Histria

Estevo de Rezende Martins Universidade de Braslia

1. Cultura, cincia, teoria e filosofia

O sc. XX consagrou quatro abordagens da idia de histria. Essas abordagens lidam com duas acepes bsicas de histria. A primeira, e elementar, que se relaciona primariamente com o aspecto cultural e com a reflexo filosfica, considera a histria como o processo temporal interpretado e vivenciado pelo homem pelo agente racional humano no presente, como sentido de que tem conscincia. A segunda, construda pelas opes do mtodo de investigao, o fundamento da cincia histrica e de epistemologia, e toma a histria como a reconstruo do passado humano, individual, grupal ou social, mediante procedimentos previamente convencionados de controle das fontes, se forma a que se elaborem interpretaes explicativas fundamentadas do estado de coisas presente. A explicao fundamentada se estrutura em argumentos, expressos em formato narrativo. O estado de coisas presente relativo ao tempo respectivamente elegido e delimitado como objeto de exame. O termo "histria", na lngua portuguesa como nas neolatinas, de modo geral remete a trs sentidos distintos, articulados com as abordagens mencionadas. O primeiro, e mais generalizado, refere-se ao conjunto das aes humanas no tempo, cuja efetuao se deve a razes e a decises. Esse conjunto habitualmente chamado de histria, na linguagem comum e na especializada. O segundo sentido diz respeito ao procedimento formal de constituio do conhecimento cientfico relativo a partes desse conjunto. Tambm aqui se usa o termo "histria", embora se tenha registrado mais recentemente o uso crescente das expresses "cincia histrica" e "histria como cincia". Trata-se aqui de um esforo metdico de distinguir o carter cientfico (controlvel) do conhecimento obtido por procedimentos metdicos de investigao da acepo de senso comum. O terceiro sentido do uso do termo "histria" tem a ver com o acervo produzido pela cincia histrica sob a denominao de "historiografia". Tambm a esse conjunto de documentos, majoritariamente em forma escrita (mas no exclusivamente, pois inclui por exemplo as diversas variaes do documento visual composto, como os filmes, notadamente os documentrios), se chama "histria". Esta reflexo lida com a histria em duas das acepes lembradas acima: a) preliminarmente, a histria como cultura isto , como pensamento e conscincia da experincia do tempo elaborada e interiorizada pelo homem; b) a histria como cincia, como especialidade cognitiva formalizada de maneira epistmica para construir e enunciar uma interpretao explicativa fundada da experincia humana do tempo enquanto ao. Para a primeira como para a segunda, toma-se como base emprica a produo historiogrfica notadamente da segunda metade do sc. XX. Para pensar de forma fundamentada necessrio conhecer e dominar as regras e os princpios desse pensar, ou seja: um conhecimento que no se constitui sem que o pensamento reflita sobre si mesmo. Assim, a racionalidade do pensamento histrico requer, em seu procedimento cientfico, um saber metaterico, reflexivo, no estilo da teoria da histria enquanto teoria da natureza do conhecimento histrico em geral e

de seu formato cientfico em particular. Esse objetivo epistemolgico exige, por sua vez, a devida investigao dos fundamentos do pensamento histrico. Isso porque qualquer cincia impe a seus praticantes prestar contas a si mesmos e a todos os demais sobre o respectivo modo de pensar A cincia da histria inclui, por conseguinte, em seu cnone metodolgico, a "teoria" como lugar dessa prestao de contas, e no faltam historiadores que tenham assumido essa obrigao (Cf., por exemplo, Vainfas e Cardoso 1997). Como as cincias sociais em geral, a historiografia passou por um progresso extraordinrio depois da segunda guerra mundial. possvel que tenha faltado, no entanto, impulso suficiente para criar o que o historiador alemo Jrn Rsen chamou de a "matriz disciplinar" indispensvel ao progresso global da historiografia como investigao social auto-suficiente e coesa. Embora no se possa afirmar que a histria seja disciplina recente, os contornos que assumiu, nas duas fases decisivas do sc. XX, nos anos vinte-trinta e a partir dos anos cinqenta, constituem uma renovao e mesmo uma redefinio contempornea.

2. A poca dos grandes paradigmas

No sc. XIX as concepes de histria e de historiografia passaram por uma mudana gigantesca e decisiva. Consagrou-se assim o sc. XIX como "o sculo da histria". Sem dvida foi ainda mais decisivo embora essa perspectiva nem sempre tenha estado presente o salto dado no segundo tero do sc. XX e seus prolongamentos at nos anos setenta. No obstante, a anlise dos progressos da historiografia em nosso tempo deve ser feita mediante o contraste com o sc. XIX, sem o qual no se pode perceber o alcance das mudanas do sc. XX. Se o sc. XIX tem, em todo caso, uma importncia transcendental para as origens da disciplina da historiografia em seu estado atual tal se deve ao fato de que ocorreu durante ele um fenmeno nico, de desdobramentos porm complexos. Trata-se do abandono das concepes relativas investigao e escrita da histria que formaram a tradio europia praticamente desde o renascimento e talvez mesmo desde a antigidade clssica. As diversas escolas e correntes historiogrficas do sc. XX coincidem pelo menos em um ponto: deixam de considerar a histria como uma crnica baseada nos testemunhos legados pelas geraes anteriores e entendem-na como uma investigao, pelo que a palavra histria recupera seu sentido originrio em grego (investigao). A evoluo decisiva da historiografia aparece com o que se pode chamar de fundamentao metdico-documental, basilar para a disciplina "acadmica" contempornea, produzida pelos tratadistas do sc. XIX e da primeira dcada do sc. XX. Tem-se aqui a origem da grande corrente historiogrfica que se chamou de forma algo exagerada mas no totalmente imprpria de historiografia positivista, intimamente entrelaada com a forte tradio do historicismo alemo. no sc. XIX que aparecem os primeiros grandes tratados do que se poderia chamar de normativismo histrico, um tipo de reflexo novo sobre a histria, chamado de Historik por Johann Droysen. Essa mudana profunda e duradoura do horizonte dos estudos historiogrficos, cuja influncia se estende at os anos trinta do sc. XX, habitualmente creditada s

contribuies trazidas por uma corrente chamada, sem esforo maior de preciso, de positivismo. De outro lado, o historicismo alemo amide considerado a maior contribuio do sc. XIX em matria de concepes da natureza do histrico e da identidade da historiografia. Ambas etiquetas requerem cuidadosa modulao. Com efeito, o que se chama de "historiografia positivista" no deixa de estar interpretado por um equvoco persistente. Muitas vezes chama-se de positivista, sem mais nem menos, uma concepo da historiografia essencialmente narrativista, episdica (factual), descritiva, fruto de uma erudio bem moda do sc. XIX. Na realidade, esse tipo de historiografia o exemplo mais tpico da "histria tradicional", mas no tem porque ser necessariamente confundido com a historiografia "positivista". A historiografia positivista a dos "fatos" estabelecidos mediante os documentos, indutivista, narrativa, por certo, mas tambm sujeita a um "mtodo". A escola que se costumava chamar de "positivista" pode ser tambm denominada com mais propriedade de "escola metdica", j que sua preocupao nmero um a de dispor de um mtodo. Essa escola, que fundamentava o progresso da historiografia no trabalho metdico das fontes, sempre mostrou a mais rspida averso a qualquer "teoria" ou "filosofia". Isso no diminui todavia em nada sua dependncia imediata da concepo positivista da cincia. Essa a razo pela qual pode ser chamada de escola pragmtico-documental ou metdico-documental. A "disciplina" da historiografia, no sentido moderno do termo, foi fundada, pois, na transio do sc. XIX para o XX, mediante um primeiro corpo de regras e normas metodolgicas fixado sob influncia do positivismo e do historicismo. Nas dcadas de 1920 e sobretudo de 1930, no entanto, mudanas fundamentais se produziram tanto na maneira de considerar as formas constitutivas da historiografia quanto em muitos outros campos da criao intelectual. A transio da primeira concretizao da disciplina historiogrfica na linha metdico-historicista para as novas concepes que rejeitam os fundamentos postos pela historiografia do sc. XIX s vem a produzir-se no entreguerras, mais precisamente nos anos 1930, e sua consagrao afinal ocorre apenas aps a segunda guerra mundial, nos anos 1940-1950. Os trs grandes ncleos da inovao historiogrfica que predominaram na segunda metade do sc. XX a historiografia marxista, a escola dos Annales e a historiografia quantitativa surgiram e se articularam, certo, em torno de centros de interesse bem diversos e alcanaram graus muito distintos de coeso e homogeneidade. O paradigma relativamente unitrio para a historiografia conformado no sc. XIX foi sucedido no sc. XX, no por um outro, mas por vrios outros, criando uma situao nova. Parte substancial desta novidade est no apenas na multiplicidade de paradigmas, mas especialmente na circunstncia de que os paradigmas operaram de modo praticamente simultneo, sem constituir uma seqncia de substituies. Desde a perspectiva com que podemos avaliar hoje essa histria, pode-se ver que os anos posteriores segunda guerra mundial representaram, no desenvolvimento da historiografia contempornea, uma verdadeira revoluo, paralela e conexa com fenmeno anlogo ocorrido nas cincias sociais e nas cincias em geral. Existe contudo um pormenor diferenciador, neste perodo peculiar: enquanto o marxismo e o quantitativismo podem ser considerados ncleos paradigmticos com ampla projeo no campo geral das cincias sociais, de onde evoluram at alcanar a historiografia, no caso do marxismo por certo com determinadas conotaes particulares, a escola dos Annales foi o primeiro movimento historiogrfico do sc. XX que se origina no prprio

campo da investigao histrica. (Costuma-se indicar o ano de 1929 como a data de nascimento da corrente de trabalho historiogrfico que acabou por ser conhecida como a "escola dos Annales". Quanto a sua difuso, contudo, somente a partir de 1950 que ela se torna referncia. Neste ano realiza-se em Paris o 9.o Congresso Mundial das Cincias Histricas, durante o qual as novas concepes historiogrficas tiveram, por assim dizer, sua efetiva estria mundial. Foi nos anos 1950 que a historiografia brasileira comea a mostrar os primeiros sinais de recepo desta tendncia.) O marxismo, por sua parte, foi a teoria das cincias humanas que deu historiografia uma dimenso de maior alcance no campo terico geral da realidade histrica. A contribuio dos Annales significou um desenvolvimento extraordinrio de temas novos e um interesse marcante pelo emprego de novos tipos de fonte. Ambas as tendncias se reforaram ao longo da evoluo da escola, promovendo o que de particular importncia um relacionamento inteiramente renovado da prtica historiogrfica com as cincias sociais como a geografia, a sociologia, a antropologia, a economia. Esse relacionamento interdisciplinar, no perodo ureo de influncia da escola, f-la predominar ao ponto de poder falar em uma preeminncia "imperial" dos Annales. a alguns historiadores desta escola como nos crits sur l'Histoire (1969) de Fernand Braudel, por exemplo que se devem os primeiros passos de formulao do conceito de "histria total", cunhado pela pretenso de abranger todos os aspectos da ao racional humana ou pelo menos de deixar o mnimo deles de lado por oposio aos conceitos, desgastados pela iluso positivista, de "histria universal" ou "histria geral". Do interior mesmo da escola jamais saiu, todavia, uma aproximao sistematizada de uma teoria histrica da sociedade. Os Annales produziram, de modo prtico (se no pragmtico) trabalhos metodicamente inovadores, desbravaram campos longamente tidos por estranhos ao saber histrico, por assim dizer romperam com os escrpulos de abordar setores do agir humano que parecessem escapar ao olhar histrico notadamente a ruptura do tabu referente ao documento escrito. Poucos formularam, contudo, contribuies tericas quanto natureza do conhecimento histrico, constituio da cincia histrica, enfim histria como disciplina por si mesma. A influncia do marxismo foi profunda na trajetria das cincias sociais, particularmente desde os anos 1930 e, em especial, dos decnios que e se seguiram segunda guerra mundial. Essa expanso da metodologia marxista nas cincias sociais em seu conjunto teve, no caso da historiografia, um impacto talvez ainda maior, pela natureza mesma da construo terica marxista, cujo fundamento a anlise da histria. Nos pases ocidentais falou-se de uma historiografia marxista francesa (Labrousse, Vilar, Lefebvre, Soboul, Bouvier), de uma inglesa (Dobb, Hill, Hobsbawm, Hilton, Thompson, Samuel, Anderson), de uma italiana (Sereni, Zangheri, Procacci, Romeo, Barbagallo), de uma espanhola (Fontana, Tun, Elorza, Prez Garzn, Ruiz), de uma brasileira (Caio Prado Jr., Gorender, Nelson Werneck Sodr, entre outros). Diversamente da escola dos Annales, cujo mbito quase que exclusivamente francs, o marxismo possui uma difuso e uma importncia de natureza supranacional. No entanto, atravs um conjunto de princpios comuns, deixa ela perceber a marca nacional concreta que inspira o desenvolvimento geral da filosofia e da teoria social marxista em cada caso. O materialismo histrico se enuncia na obra de Marx e Engels na encruzilhada decisiva dos anos quarenta do sc. XIX. Sua primeira formulao elaborada aparece j na "Ideologia Alem", escrita por Marx e Engels em 1845-46, mas publicada quase um

sculo depois. Pierre Vilar recorda que a obra de Marx "introduziu a histria no campo da cincia", embora o conceito de histria desde uma perspectiva marxista ainda no estivesse acabado. Indicou tambm que Marx o "primeiro estudioso que props uma teoria geral das sociedades em movimento", o que constitui, sem dvida, uma brilhante forma de remeter a uma definio do histrico que faz justia ao entendimento de Marx a esse respeito. Vilar insiste ainda que uma "teoria geral" no uma filosofia. O mtodo de anlise marxista de todo o processo histrico tem como eixo a dialtica. No porm simples explicar o que se quer dizer com dialtico, para alm da idia das contradies inerentes a toda realidade tese e anttese e sua superao em nova sntese. Para o marxismo, essas contradies no se produzem, como queria Hegel, em um movimento de idias, mas sim nas condies materiais bsicas. As "relaes de produo" so a categoria absolutamente distintiva de cada estgio histrico. Tal relaes de produo so um reflexo do estado da "foras produtivas", mas aquelas no esto necessariamente sujeitas a estas, de forma que em determinadas conjunturas histricas ambos elementos entram em contradio produzindo um conflito bsico que d lugar mudana histrica. Os estgios histricos determinados pela natureza das foras e relaes de produo existentes so pensados pelo marxismo como "modos de produo", que so tanto uma construo categorial e um modelo metodolgico como, em termos reais, um estgio histrico. No plano das realidades histricas concretas, todavia, os modos de produo no se apresentam nunca da maneira que o modelo parece estabelecer, mas com peculiaridades que obrigam a introduzir o conceito de "formao social" especfica. Josep Fontana caracterizou o desenvolvimento do materialismo histrico, desde a morte de Friedrich Engels em 1895 at os dias de hoje como um "duplo processo de desnaturalizao e de recuperao", em boa parte simultneos. Com a morte de Engels sobrevm uma primeira crise, em cujo contexto se desenvolve um revisionismo como o representado por Eduard Bernstein na Alemanha. O marxismo, na realidade, levou muitos anos a chegar plenamente aos crculos acadmicos, em especial no campo da historiografia. A historiografia marxista francesa centrou sua ateno em determinados temas escolhidos: a histria do movimento operrio tomando como referncia inaugural a revoluo francesa abrindo assim o espao das muitas variaes conhecidas sob a designao genrica de histria social. Um aspecto, enfim, que no pode ser deixado de lado o da importncia da histria luz da teoria marxista, ou os aspectos sociais da prpria prtica do historiador. Alm de Vilar, recorde-se Balibar, na esteira de Althusser, G. Dhoquois e Jean Chesnaux, cujo texto sobre a impossibilidade de se ignorar o passado concreto trouxe importante corretivo perspectiva marxista da utopia revolucionria. Desde a segunda guerra mundial surge na Inglaterra uma extraordinria gerao de historiadores que estavam em princpio ligados ao partido comunista britnico. Sob a inspirao e o ensino de Maurice Dobb e mais distante de R. H. Tawney, criou-se uma das "escolas marxistas" cuja contribuio para a historiografia social das mais densas e coesas, sem estar entrevada por rigidez metdica e demonstrando possuir vasta capacidade de renovao. O marxismo foi determinante para a renovao da historiografia britnica enraizada, at a segunda guerra mundial em sua sempiterna

tradio liberal (whig) cujos expoentes eram A. J. P. Taylor, H. Trevor-Ropper ou G. Elton. Mesmo que se fale indiscriminadamente de uma historiografia marxista inglesa, certo que estamos diante de autores diversos, cujas perspectivas historiogrficas no coincidem monoliticamente. Um primeiro grupo pode ser visto nos historiadores que de uma ou outra forma estiveram ligados ao partido comunista e se exprimiram mais freqentemente na New Left Review, dentre os quais se destaca Edward P. Thompson, certamente o mais original e criativo, responsvel por marcante evoluo no uso do aparato conceitual de inspirao marxiana, ao dedicar-se s questes culturais, desde um ponto de vista anti-estrutural, abordando as formas de representao e manifestao dos contedos de classe. O aspecto mais significativo desse conjunto de marxistas britnicos est sobretudo no que produziram em termos de fundamentao conceitual. A maioria dos historiadores vinculados a essa tendncia influenciou tanto a pesquisa histrica concreta quanto a definio de processo histrico e dos fundamentos da disciplina. Destaca-se nesse grupo a obra de Eric J. Hobsbawm, sem a menor dvida a de maior amplitude de viso e a mais abrangente de temas no umbilicalmente presos histria britnica. Destaque merece tambm a extensa e tanto ou mais influente obra de Edward P. Thompson, angular para a histria do operariado ingls e determinante da redefinio dos termos de influncia do pensamento marxista na historiografia, com sua Misria da Teoria, em que polemiza duramente com Louis Althusser. Thompson rechaa veementemente o que chama de "teoricismo" de Althusser quanto a uma histria que concebe "assepticamente", ignorando o imperativo da base emprica da investigao, sem a qual nenhuma teoria toma assento. Trata-se ainda de uma polmica acerca da perspectiva "culturalista" que Thompson adota em sua anlise, questo por certo a mais discutida inclusive dentro do campo marxista. Thompson sempre insistiu no processo de criao de uma cultura especfica de classe mediante as lutas sociais. Para ele, classe s surge no processo de combate social, ao longo do qual se constituem formas culturais peculiares nos e dos membros da classe. Classe no , pois, uma estrutura mas uma cultura. contudo equivocado ver nisso tudo um conflito irredutvel entre dois marxismos, o ingls e o francs. A polmica com Althusser fora precedida por outras entre os historiadores ingleses sempre a propsito da interpretao da histria da Gr Bretanha e Thompson no oferece uma alternativa ao teoricismo que critica. Da crise geral do marxismo comeou-se a falar no final da dcada de 1970. At esse momento j se dispunha de um substancial acervo de produo historiogrfica de inspirao marxizante. Os historiadores consideravam que o marxismo continuava sendo um instrumento de anlise adequado, desde que depurado de seus dogmatismos e das amarras partidrias aps profunda autocrtica. O marxismo dos ltimos vinte anos do sc. XX abriu-se assim diversidade e pluralidade das cincias sociais, libertada das coeres de fidelidade partidria e inovadora na pesquisa e nos campos de aplicao. O quantitativismo na historiografia uma corrente que marcou a produo historiogrfica dos anos 1960 e 1970 em muitos pases, em especial nos Estados Unidos (mas tambm na Frana), afetando campos de estudo histrico amplos. Pode-se distinguir uma metodologia quantificadora aplicvel a uma vasta rea de estudos sciohistricos, e no apenas ao mbito prprio historiografia, e um paradigma quantitativista da explicao do social, questo que apresenta implicaes cognitivas muito mais fortes e abrangentes.

O movimento quantitativista iniciou-se na histria econmica, na qual essencial at hoje, pelo menos desde os anos 1930. No panorama atual da historiografia, raros so os setores de investigao cujo horizonte seja a quantificao ou, mais ainda, o quantitativismo, mesmo no caso particular da histria econmica. Por isso convm proceder, na histria chamada quantitativista, malgrado sutilezas de pormenor, de dois grandes grupos de orientao. Um o representado pela cliometria, termo cunhado para referir o quantitativismo estrito, expresso na matematizao de modelos especficos de comportamento temporal, pretendendo "explicar" formalmente os processos histricos de longo prazo. O outro se pode definir como uma histria estrutural-quantitativista, que recorre em ampla medida estatstica, informatizao, quantificao, enfim, de uso instrumental, subsidiando a especificao de "estruturas" econmicas, sociais ou culturais, no quadro de explicaes mais complexas do fenmeno social da histria, no redutvel linguagem formal da matemtica. A poca clssica da historiografia quantitativa foi, sem dvida, a dos anos 1960. Para ela, os historiadores "cientficos" aplicam ao estudo da histria mtodos quantitativos e modelos de comportamento elaborados pelas cincias sociais. A histria "cientfica", por conseguinte, seria a que se integrasse plenamente aos mtodos das cincias sociais, em especial aos da economia.

3. As crises dos grandes paradigmas

Ao final dos anos 1970, tornaram cada vez mais evidentes sinais de "esgotamento" dos trs grandes modelos historiogrficos predominantes no perodo subseqente segunda guerra mundial. A busca de novas formas de representao nas cincias sociais tem incio nessa quadra de 1970. A crise j vinha aparecendo em algumas cincias sociais vizinhas, a comear pela antropologia. No de estranhar, portanto, que a influncia dessa mudana na antropologia tenha influenciado alguns intentos inovadores na historiografia. O inegvel progresso historiogrfico alcanado no perodo de 1940 a 1970 levou afinal a disciplina a um grau de desenvolvimento irreversvel, mas dando sinais de saturao. O abandono das frmulas historiogrficas mais influentes nos anos 1960 no foi seguido do aparecimento de um novo paradigma abrangente. A multiplicidade de abordagens e prticas metdicas caracteriza os anos 1980 e 1990. A maior parte das novas propostas, os esboos de novos modelos historiogrficos, concentram-se na apresentao de escritos de reflexo, de fundamentao, de mtodo e de teoria, quando no de exortao e normalizao. Nos anos oitenta constata-se uma mudana no panorama das tendncias e ensaios no campo da teoria e da pesquisa social em seu conjunto, includa a historiografia em todas as suas variaes. O panorama ao final do sc. XX pode ser caracterizado das mais diversas maneiras, mas certamente se impe o aspecto de certa disperso, rica em propostas inovadoras, frtil em modismos e abundante em "releituras". A poca das grandes propostas paradigmticas, como as do marxismo, dos Annales e do quantitativismo estrutural, que se estendeu dos anos 1940 at os 1980, cedeu fase da crise dos paradigmas e da busca de novas formas de investigao e de expresso. Assim, ao encerrar-se o sc. XX, a grande linha de desenvolvimento que fez da histria um inegvel xito cognitivo ao longo de mais de cinqenta anos, parece ter sofrido uma forte inflexo, da qual resultou a perda de atrativo da histria-cincia em benefcio da histria-ensaio.

No panorama de pesquisas aparentemente sem um norte definido emergem as buscas conscientes de novos modelos historiogrficos. A tendncia, pois, a articular padres metdicos e bases tericas abrangentes permanece um trao caracterstico do esforo cientfico. Trs campos historiogrficos podem servir de exemplo dessa busca renovada de recentrar o objeto e o modo de o trabalhar. Um o da chamada microhistria, cujo objetivo, entre outros, foi o de promover a volta do sujeito individual do histrico. Outro o da nova histria cultural, que incorpora as questes da representao e das formas lingsticas de apreenso do mundo pelo sujeito individual ou coletivo. Um terceiro corresponde a uma forma de ressurgimento da histria social e da sociologia histrica, que se rotula de cincia histrica scio-estrutural. O ltimo quartel do sc. XX apresenta-se, em dvida, como uma fase de grandes mudanas. Mudanas econmicas e polticas, mas igualmente mudanas do padro metdico do conhecimento cientfico do homem e de seu agir. A evoluo das cincias sociais inclui a historiografia que se formou entre os trs grandes paradigmas do sculo: a disperso algo narcisista dos Annales e de seus seguidores, o escolasticismo dogmtico do marxismo (influente nas cincias sociais em geral) e o controvertido quantitativismo (tambm presente em outras cincias sociais). Formaram-se assim os descontentamentos com o que a historiografia vinha produzindo, de que exemplo o intenso e algo disparatado debate sobre o ps-modernismo. Ningum contesta, por certo, que essas trs grandes concepes da historiografia (em parte rivais), assim como suas bases crtica e tcnica, deixaram ao menos um legado relevante e impossvel de ignorar para qualquer progresso ulterior. Pretender abstrair delas to frvolo quo pouco plausvel. No entanto, na historiografia contempornea continuam existindo no poucos trabalhos que contm fortes traos tradicionais da histria "exemplar", descritora dos "bons" temas, fornecedora das anlises "certas" e propositora da explicao "correta". Sob a influncia geral de uma atitude intelectual e artstica nova, ampla e difusa, de uma sensibilidade cultural conhecida como ps-modernismo, a concepo da velha disciplina historiogrfica parece ser arrastada para a uma espcie de criao literria, anlise semitica, explorao microantropolgica, em direo a um relativismo geral que rejeita as pretenses anteriores de encontrar "explicaes", mais ou menos apoiadas em teoria, do movimento histrico. A nova forma apropriada do discurso histrico seria, por conseguinte, de acordo com esses pontos de vista, a narrativa, na sua mais simples expresso de relato. A crise produziu, ao que parece, no mundo da historiografia, dois tipos de realidade. Uma delas desvalorizao dos fundamentos anteriores da prtica do historiador, em funo da qual se produziram buscas por caminhos externos prpria historiografia: a recepo da problemtica ps-moderna em geral se encontra nessa ordem de reao. Outra a resposta crise produzida desde o prprio seio da historiografia e com seus prprios instrumentos, dada por historiadores mais imunes s influncias externas, buscando "novas" concepes e campos da pesquisa histrica, dado o esgotamento dos antigos. No primeiro conjunto de respostas difcil pelo menos atualmente ver mais do que "revises", "releituras", ou lampejos efmeros, importados, produtos uma vez mais da influncia de modismos ou mesmo de tendncias mais duradouras, mas pouco praticantes do mtodo disciplinar historiogrfico, de cunho ensastico. So as orientaes ps-modernas. O segundo conjunto de respostas, produto da prpria

reflexo historiogrfica, mas que recebeu tambm no poucas crticas externas, acarretou o aparecimento de propostas pragmticas para novos enfoques da historiografia: enfoques temticos, metodolgicos, que assumem de novo traos de outros campos de investigao. Trs dessas propostas merecem, seguramente, considerao especial: a da micro-histria, a da histria scio-estrutural e a da histria scio-cultural. O paradoxal, neste caso, que uma disciplina como a historiografia, na qual a "teorizao" do objeto sempre foi extremamente tnue, tenha visto nos anos 1980 o surgimento de uma forte tendncia "antiterica". Isso no pode ser mostra de cansao ou esgotamento quanto a uma reflexo pouco praticada, ao menos pouco sistematizada. Antes, trata-se de uma evidncia da pouca solidez terica da histria. Uma matriz disciplinar insuficientemente assentada levou rejeio da histria "naturalizada", cujo decalque do modelo das cincias naturais havia conduzido a histrias "problemticas", o que por sua vez levou valorizao do "contar histrias", quase sem compromisso com garantias de verdade ou mesmo apenas verossimilhana, refugiado na liberdade literria. O ps-moderno construiu seu (relativo) sucesso sobre a crtica ao modelo racionalista, identificado com o projeto da modernidade, no formato do despotismo metdico tardio do sc. XIX. Seu equvoco, que transparece no final dos anos 1990 sob a forma de desencanto com os resultados obtidos, foi o de ter confundido a concepo de razo iluminista com a faculdade racional humana de reflexo crtica e de promoo do agir. A disperso decorrente da nova liberdade plena de estilo teve duas conseqncias nefastas para a especificidade historiogrfica. Uma foi a dissoluo da abordagem histrica, sua instrumentalizao pelas demais reas de conhecimento. O segundo efeito consistiu numa perda de consistncia da historiografia como fator explicativo da realidade social, cuja consistncia era (e ) esperada tanto pelos estudiosos quanto pelos integrantes das respectivas comunidades, a partir de cujo passado se conta poder construir uma explicao consistente do presente e uma inteleco til do futuro. No ltimo quartel do sculo 20 duas so as tendncias mais marcantes e cuja identificao apresenta menos dificuldades para a historiografia: o abandono das posies marxistas e a influncia polivalente da anlise da linguagem. Em parte essa evoluo se deve ao abalo causado pela crtica ps-moderna, que mostrou o quo frgeis eram as pretenses uniformizadoras dos modelos anteriores e chamou a ateno para a diversidade cultural multifacetada das idias e as aes humanas. Certas dimenses da posio ps-moderna influram nas concepes gerais das cincias sociais, de forma que essa influncia pode ser tida como um dos ingredientes mais fortes da "crise" por que passam estas. O ps-modernismo foi alimentado pela obra de alguns ensastas sobre a cultura, filsofos, tericos da literatura, lingistas e antroplogos. Sua influncia sobre o pensamento historiogrfico inegvel, sobretudo na concepo do "discurso historiogrfico". A anlise crtica da incidncia ps-moderna na prtica e na reflexo historiogrfica contempornea no tarefa fcil por causa da heterogeneidade desta corrente de pensamento. , no entanto, indiscutvel que o debate relativo ao significado da histria e acerca da natureza da "escrita da histria", incentivado pelo ps-modernismo, est estreitamente relacionado com a questo de nossa "representao lingstica" do mundo, tomando como ponto de partida o que a filosofia contempornea convencionou chamar de "giro lingstico". Isso se reflete na preocupao com as formas da linguagem humana como

definidoras da "realidade" e com a manifestao intelectual que veio a chamar-se de "pensamento fraco" e que impregna de alguma maneira o ps-modernismo em seu conjunto. O correto parece, pois, deter-se no giro lingstico aparecido no pensamento filosfico em meados dos anos 1960. O assunto que importa aqui especialmente o da "explicao do mundo" como resultado da linguagem com que tentamos capt-lo e que foi muito alm do estrito mbito filosfico em que surgiu, atingindo a prtica do campo completo das cincias humanas e sociais, incluindo por certo a historiografia. A anlise da linguagem conduzira anlise do discurso, e desta anlise da escrita da histria como uma forma de discurso. Essa forma especial que a histria escrita foi tratada dentro do problema geral da natureza e do significado da linguagem. O que o discurso, o texto, a escrita so, com relao linguagem, nos remete ao problema do que tais coisas significam na inteleco do passado. A escrita da histria tambm ocupou lugar nas preocupaes da lingstica psestruturalista e do desconstrucionismo, uma das variantes da primeira, que fala da necessidade de descodificar todo texto. evidente que a discusso da natureza da linguagem humana, e a dos textos escritos, e de seu alcance exato para explicar o homem, tm certa incidncia sobre a concepo do histrico e, consequentemente, sobre a idia do que consiste a prtica historiogrfica. O desconstrucionismo apareceu, em certas ocasies, como a expresso mais acabada desta ideologia do ps-modernismo como teoria da linguagem e da representao ou de sua impossibilidade mediante a linguagem. A questo que o desconstrucionismo atinge a noo de "fonte histrica" e a idia mesma da possibilidade da transmisso da imagem histrica. Afeta medularmente tambm a concepo habitual de "objetividade" do conhecimento expresso por uma linguagem. O desconstrucionismo implica, em suma, a no-diferena entre realidade e linguagem: todo o real, para o ser, tem de estar elaborado como linguagem. Mas se bem podemos falar de uma especulao filosfica e lingstica sobre a historiografia a partir das posies do ps-modernismo, mais difcil faz-lo a partir de uma produo historiogrfica especfica que se possa chamar de ps-moderna. No obstante, a influncia cultural de tal forma de pensar deixa seqelas claras, como propugnadora da morte da teoria. Uma historiografia pensada pelo ps-modernismo condena definitivamente o marxismo. Isso foi perfeitamente entendido por F. Jameson, ao qualificar o ps-modernismo como mais um dos produtos culturais emblemticos do capitalismo tardio. por isso que parece estranho que, enquanto os ps-modernos recomendam e louvam a morte da teoria, precisamente os fundadores da teoria crtica literria, qual se filia boa parte das idias ps-modernas, defendem uma "teoria da criao". Nesse meio tempo, a crtica literria ps-moderna, que antes sustentava coisas do tipo "a claridade uma forma de opresso fascista", volta a recomendar a leitura dos textos "referenciados" ao mundo exterior. At que ponto esse complexo de atitudes ps-modernas afetou a historiografia ainda est por ser avaliado, como afirmou Jrn Rsen. De imediato, isso significa o abandono de duas idias tipicamente modernas acerca da histria: a de que esta abarca todo o desenvolvimento temporal e a de que seu curso o progresso da racionalidade. Por outra parte, o ps-modernismo tambm uma demisso, com sua rejeio de toda teoria especialmente do marxismo sob o disfarce de buscar novas aproximaes da ao

humana. Para o ps-modernismo, algum teria inventado indevidamente a idia de que possvel "explicar" algo.

4. Novos modelos de historiografia?

Qual realmente a verdade acerca da histria (historiografia) hoje produzida? Essa pergunta se inspira do ttulo de um livro recente de trs historiadores da cultura, que colocam a questo da pertinncia objetiva da histria na era do excesso de dados, informaes, pontos de vista. Sem dvida a questo da verdade "na" histria e "sobre" a histria uma das trazidas ao primeiro plano pela anlise do discurso. A verdade deve ser restaurada como uma das especificidades do discurso histrico, perante a pretenso de uma histria-fico. Na historiografia de hoje como na mais antiga, nada menos problemtico do que essa questo. O que no pouco, pois com a abundncia e a variedade das fontes h, por assim dizer, mais "histria" do que antes. Verdadeiramente nunca se disps de tantos livros de histria como depois da segunda guerra mundial, com forte incremento a partir dos anos sessenta. Nunca os historiadores produziram tanto "stultifying trivial", como julga o historiador tradicional J. H. Hexter, em que se teria perdido muito do "rigor and sophistication of method". Parece claro, certamente, que a nova busca de novos modelos de historiografia tambm uma das presenas sentidas numa poca em que as buscas, e nem sempre as descobertas, so o que caracteriza inconfundivelmente o panorama. So trs as tendncias que se destacam contemporaneamente: a microhistria e a nova histria cultural, que tm relao explcita com diversas das idias e posies do psmodernismo, e a "cincia histria scio-cultural", expresso de ampla abrangncia introduzido por Christopher Lloyd para abarcar a proposta historiogrfica que se reclama dessas trs esferas: cincia, histria, sociedade e cultura (cf. Lloyd 1996). O certo que nenhuma nova historiografia parece deixar de reconhecer a influncia de uma sorte de cultural turn, o que representa uma nova concepo terica abrangente da histria como cincia integradora dos fatores de constituio da identidade subjetiva e objetiva dos agentes racionais humanos, individual e coletivamente (cf. Martins 2002, esp. cap. 1-3). Estevo de Rezende Martins

Referncias

Vainfas, R. e Cardoso, C. F. (orgs.). 1997. Os Domnios da Histria. Rio de Janeiro: Campus. Lloyd, Chr. 1996. As Estruturas da Histria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Martins, E. de Rezende. 2002. Cultura e Poder. Braslia: IBRI/FUNAG.