Paulo Alentejano - Questão Agrária No Brasi FEV 11

Fazer download em doc, pdf ou txt
Fazer download em doc, pdf ou txt
Você está na página 1de 23

Questo agrria no Brasil atual: uma abordagem a partir da Geografia Paulo Alentejano* Neste incio de sculo XXI a questo

agrria recoloca-se no Brasil sob velhos e novos contornos que desafiam pesquisadores e militantes a reinterpret-la, sem cair na tentao de sucumbir aos novos modismos, nem tampouco fechar os olhos s necessidades terico-polticas de atualizao permanente de nosso olhar acerca da realidade. Como nos lembra Delgado, a questo agrria na atualidade derivada da prevalncia do agronegcio no modelo agrrio brasileiro:
A antinomia reforma agrria versus modernizao tcnica, que proposta pelos conservadores em 1964, reposta na atualidade sob novo arranjo poltico. Esse novo arranjo se articula nos ltimos anos do segundo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso e tambm no governo do presidente Luiz Incio Lula da Silva, quando se constitui uma estratgia de relanamento dos grandes empreendimentos agroindustriais apoiados na grande propriedade fundiria, voltados gerao de saldos comerciais externos expressivos. Essa estratgia, que estivera abandonada pela poltica macroeconmica do primeiro governo Cardoso, adotada por presso do constrangimento externo do balano de pagamentos. Ela relana uma poltica agrcola de mxima prioridade ao agronegcio, sem mudana na estrutura agrria. Isso refora as estratgias privadas de maximizao da renda fundiria e especulao no mercado de terras. Esse arranjo da economia poltica altamente adverso ao movimento da reforma agrria e s polticas alternativas de desenvolvimento pela via camponesa. (Delgado, 2010: 81/82)

A esta abordagem de Delgado centrada na perspectiva econmica buscaremos adendar um olhar geogrfico, abordando, neste texto, quatro questes que nos parecem intimamente correlacionadas e que conformam o cerne da questo agrria brasileira neste incio de sculo: a persistncia da concentrao fundiria e as desigualdades que isto gera; a crescente internacionalizao da agricultura brasileira expressa pelo controle da tecnologia, do processamento agroindustrial e da comercializao da produo agropecuria, bem como pela aquisio de terras; as transformaes recentes na dinmica produtiva da agropecuria brasileira que tm fomentado uma crescente insegurana alimentar; a persistncia da violncia, da explorao do trabalho e da devastao ambiental no campo brasileiro como caractersticas centrais de nosso modelo agrrio. 1. A persistncia da concentrao fundiria e a reproduo da injustia e da desigualdade no Brasil Iniciada com o instrumento colonial das sesmarias e intensificada pela Lei de Terras de 1850, a concentrao fundiria segue sendo uma marca do campo brasileiro. O ltimo Censo Agropecurio
*

Professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Formao de Professores da UERJ e Professor Visitante da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da FIOCRUZ.

2 comprovou que o ndice de Gini permaneceu praticamente estagnado nas ltimas duas dcadas, saindo de 0,857 em 1985 para 0,856 em 1995/1996 e 0,854 em 2006. Em alguns estados da federao, entretanto, verificou-se significativos aumentos, como em Tocantins (9,1%), Mato Grosso do Sul (4,1%) e So Paulo (6,1%). O movimento de concentrao foi puxado pelas grandes culturas de exportao, pela expanso do agronegcio e pelo avano da fronteira agropecuria em direo Amaznia - impulsionada pela criao de bovinos e pela soja. No caso de So Paulo, o crescimento deveu-se cultura de cana-de-acar (estimulada pelo maior uso de lcool com o carro flex e pelos bons preos do acar). Os grficos 1 e 2 expressam a persistncia da desigualdade na estrutura fundiria no Brasil, pois os pequenos estabelecimentos com menos de 10 ha so 47% do total, mas a rea ocupada pelos mesmos de apenas 2,7% do total, ao passo que no plo oposto, os estabelecimentos com mais de 1000 ha so apenas 0,9% do total, mas ocupam 43% da rea. O contraste se torna ainda mais ntido quando observamos que os estabelecimentos com menos de 100 ha so cerca de 90% do total, ocupando uma rea de cerca de 20%, ao passo que os com mais de 100 ha so menos de 10% do total e ocupam cerca de 80% da rea. E este quadro permanece praticamente inalterado nos ltimos 50 anos. Grficos 1 e 2 Nmero e rea dos Estabelecimentos Agropecurios Brasil 1950-2006
N de Estabelecimentos Agropecurios por Grupos de rea - 1950-2006
100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995 2006 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995 2006

rea dos Estabelecimentos Agropecurios por Grupos de rea - 1950-2006

Menos de 10 ha

10 a menos de 100 ha

100 a menos de 1000 ha

1000 ha e mais

Menos de 10 ha

10 a menos de 100 ha

100 a menos de 1000 ha

1000 ha e mais

Fonte: IBGE, 2006.

Se considerarmos os dados do Incra, ao invs dos dados do IBGE, isto considerarmos os imveis rurais, ao invs dos estabelecimentos agropecurios1, verificamos que o panorama no muito diferente. Os imveis com menos de 10 ha so 31,6% do total, mas ocupam apenas 1,8% da rea e os com mais de 5000 ha representam apenas 0,2% do total de imveis, mas controlam 13,4% da rea. Somados os imveis com menos de 100 ha correspondem a 85,2% do total e possuem menos de

O IBGE utiliza a categoria estabelecimentos agropecurios que considera a unidade produtiva, enquanto o Incra utiliza a categoria imvel rural, isto , tem como base a propriedade da terra. Assim, por exemplo, se uma fazenda arrendada para quatro diferentes agricultores, o Incra contabiliza um imvel rural e o IBGE quatro estabelecimentos agropecurios. Por outro lado, se trs diferentes fazendas so administradas como uma unidade produtiva contnua, o Incra contabiliza trs imveis rurais e o IBGE apenas um estabelecimento agropecurio. Assim, os dados do IBGE e do Incra devem ser considerados como complementares para a anlise da concentrao fundiria.

3 20% da rea, ao passo que os que possuem mais de 100 ha so menos de 15% dos imveis e concentram mais de 80% da rea. Grficos 3 e 4 Nmero de rea dos Imveis Rurais Brasil - 2003
Nmero de Imveis Rurais
13,2% 1,5% 0,2% 13,4% 31,6%

rea dos Imveis Rurais


1,8% 18,3%

30,3%

53,6%

36,3%

Menos de 10 ha 100 a menos de 1000 ha Mais de 5000 ha

10 a menos de 100 ha 1000 a 5000 ha

Menos de 10 ha 100 a menos de 1000 ha Mais de 5000 ha

10 a menos de 100 ha 1000 a 5000 ha

Fonte: Incra, 2003

Um dos resultados desta profunda iniqidade na distribuio de terras no Brasil , segundo Carter (2010), a discrepncia da representao poltica entre camponeses e agricultores familiares 1 deputado para 612 mil famlias entre 1995 e 2006 e grandes proprietrios 1 deputado para 236 famlias uma diferena de 2.587 vezes. Como conseqncia direta dessa desigualdade, os grandes proprietrios conseguiram obter 1.587 vezes mais recursos pblicos que os camponeses e agricultores familiares para o financiamento da produo agropecuria. Outro efeito da persistncia desta concentrao fundiria a expulso de trabalhadores do campo. A impossibilidade de reproduo ampliada das famlias camponesas resultante da concentrao fundiria produz a expulso dos trabalhadores do campo, o que acentuado pela modernizao da agricultura que reduz a necessidade de mo-de-obra no campo. Grficos 5 e 6 Pessoal Ocupado nos Estabelecimentos Agropecurios Total e Mdia Brasil - 1950-2006
Pessoal Ocupado em Estabelecimentos Agropecurios - 1950-2006 25.000.000 20.000.000 15.633.985 15.000.000 10.000.000 5.000.000 0 1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995 2006 10.996.834 17.582.089 23.394.919 20.345.692 21.163.735 17.930.890 16.567.544 6 5 4 3 2 1 0 1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995 2006 5,33 4,68 3,57 Mdia de Pessoal Ocupado por Estabelecimento Agropecurio - 1950-2006

4,07

4,1

4,03

3,69

3,2

Fonte: IBGE A anlise detalhada dos Grficos 5 e 6, revela a reduo absoluta do nmero de trabalhadores no campo a partir de 1985, ao passo que a mdia de trabalhadores por estabelecimento vem decaindo desde 1950, com uma leve oscilao para cima entre 1970 e 1975. Acrescente-se que os pequenos estabelecimentos (menos de 100 ha) responderam por 84,36% das pessoas ocupadas em

4 estabelecimentos agropecurios, embora a soma de suas reas represente apenas 30,31% do total. Em mdia, os pequenos estabelecimentos utilizam 12,6 vezes mais trabalhadores por hectare que os mdios (100 a 1000 ha) e 45,6 vezes mais que os grandes estabelecimentos (com mais de 1000 ha). Em decorrncia disto, nas ltimas dcadas a populao rural sofreu reduo absoluta e no apenas relativa como vinha acontecendo at 1970. Grfico 7 Distribuio da populao brasileira Rural e Urbana 1900-2000

Este processo , em larga medida, fruto da modernizao conservadora da agricultura brasileira conduzida pela ditadura aps 1964, resultando na adaptao da agropecuria brasileira lgica da revoluo verde2.
...o atual modelo de desenvolvimento rural do pas, fundado na promoo do agronegcio e na proteo das grandes propriedades de terras, foi desenvolvido e financiado pelo regime militar. Desde ento, a inrcia conservadora do Estado se manteve sem grandes alteraes, apesar da democratizao do regime poltico, das leis favorveis reforma agrria e da expressiva demanda popular por terra. (CARTER, 2010: 514)

Outro efeito da concentrao fundiria facilitar a transferncia do patrimnio natural brasileiro para o controle estrangeiro, afinal, quando se trata o agro como mero negcio (agronegcio) a terra de fato mera mercadoria que pode ser transacionada sem maiores preocupaes, diferentemente de quando o agro lugar de vida (agricultura) e a terra, portanto, no uma mera mercadoria.

A revoluo verde consiste no processo de modernizao tcnica da agricultura baseada em mecanizao, quimificao e melhoramento gentico gestada nos EUA e difundida pelo Terceiro Mundo a partir dos anos 1950 sob o pretexto de combater a fome e a misria, mas que visava na realidade combater o perigo da revoluo vermelha/comunista que chegara China no fim da dcada de 1940 e ameaava se espalhar pelo resto do Terceiro Mundo.

5 2. A nova onda de internacionalizao da agricultura brasileira e a ameaa a nossa soberania territorial Assim como a concentrao fundiria no uma novidade na histria brasileira, mas se resignifica a cada momento, o mesmo pode ser dito da internacionalizao da agricultura. Se a colonizao foi o marco inicial da invaso estrangeira do ponto de vista dos povos indgenas (tupis, guaranis, xavantes, inanomamis e tantos outros) hoje vivemos uma nova onda de internacionalizao da nossa agricultura, expressa no domnio da nossa agricultura por grandes empresas transnacionais e na compra de terras por empresas, fazendeiros e fundos financeiros estrangeiros. No dizer de David Harvey, estamos diante de um processo de renovao do imperialismo, baseada na acumulao por espoliao3:
Todas as caractersticas da acumulao primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geografia histrica do capitalismo at os nossos dias. A expulso de populaes camponesas e a formao de um proletariado sem terra tem se acelerado em pases como o Mxico e a ndia nas trs ltimas dcadas; muitos recursos antes partilhados como a gua, tm sido privatizados (com freqncia por insistncia do Banco Mundial) e inseridos na lgica capitalista da acumulao; formas alternativas (autctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, mercadorias de fabricao caseira) de produo e consumo tm sido suprimidas. Indstrias nacionalizadas tm sido privatizadas. O agronegcio substitui a agricultura familiar. E a escravido no desapareceu (particularmente no comrcio sexual). (Harvey, 2004: 121)

O mapa abaixo indica que o Brasil o pas do mundo que combina em mais alto grau disponibilidade de terras e gua. Mapa 1 Disponibilidade mundial de terras e gua

Fontes (2010) polemiza com Harvey em torno da adequao da sua noo de acumulao por espoliao, por considerar que a produo de expropriao sistemtica no capitalismo, dado seu carter desigual e combinado. Embora no discordemos da autora, consideramos que a noo de acumulao por espoliao ajuda a lanar luz sobre o atual processo de avano do capital sobre os recursos naturais e os direitos sociais.

6 Trata-se dos dois requisitos fundamentais para a expanso da agricultura, especialmente em seu padro moderno, derivado da revoluo verde, intensivo em terra, gua e energia. Acrescente-se a isso que a tropicalidade dominante em nossas terras representa um requisito adicional de grande utilidade para a agricultura, dada a intensidade dos processos de fotossntese que propicia, bem como as condies favorveis para a criao de animais de grande porte. Estas vantagens comparativas4 para o desenvolvimento da agricultura no Brasil ficam ainda mais evidentes quando observamos o quadro abaixo que compara as terras atualmente destinadas a plantaes e as que ainda podem vir a ser utilizadas para este fim. Por este quadro, observa-se que a soma das terras no utilizadas ou utilizadas para pastagens no Brasil representa mais do que o dobro das que possuem os dois pases que mais se destacam neste quesito depois do Brasil que so os EUA e a Rssia. Acrescente-se a isso que estes pases possuem extensas reas temporrias recobertas por neve. Quadro 1 - Disponibilidade de terras arveis

Todos estes aspectos combinados explicam a recente onda de internacionalizao da agricultura brasileira verificada nos ltimos anos que se traduz no crescente controle das transnacionais do agronegcio sobre a agricultura brasileira seja pela determinao do padro tecnolgico (sementes, mquinas e agroqumicos), seja pela compra/transformao da produo agropecuria (grandes traders, agroindstrias) e tambm na crescente onda de compra de terras por fazendeiros, empresas e grupos estrangeiros. No que se refere ao controle das transnacionais sobre a agricultura brasileira, os processos mais notrios atualmente dizem respeito difuso das sementes transgnicas pelas grandes empresas do

O uso desta expresso faz referncia noo proposta por David Ricardo no sculo XIX, sem entretanto dar a esta o mesmo tratamento que faz o referido autor, pois consideramos que no se trata de vocao natural, mas de atributos historicamente valorizados.

7 setor, como Monsanto5, Bayer, Syngenta, que tambm so as grandes produtoras de agroqumicos, mas tambm digno de nota a ampliao da presena das transnacionais na comercializao e processamento industrial da produo agropecuria, sobretudo ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, que inicialmente concentravam sua atuao no ramo de cereais, mas tm se expandido para outros ramos, sobretudo o sucroalcooleiro.
No primeiro semestre deste ano, oito multinacionais despontaram entre as 20 principais empresas exportadoras do pas. No ano passado, elas eram somente trs, e, em 2008, quatro. Na lista das maiores exportadoras de 2010, 4 das 8 mltis vendem produtos agrcolas e j existe at uma brincadeira devido a isso. Elas so conhecidas como o "ABCD: ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus" -todas so companhias multinacionais que produzem commodities. Neste ano, a Bunge passou a ocupar a terceira posio, perdendo somente para a Petrobras e a Vale. Em 2009, ela terminou em 19 lugar, com um faturamento bruto anual de R$ 27,2 bilhes. Essas empresas multinacionais fazem frente s duas maiores gigantes brasileiras e ultrapassaram as companhias nacionais de alimentos, resultado de fuses incentivadas por recursos do governo. A BRF-Brasil Foods, fruto de fuso entre Sadia e Perdigo, est no dcimo lugar da lista de 2010. A JBS-Friboi, cuja fuso tambm recebeu ajuda financeira do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social), est na 26 posio. (Folha de So Paulo, 16.08.2010)

No setor sucroalcooleiro, em especial, este controle das grandes empresas transnacionais tem se expandido velozmente. Segundo Mendona (2010), a participao de empresas estrangeiras na indstria da cana no Brasil cresceu de 1% em 2000 para 20% em 2010. Este processo acontece junto com um forte processo de concentrao no setor. Estimativas de mercado mostram que, na safra 2009/10, os sete maiores grupos de comercializao do mercado j representaram 61,4% das vendas. No ciclo atual (2010/11), a fatia nas mos dos sete grandes ser de 67%.

Valor, 15 de setembro de 2010

Notcia publicada Folha de So Paulo no dia 11 de agosto de 2010 indica que o Brasil j o segundo maior mercado da Monsanto, superado apenas pelo dos EUA.

8 J no que se refere compra de terras por fazendeiros, empresas e grupos de investidores estrangeiros, h indcios de forte crescimento a partir dos anos 2000, como mostra a reportagem publicada por um dos principais rgos da grande imprensa brasileira: O fazendeiro australiano Robert Newell investiu cerca de 4,5 milhes de dlares na compra de 11 350 hectares no municpio de Rosrio, no oeste da Bahia. O consrcio francs Louis Dreyfus, adquiriu 20 000 hectares tambm na Bahia. O multibilionrio fundo de penso dos funcionrios pblicos da Califrnia, o Calpers dono de 23 000 hectares nos estados do Paran e de Santa Catarina. George Soros outro que tem investimentos em terras brasileiras. (Folha de So Paulo, 21/04/2007) A fragilidade dos mecanismos de controle do Estado sobre o territrio brasileiro reconhecida pelo prprio presidente do Incra, rgo responsvel pela administrao fundiria no Brasil, que admite que o governo no tem dados sobre investidores e pessoas fsicas que j detm terras no pas e chama ateno para as brechas legais que facilitam o acesso de estrangeiros propriedade da terra no Brasil: Basta abrir um escritrio ou estar associado a um brasileiro, que pode comprar o que quiser de terras. Existem 3,1 milhes de hectares de terras na Amaznia Legal nas mos de estrangeiros. Essa rea corresponde a 39 mil imveis rurais, mas pode ser ainda maior. Isso porque no cadastro do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra) s existem registros de imveis que tiveram os documentos apresentados por seus proprietrios. (Ecopress / Envolverde, 29/4/2008) O grupo chins, formado por investidores privados, mas com o governo da China como scio, quer comprar de 200 mil a 250 mil hectares de terras, tanto no oeste da Bahia quanto na regio conhecida como Mapito, o cerrado do Maranho, Piau e Tocantins. (...) Estimativas do mercado do conta que exista no mundo aproximadamente US$ 20 bilhes disponveis para compra de terras agrcolas em todos os pases, sendo que pelo menos US$ 5 bilhes teriam como destino certo o Brasil. (...) Esses investidores esto de olho em 20 milhes de hectares disponveis para a agricultura, que esto fora do bioma amaznico e no so reas de pastagem. Desse total, a estimativa que pelo menos 4 milhes de hectares sejam divididos por 15 grandes grupos, entre investidores estrangeiros e empresas nacionais profissionalizadas, interessados tanto na aquisio de terras para investimento quanto na produo de gros e fibras. (...) Levantamento feito pelo Valor mostra que essas empresas j possuem pelo menos 2 milhes de hectares, a maior parte deles no Mapito e no oeste baiano, mas tambm em terras em Mato Grosso. (...) De modo geral, existem dois grupos de investidores. O primeiro, geralmente formado por fundos interessados em aplicaes de longo prazo na aquisio de terras baratas para torna-las produtivas e ganhar na valorizao e um segundo interessado em terras para produo. (Valor Econmico 27/05/2010)

9 Como se v nos exemplos acima h controvrsias sobre o volume de terras j pertencentes a grupos, empresas e fazendeiros estrangeiros, bem como so diferentes os interesses que movem esta nova onda de internacionalizao das terras brasileiras, mas a existncia e a gravidade de tais fatos so inegveis, assim como, inegvel a contribuio deste processo para a fragilizao de nossa territorial, bem como alimentar, como veremos a seguir. 3. As transformaes recentes na dinmica produtiva da agropecuria brasileira e a crescente insegurana alimentar Segundo dados do IBGE, entre 1996 e 2006 houve ligeira reduo da rea total dos estabelecimentos agropecurios, decorrente, sobretudo, da reduo da rea das pastagens naturais. Por outro lado, verificou-se aumento das reas destinadas a lavouras, pastagens plantadas e matas. Tabela 1 Utilizao das Terras Brasil Utilizao das Terras 1996 rea Total Lavouras permanentes Lavouras temporrias Matas naturais Pastagens plantadas Matas plantadas Pastagens naturais
Fonte: Ibge - Censo Agropecurio, 2006.

2006

353.611.246 7.541.626 34.252.829 88.897.582 99.652.009 5.396.016 78.048.463

329.941.393 11.612.227 48.234.391 93.982.304 101.437.409 4.497.324 57.316.457

Quando analisamos mais detidamente estes dados, verificamos que no se trata de um crescimento generalizado. A anlise comparativa da evoluo da rea plantada de alguns dos principais produtos agrcolas, bem como da produo de bovinos e de madeira, indica que a rea plantada com alimentos bsicos decresceu, ao passo que a rea destinada cultivos destinados majoritariamente exportao e a fins industriais (produo de rao, energia e papel e celulose). A rea destinada produo de trs alimentos bsicos na dieta da populao brasileira (arroz, feijo e mandioca) reduziu-se em mais de 2,5 milhes de ha entre 1990 e 2006. No caso do arroz (Grfico 8), a reduo foi de quase 1/3, sendo que na regio Sudeste essa cultura praticamente desapareceu e apenas na regio Sul verificou-se aumento ao longo das duas ltimas dcadas, tendo inclusive esta regio ultrapassado o Nordeste na condio de regio com maior rea plantada.

10 Grfico 8 - Evoluo e distribuio espacial da rea plantada de Arroz (1.000 ha) - Brasil 1990-2008
re a Plantada - Arroz (ha) - Brasil e Re gies - 1990-2008 4.158.547 4.500.000 4.000.000 3.500.000 3.000.000 2.500.000 2.000.000 1.500.000 1.000.000 500.000 0 Norte Nordeste Sudeste Sul CentroOeste Brasil

2.869.285 1990 2008

Fonte: IBGE.

No que diz respeito ao feijo (Grfico 9) a reduo foi de aproximadamente e, neste caso, generalizado por todas as regies do pas. Vale dizer que, apesar da reduo apresentada, o Nordeste permanece sendo a regio com maior rea plantada. Grfico 9 - Evoluo e distribuio espacial da rea plantada de Feijo (1.000 ha) - Brasil 1990-2008
re a Plantada - Feijo (ha) - Brasil e Regies - 1990-2008 6.000.000 5.000.000 4.000.000 3.000.000 2.000.000 1.000.000 0 Norte Nordeste Sudeste Sul CentroOeste Brasil 5.304.267 3.967.518 1990 2008

Fonte: IBGE.

Quanto mandioca (Grfico 10), verificou-se no perodo uma ligeira expanso da rea plantada, sobretudo, em funo da expanso desta cultura na regio Norte provavelmente associado multiplicao de assentamentos rurais na regio. Vale dizer ainda que, mais uma vez, a regio Nordeste destaca-se como a de maior rea plantada.

11 Grfico 10 - Evoluo e distribuio espacial da rea plantada de Mandioca (1.000 ha) - Brasil - 1990-2008
rea Plantada - Mandioca (ha) - Brasil e Regies - 1990-2008 2.500.000 1.975.6432.008.539 2.000.000 1.500.000 1.000.000 500.000 0 Norte Nordeste Sudeste Sul CentroOeste Brasil 1990 2008

Fonte: IBGE.

Em contrapartida, a rea destinada ao cultivo de produtos voltados prioritariamente para exportao ou transformao industrial, aumentou. Considerando-se apenas trs destes produtos cana-deacar, soja e milho a rea plantada foi ampliada de 27.930.804 ha para 44.021.847 ha, um crescimento de 57,6%. Vale destacar que entre 1990 e 2008, a soja ultrapassou o milho em termos de rea plantada, assumindo a condio de maior lavoura do pas. Em termos proporcionais, o maior crescimento verificou-se na cana-de-acar, cujas destinaes fundamentais so a produo de acar para exportao e de lcool combustvel para o mercado interno. A rea plantada aumentou 90% entre 1990 e 2008, sendo que no Sudeste que planta hoje 2/3 da rea de cana do pas e no Centro-Oeste a rea plantada mais que dobrou e s no Nordeste houve reduo da mesma. Grfico 11 - Evoluo e distribuio espacial da rea plantada de Cana-de-acar (1.000 ha) Brasil - 1990-2008
rea Plantada - Cana-de-acar (ha) - Brasil e Regies - 19902008 9.000.000 8.000.000 7.000.000 6.000.000 5.000.000 4.000.000 3.000.000 2.000.000 1.000.000 0 Norte Nordeste Sudeste Sul 8.210.877

4.322.299

1990 2008

CentroOeste

Brasil

Fonte: IBGE.

12 Vale dizer que esta expanso estimulada por recursos pblicos. Entre 2008 e 2009, estima-se que o setor sucroalcooleiro tenha recebido mais de R$ 12 bilhes do BNDES, verba esta extrada, em grande medida, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). No caso da soja, cuja destinao fundamental a exportao, seja in natura, seja na forma de farelo para fabricao de rao, o crescimento da rea plantada foi de 82%, sendo que este ocorreu em todas as regies do pas, embora com destaque para o Centro-Oeste que ultrapassou o Sul como regio com maior rea plantada. Grfico 12 - Evoluo e distribuio espacial da rea plantada de Soja (1.000 ha) - Brasil 1990-2008
rea Plantada - S oja (ha) - Brasil e Regies - 1990-2008 25.000.000 20.000.000 15.000.000 10.000.000 5.000.000 0 Norte Nordeste Sudeste Sul CentroOeste Brasil 11.584.734 1990 2008

21.063.721

Fonte: IBGE.

Embora mais modesto o crescimento da rea plantada de milho cuja destinao principal a produo de rao, seja para o mercado interno, seja para exportao tambm se verificou, exceo feita ao Sudeste, onde houve reduo da rea plantada de milho. Grfico 13 - Evoluo e distribuio espacial da rea plantada de Milho (1.000 ha) - Brasil 1990-2008
rea Plantada - Milho (ha) - Brasil e Regies - 1990-2008 16.000.000 14.000.000 12.000.000 10.000.000 8.000.000 6.000.000 4.000.000 2.000.000 0 Norte Nordeste Sudeste Sul 14.747.249 12.023.771 1990 2008

CentroOeste

Brasil

Fonte: IBGE.

13 Outro dado revelador dos caminhos da produo agropecuria brasileira o relativo expanso da criao de bovinos no Brasil, atividade que se caracteriza pelo carter extensivo, e cujo nmero de cabeas j maior que o nmero de brasileiros. Neste caso observamos que a criao de bovinos expandiu-se em todas as regies do pas, mas com destaque para o Centro-Oeste que possui o maior rebanho bovino do pas e o Norte que teve maior crescimento no perodo (triplicou o rebanho) e assumiu a condio de segundo maior rebanho do pas, ultrapassando o Sudeste. Grfico 14 - Evoluo e distribuio espacial do rebanho bovino (1.000 cabeas) - Brasil 1990-2008
Bovinos - Nmero de Cabeas - Brasil - 1990-2008 250.000.000 202.287.191 200.000.000 150.000.000 100.000.000 50.000.000 0 Norte Nordeste Sudeste Sul CentroOeste Brasil 147.102.314 1990 2008

Fonte: IBGE.

Por fim, vale registrar tambm o grande crescimento da produo de madeira no pas a partir da silvicultura, isto a produo em escala industrial de rvores para fabricao de papel e celulose ou carvo vegetal, ou ainda madeira para a indstria moveleira, da construo civil, entre outros usos. Grfico 15 - Produo de Madeira Brasil 1990-2008
Quantidade Produzida - Madeira em Tora (m) - Brasil e Regies 1990-2008

120.000.000 100.000.000 80.000.000 60.000.000 40.000.000 20.000.000 0 Norte Nordeste Sudeste Sul

101.261.900 1990 47.024.280 2008

CentroOeste

Brasil

Fonte: IBGE.

14 De acordo com o grfico 15, a produo de madeira mais que dobrou, expandindo-se em todas as regies, mas, sobretudo, no Nordeste. J quando consideramos somente a produo de madeira voltada para a produo de papel e celulose que representa 57,5% da produo total de madeira verificamos que o aumento foi da ordem de 76%, mais uma vez com destaque para o Nordeste, onde a produo era irrisria nos anos 1990 e expandiu-se quase 100 vezes ao longo do perodo. Grfico 16 - Produo de madeira para papel e celulose Brasil 1990-2006
Q uantidade Produz ida - Made ira para Pape l e Ce lulose (m) Brasil e Re gies - 1990-2008

70.000.000 60.000.000 50.000.000 40.000.000 30.000.000 20.000.000 10.000.000 0 Norte Nordeste Sudeste Sul CentroOeste

58.181.842

32.952.856

1990 2008

Brasil

Fonte: IBGE.

O quadro 2, abaixo, formulado por um instituto ligado ao agronegcio revelador das estratgias produtivas dominantes hoje no Brasil. Quadro 2 Deslocamento das principais culturas no Brasil

15 Segundo dados do Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento, as trs principais culturas mencionadas acima soja, cana e milho respondem por 52% do PIB Agrcola do pas. Por fim, vale dizer que estas transformaes tm sido impulsionadas com base em recursos pblicos: dos estabelecimentos que receberam financiamento, 85% tiveram como uma das fontes algum programa governamental com 57,6% dos recursos. Alm disso, este financiamento profundamente desigual: em 2006, os estabelecimentos com 1.000 ou mais hectares (0,9% do total) captaram 43,6% dos recursos e os com at 100 hectares (88,5% dos que obtiveram financiamento) captaram 30,42% dos recursos. Segundo Sauer (2010) o agronegcio recebeu R$ 65 bilhes para custeio e investimentos para a safra 2008/2009, o que 500% superior aos R$ 13 bilhes concedidos agricultura familiar. Ainda segundo o autor, entre 2007 e 2009 o Tesouro Nacional gastou R$ 2,3 bilhes de reais com a securitizao da dvida agrcola e a Receita Federal estima em R$ 8,85 bilhes a renncia fiscal relacionada a iseno de impostos concedidas ao setor agropecurio. Isto significa dizer que o dinheiro extrado pelo governo do povo brasileiro atravs do impostos est financiando nossa insegurana alimentar. 4. A persistncia da violncia, da explorao do trabalho e da devastao ambiental no campo brasileiro como caractersticas centrais de nosso modelo agrrio. O modelo agrrio dominante no Brasil sempre foi marcado pela violncia, a intensa explorao do trabalho e a devastao ambiental e nos ltimos anos estas caractersticas s tm sido reforadas pelas transformaes apontadas acima. Os dados sobre a violncia no campo levantados pela CPT ao longo dos ltimos 25 anos apontam que 2.709 famlias, em mdia, foram anualmente expulsas de suas terras; 63 pessoas, em mdia, foram anualmente assassinadas no campo brasileiro por lutar por um pedao de terra; 13.815 famlias, em mdia, anualmente foram despejadas atravs de aes exaradas pelo Poder Judicirio de alguma unidade da federao e cumpridas pelo poder Executivo por meio de suas polcias; 422 pessoas, em mdia, foram anualmente presas no Brasil por lutar pela terra; 765 conflitos, em mdia, ocorreram anualmente diretamente relacionado luta pela terra; 92.290 famlias, em mdia, foram anualmente envolvidas diretamente em conflitos por terra! (PORTO-GONALVES & ALENTEJANO, 2010).

16 Grfico 17 Assassinatos no Campo por Regio Brasil 1985 a 2009


Assassinatos - Brasil - 1985-2009 Centro-Sul 19%

Nordeste 18%

Amaznia 63%

Fonte: LEMTO-UFF e GeoAgrria-UERJ com base nos dados da CPT.

Na fronteira entre a violncia e a explorao do trabalho temos a questo do trabalho escravo, posto que se trata ao mesmo tempo de uma violao dos direitos humanos e uma gigantesca fonte de lucro para os empresrios. Mais uma vez, os dados da CPT so eloqentes ao apontar para o crescimento desta prtica nos ltimos anos. Grfico 18 - Trabalho Escravo Brasil 1985-2006
Nmero de Ocorrncias de Trabalho Escravo por ano - Brasil - 1985-2006 300 250 200 150 100 50 0 229 237 150 22 23 28 30 29 23 48 275 262

17

15

13

18

20

17

16

17

20

1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Fonte: LEMTO-UFF e GeoAgrria-UERJ com base nos dados da CPT.

Vale ressaltar que no setor sucroalcooleiro que estes tm se concentrado.


Em 2007, dos 5.974 trabalhadores resgatados da escravido no campo brasileiro, 3.060, ou 51%, foram encontrados no monocultivo da cana de acar. Em 2008, dos 5.266 resgatados, 2.553, ou 48% dos trabalhadores mantidos escravos no pas estavam em plantaes de cana. (Mendona, 2010)

A autora chama ateno ainda para o fato de que muitas das usinas que tm sido flagradas utilizando trabalho escravo tm participao acionria do BNDES ou obtiveram financiamento pblico.
Em 2009, o Ministrio do Trabalho inclui grandes usinas na chamada "lista suja" do trabalho escravo. Uma delas foi a Brenco, que tem participao acionria de 20% do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social). Entre 2008 e 2009, o BNDES liberou R$ 1 bilho para usinas da Brenco em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Gois. Ao mesmo tempo, o Grupo Mvel expediu 107 autos de infrao contra a empresa, que presidida pelo ex-presidente da Petrobras Henri

17
Philippe Reichstul. Apesar da prtica de trabalho escravo, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, anunciou a continuidade do financiamento para a Brenco. Em 31 de dezembro de 2009, foi a vez do grupo Cosan -- a maior empresa do setor sucroalcooleiro do pas, com produo anual de 60 milhes de toneladas de cana. Apesar da prtica de trabalho escravo, a Cosan recebeu R$ 635,7 milhes do BNDES em junho de 2009, para a construo de uma usina de etanol em Gois. O BNDES manteve o financiamento para a Cosan, mesmo aps a evidncia de trabalho escravo. A Cosan possui 23 usinas, controla os postos da Exxon (Esso do Brasil) e teve um faturamento de R$ 14 bilhes de reais em 2008. (Mendona, 2010)

No que diz respeito devastao ambiental, dois aspectos podem ser considerados centrais: o desmatamento promovido pela expanso da fronteira agrcola e o uso cada vez mais intenso de agrotxicos na agricultura brasileira. Em relao ao desmatamento resultante da expanso da fronteira agrcola, dados do Laboratrio de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig), da Universidade Federal de Gois, indicam que o ritmo atual de desmatamento do Cerrado poder elevar de 39% para 47% o percentual devastado do bioma at 2050. A pesquisa demonstra ainda que a destruio do Cerrado coloca em risco a disponibilidade de recursos hdricos para o Pantanal e a Amaznia, pois estes biomas esto interligados. (Mendona, 2010) Os mapas a seguir indicam a correlao entra a expanso da fronteira agropecuria brasileira e o desmatamento crescente do cerrado e da Amaznia. Mapas 2 e 3 A expanso da pecuria para a Amaznia

18 Mapas 5 e 6 A expanso da soja para a Amaznia

Quanto aos agrotxicos digno de nota que o Brasil se transformou nos ltimos dois anos no maior consumidor mundial de agrotxicos, ultrapassando os EUA, conforme revela a tabela abaixo. Consumo de Agrotxicos (bilhes de U$) 2007 e 2008 Pas 2007 Ranking 2008 Ranking Brasil EUA 5,4 6,5 (Fonte: Andef, 2009) Isto se deve, em larga medida, ao crescimento das lavouras de exportao que so as que mais consomem agrotxicos, conforme tabela abaixo, embora seja importante registrar que os produtos alimentares tambm esto sendo intensamente contaminados. 2 1 7,1 6,6 1 2

19

Concluso A anlise empreendida ao longo do presente texto coaduna-se com a desenvolvida em recente texto por Almeida (2009), para quem os atores polticos ligados ao agronegcio tm desenvolvido forte presso poltica no sentido de ampliar o volume de terras disposio da expanso do setor. Segundo o autor, as agroestratgias so um conjunto articulados de discursos, aes e mecanismos construdos por agncias multilaterais e conglomerados financeiros e agroindustriais para incorporar novas terras para a expanso da produo de commodities agropecurias.
No caso brasileiro, faz parte das agroestratgias a disseminao de uma viso triunfalista dos agronegcios articulada com uma imagem hiperbolizada do Brasil e de seu potencial agrcola. De acordo com esta formulao, no Brasil a terra seria um bem ilimitado e permanentemente disponvel. (ALMEIDA, 2009: 68)

O foco principal dessas agroestratgias so as reas de preservao ambiental, as terras indgenas, quilombolas, de assentamentos rurais e de uso comum, vistos como obstculos a serem removidos,

20 visando ampliar a oferta de terras no mercado de terras que vive momento de intenso aquecimento, derivado inclusive do crescente interesse de grupos estrangeiros na aquisio de terras no Brasil Segundo o autor, as principais agroestratgias em curso so: (1) redefinio da Amaznia Legal, com a excluso de Mato Grosso, Tocantins e Maranho, possibilitando a incorporao imediata de 145 milhes de ha, em funo da reduo da rea destinada preservao ambiental; (2) reduo de 80% para 50% na rea de reserva legal da Amaznia; (3) liberao de crdito para quem praticou crime ambiental, evitando que os agronegociantes fiquem sem acesso a estes recursos; (4) privatizao de terras pblicas com at 1500 ha sem licitao na Amaznia MP 422/2008; (5) reduo da faixa de fronteira onde proibida a compra de terras por estrangeiros de 150 para 50km; (6) revogao do dispositivo constitucional que prev a titulao das terras de remanescentes de quilombos. Embora Almeida no se refira criminalizao dos movimentos sociais, levada a cabo pela mdia e pelo Estado brasileiro, vide CPI do MST, creio que podemos inclu-la entre essas agroestratgias, visto que faz parte dos processos de afirmao do agronegcio, contra os que defendem a democratizao da terra no Brasil. Da mesma forma, pode se entender assim a resistncia oposta pelo agronegcio atualizao dos ndices de produtividade que balizam a possibilidade de desapropriao de terras para fins da reforma agrria, pois como nos lembra Medeiros:
Terras improdutivas ou produzindo pouco fazem parte das necessidades criadas pela expanso das atividades empresariais. Transform-las em reas passveis de desapropriao, com a possibilidade de se transformarem em assentamentos, significa subtra-las do mercado e exclu-las do cerne desse circuito de reproduo (MEDEIROS, 2010: 4)

Por outro lado, os segmentos que defendem a reforma agrria e a justia no campo tm afirmado a importncia da reafirmao desta luta, assim como associado-a a outras bandeiras, como a causa ambiental, a soberania alimentar e a luta pela democracia. Carter (2010) destaca cinco contribuies que o MST tem dado para o fortalecimento da democracia no Brasil: combate a desigualdade; fortalece a sociedade civil; promove a cidadania; estimula a participao social e poltica; produz utopia. Infelizmente, esta luta no tem se traduzido no avano da reforma agrria no Brasil, pois como afirma o mesmo Carter:
As medidas de reforma agrria adotadas at o momento procuravam satisfazer exigncias imediatas, neutralizar conflitos locais e, acima de tudo, evitar um confronto maior com os grandes proprietrios de terra. Dessa forma, elas no representaram aes contundentes com o objetivo de transformar o sistema fundirio e suas assimetrias nas relaes de poder. O efeito distributivo das polticas agrrias do Brasil, apesar de significativo em alguns municpios, tem tido um impacto mnimo sobre a estrutura agrria do pas. Mesmo com as iniciativas promovidas no primeiro governo Lula, a reforma agrria brasileira , em termos proporcionais, uma

21
das menores de toda a Amrica Latina. (...) No total, esse processo de reforma beneficiou 5% de toda a fora de trabalho agrcola e distribuiu 11,6% do total de terras cultivveis. (Carter, 2010: 60/61)

E isto no se d por falta de terras disponveis para a reforma agrria, pois segundo Delgado (2010) persistem hoje no Brasil 120 milhes de ha improdutivos autodeclarados e 172 milhes de ha de terras devolutas. Ao invs de fazer a reforma agrria nas reas onde as lutas pela terra se concentram, o que os sucessivos governos brasileiros vm fazendo empurrar as famlias assentadas para a fronteira agrcola, no que denominamos de descolamento geogrfico entre as lutas pela terra e a poltica de reforma agrria (Alentejano, 2004) e outros autores tambm tm destacado.
...os assentamentos de reforma agrria esto concentrados nas regies de fronteira e nas partes mais empobrecidas do pas (...) Mais de 70% das terras repartidas entre 1985 e 2006 esto na Amaznia, a dizer, na regio Norte e os estados vizinhos de Mato Grosso e Maranho. No entanto, a presso mais intensa pela reforma agrria aconteceu nas regies Sul e Sudeste do pas. Entre 1988 e 2006, essas duas regies do pas de fato as mais desenvolvidas e onde o valor das terras mais alto registraram a metade das ocupaes de terra, mas s tiveram o assentamento de 9% das famlias, numa rea total que apenas alcanou os 5% do territrio distribudo pelo Estado. (CARTER & CARVALHO, 2010: 294) Com base nisso, os movimentos sociais e demais entidades reunidas no Frum Nacional pela Reforma Agrria e a Justia no Campo vm defendendo o estabelecimento do limite de 35 mdulos fiscais para o tamanho da propriedade da terra no Brasil. Com base nessa medida, poderiam ser destinados mais de

200 milhes de hectares para a reforma agrria, conforme a tabela e o Grfico abaixo. Imveis atingidos pelo limite da propriedade
Brasil N de Imveis 50.118 Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste % dos Imveis 2 rea Total (ha) 203.643.369 % da rea Total 39,4

N de Imveis rea Total (ha) 5.660 61.905.062 5.578 25.234.855 12.034 20.285.969 7.556 10.593.553 19.004 86.233.930

Fonte: GeoAgrria, com base em dados do Incra.

22 Grfico 19 Imveis e rea atingida pelo Limite de 35 Mdulos por Regio


Imveis Atingidos pelo Limite de 35 Mdulos por Regio
Norte 11% Nordeste 11%

rea (ha) dos Imveis Atingidos pelo Limite de 35 Mdulos por Regio
Norte 30% Centro-Oeste 43%

Centro-Oeste 39%

Sudeste 24% Sul 15% Sul 5% Sudeste 10%

Nordeste 12%

Fonte: GeoAgrria, com base em dados do Incra.

E assim, chegamos ao sculo XXI, sem que a reforma agrria seja prioridade dos sucessivos governos, ditatoriais ou democrticos, mas sem que deixe de ser um espectro permanentemente presente na pauta poltica nacional, posto que: O debate em vigor no Brasil sobre a reforma agrria toca assuntos que ultrapassam a questo fundiria e o desenvolvimento rural. Os assuntos em pauta levantam problemas mais profundos da sociedade brasileira. Na alvorada do sculo XXI, a reforma agrria continua sendo parte de uma conversao complexa e contenciosa sobre o futuro do Brasil suas promessas e necessidades, seus temores e sonhos. (Carter, 2010: 71).

Bibliografia ALENTEJANO, Paulo. Os conflitos pela terra no Brasil: uma breve anlise a partir dos dados sobre ocupaes e acampamentos. in CPT. Conflitos no Campo Brasil 2003. Goinia: CPT, 2004. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Agroestratgias e desterritorializao os direitos territoriais e tnicos na mira dos estrategistas dos agronegcios . In O Plano IIRSA na viso da Sociedade Civil Pan-Amaznica. 2009. CARTER, Miguel. Desigualdade social, democracia e reforma agrria no Brasil . In CARTER, Miguel. (org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrria no Brasil . So Paulo: Editora Unesp, 2010. CARTER, Miguel. Desafiando a desigualdade: contestao, contexto e conseqncias. In CARTER, Miguel. (org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrria no Brasil. So Paulo: Editora Unesp, 2010. CARTER, Miguel & CARVALHO, Horacio Martins de. A luta na terra: fonte de crescimento, inovao e desafio constante ao MST. In CARTER, Miguel. (org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrria no Brasil. So Paulo: Editora Unesp, 2010. DELGADO, Guilherme Costa. A questo agrria e o agronegcio no Brasil . in CARTER, Miguel. (org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrria no Brasil . So Paulo: Editora Unesp, 2010. FONTES, Virginia. O Brasil e o capital-imperialismo teoria e histria . Rio de Janeiro: EPSJV, UFRJ, 2010. HARVEY, David. O novo imperialismo. So Paulo: Loyola, 2004. MEDEIROS, Leonilde S. de. A polmica sobre a atualizao dos ndices de produtividade da agropecuria. 2010 (Consultado em http://www.mst.org.br/node/9041). MENDONA, Maria Luisa. Avana o monoplio da terra para produo de agrocombustveis. Revista Caros Amigos, 2010.

23 PORTO-GONALVES, Carlos Walter & ALENTEJANO, Paulo R. R. A violncia do latifndio moderno-colonial e do agronegcio nos ltimos 25 anos. in CPT. Conflitos no Campo Brasil 2009. Goinia: CPT, 2010. SAUER, Srgio. Dinheiro pblico para o agronegcio. Braslia: mimeo. 2010.

Você também pode gostar