S Boaventura
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AUDINCIA GERAL
Quarta-feira, 3 de Maro de 2010 So Boaventura de Bagnoregio Queridos irmos e irms Hoje gostaria de falar de So Boaventura de Bagnoregio. Confesso-vos que, ao proporvos este argumento, sinto uma certa saudade, porque volto a pensar nas pesquisas que, como jovem estudioso, fiz precisamente sobre este autor, que me particularmente caro. O seu conhecimento influiu em grande medida na minha formao. Com muita alegria, h alguns meses, fui em peregrinao sua terra natal, Bagnoregio, uma pequena cidade italiana no Lcio, que conserva com venerao a sua memria. Tendo nascido provavelmente em 1217 e falecido em 1274, ele viveu no sculo XIII, uma poca em que a f crist, radicada profundamente na cultura e na sociedade da Europa, inspirou obras imperecveis no campo da literatura, das artes visuais, da filosofia e da teologia. Entre as grandes figuras crists que contriburam para a composio desta harmonia entre f e cultura sobressai precisamente Boaventura, homem de aco e de contemplao, de profunda piedade e de prudncia no governo. Chamava-se Joo de Fidanza. Um episdio que teve lugar quando ainda era jovem marcou profundamente a sua vida, como ele mesmo narra. Tinha sido atingido por uma grave doena e nem sequer o seu pai, que era mdico, esperava salv-lo da morte. Ento, sua me recorreu intercesso de So Francisco de Assis, que tinha sido canonizado h pouco tempo. E Joo ficou curado. A figura do Pobrezinho de Assis tornou-se-lhe ainda mais familiar alguns anos mais tarde, quando se encontrava em Paris, aonde tinha ido para estudar. Obtivera o diploma de Mestre de Artes, que poderamos comparar com o de um Liceu prestigioso dos nossos tempos. Nesta altura, como muitos jovens de ontem e tambm de hoje, Joo formulou uma pergunta crucial: "O que devo fazer da minha vida?". Fascinado pelo testemunho de fervor e de radicalidade evanglica dos Frades Menores, que tinham chegado a Paris em 1219, Joo bateu porta do Convento franciscano daquela cidade, e pediu para ser acolhido na grande famlia dos discpulos de So Francisco. Muitos anos depois, ele explicou as razes da sua escolha: em So Francisco e no movimento por ele iniciado, entrevia a aco de Cristo. Assim escrevia numa carta endereada a outro frade: "Confesso diante de Deus que a razo que me fez amar mais a vida do Beato Francisco que ela se assemelha aos incios e ao crescimento da Igreja. A Igreja comeou com simples pescadores e em seguida enriqueceu-se de doutores muito ilustres e sbios; a religio do Beato Francisco no foi estabelecida pela prudncia dos homens, mas de Cristo" (Epistula de tribus quaestionibus ad magistrum innominatum, in Opere di San Bonaventura. Introduzione generale, Roma 1990, pg. 29). Portanto, por volta do ano de 1243 Joo vestiu o hbito franciscano e adquiriu o nome de Boaventura. Foi imediatamente destinado aos estudos e frequentou a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, seguindo uma srie de cursos muitos exigentes.
Obteve os vrios ttulos requeridos pela carreira acadmica, os de "bacharel bblico" e de "bacharel sentencirio". Assim Boaventura estudou a fundo a Sagrada Escritura, as Sentenas de Pedro Lombardo, o manual de teologia daquela poca e os mais importantes autores de teologia e, em contacto com os mestres e os estudantes que afluam a Paris de toda a Europa, amadureceu a sua reflexo pessoal e uma sensibilidade espiritual de grande valor que, durante os anos seguintes, soube transferir para as suas obras e os seus sermes, tornando-se assim um dos telogos mais importantes da histria da Igreja. significativo recordar o ttulo da tese que ele defendeu para ser habilitado ao ensino da teologia, a licentia ubique docendi, como ento se dizia. A sua dissertao tinha como ttulo Questes sobre o conhecimento de Cristo. Este argumento mostra o papel central que Cristo teve sempre na vida e no ensinamento de Boaventura. Sem dvida, podemos dizer que todo o seu pensamento foi profundamente cristocntrico. Naqueles anos em Paris, a cidade de adopo de Boaventura, desencadeava-se uma polmica violenta contra os Frades Menores de So Francisco de Assis e contra os Padres Pregadores de So Domingos de Guzman. Contestava-se o seu direito de ensinar na Universidade e chegava-se at a pr em dvida a autenticidade da sua vida consagrada. Certamente, as mudanas introduzidas pelas Ordens Mendicantes no modo de entender a vida religiosa, de que falei nas catequeses precedentes, eram to inovativas que nem todos conseguiam compreend-las. Alm disso acrescentavam-se, como s vezes acontece tambm entre pessoas sinceramente religiosas, motivos de debilidade humana, como a inveja e o cime. Embora estivesse circundado pela oposio dos outros mestres universitrios, Boaventura j tinha comeado a ensinar na ctedra de teologia dos Franciscanos e, para responder queles que contestavam as Ordens Mendicantes, comps um escrito intitulado A perfeio evanglica. Neste escrito, ele demonstra que as Ordens Mendicantes, de modo especial os Frades Menores, praticando os votos de pobreza, de castidade e de obedincia, seguiam os conselhos do prprio Evangelho. Para alm destas circunstncias histricas, o ensinamento oferecido por Boaventura nesta sua obra e na sua vida permanece sempre actual: a Igreja tornou-se mais luminosa e bonita pela fidelidade vocao da parte daqueles seus filhos e filhas que no s pem em prtica os preceitos evanglicos mas, pela graa de Deus, so chamados a observar os seus conselhos e assim, atravs do seu estilo de vida pobre, casto e obediente, so testemunho de que o Evangelho nascente de alegria e de perfeio. O conflito foi pacificado, pelo menos por um certo perodo e, mediante a interveno pessoal do Papa Alexandre IV em 1257, Boaventura foi reconhecido oficialmente doutor e mestre da Universidade parisiense. Todavia, ele teve que renunciar a este cargo prestigioso, porque naquele mesmo ano o Captulo geral da Ordem o elegeu MinistroGeral. Desempenhou tal encargo durante 17 anos com sabedoria e dedicao, visitando as provncias, escrevendo aos irmos e intervindo por vezes com uma certa severidade para eliminar abusos. Quando Boaventura deu incio a este servio, a Ordem dos Frades Menores desenvolveu-se de modo prodigioso: contavam-se mais de 30.000 frades espalhados por todo o Ocidente, com presenas missionrias no norte da frica, no Mdio Oriente e at em Pequim. Era necessrio consolidar esta expanso e sobretudo conferir-lhe, em plena fidelidade ao carisma de Francisco, unidade de aco e de esprito. Com efeito, entre os seguidores do Santo de Assis havia vrios modos de
interpretar a sua mensagem e existia realmente o risco de uma ruptura interna. Para evitar este perigo, o Captulo geral da Ordem em Narbona, em 1260, aceitou e rectificou um texto proposto por Boaventura, em que se reuniam e unificavam as normas que regulavam a vida diria dos Frades Menores. No entanto, Boaventura intua que as disposies legislativas, por mais que se inspirassem na sabedoria e na moderao, no eram suficientes para garantir a comunho do esprito e dos coraes. Era necessrio compartilhar os mesmos ideais e motivaes. Por isso, Boaventura quis apresentar o carisma genuno de Francisco, a sua vida e o seu ensinamento. Reuniu, ento, com grande zelo documentos relativos ao Pobrezinho e ouviu com ateno as recordaes daqueles que tinham conhecido Francisco directamente. Daqui nasceu uma biografia do Santo de Assis, bem fundamentada sob o ponto de vista histrico, intitulada Legenda maior, redigida tambm de forma mais abreviada e por isso chamada Legenda minor. Diversamente do termo italiano, esta palavra latina no indica um fruto da fantasia, mas ao contrrio "Legenda" significa um texto autorizado, "que se deve ler" oficialmente. Com efeito, o Captulo geral dos Frades Menores de 1263, reunindo-se em Pisa, reconheceu na biografia de So Boaventura o retrato mais fiel do Fundador e deste modo ela tornou-se a biografia oficial do Santo. Qual a imagem de So Francisco que sobressai do corao e da pena do seu filho devoto e sucessor, So Boaventura? O ponto essencial: Francisco um alter Christus, um homem que procurou Cristo apaixonadamente. No amor que impele imitao, conformou-se de modo total com Ele. Boaventura indicava este ideal vivo a todos os seguidores de Francisco. Este ideal, vlido para cada cristo ontem, hoje e sempre, foi apontado como programa tambm para a Igreja do Terceiro Milnio pelo meu Predecessor, o Venervel Joo Paulo II. Tal programa, escreveu na Carta Novo millennio ineunte, est centrado "no prprio Cristo, que deve ser conhecido, amado e imitado, para viver nele a vida trinitria, e transformar com Ele a histria at ao seu cumprimento na Jerusalm celeste" (n. 29). Em 1273, a vida de So Boaventura conheceu outra mudana. O Papa Gregrio x quis consagr-lo Bispo e nome-lo Cardeal. Pediu-lhe tambm que preparasse um importantssimo evento eclesial: o II Conclio Ecumnico de Lio, que tinha como finalidade o restabelecimento da comunho entre as Igrejas latina e grega. Ele dedicouse a esta tarefa com diligncia, mas no conseguiu ver a concluso daquela assembleia ecumnica, porque faleceu durante a sua realizao. Um notrio pontifcio annimo comps um elogio de Boaventura, que nos oferece um retrato conclusivo deste grande santo e excelente telogo: "Homem bom, afvel, piedoso e misericordioso, repleto de virtudes, amado por Deus e pelos homens... Com efeito, Deus concedeu-lhe tal graa, que todos aqueles que o viam permaneciam imbudos de um amor que o corao no podia ocultar" (cf. J. G. Bougerol, Bonaventura, in A. Vauchez (por), Storia dei santi e della santit cristiana. Vol. VI. L'epoca del rinnovamento evangelico, Milo 1991, pg. 91). Recolhamos a herana deste Santo Doutor da Igreja, que nos recorda o sentido da nossa vida com as seguintes palavras: "Na terra... podemos contemplar a imensido divina mediante o raciocnio e a admirao; na ptria celeste, ao contrrio, mediante a viso, quando nos tornarmos semelhantes a Deus, e atravs do xtase... entraremos na alegria de Deus" (La conoscenza di Cristo, q. 6, conclusione, in Opere di San Bonaventura. Opuscoli Teologici/1, Roma 1993, pg. 187).
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Quarta-feira, 10 de Maro de 2010 So Boaventura de Bagnoregio (2) Caros irmos e irms Na semana passada falei da vida e da personalidade de So Boaventura de Bagnoregio. Esta manh gostaria de continuar a apresentao, reflectindo sobre uma parte da sua obra literria e da sua doutrina. Como j disse So Boaventura, entre os vrios mritos, teve o de interpretar autntica e fielmente a figura de So Francisco de Assis, por ele venerado e estudado com grande amor. Em particular, na poca de So Boaventura uma corrente de Frades Menores, chamados "espirituais", afirmava que com So Francisco fora inaugurada uma fase totalmente nova da histria, aparecera o "Evangelho eterno" de que fala o Apocalipse, que substitua o Novo Testamento. Este grupo afirmava que a Igreja j tinha esgotado o seu papel histrico e seria substituda por uma comunidade carismtica de homens livres guiados interiormente pelo Esprio, isto pelos "Franciscanos espirituais". Na base das ideias de tal grupo havia os escritos de um abade cisterciense, Joaquim de Fiore, falecido em 1202. Nas suas obras, ele afirmava um ritmo trinitrio da histria. Considerava o Antigo Testamento como era do Pai, seguido pelo tempo do Filho, o tempo da Igreja. Haveria que esperar ainda a terceira era, a do Esprito Santo. Assim, toda a histria devia ser interpretada como uma histria de progresso: da severidade do Antigo Testamento relativa liberdade do tempo do Filho, na Igreja, at plena liberdade dos Filhos de Deus, no perodo do Esprito Santo, que enfim seria inclusive o perodo da paz entre os homens, da reconciliao dos povos e das religies. Joaquim de Fiore suscitou a esperana de que o incio do novo tempo viria de um novo monaquismo. Assim, compreensvel que um grupo de Franciscanos julgasse reconhecer em So Francisco de Assis o iniciador do novo tempo e, na sua Ordem, a comunidade da nova poca a comunidade do tempo do Esprito Santo, que deixava atrs de si a Igreja hierrquica, para comear a nova Igreja do Esprito, desligada das velhas estruturas. Portanto, havia o risco de um gravssimo mal-entendido da mensagem de So Francisco, da sua fidelidade humilde ao Evangelho e Igreja, e tal equvoco inclua uma viso errnea do Cristianismo no seu conjunto. So Boaventura, que em 1257 se tornou Ministro-Geral da Ordem Franciscana, encontrou-se diante de uma grave tenso no interior da sua prpria Ordem precisamente por causa de quem defendia a mencionada corrente dos "Franciscanos espirituais", que se inspirava em Joaquim de Fiore. Exactamente para responder a este grupo e dar nova unidade Ordem, So Boaventura estudou com ateno os escritos autnticos de Joaquim de Fiore e os que lhe eram atribudos e, tendo em considerao a necessidade de apresentar correctamente a figura e a mensagem do seu amado So Francisco, quis expor uma justa viso da teologia da histria. So Boaventura enfrentou o problema na sua ltima obra, uma colectnea de conferncias aos monges do estdio parisiense, que ficou incompleta e chegou at ns atravs das transcries dos auditores, intitulada Hexameron, isto uma explicao alegrica dos seis dias da criao. Os Padres da
Igreja consideravam os seis ou sete dias da narrao sobre a criao como profecia da histria do mundo, da humanidade. Os sete dias representavam para eles sete perodos da histria, mais tarde interpretados tambm como sete milnios. Com Cristo teramos entrado no ltimo, ou seja no sexto perodo da histria, ao qual depois se seguiria o grande sbado de Deus. So Boaventura supe esta interpretao histrica do relatrio dos dias da criao, mas de um modo muito livre e inovativo. Para ele, dois fenmenos do seu tempo tornam necessria uma nova interpretao do curso da histria. O primeiro: a figura de So Francisco, homem totalmente unido a Cristo at comunho dos estigmas, quase um alter Christus, e com So Francisco a nova comunidade por ele criada, diferente do monaquismo at agora conhecido. Este fenmeno exigia uma nova interpretao, como novidade de Deus que surgiu nesse momento. O segundo: a posio de Joaquim de Fiore, que anunciava um novo monaquismo e um perodo totalmente novo da histria, indo alm da revelao do Novo Testamento exigia uma resposta. Como Ministro-Geral da Ordem dos Franciscanos, So Boaventura viu logo que com a concepo espiritualista inspirada por Joaquim de Fiore, a Ordem no era governvel, mas caminhava logicamente rumo anarquia. Para ele, havia duas consequncias: A primeira: a necessria prtica de estruturas e de insero na realidade da Igreja hierrquica, da Igreja real, tinha necessidade de um fundamento teolgico, tambm porque os outros, aqueles que seguiam a concepo espiritualista, mostravam um aparente fundamento teolgico. A segunda: mesmo tendo em considerao o realismo necessrio, no se podia perder a novidade da figura de So Francisco. Como respondeu So Boaventura exigncia prtica e terica? Da sua resposta posso dar aqui s um resumo muito esquemtico e incompleto, em alguns pontos: 1. So Boaventura rejeita a ideia do ritmo trinitrio da histria. Deus um para toda a histria e no se divide em trs divindades. Portanto, a histria uma s, embora seja um caminho e segundo So Boaventura um caminho de progresso. 2. Jesus Cristo a ltima palavra de Deus nele Deus disse tudo, doando-se e proclamando-se a si mesmo. Mais do que Ele mesmo, Deus no pode dizer, nem doar. O Esprito Santo Esprito do Pai e do Filho. O prprio Cristo diz do Esprito Santo: "...ensinar-vos- tudo o que vos tenho dito" (Jo 14, 26), "receber do que meu para volo anunciar" (Jo 16, 15). Portanto, no existe outro Evangelho mais excelso, no h outra Igreja a esperar. Por isso, at a Ordem de So Francisco deve inserir-se nesta Igreja, na sua f, no seu ordenamento hierrquico. 3. Isto no significa que a Igreja imvel, fixa no passado, e que nela no possa haver novidade. "Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt", as obras de Cristo no regridem, no vm a faltar, mas progridem, diz o Santo na Carta De tribus quaestionibus. Assim So Boaventura formula explicitamente a ideia de progresso, e esta uma novidade em relao aos Padres da Igreja e a uma grande parte dos seus
contemporneos. Para So Boaventura Cristo no mais, como era para os Padres da Igreja, o fim, mas o centro da histria; com Cristo, a histria no termina, mas comea um novo perodo. Outra consequncia a seguinte: at quele momento predominava a ideia de que os Padres da Igreja fossem o pice absoluto da teologia, e que todas as geraes seguintes s pudessem ser suas discpulas. At So Boaventura reconhece os Padres como mestres para sempre, mas o fenmeno de So Francisco d-lhe a certeza de que a riqueza dapalavradeCristo inesgotvel e que at nas novas geraes podem despontar novas luzes. A unicidade de Cristo garante tambm novidade e renovao em todos os perodos da histria. Sem dvida, a Ordem franciscana assim sublinha pertence Igreja de Jesus Cristo, Igreja Apostlica, e no pode construir-se num espiritualismo utpico. Mas ao mesmo tempo vlida anovidadedetal Ordem em relao ao monaquismo clssico, e So Boaventura como eu disse na catequese precedente defendeu esta novidade contra os ataques do Clero secular de Paris: os Franciscanos no tm um mosteiro fixo e podem estar presentes em toda a parte para anunciar o Evangelho. Precisamente a ruptura com a estabilidade, caracterstica do monaquismo, a favor de uma nova flexibilidade, restituiu Igreja o dinamismo missionrio. Nesta altura, talvez seja til dizer que at hoje existem vises segundo as quais toda a histria da Igreja no segundo milnio teria sido um declnio permanente; alguns vem o declnio j imediatamente aps o Novo Testamento. Na realidade, "Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt", as obras de Cristo no regridem mas progridem. O que seria a Igreja, sem a nova espiritualidade dos Cistercienses, dos Franciscanos e Dominicanos, da espiritualidade de Santa Teresa de vila e de So Joo da Cruz, e assim por diante? At hoje vlida esta afirmao: "Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt", progridem. So Boaventura ensina-nos o conjunto do discernimento necessrio, mesmo severo, do realismo sbrio e da abertura a novos carismas doados por Cristo no Esprito Santo, sua Igreja. E enquanto se repete esta ideia do declnio, h tambm outra ideia, o "utopismo espiritualista" que se repete. Com efeito, sabemos que depois do Conclio Vaticano II alguns estavam convictos de que tudo era novo, como se houvesse outra Igreja, que a Igreja pr-conciliar tivesse terminado e teramos tido outra, totalmente "outra". Um utopismo anrquico! E graas a Deus os timoneiros sbios da barca de Pedro, Papa Paulo VI e Papa Joo Paulo II, por um lado defenderam a novidade do Conclio e por outro, ao mesmo tempo, defenderam a unicidade e a continuidade da Igreja, que sempre Igreja de pecadores e sempre lugar de Graa. 4. Neste sentido So Boaventura, como Ministro-Geral dos Franciscanos, assumiu uma linha de governo em que era bem claro que a nova Ordem no podia, como comunidade, viver mesma "altura escatolgica" de So Francisco, em quem ele v antecipado o mundo futuro, mas guiado ao mesmo tempo por um realismo sadio e pela coragem espiritual tinha que se aproximar o mais possvel da mxima realizao do Sermo da Montanha, que para So Francisco foi a regra, mesmo tendo em considerao os limites do homem, marcado pelo pecado original. Vemos assim que para So Boaventura governar no era simplesmente agir, mas era sobretudo pensar e rezar. Na base do seu governo encontramos sempre a orao e o pensamento; todas as suas decises derivam da reflexo, do pensamento iluminado pela orao. O seu contacto ntimo com Cristo acompanhou sempre o seu trabalho de Ministro-Geral e por isso ele comps uma srie de escritos teolgico-msticos, que
expressam a alma do seu governo e manifestam a inteno de orientar interiormente a Ordem, isto de governar no s mediante mandatos e estruturas, mas guiando e iluminando as almas, orientando para Cristo. Destes seus escritos, que so a alma do seu governo e mostram o caminho a percorrer, tanto ao indivduo como comunidade, gostaria de mencionar um s, sua obra-prima, o Itinerarium mentis in Deum, que um "manual" de contemplao mstica. Este livro foi concebido num lugar de profunda espiritualidade: o monte La Verna, onde So Francisco tinha recebido os estigmas. Na introduo, o autor explica as circunstncias que deram origem a este seu escrito: "Enquanto eu meditava sobre as possibilidades da alma se elevar a Deus, apresentou-se-me entre outros aquele acontecimento admirvel ocorrido naquele lugar com o bem-aventurado Francisco, ou seja a viso do Serafim alado em forma de Crucifixo. E meditando sobre isto, dei-me conta imediatamente de que tal viso me oferecia o xtase contemplativo do prprio pai Francisco e ao mesmo tempo o caminho que a ele conduz" (Itinerrio da mente em Deus, Prlogo, 2 em Obras de So Boaventura. Opsculos Teolgicos/1, Roma 1993, pg. 499). Assim, as seis asas do Serafim tornam-se o smbolo de seis etapas que conduzem progressivamente o homem ao conhecimento de Deus atravs da observao do mundo e das criaturas e atravs da explorao da prpria alma com as suas faculdades, at unio total com a Trindade por meio de Cristo, imitao de So Francisco de Assis. As ltimas palavras do Itinerarium de So Boaventura, que respondem pergunta sobre o modo como se pode alcanar esta comunho mstica com Deus, deviam fazer alcanar o fundo do corao: "Se agora desejas saber como acontece isto (a comunho mstica com Deus), interroga a graa, no a doutrina; o desejo, no o intelecto; o gemido da orao, no o estudo da letra; o esposo, no o mestre; Deus, no o homem; as trevas, no a clareza; no a luz, mas o fogo que tudo inflama e transporta em Deus, com as fortes unes e os afectos ardentssimos... Portanto, entremos nas trevas, silenciemos os anseios, as paixes e os fantasmas; passemos com Cristo Crucificado deste mundo para o Pai para, depois de o ter visto, dizermos com Filipe: basta-me isto" (Ibid., VII, 6). Queridos amigos, aceitemos o convite que nos dirigido por So Boaventura, o Doutor Serfico, e coloquemo-nos na escola do Mestre divino: ouamos a sua Palavra de vida e de verdade, que ressoa no ntimo da nossa alma. Purifiquemos os nossos pensamentos e as nossas aces, a fim de que Ele possa habitar em ns, e ns possamos ouvir a sua Voz divina, que nos atrai para a verdadeira felicidade.
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Praa de So Pedro Quarta-feira, 17 de Maro de 2010 So Boaventura (3) Queridos irmos e irms Esta manh, continuando a reflexo de quarta-feira passada, gostaria de aprofundar convosco outros aspectos da doutrina de So Boaventura de Bagnoregio. Ele um telogo eminente, que merece ser posto ao lado de outro grandssimo pensador, seu contemporneo, So Toms de Aquino. Ambos perscrutaram os mistrios da Revelao,
valorizando os recursos da razo humana, naquele dilogo fecundo entre f e razo que caracteriza a Idade Mdia crist, fazendo dela uma poca de grande vivacidade intelectual, e tambm de f e de renovao eclesial, muitas vezes no suficientemente evidenciada. Eles so irmanados por outras analogias: tanto Boaventura, franciscano, como Toms, dominicano, pertenciam s Ordens Mendicantes que, com o seu vigor espiritual, como recordei em catequeses precedentes, renovaram no sculo XIII a Igreja inteira e atraram muitos seguidores. Ambos serviram a Igreja com diligncia, com paixo e com amor, a ponto de terem sido convidados a participar no Conclio Ecumnico de Lio em 1274, o mesmo ano em que vieram a falecer: Toms, enquanto ia a Lio, Boaventura durante a realizao do mesmo Conclio. Tambm na Praa de So Pedro as imagens dos dois Santos so paralelas, colocadas precisamente no incio da Colunata, a partir da fachada da Baslica Vaticana: uma na Ala da esquerda, e a outra na Ala da direita. No obstante todos estes aspectos, podemos ver nos dois grandes Santos duas abordagens diversas da pesquisa filosfica e teolgica, que mostram a originalidade e a profundidade de pensamento de um e do outro. Gostaria de mencionar algumas destas diferenas. Uma primeira diferena diz respeito ao conceito de teologia. Ambos os doutores perguntam se a teologia uma cincia prtica ou uma cincia terica, especulativa. So Toms reflecte sobre duas possveis respostas contrastantes. A primeira diz: a teologia reflexo sobre a f, e a finalidade da f que homem se torne bom, viva segundo a vontade de Deus. Portanto, a finalidade da teologia deveria ser a de guiar pelo caminho recto, bom; por conseguinte, no fundo, ela uma cincia prtica. A outra posio diz: a teologia procura conhecer Deus. Ns somos obra de Deus; Deus est acima do nosso agir. Deus realiza em ns o agir justo. Por conseguinte, trata-se substancialmente no do nosso fazer, mas de conhecer Deus, no do nosso agir. A concluso de So Toms : a teologia implica ambos os aspectos: terica, procura conhecer Deus cada vez mais, e prtica: procura orientar a nossa vida para o bem. Mas h um primado do conhecimento: sobretudo, temos que conhecer Deus, depois vem o agir segundo Deus (cf. Summa Theologiae, ia, q. 1, art. 4). Este primado do conhecimento em relao prtica significativo para a orientao fundamental de So Toms. A resposta de So Boaventura muito semelhante, mas os matizes so diferentes. So Boaventura conhece os mesmos argumentos em ambas as direces, como So Toms, mas para responder pergunta se a teologia uma cincia prtica ou terica, So Boaventura faz uma distino trplice portanto, amplia a alternativa entre terico (primado do conhecimento) e prtico (primado da prtica), acrescentando uma terceira atitude, que chama "sapiencial" e afirmando que a sabedoria abrange ambos os aspectos. E depois, continua: a sabedoria procura a contemplao (como a mais elevada forma do conhecimento) e tem como inteno "ut boni fiamus" que nos tornemos bons, sobretudo isto: tornar-nos bons (cf. Breviloquium, Prologus, 5). Depois, acrescenta: "A f est no intelecto, de tal modo que provoca o afecto. Por exemplo: saber que Cristo morreu "por ns" no permanece conhecimento, mas torna-se necessariamente afecto, amor" (Proemium in I Sent., q. 3). A sua defesa da teologia, ou seja, da reflexo racional e metdica da f, move-se na mesma linha. So Boaventura enumera alguns argumentos contra a prtica da teologia, talvez difundidos tambm entre alguns dos frades franciscanos e presentes inclusive no nosso tempo: a razo esvaziaria a f, seria uma atitude violenta em relao palavra de Deus, temos que ouvir e no analisar a palavra de Deus (cf. Carta de So Francisco de
Assis a Santo Antnio de Pdua). A estes argumentos contra a teologia, que demonstram os perigos existentes na prpria teologia, o Santo responde: verdade que existe um modo arrogante de fazer teologia, uma soberba da razo, que se pe acima da palavra de Deus. Mas a verdadeira teologia, o trabalho racional da teologia verdadeira e boa tem outra origem, no a soberba da razo. Quem ama quer conhecer cada vez melhor e sempre mais o amado; a verdadeira teologia no empenha a razo e sua busca motivada pela soberba, "sed propter amorem eius cui assentit" "motivada pelo amor daquele, a quem deu o seu consentimento" (Proemium in I Sent., q. 2), e que conhecer melhor o amado: esta a inteno fundamental da teologia. Portanto, no final para So Boaventura determinante o primado do amor. Por conseguinte, So Toms e So Boaventura definem de modo diferente o destino ltimo do homem, a sua plena felicidade: para So Toms o fim supremo ao qual se dirige nosso desejo : ver Deus. Neste simples gesto de ver Deus todos os problemas encontram soluo: estamos felizes, nada mais necessrio. Para So Boaventura, o destino ltimo do homem outro: amar Deus, o encontrar-se e o unir-se do seu e do nosso amor. Esta para ele a definio mais adequada da nossa felicidade. Nesta linha, poderamos dizer tambm que para So Toms a categoria mais elevada a verdade, enquanto para So Boaventura o bem. Seria errado ver nestas duas respostas uma contradio. Para ambos, a verdade tambm o bem, e o bem tambm a verdade; ver Deus amar, e amar ver. Portanto, trata-se de aspectos diferentes de uma viso fundamentalmente comum. Ambos os aspectos formaram diferentes tradies e diversas espiritualidades, e assim mostraram a fecundidade da f, uma s na diversidade das suas expresses. Voltemos a So Boaventura. evidente que o aspecto especfico da sua teologia, do qual s dei um exemplo, se explica a partir do carisma franciscano: o Pobrezinho de Assis, para alm dos debates intelectuais do seu tempo, tinha mostrado com toda a sua vida o primado do amor; era um cone vivo e apaixonado de Cristo e assim, na sua poca, tornou presente a figura do Senhor no convenceu os seus contemporneos com as palavras, mas com a sua vida. Em todas as obras de So Boaventura, precisamente tambm as obras cientficas, escolares, v-se e encontra-se esta inspirao franciscana; ou seja, observa-se que ele pensa a partir do encontro com o Pobrezinho de Assis. No entanto, para compreender a elaborao concreta do tema "primado do amor", temos que ter presente mais uma fonte: os escritos do chamado Pseudodionsio, um telogo srio do sculo VI, que se escondeu sob o pseudnimo de Dionsio, o Areopagita, referindo-se com este nome a uma figura dos Actos dos Apstolos (cf. 17, 34). Este telogo tinha criado uma teologia litrgica e uma teologia mstica, e falara amplamente das diversas ordens dos anjos. Os seus escritos foram traduzidos em latim no sculo IX; na poca de So Boaventura estamos no sculo XIII surgia uma nova tradio, que despertou o interesse do Santo e dos outros telogos do seu sculo. Duas coisas chamavam a ateno de So Boaventura de modo particular: 1. O Pseudodionsio fala de nove ordens dos anjos, cujos nomes tinha encontrado na Escritura e depois disposto sua maneira, desde os anjos simples at aos serafins. So Boaventura interpreta estas ordens dos anjos como degraus na aproximao da criatura a Deus. Assim eles podem representar o caminho humano, a elevao rumo comunho
com Deus. Para So Boaventura no h qualquer dvida: So Francisco de Assis pertencia ordem serfica, ordem suprema, ao coro dos serafins, ou seja: era puro fogo de amor. E assim deveriam ser os franciscanos. Mas So Boaventura sabia bem que este ltimo grau de aproximao a Deus no pode ser inserido num ordenamento jurdico, mas sempre um dom particular de Deus. Por isso, a estrutura da Ordem franciscana mais modesta, mais realista, porm deve ajudar os membros a aproximarse cada vez mais de uma existncia serfica de amor puro. Na quarta-feira passada, falei sobre esta sntese entre realismo sbrio e radicalidade evanglica no pensamento e no agir de So Boaventura. 2. Contudo, So Boaventura encontrou nos escritos do Pseudodionsio outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para Santo Agostinho o intellectus, o ver com a razo e o corao, a ltima categoria do conhecimento, o Pseudodionsio d mais um passo: na escalada rumo a Deus pode-se chegar a um ponto em que a razo j no v. Mas na noite do intelecto, o amor ainda v v aquilo que permanece inacessvel razo. O amor estende-se alm da razo, v mais, entra mais profundamente no mistrio de Deus. So Boaventura sentia-a fascinado por esta viso, que se encontrava com a sua espiritualidade franciscana. Precisamente na noite obscura da Cruz aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razo j no v, o amor v. As palavras conclusivas do seu "Itinerrio da mente em Deus", a uma leitura superficial podem parecer como expresso exagerada de uma devoo sem contedo; por outro lado, lidas luz da teologia da Cruz de So Boaventura, elas so uma expresso lmpida e realista da espiritualidade franciscana: "Se agora desejas saber como isto acontece (ou seja, a escalada para Deus), interroga a graa, no a doutrina; o desejo, no o intelecto; o gemido da orao, no o estudo da letra; ...no a luz, mas o fogo, que tudo inflama e transporta em Deus" (VII, 6). Tudo isto no anti-intelectual e no anti-racional: supe o caminho da razo, mas transcende-o no amor de Cristo crucificado. Com esta transformao da mstica do Pseudodionsio, So Boaventura coloca-se nos primrdios de uma corrente mstica, que elevou e purificou em grande medida a mente humana: um pice na histria do esprito humano. Esta teologia da Cruz, nascida do encontro entre a teologia do Pseudodionsio e a espiritualidade franciscana, no nos deve fazer esquecer que So Boaventura compartilha com So Francisco de Assis tambm o amor pela criao, a alegria pela beleza da criao de Deus. Cito nesta altura uma frase do primeiro captulo do "Itinerrio": "Quem... no v os inmeros esplendores das criaturas, cego; aquele que no desperta com tantas vezes, surdo; quem no louva a Deus por todas estas maravilhas, mudo; aquele que de tantos sinais no se eleva ao primeiro princpio, estulto" (I, 15). Toda a criao fala em voz alta de Deus, do Deus bom e belo, do seu amor. Portanto, toda a nossa vida para So Boaventura um "itinerrio", uma peregrinao uma escalada rumo a Deus. Mas s com as nossas foras, no podemos elevar-nos altura de Deus. O prprio Deus deve ajudar-nos, deve "puxar-nos" para o alto. Por isso, necessria a orao. A orao como diz o Santo a me e a origem da elevao "sursum actio", aco que nos leva para o alto diz Boaventura. Por isso, concluo com a prece, com a qual ele comea o seu "Itinerrio": "Portanto, oremos e digamos ao nosso Senhor Deus: "Conduza-me, Senhor, pela tua via, e eu caminharei na tua verdade. Alegre-se o meu corao no temor do teu nome"" (I, 1).