Gregório de Matos
Gregório de Matos
Gregório de Matos
brasileira. Ao contrrio dos irmos mais velhos que no se adequaram aos estudos e dedicaram a ajudar o pai na fazenda, Gregrio recebeu instruo na infncia e adolescncia e foi enviado para a Universidade de Coimbra, onde bacharelou-se em direito. Vale lembrar que a fama de Gregrio de Matos - um dos grandes poetas barrocos no s do Brasil, mas da lngua portuguesa - devida a uma obra efetivamente slida, em que o autor soube manejar os cnones da poca, seja de modo erudito em poemas lricos de cunho filosfico e religioso, seja na obra satrica de cunho popularesco. O virtuosismo estilstico de Gregrio de Matos no encontra um rival a altura na poesia portuguesa do mesmo perodo. A poesia lrica de Gregrio de Matos pode ser dividida em lrica sacra, lrica amorosa (espiritual e carnal), lrica encomistica (poemas de circunstncia, poemas laudatrios) e lrica filosfica. Analisemos, uma a uma, a poesia lrica desse autor barroco: 1. Poesia lrica sacra - A culpa e o arrependimento Expressa a cosmoviso barroca: a insignificncia do homem perante Deus, a conscincia ntida do pecado e a busca do perdo. Ao lado de momentos de verdadeiro arrependimento, muitas vezes o tema religioso utilizado como simples pretexto para o exerccio potico, desenvolvendo engenhosos jogos de imagens e conceitos. As idias de Deus e do pecado, ao mesmo tempo que se opem, so complementares. Embora Deus detenha o poder da condenao da alma, est sempre disposto ao perdo, por sua misericrdia e bondade; da deriva Sua maior glria. A CRISTO N. S. CRUCIFICADO, estando o poeta na ltima hora de sua vida 1 Meu Deus, que estais pendente de um madeiro, 2 Em cuja lei protesto de viver, 3 Em cuja santa lei hei de morrer, 4 Animoso, constante, firme e inteiro: 5 Neste lance, por ser o derradeiro, 6 Pois vejo a minha vida anoitecer; 7 , meu Jesus, a hora de se ver 8 A brandura de um Pai, manso Cordeiro. 9 Mui grande o vosso amor e o meu delito; 10 Porm pode ter fim todo o pecar, 11 E no o vosso amor que infinito. 12 Esta razo me obriga a confiar, 13 Que, por mais que pequei, neste conflito 14 Espero em vosso amor de me salvar.
Nas duas primeiras estrofes, o poeta expressa a contrio religiosa e a crena no amor infinito de Cristo, para manifestar, no final, a certeza do perdo. O soneto encobre uma formulao silogstica, que se pode expressar dessa maneira: o amor de Cristo infinito (verso 11); o meu pecado, por maior que seja, finito, e menor que o amor de Jesus (versos 9 e 10). Logo, por maior que seja o meu pecado, eu espero salvar-me (versos 13 e 14). BUSCANDO A CRISTO 1 A vs correndo vou, braos sagrados, 2 Nessa cruz sacrossanta descobertos, 3 Que, para receber-me, estais abertos, 4 E, por no castigar-me, estais cravados. 5 A vs, divinos olhos, eclipsados 6 De tanto sangue e lgrimas abertos, 7 Pois, para perdoar-me, estais despertos, 8 E, por no condenar-me, estais fechados. 9 A vs, pregados ps, por no deixar-me, 10 A vs, sangue vertido, para ungir-me, 11 A vs, cabea baixa p ra chamar-me. 12 A vs, lado patente, quero unir-me, 13 A vs, cravos preciosos, quero atar-me, 14 Para ficar unido, atado e firme. O soneto construdo a partir de um sistema de metonmias que vo relacionando as partes de Cristo ("braos", "olhos", "ps", "sangue", "cabea", "cravos"), substituindo todo o Cristo crucificado. Os versos 5, 9, 10, 11, 12 e 13 constroem-se com a omisso do verbo, que aparecera no 1 verso - "correndo vou. Em todos eles ocorre o procedimento estilstico denominado zeugma (= elipse de uma palavra ou expresso prxima no contexto). Assim, nos versos -mencionados, deve-se ler: "A vs (correndo vou), divinos olhos (...)" "A vs (correndo vou), pregados ps (... )" etc. Outro recurso empregado so as anforas (repetio de palavra(s) no incio de dois ou mais versos). Observe a repetio de a vs (v. 5, 9, 10, 11, 12, 13), e de "e por no" (v. 4 e 8). Enquanto no texto anterior o jogo de idias predominante (aspecto conceptista), neste, o mais evidente o trabalho com as palavras, por meio das figuras de linguagem (aspecto cultista). Observe que o mesmo poeta contrito dos textos sacros autor de stiras violentas ao clero:
A nossa S da Bahia, com ser um mapa de festas, um presepe de bestas, se no for estrebaria: Vrias bestas cada dia. Ou: E nos frades h manqueiras ?...Freiras. Em que ocupam os seres?... Sermes. No se ocupam em disputas?... Putas. Com palavras dissolutas Me conclus, na verdade, Que as lidas todas de um frade So freiras, sermes e putas. 2. Poesia lrica amorosa - O esprito e a carne Apresenta-se sob o signo da dualidade barroca, oscilando entre a atitude contemplativa, o amor elevado, maneira dos sonetos de Cames, e a obscenidade, o carnalismo. curioso que a postura platnica dominante, quando o poeta se refere a mulheres brancas, de condio social superior, e a libido agressiva, o erotismo e o desbocamento so as tnicas, quando o poeta se inspira nas mulheres de condio social inferior, especialmente as mulatas. Neste sentido, destaca-se j certa tropicalidade, a antecipao de certo sentimento brasileiro. Minha rica mulatinha, desvelo e cuidado meu, eu j fora todo teu, e tu foras toda minha; Juro-te, minha vidinha, se acaso minha qus ser, que todo me hei de acender em ser teu amante fino pois por ti j perco o tino, e ando para morrer. Observe os versos curtos e a aproximao com uma linguagem mais espontnea e popular. A mulher vista tanto de modo espiritualizado, quanto como objeto de desejo carnal. Ambas as vises podem aparecer no mesmo texto, estabelecendo um conflito, conforma ocorre no soneto transcrito a seguir, Anjo no nome, Anglica na cara, onde tambm encontra-se a atitude idealizante e a linguagem mais erudita: A D. NGELA Anjo no nome, Anglica na cara!
Isso ser flor e Anjo juntamente: Ser Anglica flor e Anjo florente, Em quem, seno em vs, se uniformara? Quem vira uma tal flor que a no cortara De verde p, da rama florescente; E quem um Anjo vira to luzente Que por seu Deus o no idolatrara? Se pois como Anjo sois dos meus altares, Freis o meu Custdio e a minha guarda, Livrara eu de diablicos azares. Mas vejo, que por bela, e por galharda, Posto que os Anjos nunca do pesares, Sois Anjo que me tenta, e no me guarda. O soneto marca-se pelo aspecto cultista, desenvolvendo-se por meio do jogo de palavras e imagens: ngela = Anglica = Anjo, flor = florente. O tema central o carter contraditrio dos sentimentos do poeta pela mulher, que simultaneamente flor (metfora da beleza) e objeto do desejo, e anjo (metfora da pureza) e smbolo da elevao espiritual. A contradio entre o amar e o querer desemboca no paradoxo dos versos finais: Sois Anjo que me tenta e no me guarda. O tema clssico do carpe diem (= aproveita o dia) freqente. A conscincia da fugacidade do tempo e das incertezas da vida leva necessidade de fruio imediata dos prazeres. o que se nota em: Discreta e formosssima Maria, Enquanto estamos vendo a qualquer hora, Em tuas faces a rosada Aurora, Em teus olhos e boca, o Sol e o dia: Enquanto com gentil descortesia, O ar, que fresco Adnis te namora, Te espalha a rica trana brilhadora, Quando vem passear-te pela fria... Goza, goza da flor da mocidade, Que o tempo trata a toda a ligeireza, E imprime em toda a flor sua pisada. Oh no aguardes que a madura idade Te converta essa flor, essa beleza, Em terra, em cinza, em p, em sombra, em nada. Os textos que iremos transcrever demonstram cabalmente o conflito carne x esprito, mediante duas definies do amor.
O Amor finalmente um embarao de pernas, uma unio de barrigas, um breve tremor de artrias. Uma confuso de bocas, uma batalha de veias, um rebulio de ancas; quem diz outra coisa, besta. Ardor em firme corao nascido; Pranto por belos olhos derramado; Incndio em mares de gua disfarado; Rio de neve em fogo convertido: Tu, que em um peito abrasas escondido; Tu, que em um rosto corres desatado; Quando fogo, em cristais aprisionado; Quando cristal, em chamas derretido. 3. Poesia lrica encomistica Gregrio de Matos escreveu tambm poemas laudatrios (de elogio), de circunstncia (festas, homenagens, fatos corriqueiros). Um exemplo curioso o poema cujo inicio transcrevemos, uma homenagem ao desembargador Belchior da Cunha Brochado:
Cada par de versos tem em comum as terminaes das palavras (ex.: 1 palavra do 1 verso: douTO; 1 palavra do 2 verso: reTO), o que explica o estranho arranjo espacial do texto. A leitura deve ser feita como se se tratasse de versos comuns; assim sendo, os dois primeiros versos lem-se: Douto, prudente, nobre, humano, afvel, Reto, ciente, benigno e aprazvel