Agostinho Intellige Ut Credas Crede Ut Intelligas
Agostinho Intellige Ut Credas Crede Ut Intelligas
Agostinho Intellige Ut Credas Crede Ut Intelligas
Autor: Svio Laet de Barros Campos. Bacharel-Licenciado e Ps-Graduado em Filosofia Pela Universidade Federal de Mato Grosso.
Introduo
A filosofia crist nasce sob a frmula encontrada no Profeta Isaas, Nisi credideritis non intelelligetis (Se no crerdes, no compreendereis). Tirada da traduo dos Setenta, hoje sabemos que ela est incorreta. De toda forma, Agostinho no se cansa de retom-la em suas obras. Neste artigo, observaremos que o seu encontro com Cristo e com a f crist exerceu uma mudana sobre a sua avaliao da filosofia e do exerccio da razo. Verificaremos que ele distinguia dois usos da razo: uma que precede a f e consiste no exame e discernimento do que se deve crer; outra que a sucede e consiste na tentativa de inteligir os mistrios da f at onde isso for possvel neste mundo. Teremos o ensejo de perceber que foi a partir deste segundo uso da razo, que busca o entendimento da f j assentida, que nasceu o filosofar na f, em Agostinho. Ele ope este filosofar na f filosofia dos gentios, que era alheia f, e concebe a conquista do intellectus fidei como uma recompensa f, que comea por crer no que ainda no v. Observaremos, ademais, que, na concepo de Agostinho, razo e f so complementares; mais do que isso, como adiante comentaremos com mais clareza, o prprio ato de f no seno um ato da inteligncia que assente. Observaremos, no entanto, que persiste nas obras do Bispo de Hipona, certa indeterminao entre teologia e filosofia, chegando mesmo a haver, em certos momentos, por razes que tambm aduziremos no decorrer do texto, uma identificao da filosofia com a teologia e com a prpria religio crist. Passemos considerao da dramaticidade da sua converso e como esta exerce forte influncia sobre o seu pensamento.
Agostinho, enquanto maniquesta, vivia esperanoso das promessas desta seita. O maniquesmo pregava que, pelo conhecimento racional, poder-se-ia alcanar a f nas Escrituras. Todavia, livre dos maniqueus, Agostinho descobre que o caminho verdadeiro precisamente o inverso. Deve-se partir da f para se chegar inteligncia.1 Ora, o pressuposto fundante desta reviravolta no pensamento de Agostinho como assinala Jarspers a sua converso ao cristianismo. De fato, a partir de ento que a f passa a ser para ele qualquer coisa de inquestionvel, to certa que no precisa ser apurada quanto sua veracidade, porquanto um dom do prprio Deus, que a prpria Verdade.2 Da a importncia capital de se conhecer ao menos em suas linhas gerais , a biografia de Agostinho, pois s assim se pode adentrar no esprito da sua obra. Quem permanece alheio a este momento da sua vida, seja no o experienciando em si mesmo ou no o compreendendo na alma do prprio Agostinho acentua Jaspers , sempre ver com estranheza o seu pensamento.3 A converso de Agostinho f crist, assevera ainda Jaspers, um evento nico. Tocado por Deus, no somente o seu pensamento, mas ele prprio se modifica. Com efeito, porque ele mesmo, enquanto pessoa, transfigura-se integralmente, que tambm o seu modo de julgar se transforma inteiramente.4 Trata-se, de fato, de um novo homem, com uma nova hierarquia de valores e uma nova maneira de pensar.5 No se trata de mais uma converso filosfica; ao
GILSON, Etienne. A Filosofia Na Idade Mdia. Trad. Eduardo Brando. Rev. Carlos Eduardo Silveira Matos. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 144: Os maniquestas haviam-lhe prometido lev-lo f nas Escrituras pelo conhecimento racional; santo Agostinho propor-se-, a partir de ento, alcanar pela f nas Escrituras a inteligncia do que elas ensinam. 2 JASPERS. Os Grandes Filsofos. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 434: (...) A converso o pressuposto do pensamento agostiniano. Somente na converso que se torna certa a f, que no necessitada por nada e no pode ser transmitida atravs de nenhuma doutrina, mas lhe dada em dom por Deus. 3 JASPERS. Op. Cit. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed.. So Paulo: Paulus, 1991. p. 434: Quem no experimentou por si mesmo a converso sempre encontrar algo de estranho em todo pensamento que nela se fundamenta. 4 Acerca da converso, afirma Jaspers: JASPERS. Op. Cit. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 434: (...) um acontecimento nico, que, por sua essncia, diferente no seu sentido e na sua eficcia: consciente de ter sido atingido imediatamente por Deus, o homem se transforma at na corporeidade do seu ser e nos objetivos que se prope. 5 JASPERS. Op. Cit. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 434: Juntamente com o modo de pensar, muda tambm o modo de viver.
contrrio, h uma mudana radical de vida, que lhe muda, por consequncia, a forma de pensar.6 Passemos anlise da sua avaliao da filosofia aps a converso.
2. A avaliao da filosofia
Na verdade, no o seu conceito de filosofia que se modifica, nem o seu modo de filosofar, mas sim conclui Jaspers algo muito mais profundo, a saber, a prpria avaliao que ele faz da filosofia e mesmo da razo humana.7 Agora bem, esta transformao radical de mentalidade, encontra a sua justificativa ltima no conceito de iluminao que Agostinho desenvolve. H, segundo ele, uma luz dentro de ns que, conquanto nos seja interior, transcende-nos de todo. Esta luz, no s no se identifica com a nossa razo como a ultrapassa; sendo superior ao prprio filosofar, entendido como obra da razo abandonada s suas prprias foras, esta luz interior encontra-se acima do homem.8 Atravs da sua converso, Agostinho reconhece o quo exagerada era a sua admirao pela filosofia, obra da razo humana.9 Compreende, afinal, que a bem-aventurana que buscava na filosofia, encontra-se somente em Deus, de onde emana esta luz superior que habita em ns. Ora, o nico caminho conducente a Deus Cristo.10 Como ele prprio diz: Ningum pode passar atravs do mar do mundo, se no for transportado na cruz de Cristo11. Para uma beatitude
JASPERS. Op. Cit. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 434 e 435: Tal converso no mudana de rota filosfica, que precisa ser renovada a cada dia (...), mas um momento biograficamente datvel, que irrompe na vida e lhe d uma nova base. 7 JASPERS. Op. Cit. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 435: No movimento do filosofar, do autnomo ao crente-cristo, parece tratar-se do mesmo filosofar. (...). Acima de qualquer outra coisa (depois da converso), o que mudou foi a avaliao da filosofia. 8 JASPERS. Op. Cit. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 435: Agora, porm, passava a ser avaliada (a filosofia) negativamente: a luz interior est mais no alto. (O Parntese nosso). 9 JASPERS. Op. Cit. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 435: Agostinho reconhece que a sua admirao anterior pela filosofia (como dialtica) era absolutamente exagerada. 10 JASPERS. Op. Cit. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 435: A bem-aventurana encontra-se somente no anseio de Deus; mas essa bem-aventurana pertence somente vida futura e o nico caminho para chegar a ela Cristo. 11 AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de Joo: O Verbo de Deus. 2 ed. Trad. Jos Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Grfica de Coimbra, 1954. v. I. II, 2.
terrena, bastar-lhe-ia uma filosofia humana; porm, para uma beatitude eterna cuja existncia acabara de descobrir , mister uma sabedoria divina. Destarte, a filosofia humana encontra-se decada do seu pedestal de sabedoria suprema, e o pensamento bblico o que, doravante, se lhe afigura como essencial. 12 Apesar de toda esta mstica em torno da f e do encontro com Deus, longe de Agostinho qualquer rano de fidesmo. Ele no irracional.13 Por isso, passemos a considerar a harmonia que ele estabelece entre razo e f.
3. Razo e f
Antes de tudo, Agostinho estabelece haver uma dupla maneira de aprender: pela autoridade e pela razo.14 Ora, no mbito da aprendizagem, assevera Agostinho que a autoridade tem prioridade em relao razo15, posto que ningum chega a aprender nada, se no se dispe a assentir quilo que lhe ensina o professor. Sob este aspecto, (...) somente a autoridade abre a porta para todos os que desejam aprender as elevadas questes boas que esto ocultas para ele16. Por isso, o aprender por autoridade implica dar assentimento a um testemunho prestado por outrem. Ora bem, a autoridade (...) jamais caminha totalmente desprovida da razo (...)17, visto que aquele que assente deve sempre (...) considerar Aquele em que se deve crer18.
JASPERS. Op. Cit. In: REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 435: Desse modo, reduziu-se o valor da filosofia (como mera dialtica). O pensamento bblico-teolgico torna-se a nica coisa essencial. 13 REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 435: (...) Agostinho est bem distante do fidesmo, que no deixa de ser uma forma de irracionalismo. 14 AGOSTINHO. A Ordem. Trad. Agustinho Belmonte. Rev. Joaquim Pereira Figueiredo. So Paulo: Paulus, 2005. II, IX, 26: Necessariamente somos levados a aprender de dupla maneira: pela autoridade e pela razo.; Idem. Ibidem. II, V, 16: duplo o caminho que seguimos quando a obscuridade das coisas nos atinge: ou a razo, ou a autoridade.; AGOSTINHO. Contra os Acadmicos. Trad. Agustinho Belmonte. Rev. Joaquim Pereira Figueiredo. So Paulo: Paulus, 2008. III, 20, 43: Todos sabem que somos levados aprendizagem pelo duplo impulso de autoridade e da razo. 15 AGOSTINHO. De las costumbres de la Igresia Catolica y de las costumbres de los maniqueos. I, 2, 3. Trad. Tefilo Prieto. Disponvel em: <http://www.augustinus.it/spagnolo/costumi/index2.htm> Acesso em: 07/09/2011: Em que me apoiarei primeiro, na razo ou na autoridade? A ordem natural que, quando aprendemos alguma coisa, a autoridade preceda razo. (A traduo, para o portugus, nossa). 16 Idem. Ibidem. 17 AGOSTINHO. A Verdadeira Religio. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Honrio Dalbosco. So Paulo: Paulus, 2002. 24, 45. 18 Idem. Ibidem.
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Certamente que h dois tipos de autoridade: a humana, que falvel, e a divina, que infalvel. 19 Porm, Agostinho mesmo pondera que, ainda que se trate da autoridade divina, devemos ter presente que Deus no dispensou a mediao humana, j que a revelao de Deus ao homem deu-se por meio de homens.20 Portanto, a primeira coisa a se fazer (...) ser examinar em que homens, ou em que livros devemos crer (...)21. Ora, dito isso, importa salientar que A razo o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexo entre as coisas que se conhecem22. Sendo assim, se devemos examinar em quem e em que devemos crer, claro que devemos supor uma atividade da razo que precede o ato de crer e que consiste no discernimento de quais so os testemunhos confiveis. Antes de passarmos adiante, cumpre destacarmos que crer em Deus no o mesmo que ter f em Deus. Crer em Deus, pura e simplesmente, seria to somente aderir s verdades por Ele reveladas. Consistiria, pois, na simples submisso do esprito s verdades de f. Ter f em Deus, ao contrrio, no somente, por um gesto de humildade, submeter o esprito Sua revelao, mas sim submeter-se inteiramente a Ele, conformando a prpria vida s verdades que Ele revelou. De modo que, pela f em Deus, (...) a vida dos bons mais facilmente se purifica no por ambigidades de disputas, mas pela autoridade dos mistrios23. A f, segundo Agostinho, no somente ilumina, seno que tambm purifica e transforma a vida do fiel. Falando ainda sobre a diferena entre simplesmente crer e ter f em Deus, arrazoa o Doutor de Hipona:
Quem acredita nele, presta-lhe crdito; mas no se segue que sempre acredita nele quem lhe presta crdito. Os demnios tambm lhe prestam crdito e no acreditam. (...) Que pois acreditar? amar acreditando, dedicar-se acreditando, ir para ele acreditando, e ser incorporado nos seus membros. (...) De que f se trata? No de qualquer f, trata-s da e f que opera pela caridade. Haja em ti esta f, e compreenders a doutrina.24
AGOSTINHO. A Ordem. II, IX, 27: Mas existe a autoridade divina e a autoridade humana: mas a verdadeira, slida e suprema a que se denomina divina. 20 AGOSTINHO. A Doutrina Crist. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Paulo Bazaglia e Honrio Bosco. So Paulo: Paulus, 2002. Prlogo, 6: Todas essas coisas poderiam ter sido feitas por meio de um anjo. Se assim fosse, a condio humana teria sido desapreciada, pois no teria querido transmitir aos homens sua palavra, por meio de homens. 21 Idem. A Verdadeira Religio. 25, 46. 22 Idem. A Ordem. II, XI, 30. 23 Idem. Ibidem. II, XI, 27. 24 AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de So Joo: Mdico e Alimento. 2 ed. Trad. Jos Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Grfica de Coimbra, 1954. v. II. XXIX, 6.
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Mas voltemos, pois, anlise das relaes existentes entre f e razo. Agostinho, para explic-las, distingue dois usos da razo. Antes de qualquer coisa, como j frisamos, h uma atividade da razo que precede e prepara o ato de f. De fato, conquanto as verdades de f sejam indemonstrveis, podemos perceber, pela razo, ao menos a convenincia de a elas assentirmos e isto atravs dos testemunhos fidedignos que as atestam.25 Ora, se h uma empresa da razo que precede f, h tambm uma outra que a sucede e depende dela. Agostinho no se cansa de repetir: Queres compreender, cr. (...). No procureis compreender para poderdes acreditar; acreditai para poderdes compreender26. Sobremodo no Comentrio ao Evangelho de Joo, assevera reiteradas vezes aos leitores e ouvintes:
Tu acreditas porque no compreendes, mas, acreditando, tornas-te capaz de compreender. Porquanto, se no acreditas, nunca compreenders, porque permanecers menos apto. Venha pois purificar-te a f, para que te encha o entendimento.27 Na sua perspectiva, devemos aceitar as verdades da f, para, proporcionalmente s nossas possibilidades neste mundo, conseguirmos obter delas alguma inteligncia. Diz ele acerca dos crentes de antanho: No acreditaram porque conheceram, mas acreditaram para conhecerem28. Afirma o mesmo no que concerne aos seus coetneos: Ns acreditamos para conhecermos, no conhecemos para acreditarmos29. Sem embargo, se o concurso da razo, ante fidem, pretende apenas evidenciar que as verdades de f no contrariam a razo, uma vez que so fundadas em testemunhos verazes, a atividade da razo, post fidem, espera penetrar, o quanto for possvel, no entendimento das verdades de f, isto , no seu contedo intrnseco. Agostinho aponta para isso, quando diz no De Libero Arbitrio:
Com efeito, se crer no fosse uma coisa e compreender outra, e se no devssemos, primeiramente, crer nas sublimes verdades que desejamos compreender, seria em vo que o profeta teria dito: Se no o crerdes no entendereis. (...) E ningum se torna capaz de encontrar a Deus se antes no crer no que h de compreender.30
GILSON. A Filosofia na Idade Mdia. p. 144: Sem dvida, um certo trabalho da razo deve preceder o assentimento s verdades de f; muito embora estas no sejam demonstrveis, pode-se demonstrar que convm crer nelas, e a razo que se encarrega disso. 26 AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de So Joo: Mdico e Alimento. XXIX, 6. 27 AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de So Joo: Luz, Pastor e Vida. 2 ed. Trad. Jos Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Grfica de Coimbra, 1960. v. III. XXXVI, 7. 28 Idem. Ibidem. XL, 9. 29 Idem. Ibidem. 30 AGOSTINHO. O Livre-Arbtrio. 3 ed. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Honrio Dalbosco. So Paulo: Paulus, 1995. II, 2, 6. GILSON. A Filosofia na Idade Mdia. p. 144: Portanto, h uma interveno da razo
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Em diversos momentos, Agostinho assinala o mesmo pensamento. Por exemplo, quando prope a Evdio, no mesmo De Libero Arbitrio, o seguinte: Agora, porm, a respeito dessas verdades confiadas nossa f, esforamo-nos de ter igualmente um conhecimento pela razo, mantendo-as com certeza plena31. Noutro momento, tambm no mesmo dilogo, ele acentua ao mesmo interlocutor: No deves esquecer, porm, o que ns nos propusemos neste momento: compreender aquilo a que damos crdito32. Exorta-o, enfim, dizendo: Pois bem, coragem! Envereda nos caminhos da razo, confiando-te na piedade33. Justifica, ademais, o fato de termos que nos esforar para entendermos aquilo em que cremos, dizendo a Evdio que a f no um fim em si mesma; ao contrrio, ela o penhor daquele conhecimento que teremos na ptria. L no creremos mais em Deus, seno que O veremos tal qual Ele . a viso beatfica:
O prprio nosso Senhor, tanto por suas palavras quanto por seus atos, primeiramente exortou a crer queles a quem chamou salvao. Mas em seguida, no momento de falar sobre esse dom precioso que havia de oferecer aos fiis, ele no disse: A vida eterna consiste em crer, mas sim: A vida eterna esta: que eles te conheam a ti, o nico Deus verdadeiro e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo (Jo 17, 3). Depois disse queles que j eram crentes: Procurai e encontrareis (Mt 7, 7). Pois no se pode considerar encontrado aquilo em que se acredita sem entender.34 Destarte, segundo Agostinho, buscar entender a nossa f, aproxima-nos do nosso fim ltimo, que a viso da glria, a viso face a face, e no a f. A f, que consiste em crer no que no se v, algo transitrio, um estado passageiro, embora seja conditio sine qua non para se chegar viso, estado definitivo que consiste na contemplao daquilo em que se acreditou. Agora bem, a prpria tentativa de inteligir a f j uma espcie de interldio entre a f e a viso. Assim, a viso apresenta-se como o fim da f, prmio e galardo do fiel. Acerca disso, assevera o Bispo de Hipona:
que precede a f, mas h uma segunda, que a segue. Baseando-se numa traduo, alis incorreta, de um texto de Isaas pelos Setenta, Agostinho no se cansa de repetir: Nisi credidritis, non intelligetis. H que aceitar pela f as verdades que Deus revela, se se quiser adquirir em seguida alguma inteligncia delas, que ser a inteligncia do contedo da f acessvel ao homem neste mundo.Agostinho. 31 AGOSTINHO. O Livre-Arbtrio. I, 3, 6. 32 Idem. Ibidem. I, 4, 10. 33 Idem. Ibidem. I, 6, 14. 34 Idem. Ibidem. II, 2, 6.
Que a f, seno acreditar o que se no v? A verdade ver o que se acreditou, como disse o Senhor noutro lugar. (...) Aquele que no se cr, h de chegar ao que se v. (...) Grande promessa esta. a recompensa da f. Procuras a recompensa. Primeiro pratica obras. Se acreditas, podes reclamar a recompensa da f. Porm, se no acreditas, com que semblante procuras a recompensa da f?35 Por conseguinte, quando tentamos fazer a inteleco da f, inclinamo-nos ao nosso fim ltimo, que s se consumar na clara viso daquilo em que cremos. A isso alude, quando menciona queles que, com piedade, buscam entender a prpria Trindade:
Estamos ainda no estgio da busca, e repreenso alguma merece quem se afana nessa procura, caso isso se faa com muita f, em domnio onde bem difcil o conhecimento e a expresso. (...) Pois a f declarada que, de certo modo, inicia o conhecimento. O conhecimento perfeito, porm, no ser realidade seno depois desta vida, ao vermos Deus face a face (I Cor 13, 12).36 Com efeito, a mente humana, ao contemplar sua f que leva a crer no que no v, no contempla nada que seja eterno. De fato, no existir para sempre o que deixar de existir quando acontecer aquela viso face a face (I Co 13, 12), aps terminada esta nossa peregrinao em que caminhamos longe do Senhor, necessariamente pela f. Se agora no vemos, contudo, porque cremos, mereceremos ver, um dia, e alegrar-nos-emos por termos sido conduzidos viso mediante a f. J no haver, pois, a f, pela qual cremos no que no vemos, mas sim a viso pela qual veremos aquilo em que cremos. 37 Na verdade, a prpria f, sendo apenas um estgio, faz com que tendamos reflexo, impulsionando-nos a meditar sobre ela. Por isso, em Agostinho, diz-se que (...) A f estimula e promove a inteligncia38. E no s. H mais: a f pressupe a inteligncia. Este outro ponto. De fato, se tomarmos nota de tudo quanto dissemos at aqui, descobriremos que, em Agostinho, a f consiste, antes de tudo, num pensamento que assente. Ora, isto equivale a dizer que, sem pensamento e vontade racionais, no pode haver f.39 Agostinho pontua exatamente isso,
AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de So Joo: Luz, Pastor e Vida. XL, 9. AGOSTINHO. A Trindade. 2 ed. Trad. Agustinho Belmonte. Rev. Nair Assis de Oliveira. So Paulo: Paulus, 1994. IX, 1, 1. 37 Idem. Ibidem. XIV, 2, 4. 38 REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Antiguidade e Idade Mdia. 5 ed. So Paulo: Paulus, 1991. p. 435. 39 Idem. Ibidem: p. 435. A f cogitare cum assensione, modo de pensar assentindo; por isso, sem pensamento no haveria a f.
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quando salienta, numa clebre passagem do De Praedestinatione sanctorum, que o ato mesmo de crer um ato da razo, j que ele implica um ntido exerccio de discernimento e assentimento do esprito. Feito isso, demarca tambm, numa de suas razes mais decisivas, o motivo pelo qual a f no pode contradizer a razo, a saber, a f um ato da razo, um obsquio da inteligncia:
Quem no v que primeiro pensar e depois crer? Ningum acredita em algo, se antes no pensa no que h de crer. Embora certos pensamentos precedam de um modo instantneo e rpido a vontade de crer, e esta vem em seguida, e quase simultnea ao pensamento, mister que os objetos da f recebam acolhida depois de terem sido pensados. Assim acontece, embora o ato de crer nada mais seja que pensar com assentimento. Pois, nem todo o que pensa, cr, havendo muitos que pensam, mas no crem; mas todo aquele que cr, pensa, e pensando cr e cr pensando. 40 Nesta busca piedosa para compreendermos, pela razo, o contedo da nossa f, que consiste a filosofia crist de Agostinho, da qual passaremos a falar agora.
Agostinho opunha filosofia dos gentios uma filosofia crist, a qual era, para ele, a nica verdadeira. A Juliano, ele dizia: : Por favor, no seja para ti de maior valor a filosofia dos gentios que a nossa crist, nica filosofia verdadeira, pois esta palavra significa estudo ou amor sabedoria41. No De Civitate Dei, a lgica que o levara a fazer tal assero assaz simples: o filsofo no seno o amante da sabedoria. Agora bem, Deus a prpria sabedoria. Ora, o nico Deus verdadeiro o Deus dos cristos. Logo, s os cristos amam a verdadeira sabedoria. Donde s eles podem reivindicar, com justeza, o ttulo de filsofos.42
AGOSTINHO. A Predestinao dos Santos. Trad. Agustinho Belmonte. Rev. H. Dalbosco. So Paulo: Paulus, 1999. II, 5. (Os itlicos so nossos). 41 AGOSTINHO. Rplica a Juliano. IV, XIV, 72. Disponvel em: <http://www.augustinus.it/spagnolo/contro_giuliano/index2.htm> Acesso em: 24/10/2007. (A traduo para o portugus nossa). Referindo-se a esta filosofia, diz Agostinho no Contra Academicos: AGOSTINHO. Contra os Acadmicos. III, XIX, 42: Mas foi necessrio que passassem muitos sculos e discusses para que se elaborasse, segundo julgo, um s sistema de filosofia perfeitamente verdadeira. Esta filosofia no a deste mundo, que nossos mistrios com toda a razo abominam, mas a de outro mundo inteligvel (...).
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Ora, ento a filosofia s surgiu com o cristianismo? Decerto que no. Entretanto, os filsofos pagos s cultivaram a verdadeira sabedoria naquilo que ensinaram consoante a f crist, isto , naquelas sentenas que se coadunam com a verdade crist. Destarte, Agostinho reconhecia, ao lado dos profetas (aos quais tomava como filsofos por excelncia), outros que, inobstante no terem alcanado a verdade plena, conseguiram acercar-se dela, embora apenas parcialmente. No De Civitate Dei, ele pondera:
Todas as verdades que entre seus erros alguns filsofos chegaram a discutir e se esforaram em persuadir com esmero (...) tudo isso foi pregado ao povo na Cidade de Deus por boca dos profetas, sem argumentos e sem disputas. Para eles (O povo de Israel), eram esses os filsofos, quer dizer os amigos da Sabedoria, seus sbios, seus telogos, seus profetas e seus doutores em piedade e em probidade.43 No difcil imaginar a razo pela qual Agostinho identificava a religio crist com a verdadeira filosofia e os seus profetas com os verdadeiros sbios. 44 Com efeito, ele viveu numa poca em que a ascese e a contemplao eram apangio de uma filosofia que aspirava a ser salvfica. A filosofia pag do tempo de Agostinho, sobretudo de cunho neoplatnico, se esforava para proporcionar aos seus sequazes, por meio de uma mstica especulativa ascendente, a libertao das suas almas do crcere corporal, to inquinado s paixes e disperso. Ora, para o nosso pensador, semelhante salvao s se encontrava no cristianismo. S o cristianismo poderia tornar a alma verdadeiramente livre. S ele poderia dar a conhecer, sem rastros de erros, o caminho da salvao, que Cristo. Ademais, o cristianismo, contrariamente s demais seitas filosfico-religiosas, no reservava esta salvao apenas a uma casta, mas colocava-a ao alcance de todos. Eis a clssica passagem na qual Agostinho retoma o itinerrio do filsofo pago Porfrio, mostrando como ele aponta para a religio crist que, contudo, no descobriu:
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 7 ed. Trad. Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. VIII, I: O nome filsofo traduzido ao portugus, significaria amor sabedoria. Pois bem, se a sabedoria Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como demonstram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filsofo aquele que ama a Deus. 43 AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 4 ed. Trad. Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2001. XVIII, XLI, 3. 44 No De Vera Religione, Agostinho rejeita a todos os religiosos que no so filsofos em seus atos de piedade e a todos os filsofos que no religiosos no seu filosofar: AGOSTINHO. A Verdadeira Religio. 7, 12: Deixemos, pois de lado: todos os que no so nem filsofos em sua prtica religiosa, nem religiosos em sua filosofia (...).
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Assim, no o satisfazia o que com tanto esmero aprendera a respeito da libertao da alma e lhe parecia, ou melhor, parecia a outros, que o conheciam e professavam. Quando afirma que nem mesmo da filosofia mais verdadeira teve conhecimento de seita que contenha o caminho universal para a libertao da alma, parece-me demonstrar, evidncia, que a filosofia em que filosofou no era a mais verdadeira ou no continha a referida senda. Como pode, claro, ser a mais verdadeira, se no contm semelhante senda? Pois que outra senda universal existe para a libertao da alma, seno a que livra todas as almas e, sem ela, nenhuma se livra? (...) Essa a religio crist, que contm o caminho universal para a libertao da alma, porque por nenhum, seno por ele, pode ver-se livre.45 Sem embargo, Agostinho estava to certo de que a religio crist a nica fonte da verdadeira sabedoria, que afianava aos seus leitores que, se todos os grandes filsofos do passado voltassem vida e tivessem a oportunidade de conhecer a doutrina crist, deveras no pestanejariam em lanar fora todas as asseres errneas que fizeram, ou seja, todas aquelas doutrinas que propugnaram e que no se conjugam com a f e a religio crist, a fim de se fazerem cristos:
Portanto, se aqueles filsofos pudessem voltar vida conosco, reconheceriam, sem dvida, a fora da Autoridade, que por vias to simples operou a salvao da humanidade e mudando algumas palavras e sentenas ter-se-iam feito cristos, como vimos que se fizeram muitos platnicos modernos de nossa poca.46 Passemos s consideraes finais deste trabalho.
Concluso
Agostinho, no clebre Sermo 43, expressa numa frmula perfeita esta dupla atividade da razo que funda a filosofia crist sobre a qual discorremos acima: (...) compreender para crer, cr para compreender (intellige ut credas, crede ut intelligas)47. Com efeito,
Idem. Ibidem. X, XXXII, 1. AGOSTINHO. A Verdadeira Religio. 7, 7. 47 GILSON. A Filosofia na Idade Mdia. p. 144: Um texto clebre do Sermo 43 resume essa dupla atividade da razo numa frmula perfeita: compreender para crer, cr para compreender (intellige ut credas, crede ut inelligas).
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compreendendo aquilo em que se deve crer, cremos48 e, crendo, podemos compreender aquilo em que cremos. Se, por um lado, preciso partir da f; por outro, dever de quem cr, buscar inteligir aquilo em que cr, pois a inteligncia no elimina, antes, clarifica a f.49 De sorte que f e razo se complementam50, porquanto se A f busca, o entendimento encontra51. Alis, na vida eterna, a f dar lugar viso, como a esperana posse, pois s a caridade permanecer e ser robustecida.52 Sendo assim, o filosofar na f uma espcie de prelibao da viso da glria. O entendimento , pois, o intermedirio entre a f e a viso. Ele advm qual recompensa para quem creu: O entendimento uma recompensa da f53, A f um mrito e o entendimento um prmio54. Neste sentido, ainda no Comentrio ao Evangelho de Joo, Agostinho afirma: (...) o entendimento um fruto da f55. E este entendimento s ser pleno na Ptria. Por ora, vivemos numa espcie de interstcio entre a f e a viso, que consiste em procurar inteligir o contedo da f. Todavia, permanece como uma das indeterminaes agostinianas, at onde vai esta inteligncia que pressupe a f e que consiste na tentativa de entend-la. Ser que ela chega a pretender obter as rationes necessariae dos artigos de f, post fidem? Em Agostinho, h passagens e passagens. Uma delas, no De Vera Religione, inclina-nos a pensar que a resposta questo por ns levantada seja positiva. Diz Agostinho:
De onde resulta que as verdades, nas quais primeiramente acreditamos, fiando-nos na autoridade, tornam-se depois compreensveis (pela reflexo), at nos parecerem certssimas. 56 Em outras passagens, o Doutor de Hipona afirma de forma to veemente a inefabilidade divina, que tendemos a pensar que ele no tenha nunca defendido que, post fidem, pudssemos chegar s rationes necessariae dos artigos de f. Numa destas passagens,
Aqui compreender no significa conhecer o mistrio, mas apenas ter presente qual o objeto ao qual devemos assentir. Por exemplo, saber que a Trindade deve ser crida, no significa compreender o seu mistrio e sim assegurar-se dos testemunhos da f, que nos asseguram que devemos crer nele. 49 Idem. Op. Cit: E analogamente, por seu turno, a inteligncia no elimina a f, mas a fortalece, e, de certo modo, a clarifica. 50 Idem. Op. Cit: (...) f e razo so complementares (...). 51 AGOSTINHO. A Trindade. XV, 2, 2. 52 AGOSTINHO. Solilquios. Trad. Adaury Frangiotti. Rev. H. Dalbosco. So Paulo: Paulus, 1998. VII, 14: R. Vejamos, se ainda so necessrias essas trs coisas para a alma, depois que ela tenha conseguido ver a Deus, isto , compreend-lo. Para que necessria a f se j o v? Tampouco necessria a esperana, porque j o possui. Porm, o amor no s no perde nada, mas acrescido em elevadssimo grau, pois, ao ver aquela beleza singular e verdadeira, amar ainda mais. 53 AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de So Joo: Mdico e Alimento. XXIX, 6. 54 Idem. Comentrio ao Evangelho de So Joo: Luz, Pastor e Vida. XLVIII, 1. 55 Idem. Comentrio ao Evangelho de So Joo: Mdico e Alimento. XXII, 2. 56 Idem. A Verdadeira Religio. 8, 14.
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no De Ordine, Agostinho ressalta que, com relao a Deus, (...) se conhece melhor ignorando57 e, noutra passagem do mesmo dilogo, diz que, no que toca a Deus, (...) no h nenhum conhecimento na alma a no ser saber at que ponto o desconhece58. De qualquer forma, certo que no h um racionalismo em Agostinho, pois sempre se trata de um intelecto fecundado pela f e pela graa, vale dizer, de um intellectus fidei. Ele mesmo admite: (...) reconhecemos que caminhamos pela f e no pela clara viso (...) se no caminharmos pela f, no poderemos chegar clara viso (...)59. Deveras tambm no h um ontologismo agostiniano, pois a viso de Deus em si mesmo, em sua essncia, pertence apenas aos bem-aventurados. De fato, no que tange s verdades de f, (...) compreender perfeitamente consiste na viso sempiterna de Deus60, a qual apenas aos celcolas acessvel. Contudo, parece perdurar uma certa indeterminao entre o que pertence filosofia e o que pertence teologia no Bispo de Hipona, talvez porque esta demarcao nem fosse um problema para ele. Gilson acena para isto:
No se poderia levantar uma lista de verdades, na qual algumas seriam, para ele, essencialmente filosficas, enquanto outras seriam essencialmente teolgicas; pois todas as verdades necessrias beatitude, fim ltimo do homem, esto reveladas nas Escrituras; em todas, sem exceo, pode-se e deve-se acreditar. Por outro lado, no h sequer uma entre elas de que a nossa razo no possa obter alguma inteligncia, contanto que a isso se dedique, e, ao faz-lo, o pensamento funciona como razo j que a f no mais intervm a ttulo de prova, mas somente a ttulo de objeto.61 Tudo se passa como se, a totalidade das verdades que, ante fidem, assentimos por autoridade, post fidem pudssemos descobri-las, alcanando-as segundo a medida de nossas foras pela razo, sem, contudo, esgot-las, visto que elas tm Deus por objeto: Todas as verdades reveladas podem, ao menos em certa medida, ser conhecidas; nenhuma poderia ser
Idem. A Ordem. II, XVI, 44. Idem. Ibidem. II, XVIII, 47. 59 AGOSTINHO. A Doutrina Crist. II, 12, 17. 60 Idem. Ibidem. 61 GILSON, tienne. Introduo ao Estudo de Santo Agostinho. Trad. Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. So Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006. p. 76. O prprio Agostinho, no De Ordine, afirma que, uma vez crendo por autoridade, podemos, segura e confiantemente, buscarmos com logro as razes das coisas que, a priori, cremos sem compreender: AGOSTINHO. A Ordem. II, IX, 26: Quem entra por esta porta (a da autorictas) sem nenhuma dvida segue os preceitos da vida ideal dos quais, quanto j se tenha tornado dcil, finalmente aprender que as mesmas coisas, que seguiu sem compreend-las com a razo, esto dotadas de muita razo (...). (O parntese nosso).
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esgotada, j que elas tm Deus como objeto62. Agora bem, se, como havamos dito, por filosofia crist, Agostinho entende justamente esta tentativa de a razo inteligir o que havia crido, e que, ademais, esta especulao acerca do credo, torna-se, em Agostinho, como que um antegozo da viso face a face, temos que, na filosofia crist do nosso filsofo, encerra-se a verdadeira religio. Raciocinando de outro modo, chegamos mesma concluso. Com efeito, se, conforme tambm j assinalamos, a verdadeira religio consiste no esforo de tentarmos chegar inteligncia do que cremos, posto que a beatitude eterna, nosso fim ltimo, consiste na viso de Deus e no na f, temos novamente que, a filosofia crist de Agostinho a verdadeira religio. Gilson contundente ao constatar isso:
Uma filosofia que quer ser um verdadeiro amor pela sabedoria deve partir da f, da qual ser inteligncia. Uma religio que se quer to perfeita quanto possvel, deve tender inteligncia a partir da f. Assim entendida, a verdadeira religio a verdadeira filosofia e, por sua vez, a verdadeira filosofia a verdadeira religio. A isso Agostinho chama de filosofia crist, ou seja, tal como ele a entende, uma contemplao racional da revelao crist (...).63 A filosofia, que seja verdadeira e, por assim dizer, autntica, no tem outra funo seno a de ensinar o que seja o Princpio sem princpio de todas as coisas e a imensidade do Intelecto que nele reside e o que da se originou para nossa salvao sem nenhum detrimento para ele, a quem os venerveis mistrios nos ensinam ser um nico Deus onipotente e que ele uma Trindade Poderosa, Pai e Filho e Esprito Santo (...).64 De qualquer maneira, o certo que (...) se cr e se ensina como fundamento da salvao humana que estejam concordes: a filosofia isto , a procura da sabedoria e a religio65. De qualquer modo tambm, o que parece claro em Agostinho, ratificamos, que no existe em seu pensamento uma ntida distino entre teologia e filosofia, uma vez que para ele a prpria filosofia seria uma teologia. No De Ordine, Agostinho chega a dizer que a filosofia possui to somente duas questes, a saber, (...) uma concernente alma, outra a Deus (...)66.Ora, no De Civitate Dei, ele define a teologia como sendo uma palavra grega que
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GILSON. Introduo ao Estudo de Santo Agostinho. p. 76. Idem. Ibidem. p. 86 64 AGOSTINHO. A Ordem. II, V, 16. 65 Idem. A Verdadeira Religio. 5, 8. 66 Idem. A Ordem. II, XVIII, 47.
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significa (...) razo ou discurso sobre a divindade67. Logo, se a filosofia tem por objeto a Deus, ela tambm uma teologia. Ademais, se, de acordo com o que vimos, a filosofia possui um discurso sobre Deus que se estende at a tentativa de inteleco dos prprios mistrios cristos, podemos dizer que, em Agostinho, h uma filosofia crist que , tambm ela, uma teologia crist.
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