Bauman 4
Bauman 4
Bauman 4
Nas dcadas de 60 e 70, o capitalismo estava sendo contestado de todos os lados. Alm das greves freqentes, estudantes e minorias se rebelavam e articulavam, no discurso e na prtica, a misria do cotidiano preconceitos, sexualidade restrita, vida tediosa e programada s exigncias de uma ordem capitalista. E diante da crua realidade do socialismo, o direito de ser diferente dos outros e de si mesmo tornou-se modo de permanecer revolucionrio apesar das notcias amargas sobre os resultados das revolues. A partir da dcada de 80, porm, o capitalismo ressurge triunfante, sem adversrios, sejam estes reais ou postulados. A concentrao de renda aumenta, o desemprego torna-se endmico e a fome se espalha pelo mundo; mesmo assim, a crtica se cala. Pior, o direito diferena torna-se receita de livro de auto-ajuda. No final do sculo XX e incio do XXI, socilogos de diversos matizes so obrigados ento a se colocar trs questes: que nova sociedade esta? Que tipo de discurso crtico preciso construir? Que responsabilidade o discurso do direito diferena pde ter no esvaziamento recente da crtica ao capitalismo? Essas questes formam o horizonte do novo livro de Zigmunt Bauman, Modernidade Lquida. Bauman um ensasta prolfico; a cada ano, nos deparamos com um novo ttulo seu nas estantes. A singularidade de Modernidade Lquida que, nele, Bauman no se limita a coletar signos e conceituar a distncia entre o presente e nosso passado recente; preocupa-se tambm com a atualidade dos discursos crticos prprios da poca moderna, discursos que de incio questionaram a ordem social tendo em vista a possibilidade e a necessidade de uma nova e boa ordem a ser construda no futuro, mas que, depois, passaram a se inquietar com as ameaas implcitas liberdade individual na imposio por alguns de sua viso do bem. O livro, como sugere seu ttulo, parte da mensurao da proximidade e distncia entre o presente e o passado recente. A proximidade a constatao de que continuamos modernos, simplesmente porque a Modernidade significa o fim da crena em uma ordem revelada e mantida por Deus e a assuno de que os humanos encontram-se no mundo por conta prpria. Deste modo, o que o homem fez pode ser desfeito: a Modernidade a poca da histria que pensa a si mesma historicamente. Esta forma de aproximao obriga a construir a diferena. Nosso passado recente torna-se a fase slida da Modernidade. Embora Marx parta da constatao de que tudo que slido
desmancha no ar, esta fase inerentemente transgressiva s se dava a tarefa de liquefazer os slidos herdados da tradio para construir bons e durveis slidos no futuro. Por isso, Bauman escolhe como sua metfora a fbrica fordista; afinal, o sonho de Lnin era livrar este modelo do caos do mercado e estender a organizao cientfica do trabalho para a sociedade como um todo. A boa ordem a vigorar no futuro seria inimiga da contingncia, da variedade e da ambigidade. Deste modo, a Modernidade pesada, embora refletisse normativamente sobre a sociedade e confiasse no vnculo entre ao intencional dos indivduos e transformao coletiva da sociedade, tinha uma tendncia totalitria. A ordem a construir era imaginada como homogeneidade compulsria. Inevitvel, assim que a teoria crtica, desde a Escola de Frankfurt ao menos, temesse que a primeira vtima da boa ordem fosse a liberdade individual e se desse como principal objetivo a defesa da autonomia e a luta contra a invaso da esfera privada pela esfera pblica. Nosso presente, a Modernidade Lquida, uma verso privatizada e individualizada da Modernidade. S acreditamos ser capazes de transformar a ns mesmos para nos preparar para as inumerveis transformaes sociais que experimentamos cotidianamente. Os slidos que se derreteram na fase lquida da Modernidade so os elos que entrelaavam os projetos individuais em projetos e aes coletivas. Cada um por si procura ser flexvel para se capacitar para as incertezas do futuro; ao mesmo tempo, ningum se cr capaz de transformar a sociedade como um todo. Conceituando precisamente, a Modernidade Lquida tem uma estrutura sistmica remota, inalcanvel e inquestionvel, ao mesmo tempo em que o cenrio do cotidiano relaes familiares e amorosas, emprego e cidade fluido e no-estruturado. Deste modo, experimentamos uma clivagem entre a ao humana transformadora e a ordem como um todo. O mais interessante que este mundo evidentemente distpico, onde o futuro catstrofe e incerteza que fora mudanas individuais, onde a ordem rgida, no obra de uma tirania, mas o artefato e o sentimento da liberdade dos agentes humanos. Se a Modernidade lquida caracterizada por esse abismo entre o direito auto-afirmao individual e a capacidade de controlar as situaes sociais que podem tornar essa liberdade factvel, se ela marcada pela privatizao do destino e pela crise da poltica, necessrio mudar a tarefa da teoria crtica. Se antes o decisivo era defender a autonomia privada contra o avano do Estado, a tarefa hoje defender o evanescente domnio pblico de sua invaso
por interesses e sofrimentos privados. Como restituir lugares pblicos na cidade, ao invs de ela ser marcada pela proliferao dos condomnios fechados e shoppings centers? Como evitar que nossos jornais e TVs sejam ocupados por fofocas sobre personalidades pblicas e pela exibio de sofrimentos individuais sem qualquer possibilidade de articulao em causas pblicas? Bauman apresenta esses temas atravs da anlise de cinco conceitos decisivos, cada um formando um captulo do livro: emancipao, individualidade, espao/tempo, trabalho e comunidade. Em todos eles, reaparecem diversos traos em que nos reconhecemos: a incerteza da vida cotidiana, a insegurana na cidade, a precariedade dos laos afetivos e do trabalho, o privilgio do consumo em detrimento da produo, a troca do durvel pela amplitude do leque de escolhas, o excesso de informaes, etc. No ltimo captulo, Bauman se dedica no mais a mostrar a inadequao dos contedos da teoria crtica nossa realidade, mas a questionar uma alternativa tica e poltica do presente, o sonho comunitrio. Para Bauman, a popularidade desse sonho gerada pelo crescente desequilbrio entre a liberdade de direito e as garantias individuais. A comunidade a promessa de um porto seguro para os navegantes perdidos no mar turbulento da mudana constante, confusa e imprevisvel. O problema que este um sonho de pureza, que opera segundo a distino entre ns e eles, excluindo tudo o que se considera estranho, como ocorre nos condomnios fechados e nos nacionalismos. A aposta de Bauman no modelo republicano, aquele onde a unidade um resultado e no uma condio a priori, uma unidade erguida pela negociao e reconciliao e no pela supresso das diferenas. Este modelo a sua resposta a uma questo que angustia a muitos hoje: como voltar a lutar pelo bem comum reconhecendo, ao mesmo tempo, que existem mltiplas verses do bem e que o totalitarismo sempre ronda aqueles que querem impor sua verso aos outros?