade a voz da cultura. (p.51) A encenao do discurso nativo numa etnografia, o necessrio grau da traduo e familiarizao so complicados problemas prticos e retricos. (p.51) (...) Uma longa lista de reconhecidos antroplogos descrevem os etnogrficos indgenas com quem eles dividiram, em algum grau, uma viso distanciada analtica e mesmo irnica dos costumes. (p.53) Uma maneira cada vez mais comum de realizar a produo colaborativa do conhecimento etnogrfico citar os informantes extensa e regularmente. Mas essa ttica apenas comea a romper a autoridade monofnica. As citaes so sempre colocadas pelo citador, e tendem a servir meramente como exemplos ou testemunhos confirmadores. Indo-se alm da citao, pode-se imaginar uma polifonia mais radical que representaria os nativos e os etngrafos com vozes diferentes, mas isso tambm deslocaria a autoridade etnogrfica. (p.54) Se alocadas num espao textual autnomo e transcritas de forma suficientemente extensas, as declaraes nativas fazem sentido em termos diferentes daqueles em que o etngrafo as tenha organizado. A etnografia invadida pela heteroglossia. (p. 55) intrnseco a ruptura da autoridade monolgica que as etnografias no mais se dirijam a um nico tipo geral de leitor. A multiplicao das leituras possveis reflete o fato de que a conscincia etnogrfica no pode mais ser considerada como monoplio de certas culturas e classes sociais no Ocidente. (p. 57) A recente teoria literria sugere que a eficcia de um texto em fazer sentido de uma forma coerente depende menos das intenes pretendidas do autor do que da atividade criativa deum leitor. (p.57) A concretizao textual da autoridade um problema recorrente para os experimentos contemporneos em etnografia. Um modo mais antigo, realista representado pelo frontispcio de Os argonautas do Pacfico Ocidental e baseado para construo de um tableau vivant cultural a ser vista com um nico ponto de vista. (p.58)
A autoridade polifnica olha com renovada simpatia para Compndios de textos em lngua nativa. Agora que aquelas ingnuas afirmaes da autoridade experimental foram submetidas suspeio hermenutica, podemos antecipar uma ateno renovada interao sutil entre componentes pessoais e disciplinares na pesquisa etnogrfica. (p.58) Os processos experiencial, interpretativo, dialgico e polifnico so encontrados, de forma discordante, em cada etnografia, mas a apresentao coerente pressupe um modo controlador de autoridade. Um argumento que esta imposio de coerncia a um processo textual sem controle agora inevitavelmente uma questo de escolha estratgica. (p.58) A escrita etnogrfica est viva, ela est em luta nos limites dessas possibilidades, ao mesmo tempo que contra eles. (p.59)