ORAR... ATO DE DOAO - O TRABALHO DAS BENZEDEIRAS NO MUNICPIO DE BURITIZEIRO - Jacqueline Araujo Correa Mendes ([email protected].

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INTRODUO O Ser Humano tem uma capacidade extraordinria de atuar no mundo. Uma dessas capacidades est em criar cultura. O entendimento de cultura aqui expresso, afirma Mendes [1]
O conhecimento, as crenas, as tcnicas, as artes, a moral, as leis, os costumes, a linguagem ou qualquer outra produo humana [...] a cultura uma obra construda pelos sujeitos sociais na relao com os outros e com o mundo. Em outras palavras, cultura so as maneiras de conceber e organizar a vida social, a partir de manifestaes prprias dos sujeitos que, juntos, a criam, vivem e pensam.

por meio das manifestaes culturais que os sujeitos do significado a suas aes. Essa produo cultural compe uma gama de conhecimentos e como Geertz [2] afirma [...] h um nmero de razes pelas quais tratar o senso comum como um corpo organizado de pensamento deliberado pois eles so a forma como construmos o mundo que habitamos biograficamente. Assim, os sujeitos sociais encontram sentido em suas aes no mundo ao mesmo tempo em que promovem a manuteno, preservao e conservao das tradies culturais. Este trabalho teve como objetivo refletir sobre o trabalho das benzedeiras no municpio de Buritizeiro MG e verificar se esta manifestao popular valorizada no cotidiano da comunidade. Uma das manifestaes culturais que tem sofrido alteraes, mas que se mantm no imaginrio de vrias comunidades e objeto de nossa ateno nessa pesquisa a bezeno. Essa manifestao realizada por mulheres e homens, sendo que a incidncia maior de mulheres, que detm conhecimentos curativos. Isto , tratamentos por meio de ervas medicinais, rezas e benzeduras. Nas comunidades onde atuam as benzedeiras, elas so vistas como especialistas pelos moradores do lugar. O aparecimento das benzedeiras e a prtica do benzimento na realidade sociocultural atual esto atrelados a utilizao da medicina popular. Para Cascudo [3] a medicina popular constituda dos fundamentos indgenas, africanos e portugueses. Os saberes da flora e fauna apreendidos pelos indgenas; a vulgarizao das plantas populares, arruda, alecrim, manjerico pelos africanos e os conhecimentos da farmacopia pelos portugueses so heranas incorporadas pela medicina popular. Esses saberes internalizados nas crenas populares sofreram um combate rigoroso com o avano do conhecimento mdico a partir do sculo XIX e mesmo hoje so muitas as posies contrrias a esse respeito. Se as benzedeiras de hoje estivessem vivendo na idade mdia seriam queimadas como bruxas. As concepes de mundo no perodo da idade mdia estavam arraigadas nos valores e dogmas do cristianismo. O que era considerado conhecimento vlido ou no estava sob a aprovao e consentimento do Clero. Muitos sculos se passaram at que compreendssemos essa manifestao como patrimnio cultural. A prtica tradicional da benzedura, ou benzimento foi presena importante em alguns momentos da histria do municpio foco de nossas atenes, devido carncia de padres, religiosos e de profissionais da sade. As benzedeiras ou rezadeiras se constituam em fonte preciosa de soluo para os momentos de aflio e doena. As benzedeiras encontram nas oraes e remdios a cura para vrios males como zipra (erisipela: doena infecciosa contagiosa), reumatismo, cobreiro, bicheira de animal, ventre cado (espinhela cada), mal olhado e outros. no contexto da sociedade informatizada, em que o avano do conhecimento mdico est a cada dia mais elaborado, que as benzedeiras continuam a perpetuar seus saberes e so reconhecidas pelo seu dom. METODOLOGIA E DISCUSSO A. A PESQUISA DE CAMPO Fizemos um levantamento na cidade de Buritizeiro para avaliarmos a possibilidade dessa pesquisa. Buritizeiro faz divisa com Pirapora no Baixo Mdio So Francisco, emancipada em 23 de dezembro de 1962, tem nome derivado da palmeira Buritis e uma rea de 7.226 Km2, localizado no norte de Minas Gerais a uma distncia de 367km da capital e a 7km da sede de Pirapora, com uma populao de aproximadamente 26.798 habitantes. O sistema escolar em Buritizeiro est composto de nove escolas estaduais, trinta escolas municipais e duas escolas particulares. A identidade tnica africana tem fortes influncias na origem e constituio do municpio. Com as informaes em mos fizemos a escolha dos sujeitos tendo em vista uma benzedeira com mais experincia e idade, outra mais nova e a percepo de uma pessoa que busca sempre as oraes das benzedeiras. Depois de obter autorizao das colaboradoras optamos por conservar o nome delas no corpo do trabalho.

Um roteiro de entrevista foi elaborado para direcionar a narrativa das colaboradoras. As questes contempladas foram: Benze? Quando comeou, com as mesmas oraes e pelos os mesmos motivos. Os motivos pelos quais as pessoas procuravam benzer a tempos atrs so os mesmos de hoje? O que mudou? Por que ser que isso ocorreu? Quem so as pessoas que costumam benzer (adultos, crianas, adolescentes, recm-nascidos)? Motivos que trazem as pessoas at voc (razo da procura)? Quais os tipos de benzeo que sabe fazer? Houve, nesse tempo de benzeo, alguma mudana nessa prtica? As oraes so as mesmas? Existe alguma bezeno que as pessoas no procuram mais? Aprendeu alguma outra forma nova de benzeno? A entrevista aconteceu na casa de cada colaboradora. Um gravador foi utilizado e em nenhum momento isso atrapalhou a narrativa, pelo contrrio elas ficaram bem vontade. Uma das benzedeiras escolhidas (a mais nova) para a pesquisa concordou no primeiro momento e at marcou a data para a entrevista, no entanto, ao chegarmos a sua casa ela desistiu por motivos pessoais (conservamos aqui apenas uma explicao dos seus motivos). Assim, como nosso tempo era curto para esse trabalho preservamos o relato na ntegra, apenas, de uma das benzedeiras. No relato, foi mantida a estruturao frasal/sinttica da narrada para no correr o risco de alterar as informaes colhidas e tambm por se tratar de uma representao da fala. B. RELATO ORAL BENZEDEIRA (1) Realizamos o contato e agendamos a data da entrevista. No dia marcado fomos a casa da benzedeira, s que a mesma no estava mais disposta a realizar a entrevista, sob o argumento que pensou melhor, pois ao dar aquela entrevista ela poderia ficar conhecida e as pessoas passariam a procur-la em sua casa para benzer. Essa uma prtica que ela deve fazer no espao prprio (local onde ela desenvolve sua religio), sua doutrina no permite. Mas mesmo assim, ela ainda nos revelou que essa prtica foi algo que manifestou nela desde criana, e ela costuma benzer. At ela mesma, principalmente de espinhela cada. Declarou que essa orao ela aprendeu com um outro benzedor, antes de sua morte. Conforme ela, as oraes de benzeo devem ser repassadas de benzedor (homem) para uma mulher e vice-versa. Isso segundo os mais velhos. O trabalho algo que deve ser feito sem nenhum tipo de recompensa. Tudo isso foi proveniente de conversa informal, nada foi gravado e por isso procuramos no identificar essa pessoa e nem revelar a sua religio. C. VIVER NA ORAO AS BENZEDEIRAS O termo na como elemento de ligao para o subttulo inicia o tom de nossa reflexo sobre a narrativa das benzedeiras. O viver na orao se refere ao valor de uso feito pelas benzedeiras durante a prtica do benzimento, ou seja, uma forma de reproduo da vida. D. NARRADORA - MARIA DA NATIVIDADE
Eu sou Maria da Natividade de Souza, nascida em 07/09/1945, tenho 63 ano. E nasci aqui na beira do rio, numa ilha aqui que chama ilha dos Prazeres, fica ao lado do sobrado, na regio das Pedras de Santana, ali por perto. Depois de bem idade, trinta e poucos anos, que minha me era benzedeira, benzia de quebrante, de zipra, de levantar a espinhela, ento eu fui aprendendo com ela, eu via ela fazendo e fui aprendendo com ela. Ento, ela ficou doente, ficou bem velhinha, j estava com 95 anos e eu fiquei assim no lugar dela. As pessoas vinham e todos queriam que ela orasse, eram crianas e adultos tambm e assim se sentiam bem. A eu peguei aquilo com ela e fazia o mesmo. Agente, primeiro, ora pedindo ao senhor perdo para livrar os pecados daquela pessoa que agente vai orar naquele momento, pedindo o senhor a graa da misericrdia, da cura, salvao e libertao. A agente comea a orar as palavras que de quebrante, pra criana ou pra adulto, assim agente ora pra zipra. Pra adulto, agente ora assim o texto da libertao quando a pessoa est se sentindo ruim, que seja uma dor de cabea, uma dor no corpo, que esteja achando que mal olhado e tudo a gente ora o tero da libertao. E Jesus quem cura, salva e liberta. A, agente agradece ao senhor. Tanto criana como adulto me procuram, s vezes mais adultos que crianas. Eles vm pedindo orao para dor de cabea, dor no corpo. E a orao da libertao, ela liberta todos os aspectos da vida da gente, e a de cura tambm para qualquer enfermidade. Para cada motivo uma orao. E at para desembaraar os passos, as correntes, desatar os ns, deixar o caminho da pessoa livre. E a orao de cura, salvao e libertao concretizam na vida da gente. Quando agente comea Jesus j atua na vida da gente. Aqui vem professor, trabalhador braal, todo tipo de pessoa e eles falam: senhora Nazinha, eu vim aqui porque tal pessoa me indicou, a senhora boa em orao. Eu falo: eu no sou boa, bom Jesus, porque eu no curo ningum e nem curo a mim mesma, ento bom o senhor, uma interseo que agente faz, porque agente um vaso, ento Deus usa agente e vocs tambm, porque todo mundo usado pelo Senhor. Isso pra mim foi um dom e at est proclamado nas palavras do Senhor que esse dom foi Deus que me deu de orar para as pessoas, ajudar as pessoas e visitar as pessoas doentes. Jesus quer que eu faa esse trabalho de cuidar dos doentes e orar pelos doentes. Tem hora que agente precisa estar trabalhando, mas Deus d agente boa sorte, ento eu me dedico a isso. Mas, um dom que eu tenho e oro assim e peo ao senhor para Deus abenoar e as pessoas se sentem bem. Tanto faz a pessoa vir aqui ou no, eu intercedo por aquela pessoa; da a pouco eu tenho notcia. Ou por doena ou por situao de cansao eu gosto de estar rezando e intercedendo pelas pessoas. Tem perodos que cai a procura pela orao, porque at aqui na bblia mesmo a palavra rezar no correta, a bblia e Jesus falam de orao orar. Antigamente as coisas eram faladas assim ali tem uma benzedeira e como agente no entendia direito agente repetia. Ento, Deus na bblia fala em orar. E de primeiro eu rezava com um raminho e isso eu no fao mais. No deve ser feito porque no do agrado do Senhor. Eu s vezes oro com o tero, pe a mo na cabea da criana e oro. Isso eu fiquei conhecendo na bblia. O rezador na bblia at diz, eu no estou lembrada do versculo, mas aqui fala que ns no devemos dizer eu vou na casa do benzedor, no existe e sim o orador que pede pelos outros. Mas antigamente ns no entendamos assim. As oraes falam em nome do Senhor e so concretizadas pelo Senhor. Eu tenho um negcio assim comigo, eu quero saber de alguma coisa, eu peo ao Senhor e leio a bblia, no incio pode no encontrar aquilo que eu quero saber, mas no final est. E Deus conversa comigo a resposta.. Igual o salmo 23 o senhor meu pastor e nada me faltar. Agente ora esse salmo de manh. bom levantar, orar e glorificar o nome de Jesus. Eu levanto cedo e logo de

manh vou l fora e oro. Peo perdo pelos pecados dos meus filhos, famlia e amigos e ali olho para o cruzeiro do cu e peo beno, proteo e livramento para o mundo inteiro. Muitas vezes as pessoas chegam aqui e eu estou doente, mas isso j foi falado nas passagens da bblia, Deus quer que eu vou ao encontro das pessoas. E, s vezes, eu no vou, a Jesus j falou pra mim assim eu trago eles at voc. Voc sabe porque, eu penso isso e vejo que verdade. Porque enquanto ns estamos orando estamos proclamando o evangelho, no . Eu no recuso no , eu oro mesmo doente, porque quando eu digo no, meu corao di. Mas isso a eu digo no sou eu que curo, eu no sou menos que um gro de areia. E eu sou mandada pelo Senhor, eu sempre falo faa de mim o que o senhor quiser, eu tenho que te obedecer. Quando eu estou precisando de cura ns rezamos juntos. Voc acredita que eu estou boa e a pessoa quando sai tambm sai bem. Porque ningum cura ningum, Jesus. Tem pessoas que falam assim eu curei fulano, eu curei cicrano, mentira isso no existe. J aconteceu da pessoa passar pelo hospital e vir aqui falar que tomou tanto remdio e passou pelo mdico, ele traz aquele monte de remdio que est tomando e fala D. Nazinha, eu j tomei todos esses remdios e no melhorei. Mas tem uma coisa, quando voc vai ao mdico que voc est tomando um remdio, voc vai ao mdico e consulta, a a pessoa faz exame, toma remdios e no melhora; porque no uma doena material, uma doena espiritual. Ento com orao que fortalece, que cura. E essas oraes tm que ser duas ou mais pessoas que estiverem ali em orao uma coisa concretizada, uma realizao. um trabalho de doao. Tm pessoas que at tiram dinheiro para me pagar, eu digo no. Os servios de Deus no tm quem paga, no tem dinheiro que pague. Essa prtica est acabando, eu acho que Deus d o entendimento pra todos porque tem muita gente que fala assim ah, deixa eu ir ali pra benzer com a benzedeira, mas quem cura o Senhor, a mesma coisa da pessoa ajoelhar e pedir o Senhor. bom estar em grupo, mas agente mesmo pode estar em grupo ou sozinho. Se voc elevar o seu pensamento em Deus e orar Jesus acode na hora porque ele que a libertao de todos os males. E Deus diz que o inimigo invade a privacidade de qualquer pessoa e Deus bate na porta e quer que a gente abra e concretize todas as coisas na nossa vida. Porque com f, pedindo ele concede a graa, a beno e misericrdia. Meus meninos no tm intuio pra isso no, eles so evanglicos. Ento, agente espera em Deus, confia nele porque ele que est fazendo aquela obra. Olha, mesmo a orao para zipra verdade, se no benzer no cura. Se a coisa t muito ruim tem que rezar umas duas ou trs vezes. Enfermidade no de Deus. Deus vida, ele no veio para nos adoecer. As enfermidades so dos nossos pecados mesmo.

E. VIVER A ORAO AS PESSOAS O termo a como elemento de ligao para o subttulo diz respeito narrativa de uma pessoa que acredita na benzeo. O viver a orao se refere ao valor de patrimnio pblico aos olhos de pessoas que buscam a cura por meio da prtica do benzimento. F. NARRADORA - MARIA INS
Meu nome Maria Ins, eu trabalho na escola como professora e procuro as benzedeiras porque acredito que elas fazem o bem. Porque medida que a criana est com quebranto, mal olhado, e outros tipos de males e elas benzem, a a criana melhora. Sempre eu levo, de 15 em 15 dias. s vezes, a criana est abatida assim num canto e logo em seguida que agente leva ela fica mais esperta e melhora. Eu acredito nessa prtica.

CONCLUSO Consideramos que a manifestao cultural vivenciada pelas benzedeiras no municpio de Buritizeiro preserva conhecimentos tradicionais, como receber os ensinamentos de uma pessoa do sexo oposto. A benzeo surge como dom de uma pessoa por meio da transferncia. Essa associao pode-se dar durante a infncia quando os sujeitos esto buscando a referncia em pessoas prximas do seu contexto familiar. No dizer de Santayana, apud. Geertz [4]
Qualquer tentativa de falar num idioma particular no tem maior fundamento que a tentativa de ter uma religio que no seja uma religio em particular... Assim, cada religio viva e saudvel tem uma idiossincrasia marcante. Seu poder consiste em sua mensagem especial e surpreendente e na direo que essa revelao d vida. As perspectivas que ela abre e os mistrios que prope criam um novo mundo em que viver; e um novo mundo em que viver quer esperemos ou no usufru-lo totalmente justamente o que desejamos ao adotarmos uma religio.

A benzedeira nossa colaboradora demonstrou o processo de transformao que sua prtica sofreu durante o tempo e justifica essas mudanas a partir de sua conscientizao, que est hoje ligada a sua filosofia religiosa. Essas modificaes vo desde os conceitos como benzedor, rezador e orador at a excluso de ramos (folhas medicinais) durante a prtica do benzimento. A crena nessa prtica alimentada em vrias classes sociais, e independe da formao intelectual dos sujeitos, pois nossa colaboradora revela que procurada por todo tipo de pessoa. Podemos observar no relato de uma professora a confirmao dessa afirmativa. As pessoas ainda procuram as benzedeiras por motivos variados, alguns deles como a zipra que tem no benzimento seu nico remdio. Essa manifestao cultural ainda preservada de gerao a gerao, principalmente como forma de cura para os males que afligem as crianas.

REFERNCIAS:
[1] MENDES, Jacqueline Araujo Corra. Ponto de Tecer Vidas Ribeirinhas: identidade e prtica profissional de professores na Bacia do Mdio So Francisco. (dissertao de mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, 2007. [2] GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC Livros Tcnicos e Cientficos Editora S.A., 1989. [3] CASCUDO, L.C. Tradio, cincia do povo. Pesquisas na cultura popular do Brasil. So Paulo: Perspectiva, 1971. [4] ________. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In: _______. O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Traduo de Vera Mello Joscelyne. Petrpolis: Vozes, 1997.