Seguimento: A decisão por Jesus Cristo
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Seguimento - Dietrich Bonhoeffer
Dietrich Bonhoeffer
Seguimento
A decisão por Jesus Cristo
Título
Seguimento – A decisão por Jesus Cristo
Autor
Dietrich Bonhoeffer
Tradutora
Marcos Keel Pereira
Edição e copyright portugueses
Lucerna, Cascais, outubro de 2024
© Princípia Editora, Lda.
Título original
Nachfolge
Design da capa Rita Maia e Moura
Lucerna
Rua Vasco da Gama, 60-B – 2775-297 Parede – Portugal
+351 214 678 710 • [email protected] • www.lucernaonline.pt
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As citações da Bíblia foram extraídas da tradução de João Ferreira de Almeida, edição revista e corrigida. Copyright © 2001 Sociedade Bíblica de Portugal. Usado com permissão.
Prefácio
Em tempos de renovação da Igreja, a Sagrada Escritura torna-se ainda mais rica para nós. Por detrás dos motes quotidianos e combativos necessários numa disputa eclesial, emergem uma procura e um questionamento mais fortes daquele que é o único que importa: o próprio Jesus. O que é que Jesus nos quis dizer? O que quer hoje de nós? Como é que nos ajuda a sermos, hoje, cristãos fiéis? Em última instância, não é importante para nós o que este ou aquele homem da Igreja quer; o que queremos saber é o que Jesus quer. É a sua própria palavra que queremos ouvir, quando assistimos a uma pregação. E não o queremos apenas por nossa causa, mas também pelos muitos para quem a Igreja e a sua mensagem se tornaram estranhas. Provavelmente, pessoas completamente diferentes escutariam a palavra e outras afastar-se-iam dela, se fosse o próprio Jesus, e só Ele, quem estivesse no meio de nós a pregar a sua palavra. Não é que a pregação da nossa Igreja já não seja palavra de Deus. Mas quanto som impuro, quantas duras leis humanas e quantas falsas esperanças e consolações ainda toldam a palavra pura de Jesus e dificultam a decisão verdadeira! Não é certamente apenas por culpa dos outros que a nossa pregação – que sem dúvida pretende ser tão-só pregação de Cristo – lhes parece dura e difícil, por estar sobrecarregada de fórmulas e conceitos que lhes são estranhos. Não é, com certeza, verdade que cada palavra dirigida hoje contra a nossa pregação seja já uma rejeição de Cristo, ou anticristianismo. Será que queremos mesmo renegar a comunhão com aqueles – que hoje são muitos – que acorrem à nossa pregação, a querem escutar e, todavia, acabam sempre por ter de reconhecer, perturbados, que lhes dificultamos demasiado o acesso a Jesus? Eles estão convencidos de que não se querem subtrair à palavra do próprio Jesus, mas que entre eles e Jesus se interpõem demasiados elementos humanos, institucionais, doutrinais. Quem de nós não terá já prontas todas as respostas que aqui poderiam ser dadas e que facilmente nos eximiriam de responsabilidades em relação a essas pessoas? No entanto, não será também uma resposta interrogarmo-nos sobre se nós próprios não colocamos obstáculos à palavra de Jesus quando nos apegamos porventura demais a certas formulações, a um tipo de pregação ajustado a um certo tempo, a um certo lugar e a uma certa estrutura social; quando pregamos talvez de forma realmente demasiado «dogmática» e pouco «virada para a vida»; quando repetimos constantemente e de bom grado certos pensamentos da Escritura e, ao mesmo tempo, passamos desatentos ao lado de outras palavras importantes; quando pregamos ainda demasiado opiniões e convicções nossas e pouco o próprio Jesus Cristo? Nada contradirá mais profundamente a nossa própria intenção, e nada será mais devastador para a nossa pregação, do que sobrecarregarmos os cansados e oprimidos, que Jesus chama a Si, afugentando-os de novo para longe d’Ele. Como será escarnecido dessa forma o amor de Jesus Cristo por cristãos e gentios! Mas porque aqui não nos ajudam questões gerais e autoacusações, deixemo-nos guiar de volta à Escritura, à palavra e ao chamamento do próprio Jesus Cristo. Partindo da pobreza e da estreiteza das nossas próprias convicções e perguntas, procuramos aqui a amplitude e a riqueza que nos são dadas em Jesus.
Queremos falar do chamamento para seguir Jesus. Estaremos, com isso, a impor aos homens um jugo novo e ainda mais pesado? Deverão ser acrescentados a todos os preceitos humanos, sob os quais gemem almas e corpos, outros ainda mais duros e implacáveis? Ao fazer presente o seguimento de Jesus, estar-se-á apenas a cravar outro aguilhão mais aguçado nas consciências inquietas e feridas? Deverão, pela enésima vez na história da Igreja, ser instituídas exigências impossíveis, torturadoras, excêntricas, cujo cumprimento talvez seja um luxo piedoso para poucos, mas que o homem trabalhador, preocupado com o seu pão, com a sua profissão, com a sua família, terá de rejeitar como a mais ímpia forma de tentar a Deus? Será que à Igreja importa mesmo erigir um despotismo espiritual sobre os homens, arrogando-se o poder de estabelecer e ordenar, sob ameaça de penas temporais e eternas, tudo aquilo que uma pessoa deve crer e fazer para ser bem-aventurada? Deverá a palavra da Igreja trazer consigo uma nova tirania e uma violação das almas? Pode até ser que haja quem anseie por uma tal escravidão. Mas poderá a Igreja alguma vez servir esse desejo?
Quando a Sagrada Escritura fala do seguimento de Jesus, anuncia a libertação do homem de todos os preceitos humanos, de tudo quanto oprime, sobrecarrega, causa preocupação e atormenta a consciência. No seguimento, o homem passa do jugo pesado das suas próprias leis ao jugo suave de Jesus Cristo. Fica, por isso, comprometida a seriedade dos mandamentos de Jesus? Não, pelo contrário. Só aí, onde subsiste a totalidade do mandamento de Jesus, onde o chamamento ao seguimento incondicional subsiste, é que se torna possível a plena libertação do homem para a comunhão com Jesus. Para quem segue indivisamente o mandamento de Jesus, para quem deixa repousar sobre si, sem resistência, o jugo de Jesus, para esse, o jugo que tem de carregar torna-se leve, e ele recebe com a suave pressão desse jugo a força de percorrer sem fadiga o caminho certo. O mandamento de Jesus é duro, desumanamente duro, para quem lhe resiste. O mandamento de Jesus é suave e não pesado para quem de livre vontade se lhe entrega. «Os seus mandamentos não são pesados» (1Jo 5, 3). O mandamento de Jesus não tem nada a ver com curas espirituais violentas. Jesus não nos exige nada sem nos dar a força para o realizar. O mandamento de Jesus nunca quer destruir a vida, mas preservá-la, fortalecê-la, curá-la.
Porém, ainda nos inquieta a questão de saber o que o chamamento a seguir Jesus pode significar, hoje, para o trabalhador, para o homem de negócios, para o agricultor, para o soldado; a questão de saber se não se introduz aqui um conflito insuportável na existência dum homem e cristão que trabalha no mundo. Será o cristianismo enquanto seguimento de Jesus, afinal, algo destinado a um número demasiado pequeno de pessoas? Não implicará uma exclusão da grande massa do povo, um desprezo dos fracos e dos pobres? Mas, desse modo, não se negará precisamente a grande misericórdia de Jesus Cristo, que veio para os pecadores e os publicanos, para os pobres e os fracos, para os desencaminhados e os desesperados? Que diremos? São poucos ou são muitos os que pertencem a Jesus? Jesus morreu só na cruz, abandonado pelos seus discípulos. A seu lado pendiam não dois dos seus fiéis, mas dois assassinos. Contudo, aos pés da cruz estavam todos, inimigos e crentes, incrédulos e tementes, zombadores e persuadidos. Por todos eles e pelo seu pecado rezou Jesus naquela hora, pedindo que fossem perdoados. O amor misericordioso de Deus vive no meio dos seus inimigos. É o mesmo Jesus Cristo que, por graça, nos chama a segui-l’O e cuja graça torna bem-aventurado o malfeitor crucificado na sua última hora.
Aonde conduzirá a vocação para o seguimento aqueles que O seguem? Que decisões e cisões trará consigo? Temos de levar esta pergunta ao único que sabe a resposta. Só Jesus Cristo, que ordena o seguimento, sabe para onde vai o caminho. Nós, contudo, sabemos que será, com toda a certeza, um caminho desmedidamente misericordioso. Seguimento é alegria.
Hoje em dia, parece ser muito difícil seguir, com total segurança, o caminho estreito da decisão eclesialNTi e, ao mesmo tempo, permanecer em toda a amplitude do amor de Cristo por todos os homens, da paciência, da misericórdia, da «filantropia» de Deus (Tt 3, 4) para com os fracos e os ímpios. E, no entanto, ambos os lados têm de estar juntos; caso contrário, estaremos a percorrer caminhos humanos. Deus nos conceda, em toda a seriedade do seguimento, a alegria; em todo o não ao pecado, o sim ao pecador; em toda a defesa contra os inimigos, a palavra do Evangelho que tudo supera e tudo conquista. «Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve» (Mt 11, 28 ss.).
I.
A graça cara
A graça barata é o inimigo mortal da nossa Igreja. O nosso combate, hoje, faz-se pela graça cara.
Graça barata quer dizer graça como mercadoria de segunda categoria, perdão desperdiçado, consolo desperdiçado, sacramento desperdiçado. A graça como despensa inesgotável da Igreja, esvaziada desenfreadamente e sem limites por mãos levianas. Graça sem preço, sem custos. Nisso consistiria justamente a essência da graça, no facto de a conta já estar paga antecipadamente e para todo o sempre. Basta pôr na conta já paga e tudo se recebe gratuitamente. Os custos suportados são infinitamente grandes e, assim sendo, infinitamente grandes são também as possibilidades do seu uso e do desperdício. O que seria a graça se não fosse graça barata?
Graça barata significa graça como doutrina, como princípio, como sistema; significa perdão dos pecados como verdade geral, significa amor de Deus como ideia cristã de Deus. Quem a afirma já recebeu o perdão dos seus pecados. À Igreja desta doutrina da graça basta-lhe esta mesma doutrina para ter parte na graça. Nesta Igreja, o mundo encontra cobertura barata para os seus pecados, dos quais nem se arrepende, nem, muito menos, se quer libertar. Graça barata é, por isso, negação da palavra viva de Deus, negação da encarnação da palavra de Deus.
Graça barata é justificação do pecado, e não do pecador. Como a graça realiza tudo sozinha, tudo pode ficar na mesma. «Porém, o nosso agir é em vão. O mundo permanece mundo e nós permanecemos pecadores, mesmo na melhor das vidas
»iiNT. Que viva, pois, o cristão como o mundo, torne-se igual ao mundo em todas as coisas e não ouse de maneira nenhuma – heresia do espiritualismo [Schwärmertum]iiiNT! – levar uma vida sob a graça diferente da vida sob o pecado! Livre-se de imprecar contra a graça, de profanar a grande graça barata e de instituir uma nova religião da letra, ao buscar uma vida em obediência aos mandamentos de Jesus Cristo! O mundo está justificado pela graça. Por isso – por causa da seriedade desta graça, para não resistir à graça insubstituível! –, que o cristão viva como o resto do mundo! É certo que ele gostaria de fazer qualquer coisa de extraordinário; é, sem dúvida, a maior das renúncias não o fazer e ter de viver mundanamente. Mas ele tem de realizar essa renúncia, tem de exercitar-se na negação de si mesmo que consiste em que a sua vida não se distinga do mundo. Tem de deixar a graça ser de tal maneira graça que ele próprio não destrua a fé do mundo na graça barata. No entanto, na sua mundanidade, nessa renúncia necessária que tem de realizar por amor ao mundo – mais, por amor à graça! –, o cristão deve sentir-se consolado e seguro (securus) na posse desta graça que tudo faz por si própria. Portanto, que o cristão não entre no seguimento, mas se console com a graça! Esta graça é graça barata que justifica o pecado, mas não o pecador penitente, que deixa o seu pecado e se converte. Esta graça não é perdão do pecado que aparta do pecado. Graça barata é a graça que temos para connosco próprios.
Graça barata é anúncio do perdão sem penitência, é batismo sem correção fraterna, é ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é absolvição sem confissão pessoal. Graça barata é graça sem seguimento, graça sem cruz, graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.
Graça cara é o tesouro escondido no campo, pelo qual o homem vai e vende tudo o que temivNT; é a pérola de grande valor, pela qual o comerciante dá todos os seus bensvNT; é a realeza de Cristo, pela qual o homem arranca o olho que o escandalizaviNT; é o chamamento de Jesus Cristo, que leva o discípulo a deixar as suas redes e a segui-l’OviiNT.
Graça cara é o Evangelho, que tem sempre de ser procurado de novo; o dom, que tem de ser pedido; a porta, à qual se tem de baterviiiNT.
É cara, porque chama ao seguimento; é graça, porque chama ao seguimento de Jesus Cristo. É cara, porque custa ao homem a sua vida; é graça, porque só assim lhe dá a vida. É cara, porque condena o pecado; é graça, porque justifica o pecador. A graça é cara, sobretudo, porque foi cara para Deus, porque custou a Deus a vida do seu Filho – «fostes comprados por bom preço»ixNT –, e porque não pode ser barato para nós aquilo que é caro para Deus. É graça, sobretudo, porque, para Deus, o seu Filho não foi caro demais para a nossa vida, antes O entregou por nós. Graça cara é a Encarnação de Deus.
Graça cara é graça como templo de Deus, que tem de ser protegido do mundo, que não pode ser lançado aos cãesxNT. Por isso, é graça enquanto palavra viva, palavra de Deus, que Ele próprio profere, como bem Lhe parece. Toca-nos como chamamento gracioso a seguir Jesus, chega como palavra de perdão para o espírito atemorizado e para o coração contritoxiNT. A graça é cara, porque obriga o homem a pôr-se sob o jugo do seguimento de Jesus Cristo. Graça é Jesus dizer: «O meu jugo é suave e o meu fardo é leve»xiiNT.
Por duas vezes foi dirigido a Pedro o chamamento: «Segue-Me!» Foi essa a primeira e a última palavra de Jesus aos seus discípulos (Mc 1, 17; Jo 21, 22). Toda a sua vida se situa entre estes dois chamamentos. Da primeira vez, em resposta ao chamamento de Jesus na margem do lago de Genesaré, Pedro deixou as suas redes, a sua profissão, e seguiu Jesus apoiado na sua palavra. Da última vez, o Ressuscitado encontra-o na sua antiga profissão, novamente junto ao lago de Genesaré, e uma vez mais ouve-se: «Segue-Me!». Entre os dois acontecimentos, teve lugar toda uma vida de discípulo no seguimento de Cristo. No seu centro está a profissão de fé em Jesus como o Cristo de Deus. Por três vezes é anunciada a Pedro uma e a mesma coisa – no início, no fim e em Cesareia de Filipe –, isto é, que Cristo é o seu Senhor e o seu Deus. É a mesma graça de Cristo que o chama – «Segue-Me!» – e que se lhe revela na profissão de fé no Filho de Deus.
Por três vezes a graça se deteve no caminho de Pedro, a mesma graça anunciada de três formas diferentes. Tratou-se da graça do próprio Cristo, em caso algum graça que o discípulo tivesse concedido a si mesmo. Foi a mesma graça de Cristo que levou o discípulo a deixar tudo por causa do seguimento; a mesma graça que suscitou nele a profissão de fé, que certamente pareceria uma blasfémia a toda a gente; que chamou o Pedro infiel à comunhão derradeira do martírio, perdoando-lhe assim todos os pecados. Na vida de Pedro, graça e seguimento estão indissociavelmente ligados. Pedro tinha recebido a graça cara.
Com a difusão do cristianismo e a crescente mundanização da Igreja, a consciência da graça cara foi-se perdendo pouco a pouco. O mundo tinha sido cristianizado, a graça tornara-se património comum num mundo cristão. Tornara-se barata. No entanto, a Igreja de Roma preservava um resto da consciência original. Teve uma importância decisiva o facto de a vida monástica não se ter separado da Igreja e de a sagacidade da Igreja ter suportado o monaquismo. A periferia da Igreja foi o lugar onde se manteve viva a consciência de que a graça é cara, de que a graça implica o seguimento. Houve pessoas que deixaram tudo o que tinham por causa de Cristo e procuraram seguir os exigentes mandamentos de Jesus numa prática quotidiana. Dessa forma, a vida monástica tornou-se um protesto vivo contra a mundanização do cristianismo, contra o embaratecimento da graça. Ao mesmo tempo, suportando este protesto e não permitindo que ele explodisse, a Igreja relativizou-o e logrou até que servisse de justificação para a sua própria mundanização: a vida monástica passou a ser considerada um desempenho excecional de algumas pessoas, ao qual não se podia obrigar a massa do povo cristão. Esta fatídica restrição dos mandamentos de Jesus, na sua vigência, a um certo grupo de pessoas especialmente qualificadas levou à distinção entre um rendimento máximo e um rendimento mínimo quanto à obediência cristã. Assim, perante qualquer novo ataque à mundanização da Igreja, tornou-se plausível remeter para a possibilidade de se enveredar pelo caminho da vida monástica dentro da Igreja, o que fazia com que a alternativa do caminho mais fácil surgisse plenamente justificada. Por conseguinte, e paradoxalmente, a referência ao entendimento da Igreja primitiva sobre a graça cara, preservado na Igreja de Roma através da vida monástica, concedia à mundanização da Igreja a sua justificação última. Em tudo isto, o erro decisivo do monacato não residiu no facto de – não obstante todos os equívocos substanciais acerca da vontade de Jesus – seguir o caminho da graça do seguimento rigoroso. Pelo contrário, o monacato afastou-se essencialmente do ser cristão por ter deixado que o seu caminho se transformasse num desempenho excecional e voluntário de uns poucos e, por isso, por ter reivindicado para si um mérito especial.
Quando Deus, na ReformaxiiiNT, pela mão do seu servo Martinho Lutero, fez ressurgir o Evangelho da graça pura e cara, conduziu Lutero ao mosteiro. Lutero era monge. Tinha deixado tudo e queria seguir Cristo em obediência perfeita. Renunciou ao mundo e lançou-se à obra cristã. Aprendeu a obediência a Cristo e à sua Igreja, porque sabia que só o obediente pode crer. O chamamento ao mosteiro custou a Lutero a entrega total da sua vida. No seu caminho, Lutero fracassou na relação com o próprio Deus. Deus mostrou-lhe, através da Escritura, que o seguimento de Jesus não consiste num desempenho excecional e meritório de pessoas singulares, mas é mandamento divino para todos os cristãos. A obra humilde do seguimento tinha-se transformado, no monacato, em ação meritória dos santos. A negação de si mesmo do discípuloxivNT revelou-se aqui como a derradeira autoafirmação espiritual dos piedosos. Assim, o mundo irrompera na vida monástica, operando da forma mais perigosa possível. A fuga do mundo do monge via-se denunciada como o mais subtil amor ao mundo. No meio do fracasso perante a última oportunidade de levar uma vida piedosa, Lutero abraçou a graça. No desmoronamento do mundo monástico, vislumbrou a mão salvadora de Deus estendida em Cristo. Agarrou-se a ela, acreditando que «o nosso agir é em vão, mesmo na melhor das vidas»xvNT. Foi uma graça cara, a que se lhe ofereceu e que fez desabar toda a sua existência. Teve, uma vez mais, de deixar as suas redes e seguirxviNT. Da primeira vez, quando entrou no mosteiro, tinha deixado tudo, exceto ele próprio, o seu eu piedoso. Desta feita, até esse lhe foi tirado. Não seguiu apoiado no seu próprio mérito, mas na graça de Deus. Não lhe foi dito: apesar de teres pecado, tudo te foi perdoado; fica aí onde estavas e consola-te com o perdão! Lutero teve de deixar o mosteiro e regressar ao mundo, não porque o mundo fosse, em si mesmo, bom e santo, mas porque também o mosteiro nada era senão mundo.
O caminho de Lutero de regresso do mosteiro para o mundo significou o mais forte ataque ao mundo desde o cristianismo primitivo. A renúncia do monge ao mundo tinha sido uma brincadeira de crianças quando comparada com a renúncia com que o mundo se deparou por parte de quem a ele regressava. Agora, o ataque era frontal. O seguimento de Jesus tinha, agora, de ser vivido no meio do mundo. Aquilo que, nas circunstâncias particulares e com as facilidades da vida no mosteiro, tinha sido cumprido como desempenho excecional de alguns tornava-se o necessário e o devido para cada cristão no mundo. A obediência perfeita ao mandamento de Jesus tinha de ser realizada na vida de trabalho quotidiana. Deste modo, aprofundava-se o conflito entre a vida do cristão e a vida do mundo, com um desfecho imprevisível. O cristão acossava o mundo. Era uma luta corpo a corpo.
Não é possível tresler o comportamento de Lutero de forma mais equivocada do que supondo que, com a descoberta do Evangelho da pura graça, Lutero proclamou ao mundo a dispensa de obedecer ao mandamento de Jesus. Como se o achado da Reforma tivesse sido a santificação do mundo, a sua justificação pelo perdão da graça. Pelo contrário, para Lutero, o ofício secular do cristão é justificado apenas pelo facto de nele se anunciar, com toda a veemência, o protesto contra o mundo. Só na medida em que o ofício secular do cristão seja exercitado no seguimento de Jesus é que ele recebe do Evangelho uma legitimidade nova. Não foi a justificação do pecado, mas a justificação do pecador a motivar o regresso de Lutero do mosteiro. Lutero tinha sido presenteado com a graça cara. Era graça, porque água para a terra árida, consolação para o medo, libertação da escravidão do caminho escolhido por si próprio, perdão de todos os pecados. Era cara, porque não dispensava a obra, mas reforçava infinitamente o chamamento ao discipulado. Mas era precisamente enquanto cara que ela era graça; e, enquanto graça, era também cara. Nisto residia o mistério do Evangelho da Reforma, o mistério da justificação do pecador.
No entanto, quem sai vencedor da história da Reforma não é a descoberta, por parte de Lutero, da graça pura e cara, mas o instinto religioso do homem, que, atento, identifica o lugar onde a graça pode ser obtida da forma mais barata. Bastou um suave, quase impercetível, desvio de ênfase e a obra mais perigosa e nefasta estava feita. Lutero ensinara que nem através das obras e dos caminhos mais piedosos o homem pode subsistir perante Deus, porque, no fundo, busca-se constantemente a si próprio. No meio desta tribulação, Lutero abraçara, na fé, a graça do perdão livre e incondicional. Ao mesmo tempo, sabia que esta graça lhe tinha custado e ainda lhe custava, todos os dias, uma vida inteira, já que a graça não o dispensava do seguimento; bem pelo contrário, impelia-o decisivamente para ele. Quando Lutero falava da graça, incluía nela sempre a sua própria vida, que só por meio da graça tinha sido levada à obediência plena a Cristo. Nem podia falar da graça de outra forma. Lutero proclamara o sola gratia e os seus discípulos repetiram-no literalmente, com uma única diferença: rapidamente abandonaram e deixaram de considerar e afirmar o que Lutero tinha por evidente, isto é, o seguimento; aquilo que não precisava de dizer, porque falava sempre como alguém que tinha sido conduzido pela graça ao mais difícil seguimento de Jesus. Assim, vista a partir da doutrina de Lutero, a doutrina dos seus discípulos era inatacável, mas, afinal, foi ela mesma que levou à ruína e à destruição da Reforma como revelação na Terra da graça cara de Deus. A justificação do pecador no mundo tornara-se a justificação do pecado e do mundo. A graça cara tornou-se graça barata sem seguimento.
Se Lutero dizia que o nosso agir é vão, até na melhor das vidas, e que, por isso, diante de Deus nada vale «senão graça e favor de perdoar os pecados»xviiNT, dizia-o como alguém que, até esse momento e nesse mesmo momento novamente, se sabia chamado ao seguimento de Jesus, a deixar tudo o que tinha. O reconhecimento da graça foi, para ele, o definitivo corte radical com o pecado da sua vida, mas nunca a sua justificação. Abraçar o perdão constituiu a definitiva renúncia radical à vida contumaz e como tal, no fundo, o primordial chamamento sério a seguir Jesus. Foi, para Lutero, sempre «resultado», evidentemente resultado divino e não humano. No entanto, este resultado foi transformado pelos seus sucessores em pressuposto fundamental de um cálculo. Aí residiu toda a tragédia. Se a graça é o «resultado» da vida cristã dado pelo próprio Cristo, então esta vida em circunstância alguma é dispensada do seguimento. Se, pelo contrário, a graça é pressuposto fundamental da minha vida cristã, então obtenho, antecipadamente, a justificação dos pecados que cometo na vida no mundo. Agora, posso pecar em vista dessa graça, já que o mundo está, à partida, justificado pela graça. Portanto, continuo, como até aqui, na minha existência burguesa-mundana, tudo permanece igual e posso ter a certeza de que a graça de Deus me guarda. Sob esta graça, o mundo inteiro tornou-se «cristão»; o cristianismo, porém, tornou-se mundo numa dimensão nunca antes vista. O conflito entre as vidas secular-cristã e burguesa-mundana foi eliminado. A vida cristã consiste, agora, em que eu viva no mundo e como o mundo e em nada me distinga dele; mais ainda, em que eu não deva sequer – por amor à graça! – distinguir-me dele, mas em que eu, no tempo oportuno, passe do espaço do mundo para o espaço da Igreja, para aí ser assegurado do perdão dos meus pecados. Estou livre do seguimento de Jesus – através da graça barata, que há de ser o inimigo mais amargo do seguimento, que tem de odiar e injuriar o verdadeiro seguimento. Graça como pressuposto é graça barata; graça como resultado é graça cara. É assustador constatar o que isto implica, de que forma uma verdade evangélica é proferida e usada. É a mesma palavra da justificação só pela graça e, contudo, o uso errado dessa mesma frase conduz à destruição total da sua