A Verossimilhana em Memrias Pstumas de Brs Cubas

Ian Oliver Sarmento - 1o horrio - No USP: 6467562

O que a verdade? Ela realmente existe? Plato dizia que sim, mas de maneira transcendente, num mundo ideal, de formas puras, que so as idias. Em contraposio a este mundo, est a realidade emprica, na qual vivemos, e onde h o tempo, que destri tudo. Segundo o prprio Plato, a verdade sua prpria essncia, que s pode ser atingida por meio do filsofo. Surge a a dialtica, que permite chegar essncia, sempre se contrapondo ao empirismo, que a realidade humana. Supondo que algo exista no mundo emprico, um pssaro por exemplo, supese que ele a representao de uma essncia transcendental, ou seja, h uma "passaridade", que a forma pura de pssaro, e o pssaro emprico uma representao real do que essencial. O artista, entretanto, no momento em que inventa uma matria, est fazendo fico. um reflexo da essncia da prpria matria de maneira dupla. Supondo que um poeta escreva sobre pssaros, ele se basear de forma modelar em pssaros do mundo real, que por sua vez j so cpias do modelo de pssaro essencial. a cpia de uma cpia. De modo que o artista em geral, ou o poeta em particular , portanto, um mentiroso, uma vez que apenas produz cpias, imitaes (mmesis) e, no limite, falsificaes. Aristteles, que vem em seguida, pensa em todas estas questes e, alm de formular a idia dos gneros, prope o conceito de verossimilhana (o qual em Machado de Assis est completamente invertido). Aristteles diz que na cidade existe uma crena comum, ou um conjunto de opinies (endoxon), que so as verdades da cidade. Para um grego da poca de Aristteles, alguns exemplos de verdades so: o homem superior a mulher; um bom homem livre; o escravo inferior; os nogregos so brbaros. Aristteles prope portanto que o tema da poesia no a realidade emprica. No a realidade que o poeta observa. sim, objeto da arte do poeta, reproduzir em seu discurso as opinies consideradas verdadeiras pela sociedade de sua poca e, de maneira alguma, a realidade emprica. A referncia do poeta, portanto, so os discursos de sua realidade, e no a realidade emprica. Se o poeta faz um discurso endoxon (ou seja, semelhante quilo que considera verdadeiro), ele est fazendo algo verossmil (vero = verdadeiro ; ssmil = semelhante).

Homero, quando compe a Odissia, inventa o personagem Odisseu (ou Ulisses). O que caracteriza Ulisses como heri? Sua astcia. Ele o mais astuto dos homens que j ouve. Como se constri essa idia? O poeta, a partir de vrias observaes de discursos considerados verdadeiros sobre a astcia, inventa um personagem que no existe na realidade. Quando um leitor se intera da ao de Ulisses, ele cria um termo de comparao. Ele relaciona aos discursos que considera verdadeiros, e reconhece o poema como adequado. A verossimilhana, portanto, uma relao de discursos. Pode ser verossmil, portanto, que um homem jogue uma pedra de uma tonelada, matando milhares de homens, uma vez que o discurso potico verossmil no se pauta nas relaes reais ou empricas. Na realidade, um homem nunca conseguiria fazer isso, mas na conveno do gnero pico, o heri faz isso e deve fazer isso, porque "verdadeiro para ns", quando lemos um poema pico, que o heri um ente superior a ns. Portanto, um poema que discorre sobre isso adequado, no porque seja verdadeiro, mas porque semelhante quilo que ns consideramos ser verdadeiro de um homem superior. Para dar um exemplo de homem inferior, naturalmente teria que citar o cmico (que vem de Komos, que a casa, a aldeia, onde se encontram a lavadeira, o homem que no sabe o que vai comer), ou seja, um gnero que trata de gente "pior" do que ns, e que nos fazem rir, porque so feios/baixos, segundo a potica de Aristteles. O discurso do poeta, para executar este tipo de gnero, tem que ser icstico, simples, baixo, indecente, porque so iguais aos tipos humanos que o poema representa. Tudo isso para dizer, como concluso desta parte, que os gregos sintetizaram por fim que era tarefa do filsofo falar sobre aquilo que verdadeiro, e tarefa dos poetas imitar aquilo que verdadeiro, ou seja, fazer semelhanas com o que se acredita ser verdade, que a definio de verossimilhana. Afora essa discusso, tambm se discutia na Grcia que, se existe "Ser", tambm existe o discurso, e tambm existe a razo. Porm, por dialtica, se existe o "no ser", no existe o discurso, nem razo. Afinal, por definio, o "no ser" no . A epgrafe de Memrias Pstumas de Brs Cubas, antes do incio do enredo, diz: "Ao verme que primeiro roeu as carnes do meu frio cadver, dedico com saudosa lembrana essas memrias pstumas". De onde vem essa voz? O leitor supe, pela dedicatria, com base em uma impresso inicial, que a voz de um morto. A questo, se for posta na lgica clssica, seria perguntar: quais so as opinies verdadeiras que temos sobre a morte? Qual seria a endoxon (as boas opinies) sobre a morte? Talvez nenhuma. Talvez a nica certeza que temos sobre a morte que ela no

. Ela "no ser". Todos os nossos discursos so discursos da vida. E, portanto, no temos nenhum discurso adequado para dizer o que a morte. No momento em que Brs Cubas faz essa dedicatria ao verme, essa voz vem do alm. Porm, poderamos perguntar, onde est esse alm? A morte no "onde" (ela no tem espao), e por definio tambm no "quando" (no tem tempo), ou seja, a morte no se subordina a nenhuma das nossas categorias. Ela no tem voz, no tem pensamento, razo ou discurso. O que "no ", portanto, no pode ser. No pode acontecer. E isso acaba com toda a idia de realismo que se tem sobre o livro. O gnero fantstico trata exatamente disso. Trata de coisas que no podem acontecer na realidade emprica ou filosfica. Nesse sentido, h um afastamento de Machado de Assis em relao ao pensamento dominante realista de sua poca (Balzac, Sthandal, Zola). E inventa um novo modo de escrever, que dialoga com a teoria gregolatina do fantstico, como imitao do que no possvel, de produo do "no-ser", de um texto que faz citaes de citaes, representaes de representaes, de um texto pensado como verdadeiro. "Memrias Pstumas de Brs Cubas" o nome do livro. "Memria" um gnero literrio, biogrfico. Quando algum escreve uma "memria", aproxima-se do gnero histrico, e acredita-se realmente que exista uma factualidade, algo concreto, material, na experincia contada pela memria. Mesmo pressupondo que o passado inalcanvel, ainda assim ns acreditamos que possvel fazer uma memria, e que o que est l descrito so fatos reais. "Nasci no ano ...", "meus pais foram...", "trabalhei em...", etc..etc...etc... Entretanto, no se trata de simples "Memrias": so "Memrias Pstumas". Ora, so memrias aps a morte. Existe trabalho aps a morte? Existe lembrana aps a morte? Parece que no. Os mortos so a radicalizao do esquecimento, vez que "no so". O prprio nome Brs Cubas j um simulacro, uma inveno. O av de Brs fabricava cubas (barricas) no sculo XVIII. E isso no era algo nobre, era um trabalho manual. Entretanto, o pai de Brs, querendo simular um antecedente nobre no filho, lembrou-se do fundador de Santos, em So Paulo, o aristocrata portugus Brs Cubas. Isso produz um efeito que o narrador tenha uma linhagem ilustre de famlia. Mas no. O prprio nome do narrador uma citao de um nome aristocrata, que no representa sua origem. Seu nome a citao de uma citao. Em Dom Casmurro, quando Bento Santiago percebe que, quanto mais Ezequiel cresce, mais parece Escobar, expulsa Capitu de casa. Machado de Assis coloca as seguintes palavras na boca dela: " o equvoco da semelhana". Ou seja, Machado de Assis coloca nas palavras de Capitu, o critrio nuclear da verossimilhana, que a semelhana com a verdade. Quando ela diz que foi um equvoco da semelhana, diz

que inverossmil que um filho dele (Bento) se parea com Escobar, mas que, segundo ela, verdadeiro. Quando um discurso verossmil? Quando reproduz algo que uma determinada sociedade considera verdadeiro. Portanto, quando ele endoxon (uma boa opinio). Quando um discurso fantstico? Quando coloca para ns um tema que no , no pode ser, e no poderia acontecer. Portanto, adoxon (sem opinio, ou seja, no se pode dizer nada sobre aquilo), ou paradoxon (aquilo que paralelo ao que consideramos ser uma boa opinio). Num contexto realista/romntico (Balzac/Alencar), Machado parece no querer nenhum dos dois. E lana mo do gnero fantstico, vez que o fantstico vive de inverter os discursos considerados verdadeiros, verossmeis, sensatos. Nesse sentido, Memrias Pstumas ser sempre um romance sobre "como escrever um romance" quando no queremos ser romnticos, nem realistas ou naturalistas, ou seja, quando ns j somos modernos. Para isso, ele produz uma incongruncia, na qual antes de fazer qualquer crtica sobre contedos sociais (escravido, religio), ele critica os modos que o leitor julga naturais de ler. O leitor est habituado com romances que tem comeo, meio e fim. Est habituado a ler fatos que so parecidos com a vida que ele leva, e opinies que considera verdadeiras. E tudo termina, bem ou mal, segundo sua prpria expectativa. Machado comea a propor, em Memrias Pstumas, um tipo de texto em que somos obrigados a ler sempre duas coisas: o contedo que est sendo contado, e a histria da escrita que est sendo contada (as famosas digresses machadianas). H um contnuo comentrio sobre aquilo que estamos lendo, como produto de uma tcnica artificial. Ele evidencia, portanto, o artifcio de criao. Evidenciando o artifcio, evidencia tambm que nada essencial, nada natural. Machado deixa claro que, em primeiro lugar, somos leitores. E estamos em contato com um texto, e no com uma pessoa. E um texto um artifcio, um dispositivo de criao potica. A priori, a sociedade burguesa no percebe que tudo conveno, justamente porque as convenes so to recorrentes que se acredita que elas so naturais, ou verdadeiras. Quando se evidencia o artifcio da conveno, o leitor percebe que todas as suas verdades se invertem. Que a verossimilhana uma besteira. Que tudo criao, tudo fico.