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Apresentao: A Indagao de Esmeralda

o ano de 1982 era eu aluna do Curso de Especializao de Professores na rea da Decincia Auditiva, realizado pelo Instituto Nacional de Educao de Surdos (INES)1, em parceria com o Centro Nacional de Educao Especial (CENESP), ambos ligados ao Ministrio da Educao. Na varanda do belssimo e centenrio prdio do INES, local do evento, uma colega de curso me fez a seguinte indagao: O que voc acha, gestos ou oralizao? Lembro da sensao do vento geladinho de outono embalando a minha perplexidade. Nunca havia pensado assim, dessa maneira. No havia ou para mim. As coisas estavam em estado de e. Fiquei um pouco atnita e tambm constrangida. No tinha uma resposta porque no tinha formulada essa pergunta dentro de mim. De toda sorte, pude perceber, ao longo desses vinte e seis anos atuando na Educao de Surdos, que no h como car indiferente a essa questo. possvel que esse trabalho represente uma tentativa de resposta indagao que me fora feita por

1 O Instituto Nacional de Educao de Surdos teve vrias denominaes desde a sua fundao e, tambm, funcionou em vrios endereos at a instalao denitiva na atual sede da Rua das Laranjeiras. So os seguintes perodos, denominaes e endereos: 1856/1857 Collgio Nacional para Surdos-Mudos de Ambos os sexos. Rua dos Beneditinos, 8; 1857/1858 Instituto Imperial para Surdos-Mudos de Ambos os Sexos. Morro do Livramento Entrada pela Rua de So Loureno; 1858/1865 Imperial Instituto para Surdos-Mudos de Ambos os Sexos. Morro do Livramento Entrada pela Rua de So Loureno; 1865/1866 Imperial Instituto dos Surdos-Mudos de Ambos os sexos. Palacete do Campo da Acclamao, 49; 1866/1871 Imperial Instituto dos SurdosMudos de Ambos os Sexos. Chcara das Laranjeiras, 95; 1871/1874 Imperial Instituto dos Surdos-Mudos de Ambos os Sexos. Rua da Real Grandeza, 4 Esquina da Voluntrios da Ptria; 1874/1877 Instituto dos Surdos-Mudos. Rua da Real Grandeza, 4 Esquina da Voluntrios da Ptria; 1877/1890 Instituto dos Surdos-Mudos. Rua das Laranjeiras, 60; 1890/1957 Instituto Nacional de Surdos-Mudos. Rua das Laranjeiras, 82/232 (mudana de numerao); 1957/ atual Instituto Nacional de Educao de Surdos. Rua das Laranjeiras, 232.

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uma querida amiga em uma longnqua tarde de maio. Curioso que o primeiro surdo com quem convivi tenha sido o seu lho que brincava entre ns, nas aulas, entre os espaos do Instituto, em meio ao peso de sua histria, enm, em meio a esse debate que segue. Talvez, num primeiro passo, necessite fazer uma reexo acerca do modo pelo qual me signiquei no campo das ideias para tentar avanar um pouco sobre a indagao de Esmeralda. Penso-me lha da Guerra Fria, da bipolaridade, do olhar dicotmico. Capitalistas ou comunistas, esquerda ou direita. Tudo muito claro e denido, demandando alinhamento. Assim eram os anos setenta, quando cursei Histria na Universidade Federal Fluminense. Havia o permitido e o condenvel. Tudo balizado pelos imperativos ideolgicos que se encontravam em estado dicotmico agudo. Ler e pensar eram linhas ocupadas. Autores eram indicados, outros tantos banidos. Vivamos uma espcie de transtorno bipolar ideolgico. Professores, alunos, artistas, posturas, livros, sorrisos, amores estavam inscritos nessa dinmica. Na Universidade esse transtorno encontrava expresso num severo sistema de controle ideolgico exercido no somente pelo inimigo oculto travestido de ns, para nos vigiar, como tambm, nas escolhas das disciplinas a serem cursadas e nas relaes entre os sujeitos. Cada gesto nosso era medido, avaliado e julgado. A simples escolha para cursar uma disciplina poderia nos levar ao inferno dos tribunais localizados no movimento estudantil e tambm fora deles. Era represso de todos os lados. Uma ditadura de Estado e um estado de ditadura. As liberdades polticas, existenciais e estticas encontravam-se fortemente comprometidas pela ditadura militar e, ao operar na resistncia buscando outros paradigmas, nos deparvamos com as matrizes totalitrias soviticas, chinesas e cubanas que, tambm, por seus pressupostos, corroboravam para o clima opressivo. Estava imersa neste mundo assombrada por inquietaes, sendo uma delas o sentido da luta pelas liberdades. Tinha demanda aguda por essas liberdades. Ansiava e me movia em sua direo; no entanto, o movimento de resistncia apontava para outras ditaduras.
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Estranhava o trnsito do conceito de ditadura nos dois polos de luta (direita e esquerda). Alguns lutavam e defendiam com seus sinceros argumentos a ditadura do proletariado. Aquilo me aigia. Observava-nos em rspidas disputas ideolgicas como se o inimigo (no sentido poltico e no psicanaltico) estivesse entre ns. Portanto, tambm no nos entendamos, combatamos entre ns por detalhes. Antes de cada passeata contra o regime de exceo imposto pelos militares e alguns civis, cvamos horas discutindo quais seriam as palavras de ordem. Tantas eram e sempre em oposio umas s outras, reetindo de modo agudo nossos dissensos. No conseguamos nos entender como uma possvel unidade frente ao violento estado de exceo. Para agravar o quadro, nossas alternativas polticas disponveis eram formadas por regimes totalitrios que tanto combatamos. Ento, no era uma questo de liberdade e sim de escolha entre totalitarismos. Dicotomicamente pensado, uma espcie de totalitarismo do mal contra o totalitarismo do bem. Fui no podendo. Sentia um autorressentimento por no conseguir aderir inteira quela feira ideolgica e ter que estar sempre em sentinela crtica. No podia me emocionar com Cuba inteiramente. Era impossvel conceber uma proposta de pas com um s partido poltico, apenas um jornal e severas restries ao direito de ser, de ir e de vir. Tinha clareza que no era por isso que eu lutava. No entanto, com a lgica bipolar, era quase impossvel exercer a crtica de um outro lugar. Se no fosse desse modo de ser esquerda, era de direita, se no fosse de direita, era de esquerda, um inquietante transtorno que a bipolaridade ideolgica impunha ao sujeito. Para Bobbio (1999), direita e esquerda so termos antitticos que tm sido empregados h mais de dois sculos designando o contraste entre ideologias em conito no campo do pensamento e das aes polticas. Ainda segundo ele, qualquer campo do saber est dividido por grandes dicotomias. Essa experincia bipolar/dicotmica no campo das ideias e da ao poltica marcou-me profundamente por exigir um constante esforo operatrio para que as posies por mim assumidas no fossem deslegitimadas por no corresponder a essa lgica (bi)polar.
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Ao entrar no campo da Educao de Surdos, nos anos 1980, deparei-me com uma outra bipolaridade representada pela disputa entre oralistas e gestualistas2 que h mais de trs sculos tambm protagonizam suas polares discordncias. Estando essas, portanto, tambm inscritas na postulao de Bobbio. A impossibilidade de acompanhar em modo dade as questes que me foram postas, relacionadas educao e ao ensino das pessoas surdas, novamente me empurrou por cada um dos lados para o seu lado opositor. Na realidade, minhas reexes no me conduziam a nenhum desses polos, ao contrrio, identicava elementos importantes em cada uma das proposies, no conseguindo operar dicotomicamente. Embora as questes de natureza lingustica (a indagao de Esmeralda) tenham sempre estado em hegemonia no campo da Educao de Surdos, percebi que outros tantos temas deveriam circular com mais fora e no circulavam. Nos anos que se seguiram, j trabalhando como docente no Instituto, entrei em contato com a cultura oral relativa trajetria da instituio e a muitos de seus personagens. Essa memria estava localizada nos contedos das narrativas de professores, alunos e funcionrios. Tambm fui conhecendo as fontes documentais da instituio. Naturalmente era de se esperar que o Instituto, naquela altura, com quase um sculo e meio de existncia, tivesse um acervo considervel. Como resultado de uma investigao, a princpio aleatria, um perodo em especial que me chamou a ateno foi o referente gesto de Ana Rmoli de Faria Dria (1951/1961). Observei que se tratava de um perodo muito bem documentado. Fotograas, lmes, Anais, livros, discursos de autoridades, objetos que retratavam eventos comemorativos e outros tantos juntavam-se memria construda pelos atores (surdos e ouvintes) que viveram aquele perodo. O que emergia desses lugares de memria era a ideia de um tempo de muitas realizaes, de grande proximidade com a poltica nacional e de uma surpreendente interao
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Oralista a pessoa que defende o desenvolvimento da linguagem oral pelo surdo como prioridade. Para que possamos reconhecer a posio oposta a essa formulao utilizarei o termo gestualista a m de identicar aqueles que defendem o desenvolvimento da Lngua de Sinais como prioridade.

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entre surdos e ouvintes. Essas narrativas apontavam tambm para um sentido de refundao da instituio que, nalmente, assumindo sua vocao nacional, implementava polticas de atendimento educacional ao surdo em todo o Brasil. Como veremos no decorrer desse trabalho tratava-se de um projeto nacional, contendo um modelo integrador com foco na aquisio de linguagem oral. Acompanhando a produo acadmica, na rea da surdez, dos anos 1990, pude observar o quanto seus contedos, relativos memria histrica, estavam distantes dessa memria que circula, ainda, pelos atores institucionais e pelas fontes documentais. As narrativas sobre esse perodo, encontradas nessa produo, ora so descritas somente como o triunfo do oralismo e a proibio da Lngua de Sinais, ora so descritas como distanciadas dos sentidos da educao geral dos anos cinquenta no Brasil. Nesse enfoque, a recorrente tenso do campo da Educao de Surdos protagonizada pelo embate entre os defensores do ensino atravs da linguagem oral e os defensores do ensino atravs da Lngua de Sinais tem sido apresentada de modo antittico e posicionada em defesa do ensino atravs da Lngua de Sinais. Esse percurso de narrativa crtica vem assumindo uma perspectiva de histria-tribunal numa lgica de opressores (ouvintes/oralistas) versus oprimidos (surdos/gestualistas). Os pioneiros da Educao de Surdos, dentre eles o francs Jean-Marie Gaspard Itard (1755-1838), so apresentados, hoje, como anacrnicos em seus tempos, por no corresponderem s atuais formulaes dessa nova perspectiva terica que vem se constituindo na Educao de Surdos desde os anos noventa do sculo passado. Considero que a centralidade que essas crticas vm assumindo nessas narrativas da histria da Educao de Surdos opera inmeros apagamentos, comprometendo a percepo das interaes do campo da Educao de Surdos com o da educao geral. Durante sua gesto, Ana Rmoli vai promover uma srie de iniciativas relativas Educao de Surdos em mbito nacional. Destacamse, dentre outras aes, a criao do Curso Normal de Formao de Professores para Surdos, o primeiro na Amrica Latina, e a Campanha de Alfabetizao do Surdo Brasileiro. Tambm vai produzir inmeX 13 W

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ras publicaes. Estas iniciativas demandam um olhar mais profundo, buscando compreender a dinmica do Instituto como rgo ligado ao Ministrio da Educao MEC e sua insero na grande rede engendrada pelo educador Ansio Teixeira, quando esteve exercendo no Instituto Nacional de Estudos Pedaggicos as funes de gestor e formulador das polticas educacionais dos anos cinquenta. No difcil perceber a sintonia administrativa de Ana Rmoli com o cienticismo do idealizador da educao brasileira nos anos cinquenta. possvel que a retomada do ensino em bases oralistas com suas demandas tecnolgicas e de forte cunho cientco tambm esteja correspondendo a esse alinhamento. Para Ansio, a reconstruo educacional do Brasil deveria ser fundada em bases cientcas. Identica-se, alm desses apagamentos encontrados nos contedos dessa produo, um projeto reparador para o passado que institui uma ideia de verdade nica fora do tempo e, portanto, da histria. Vale lembrar que o Instituto aparece nessas narrativas como tendo seguido os preceitos do oralismo ao longo de sua histria. Na consulta s diversas fontes documentais essa armao no se conrma, como veremos mais adiante. Outro aspecto importante para examinarmos, perseguindo essa ideia de apagamentos, a concepo muito recorrente de que a Educao Especial, campo onde historicamente a Educao de Surdos est inserida, manteve-se isolada da educao geral, tendo se gueticado em territrios fsicos e tambm se gueticado no territrio das ideias, mantendo-se distante dos debates praticados sobre educao ao longo dos ltimos trs sculos. Quanto aos territrios fsicos, de fato, a parte mais conhecida e estudada da Educao de Surdos foi a que estava circunscrita aos grandes prdios, os Institutos de Surdos, a partir da formao dos Estados Modernos. No entanto, no podemos sustentar, como veremos a frente, que no territrio das ideias esse isolamento, essa territorializao tenha acontecido. Primeiramente, o debate que segundo Bobbio sempre se d de modo dade nas cincias humanas uma marca importante do debate praticado na Educao de Surdos, o que nos aproxima do modo pelo qual as ideias em disX 14 W

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senso so trabalhadas. Vale ainda destacar que do campo da Educao de Surdos partiram importantes contribuies para outros tantos campos do conhecimento. A pedagogia de Montessori, a tecnologia inventiva de Grahan Bell, as cincias da fala e da audio e a Lingustica atravs das inovaes surgidas nos estudos sobre a aquisio de lngua oral e a aquisio de Lngua de Sinais so alguns exemplos da circulao de ideias no campo.

1.1 Repercusso das Luzes na Educao de Surdos

A histria, quando muito, justifica os homens e no as ticas. Antnio Nvoa

A rigor, a Educao de Surdos, nos ltimos sculos, esteve inscrita no campo da Educao Especializada, campo este circunscrito escolarizao e socializao de sujeitos que apresentam alguma diferena sensorial, fsica, mental e/ou algumas dessas diferenas associadas. Ao longo do perodo que costumamos denominar de Idade Moderna, na Europa, encontram-se inmeros registros de trabalhos desenvolvidos por religiosos catlicos e protestantes, tendo como sujeitos pessoas surdas. Esses trabalhos oportunizaram um deslocamento social desses sujeitos, que permaneciam anteriormente refns de uma lgica de eliminao fsica ou social, no sendo considerados humanos, e, sim, seres castigados pelos deuses. Segundo Fernandes (1998),
O sculo XVI testemunha por sua vez uma acelerao considervel da procura e oferta educacionais. Em primeiro lugar achamos referncias, s na cidade de Lisboa, a 34 mestres de meninos e a duas mestras de meninas, e a um total de 30 a 40 escolas. Noutras localidades do pas mencionada igualmente a existncia de escolas de meninas, como o caso de Viana do Castelo. Uma das professoras identicadas no sculo XVI surge ligada prosso mdica, sendo tambm assinalada como mestra dos moucos, o que representa por certo a mais longnqua citao histrica do ensino de surdos em Portugal. (FERNANDES, 1998, p. 6)

O humanismo e o racionalismo, que foram as bases da cincia moderna, possibilitaram a passagem do entendimento acerca dos surdos
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