O Triunfalismo e A Teologia Da Precariedade
O Triunfalismo e A Teologia Da Precariedade
O Triunfalismo e A Teologia Da Precariedade
Ricardo Quadros Gouva normal nos enganarmos na vida (Jr 17.9) e na teologia (J 42.3; Rm 11.33). As igrejas cometeram enganos (At 6.1) e ainda os cometem. Olhando o quadro geral dos equvocos dos evanglicos, pergunto-me o que os causa. Talvez seja o triunfalismo, que precisa ser denunciado e contraposto a uma alternativa: uma teologia da precariedade. Defino o triunfalismo como a crena equivocada de que, por sermos crentes em Cristo, devemos ser vitoriosos em tudo, jamais experimentando fracassos ou reconhecendo fraquezas fsicas, morais, intelectuais e espirituais. Falta ao triunfalista o sentimento trgico da vida, um reconhecimento de suas limitaes. A arrogncia evanglica triunfalista vai das certezas inamovveis dos telogos at as irreverentes demandas para com Deus. A teologia da precariedade foca nossa condio espiritual precria, intelectualidade precria, moral precria, na compreenso de que no somos chamados para ser anjos, mas humanos que andam humildes diante de Deus (Mq 6.8), sabedores dos nossos limites e bondosos para com os outros em seus limites. O contraste comea na orao. O cerne da piedade precria uma vida de orao fragilizada, modelada pelos Salmos, em que se busca comunho e intimidade com Deus por meio da gratido, da autoexpresso (inclusive frustraes, Sl 13.1), do autoconhecimento (Sl 90.8), da confisso (Sl 51.9), da sujeio (Sl 25.4) e da comisso (Sl 143.10), em oposio s infindveis peties tpicas da orao triunfalista, que pede mal (Tg 4.3), almeja vitrias terrenas e v na orao uma soluo mgica. A petio precria pede sabedoria e espiritualidade (Lc 11.13) para lidar com problemas e sofrimentos, encarados como algo normal, e prefere rogar com Cristo: faa-se a tua vontade (Mt 6.10). Ser cristo no garante vitria em qualquer faceta da vida, da sade s finanas, das ideias teolgicas ao ministrio. Dizem que no demand-las de Deus falta de f (no sabem que tudo vaidade? Ec 1.2). Demonstram falta de contentamento (1Tm 6.6). Em Cristo temos vitrias espirituais: a justificao dos pecados, a santificao pessoal, a salvao eterna. Triunfamos sobre a morte espiritual sem nunca deixarmos de ser pecadores (1Jo 1.10). A jornada espiritual at a varonilidade de Cristo fruto da ao paciente de Deus (Cl 2.8), livrando-nos do orgulho e da rebeldia que nos tentam a vida toda (Rm 8.19). Seguir a Cristo abnegao, tomar a cruz (Mt 16.24). No simplesmente sofrer, que parte da condio humana (Tg 5.10), mas completar em ns os sofrimentos de Cristo (Cl 1.24) por meio do cumprimento de nosso ministrio, assim como Cristo cumpriu o seu. Cristo no promete a seus discpulos uma vida fcil, com vitrias na vida financeira, na sade e nos relacionamentos (Mt 10.5-23). Cristo e os apstolos eram pobres, passavam por dificuldades (Hb 2.10), inclusive de sade (Gl 6.11; 1Tm 5.23), e tinham toda sorte de complicaes relacionais entre si (At 15.39; Gl 2.11). Estiveram presos, e viram isso como um privilgio e uma oportunidade (2Tm 1.8). Ensina-se equivocadamente que tornar-se um crente em Cristo significa ter acesso a uma vida de bnos materiais e de vitria sobre todos os males que afligem o corpo e a alma. Uma revista evanglica recentemente anunciou em sua capa que Cristo a soluo para a
depresso. H, porm, muitos fiis com quadro clnico de depresso, e isso nada tem a ver com pecado ou falta de espiritualidade. H toda sorte de enfermidades fsicas e psquicas a que estamos sujeitos, cristos ou no, e por meio delas somos instrudos por Deus e temos oportunidades ministeriais. Se recebemos de Deus o bem, no receberemos dele tambm todos os males comuns da nossa condio humana (J 2.10)? Deus torna os males em bnos (Gn 50.20). Procuremos descobrir qual o seu significado em nossa vida e ministrio. O triunfalismo torna os crentes presunosos (Sl 19.13). Em vez de estarmos dispostos a compartilhar todas as mazelas da existncia humana, e dessa forma nos tornarmos capazes de empatia, queremos estar acima delas, e de todos os que as enfrentam. Isso leva a uma vida de mentiras que contamos aos outros e a ns mesmos. Na verdade, temos em comum uma vida de sofrimentos, enfermidades, relacionamentos imperfeitos e fracassos. Nossa f e nossa comunho com Deus em Cristo no impedem que enfrentemos crises e problemas, que vivenciemos fracassos, doenas e tristezas, pois so parte comum e inevitvel da vida de qualquer pessoa neste mundo cado no pecado. A f nos traz a esperana de um mundo melhor (Ap 21.14), a certeza de que tudo colabora para o bem (Rm 8.28), e de que nada acontece sem que Deus permita (Mt 10.29). Nossa comunho com Cristo nos garante foras para suportar as aflies com pacincia (Tg 5.11), e impede de sermos tentados pelo desnimo quando enfrentamos dificuldades na vida. Quando somos transformados pela ao do Esprito Santo, nos desapegamos dos bens materiais, e at do desejo neurtico pela sade plena do corpo e da mente. Desprendemonos at da vida biolgica como valor em si, pois j morremos com Cristo para esta vida terrena (Cl 2.11-12), e vivemos agora em Cristo e para Cristo somente, sem medo da morte biolgica (Fp 1.21). O triunfalismo tambm est por trs do amor ao sucesso de lideranas evanglicas que priorizam o crescimento e nivelam o ministrio eclesial com o empreendimento comercial secular. Tm por modelo os empresrios bem sucedidos, ostensivamente ricos, ou as celebridades, e no os pobres caminhantes da Galileia. No percebem que ministrio sem o sacrifcio do prestgio o sacrifcio do ministrio no altar do sucesso. A piedade precria se contenta com ministrios desprestigiados e igrejas pequenas que encontram a sua fora na fraqueza (2Co 12.10). Igrejas no precisam crescer, e no deveriam nem sequer almejar o crescimento, mas antes a fidelidade a Cristo e vocao e testemunho cristos. Igrejas no so fins em si mesmas, mas agncias proclamadoras do reino de Deus. Por isso, elas podem ser provisrias, institucionalmente frgeis e, do pontode-vista secular do empreendedorismo, totais fracassos. O triunfalismo efetua ainda uma atitude moral equivocada em que os crentes passam a se ver como mais puros e santos que os pecadores incrdulos. O cristo santo porque foi separado para a misso de seguir a Cristo. O que nos diferencia dos mpios sermos pecadores conscientes do pecado e da necessidade da graa e do perdo de Deus, conscincia esta que os mpios no tm. A moralidade triunfalista parte da criao de Deus, mas ignora a queda, e prega uma proposta de conduta idealizada, mais adequada a anjos que a homens. No paradigma da piedade precria, adota-se a reduo de danos, pois vivemos em mundo cado. Ento deixamos de negar que as famlias evanglicas so disfuncionais e encaramos os dramas morais dos evanglicos como o padro, e no mais como excees. O triunfalismo tambm nos torna soberbos intelectualmente (1Co 1.20), ignorando os efeitos do pecado sobre sua razo. A piedade precria nos convida a uma teologia fraca em que se
reconhece que as opinies teolgicas e morais so apenas aproximaes. Somos como cegos apalpando nosso caminho; nossas formulaes doutrinrias e interpretaes bblicas so fruto da reflexo humana historicamente condicionada. O triunfalismo leva os evanglicos a achar que errado ter incertezas e dvidas, que feio admitir a ignorncia, que o questionamento sinal de falta de f. O cristo precrio est sempre disposto a ouvir vozes discordantes, a aprender com quem pensa diferentemente, inclusive com os incrdulos. Podem-se aprender lies preciosas das pessoas mais incultas, bem como dos maiores pecadores e hereges, pois todos tm alguma lio a dar, e ningum, alm de Deus, dono da verdade (1Co 8.1-3). Convido todos os evanglicos a abandonar o triunfalismo, adotando uma teologia da precariedade: caminho da fraqueza, humildade, ignorncia, resignao e desprendimento. Pensemos a comunho com Cristo como uma jornada de santificao pessoal que implica os tremendos sofrimentos advindos do abandono dos desejos e concepes do velho homem (Ef 4.22), e no nas benesses de um favorecimento da parte de Deus que nos permita obter exatamente as coisas de que deveramos antes nos desapegar. Abandonemos os desejos carnais pelo dinheiro, pela sade, por longevidade, cujo preo a decrepitude. Sacrifiquemos nossa vida no altar divino (Rm 12.1). Abandonemos o desejo carnal por sistemas de pensamento que nos deem falsa certeza e tranquilidade (2Co 10.4-5). Que nossas opinies sejam manifestadas com singeleza e reconhecimento da nossa imperfeio intelectual (Cl 4.6). Ambicionemos apenas que Cristo seja conhecido pelo nosso viver (Gl 2.20), ainda que saibamos desde j que tambm nisso fracassaremos, pois muitas vezes nossa carnalidade nos impedir de exalar o bom perfume de Cristo (2Cr 2.14-17).