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Fabio Gutemberg Ramos Bezerra de Sousa
Cartografias e Imagens da Cidade: Campina Grande - 1920-1945
Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Hist6ria do Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientacao da Profa, Ora. Silvia Hunold Lara.
Este exemplar corresponde a redacao final defendida e aprovada pela Banca Examinadora, em 30103/2001,
Prof. Dr. Sidney ChaJhoub (membro) 3,('\v;~Prafa. Ora. Maria Stella M. Bresciani (membra) Profa. Ora, Margarida de Souza Neves (membr
("_,b~-~4-- ..
Prof. Dr. Antonio Paulo Rezende (membro) \ \
Profa. Ora. Clementina Pereira Cunha (suplente)
Profa, Ora. Dea Ribeiro Fenelon (suplente)
Campinas - Mar~o de 2001
FICHA CATALOGAAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
So 85e
Orientador: Silvia Hunold Lara.
Tese (doutorado ) - Universidade Estadual de Campinas, Institute de Filosofla e Ciencias Humanas.
Sousa, Fabio Gutemberg Ramos Bezerra de
Cartografias e imagens da cidade: Campina Grande - 1920- 1945 I Fabio Gutemberg Ramos Bezerra de Sousa. - - Campinas, SP : [so n.], 2001
1. Histeria social- Campina Grande (PB). 2. Cartografia.
3. Conflito social. 4. Urbanizaeao - Brasil. 5. Ruas - Campina Grande (PB). 6. Elites (Ciencias Sociais). I. Lara, Silvia Hunold. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas. III. Titulo.
11
A Nilda e Mariana.
Aos me us pais, Maria de Jesus Ramos Bezerra e Sebastiao Bezerra de Sousa (im memoriam)
11l
RESUMO
A questao central deste trabalho e reconstituir as rnultiplas formas de se viver na cidade de Campina Grande - Parafba -, no periodo de 1920 a 1945. Buscamos recuperar como jornaleiros, operarios, artistas, comerciantes, prostitutas, industriais e agricultores viviarn: onde moravam, amavam, divertiam-se e trabalhavam; como usavam os espacos e territories de uma cidade em transrormacao. perfodo em que sua area central estava passando por um processo de reforma urbana.
Fazemos isso dialogando com a historiografia, em especial com autores que costumam se voltar para as cidades como se etas fossem entidades abstratas ou hornoqeneas, muitas vezes negJigenciando os confiitos que fazem delas mais do que lugares para 0 capital e para circulacao. Isto nos levou a recuperar a diversidade que a constitui, 0 que fazemos penetrando nos meandros do trabalho, lazer e cotidiano de grupos socials e profissionais, como agricultores, vendedores de paes, choferes, donas-de-casas e carregadores, recuperando as singulares cartografias que fazlam da cidade; mostrarnos os terntonos centrais, a nona do meretrfcio e os arrabaldes segregados, onde a cidade sofreu transformacoes no perfodo; adentramos estes territories buscando recuperar os usos e as relacoes entre seus moradores.
A recuperacao destes aspectos da vida dos moradores de Campina Grande levou-nos a problematizar tarnbem os trabalhos que superestimam a dirnensao disciplinar, que teria marcado 0 advento da sociedade burguesa modema nas cidades brasileiras, pots, rnais do que a universalizacao dos chamados valores modernos encontramos tensoes e rnultipias percepcoes e leituras em torno de sua msntucionalizacao.
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ABSTRACT
The central question of this work is to reconstruct the multiple ways of living the inhabitants of Campina Grande (Parafba) between 1920 and 1945. We try to find how day-laborers, working men and women, artisans, merchants, prostitutes, industrialists and peasants lived their lives, where do they live in, loved, worked and amused theirselves, how they used the spaces and territories in a changing city, in a moment when its central area was passing through a urban remodeling process.
We do that by dialoguing with the histOriography, especially with authors who used to deal with "cities" as abstracts or homogeneous entities, often neglecting the conflicts that make them more than just places for the capital and for circulation. All that brings us to recuperate the diversity that build the city, by penetrating the in-betweens of the work, leisure and everyday life of social and professional groups as farmers, bread sellers, chauffeurs, house-keepers e bearers, restoring the singular cartographies that were made in the city, showing the central territories, the red-light-zone and the segregate places in which the city has been turned in that period. We come into it by trying to recover the uses and the social relations between the city's inhabitants.
The recovering of these aspects of the Campina Grande's inhabitant's lives also brought us to question the works witch overestimate the disciplinary dimension that would have stroke the advent of the modern bourgeois society in the Brazilian cities. More than the universalisation of the so called "modern values", we find tensions and multiple perceptions and readings around its institutionalisations.
Vll
AGRADECIMENTOS
Na elaboracao da tese convivi com urn grande nurnero de pessoas e amigos que em muito ajudaram na sua consecucao. Depois da expertencia, tenho duvidas sobre a maxima que diz que a reoacac de urn trabalho acadermco e algo solitario. Voces foram a exata medida da neqacao desta lenda.
Silvia Lara ... confesso que e diffcil falar do seu papel nisto tudo. 0 problema e sncontrar palavras que sirvam como sinais de reconhecimento a alquern que mostrou que a relacao de orlentacao e tamoem urn exercicio de respeito. A melhor forma de reconhecimento aos seus ensinamentos e toma-les como referencia para a vida e os dias que virao,
o apoio da Capes foi fundamental para a consecucao deste trabalho. Sem a balsa por ela financiada tanto a pesquisa como a reoacao seriam inviavels.
Este trabalho em urn certo momenta foi apenas urn projeto, mas antes de ser urn projeto foi urn amontoado de ideias e desejos. Durval Muniz de Albuquerque Junior e Gervacio Batista Aranha contribuiram grandemente para que as idelas inicialmente esparsas tomassem tino e rumo.
Em 1997, ao chegar em Campinas, me deparei com um grupo de estranhos, erarnos quinze. Hoje posso declinar os nomes de alguns que se transformaram em referencias para muitas coisas. Norberto Ferreras, Alvaro Pereira do Nascimento, Paulinha Palamartchuk, Luigi Biondi, Elciene Azevedo, Paulo Pinheiro Machado, Roberto Pastana de Lima e Cristiana Schettini ajudaramme a transformar 0 estranho grupo na inesquecfvel turrna de 1997.
Para a elaboracao deste trabalho foi fundamental 0 dialogo com amigos e colegas de trabalho. As conversas com Gervacio Batista Aranha, Antonio Clarinda Barbosa e Luciano Mendonca de Lima abriram portas e apontaram caminhos quando tudo estava apenas no comeco. Todos sao responsaveis pelo tarmmo deste trabalho, embora nao tenha coragem de responsabihza-los pelo resultado final.
IX
Urn reconhecirnento e agradecimento especial a Martha Lucia Ribeiro, Maria Jose Oliveira, Creuzolita Agra e Fabricio Lira Barbosa por terem colocado, a minha dispostcao, acervos e arquivos particulares.
D. Esmeraldina Agra contou-me inumeras vezes a sua saga na reconstituicao da mem6ria de sua familia e mostrou-se um baluarte na defesa dessa memoria, Agradeco tarnbem pelo material que deixou a disposicao para consulta.
Silvia Cristina, amiga com quem dividi momentos alegres e diffceis da ascrevlnhacao da tese. Um agradecimento especial pelo exemplo de pessoa humana e profisslonal,
Socorro Rangel, comigo viveu momentos de anqusnas e alegrias quando da recacao deste trabalho. Conversando, brincando ou brigando, cada um ao seu modo foi construindo sua hist6ria, da qual a tese e apenas uma pequena parte.
Socorro Cipriano fOi uma lncentlvadora dos voos que fazemos quando se escreve um trabalho academico. Quando achava que 0 manancial dos leitores ex6genos havia se esgotado, apareceu com uma generosa leitura de partes do trabalho.
Norberto e Veronica talvez sejam as pessoas mais proxirnas do meu trabalho, sem terem lido uma paqina sequer. Durante almocos, churrascos e batepapos informais trocamos ideias, antecipamos defesas e eonstruimos 0 que hoje e do domino publico. Com voces, entre muitas coisas, aprendi li¢es sobre a arnizade.
Darniao de Lima, grande amigo. Em todos os momentos do trabalho esteve presente, mas foi nas conversas e bate-papos alegres e espirituosos pela internet que deixou suas maiores marcas. As piadas, brincadeiras e poesias, todas guardadas para futuros pesquisadores, fizeram dos dias dificeis alegres momentos de espairecimento. For tarnbern 0 primeiro leitor ex6geno das vers6es de alguns capftulos e fez generosos e estimulantes comentanos. dando-me dicas especiais para que ao final 0 trabalho nao estivesse voltado apenas para 0 restrito publico academico.
x
Alvaro Pereira do Nascimento, carioca sangue bom. Uma marca na vida de quem 0 conhece pela generosidade e sensibilidade. Foi urn divisor de aguas na vida de urn Paraiba. Obrigado por tudo, mano!
Cris e Claudia sao duas e uma ao mesmo tempo. De 1997 ate OS dias que correm estiveram sempre juntas. Nas conversas, brincadeiras e alrnocos na Unicamp foram se mostrando e se transformaram em uma referenda, mesmo sendo duas.
Uma das experiencias mais marcantes que tive em Campinas foi no numero 85 da Rua Estrela Tres Marias. Na Pousada do Sol descobri e conheci uma plelade de amigos que tornaram os dias distante da terra uma aventura alegre e viva. Lugar cosmopolita, mercado de troca culturais, de reuniao de paulistas, estrangeiros, nordestinos, cariocas e gente do norte e do sul. Zanoni Dueire Lins, Edson Kakuno, Elias Helou Neto, Fabio Menegawa, Michael Ohler, Vladimir Panov, Gustavo Peixoto, Wilson Pichini, Fabricio Pedroza e D. Therezinha Farah tornaram as dias da Pousada do Sol mais cheio de vida e proporcionaram-me 0 ambiente ideal para viver e trabalhar,
No exame de qualficacao tive as argutas leituras dos professores Sidney Chalhoub e Maria Stella Bresciani, que, com suas dicas e suqestoes, colocaram problemas e apontaram caminhos, transformando 0 que normalmente vemos como tortura num aprazivel e tranquilo debate academico. Aqradeco aos professores Sidney Chaloub, Margarida de Souza Neves, Maria Stella Bresciani e Antonio Paulo Rezende par terem aceito participar da banca examinadora.
Escrever uma tese distante da terra, nao e algo simples. Alguns amigos ajudaram muito ao informarem constantemente sobre a terrinha e trazerem-na mais para perto. A Jose Ivan da Costa Brito, Jose Wanderlei Lucena e Sonielson Jovino aqradeco pela linha direta, virtual ou nao, com a mais cosmopolita das cidades que conheco, simplesmente sume.
Aos amigos e colegas do Departamento de Hist6ria e Geografia (DHG), aqradeco por me terem liberado para as aventuras do doutorado. Sei que e diffcil para alguns e sobrecarrega outros tantos, mas acho que no momenta certo vou dar-lhes 0 troco.
XI
Durante a pesquisa documental tive a ajuda de urna categoria que precisa ter seu trabalho reconhecido; ao menos no meu caso, seria diffeil fazer tudo sem ajuda dos que tirararn xerox e c6pias de diversos documentos. Um agradeeimento especial a Antonio Carlos da Silva (Toinho da Atecel), Genilson Paulino da Silva (Xerox do Calcadao) e Ralf (A Copiadora).
A pesquisa com processos crlrninais foi feita na 1 a Vara do Tribunal do Juri de Campina Grande, Forum Afonso Campos. Para que 0 acesso a docurnentacao oeorresse, recebi a ajuda e onentacao de um funconario exemplar e que desde muito tem facilitado 0 trabalho de pesquisadores em Campina Grande. Lucio, um especial obrigado pela atencao e respeito com que recebe todos nos.
Em Joao Pessoa uma ajuda foi fundamental para abrir portas de arquivos e na orientacao de como e onde pesqulsar, Agradec;o multo a Jose Octavio Arruda, que de uma forma simpatica, alegre e ateneiosa informou-me sabre os meandros dos arquivos pessoenses.
A pesquisa documental foi realizada em diversos arquivos publicos municipais e estaduais. Em Gampina Grande iniciel pelo Museu Hist6rico. La eneontrei apoio, incentivo e atencao de Walter Tavares, um baluarte na diffeil tarefa de preservar e publicizar 0 patrimonio htstonco e cultural de Campina Grande. Sem Walter Tavares muito da memoria da cidade ja teria descido pelo ralo da incornpetencia e neglig€mcia de alguns beocios, Tarnbern no Museu Historico recebi a atencao de diversos funcionarios, entre as quais aqradeco a Jose de Arirnateia de Souza Costa, Maria da Paz Motta Oliveira e Yaponira.
No Instituto Hist6rico e Geografico Paraibano muito devo a atencao do seu presidente, Dr. Hugo, e das funcionarias Luzia e Socorro, que sempre se mostraram sotlcitas e atenciosas com meus pedidos.
Tive orientacao mesttmavel dos funcionanos e funcionarias da Funda~o Gasa de Jose Americo, em Joao pessoa, e da Fundacao Joaquim Nabuco, em ReCife, a quem aqradeco por terem facilitado a minha vida.
No Arquivo Publico e na Biblioteca Publica do Estado da Parafba encontrei grande parte da docurnentacao deste trabalho e apoio dos seus diligentes funcionartos.
xu
No Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, tive a atencao de um funcionarlo que domina a perfeicao os labirintos e a geografia do luqar. E a Safiro que estou me referindo.
Na Curia Metropolitana, em Joao Pessoa, fui atendido pontualmente pelo funclonario do arquivo, que esforcava-se 0 maximo para deixar a vontade um pesquisador que nao cansava de torrar-lhe a paciencia,
No arquivo do Comando Geral da Polfcia Militar da Parafba receb uma atsncao especial do Comandante Coronel Joao Batista Lima, um interessado na pesquisa e histona da pollcia militar da Parafba. Foram tarnbern de grande ajuda 0 Cabo Severino Gambarra da Nobrega Neto e 0 Sargento Luiz Carlos de Assuncao.
No Nucleo de Hist6ria Regional (NDHIR) recebi 0 apoio e atencao muito especial de Gloriete, pesquisadora incansavel e um exemplo para as novas gera¢es dos que se aventuram pelos diffceis caminhos da pesquisa em hist6ria.
No LAELL tive a atencao especial de Paulo Roberto de Almeida Rodrigues, que com rnuita cornpetencia tambem fez a revisao do projeto de doutorado.
No CECUL T recebi 0 apoio tnesnmavet de Henrique Espada, Luciana Barbeiro e Uliana, a quem aqradeco pela solidariedade e simpanca acolhida.
Greydmar Gomes e 0 responsavel pelos quadros e imagens do trabalho.
Um obrigado especial pelo investimento que fez para que 0 texto ficasse minimamente apresentavel
Jefferson Cano foi um dos ultirnos personagens a entrar na roda, mas deu a tese 0 que se espera que tenha urn texto academlco: estilo. Um obrigado especial por ter acelto revisar este labirlntico texto.
Nilda, mulher e amiga de muitas jomadas; mcansavet no incentivo e estfmulo durante todo 0 trabalho. Amiga, profissional e mulher exemplar. Se este trabalho tiver algo que Ihe serviu de insplracao, este algo fol sua trajet6ria, sua vida. Sem voce nada disto seria possfvel,
XIII
iNDICE
lntroducao: Leituras da cidade 01
Capitulo 1: Terntcrios em movimento: ruas, becos e caminhos 19
Capitulo 2: Cartografias do trabalho: homens e mulheres em a980 89
o rnundo des vendedores de paes 92
o mundo dos carregadores . 108
o mundo dos choferes t 1. 9
o mundo cas donas de casa 132
o mundo dos agricultores 145
Capitulo 3: Lugares de diversao: festas, bares e prostibulos 171
Festa nas ruas centrais 180
Elites' na Mandchuria- 192
Populares na Mandchima 202
DiversOes nosarraoaldes 220
Capitulo 4: Imagens da cidade: letrados, poHticas e mernorias .. 245
Neg6cios promfscuos: a fetra 262
Negocios de estetica e de lernbrancas: 0 bota-abaixo 279
Homens prornlscuos e inesteuccs. a case de Jose Negrao 305
Epf!ogo: Cidades e mitos 319
Fontes e Blbliografia 327
Anexos 359
xv
INDICE DE IMAGENS
Mapas
Mapa 1: 25
Mapa 2: 60
Mapa 3: 64
Mapa 4: 72
Mapa 5: 75
Mapa 6: 96
Mapa 7 118
Mapa 8 176
Mapa 9: 192
Mapa 1 0: 209
Mapa 11: 224
Mapa 12: 228
Mapa 13: 279
Mapa 14: " 287
Mapa 15: 315
Fotografias
Foto: 1 39
Fete: 2 39
Fete: 3 39
Foto 4: 44
Foto 5: 44
Fote: 6 45
XVI
INTRODUCAO
Multo ja se escreveu sobre cidades no Brasil e no mundo: Paris, Londres, Viena, Berlim, Rio de Janeiro, Sao Paulo, Recife, Salvador, Campinas, Porto Alegre, e poderiarnos acrescentar a este pequeno rol uma relacao que nao caberia no espaco que temos reservado para elas neste trabalho. Os escritos sobre a cidade, no entanto, tem mudado com 0 tempo denunciando olhares bastante diversos, especial mente os que se voltam para a cidade moderna 1. Apes leituras sobre a cidade, fica a irnpressao da existencia de fisionomias tarnbern diversas: cidade do progresso e civilizagao para certos olhares, cidade do capital e dos conflitos socials para uns, cidade do espetaculo para outros, e ainda cidade disciplinar, so para citar as olhares que tern marcado com mais forca a historiografia brasileira e mundial nos ultirnos tempos".
Este texto e tarnbern urn olhar sabre a cidade, mas, entre inspiracoes e movimentos, buscou criar 0 seu proprio caminho. A questao central que nos mobilize e a recuperacao das rnuttiplas formas dos moradores viverem na cidade de Carnpina Grande no periodo de 1920-1945. Buscamos construir este elo recuperando aspectos das atividades e prances de pessoas, grupos socials e
I Para uma visao panoramica de diversas mudancas advindas com 0 surgimento das gran des e modemas rnetropoles europeias, ver Marshal Berman. Tudo que e solido desmancha no ar. Sao Paulo: Cia das Letras, 1986; Francoise Choay, 0 Urbanismo. 4a ed. Sao Paulo: Perspectiva, 1997; Carl E. Schorske, Viena fin-desteele. Sao Paulo: Cia das Letras, 1988; Raquel Rolnik. 0 que e cidade. 2" ed. Sao Paulo: Brasiliense, 1988; Maria Stella Bresciani. Londres e Paris no seculo XIX: 0 espetaculo da pobreza. 4a ed. Sao Paulo:
Brasiliense, 1987 e Walter Benjamin. Charles Baudelaire um lirico no auge do capitalismo. 2' ed. Sao Paulo:
Brasiliense, 1991, vol. 3.
2 Femando Moreira Diniz em A Construcdo de uma Cidade Modema: Recife (1909-1926) Mestrado em Desenvolvimento Urbano, Recife, UFPE, 1995: 11-45, faz uma sintese sabre as diversas perspectivas teorico-metodologicas a partir das quais as cidades foram estudadas no Brasil na decada de 1980 e que discutirnos na introducao. Ver autores que estudarn a cidade au grupos sociais especificos de perspectivas teorico-rnetodologicas diferentes: Sidney Chalhoub. Trabalho, Lar e Botequim. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1986; Jose Murilo de Carvalho. Os Bestializados. Sao Paulo: Cia das Letras, 1987; Oswaldo Porto Rocha, A Era das Demolicoes. Za ed. Rio de Janeiro: Sec. Municipal de Cultura, DGDIC, Divisao de Editoracao, 1995; Sandra Jatahy Pesavento. Os Pobres na Cidade. Porto Alegre: Editora da UniversidadefUFRGS, 1994; Raquel Rolnik. A Cidade e a Lei. Sao Paulo: Nobel: Fapesp, 1997; Ana Lucia D. Lanna. Uma Cidade na Transicdo: Santos ~ 1870-1913. Sao Paulo-Santos: HuciteclPrefeitura Municipal de Santos, 1996; Maria Stella Bresciani (org.). Imagens das Cidades nos Seculos XIX e x::r. Sao Paulo: ANPUHfMarco Zero/Fapesp, maio de 1994 e Londres e Paris no seculo XIX 0 espetdculo da pobreza. 44 ed. Sao Paulo: Brasiliense, 1987; Nicolau Sevcenko. Orfeu Extatico na Metropole. Sao Paulo: Cia das Letras, 1992 e (org.) Historia da Vida Privada no Brasil. Sao Paulo: Cia das Letras, 1998, vol. 3; LUlU Margareth Rago. Do cabare ao lar. Rio de
profissionais quando usavam as espacos e territonos da cidade por caminhos diversos. Mas nao nos contentamos apenas em identificar as possiveis diversidades do usa dos terntorios: penetramos no rnundo dos seus moradores para compreender como a polissemia de suas acoes se espacializava ou constitufa novas cartografias numa cidade em transrorrnacao.
No inlcio, pensavamos recuperar a diversidade de uso dos sspacos e terntonos de Campina Grande no periodo de 1930-1945; com 0 passar do tempo, no entanto, observamos que estes marcos, que na historiografia viraram nome no singular (a era Vargas), podiam embotar a percspcao de certas rnudancas e continuidades na vida das pessoas. Por lsso alargamos 0 horizonte cronoloqico, buseando um recorte que possibilitasse romper com os tempos de urna certa memoria dornlnante", 0 que nos conduzm aos anos 1920. Dtstancianoo-nos em alguns aspectos, das leituras abrangentes da sociedade brasileira (especialmente das grandes sinteses pol fticas , econornicas e socials), tentamos compreender como os moradores da eidade juntaram as tempos (0 antes com 0 depois de 1930), que problemas enfrentararn, as reoefinicoes nos usos dos espacos e terntorios da cidade e como essas rnudancas foram por eles vivenciadas. Descobrimos que os que viveram aqueles anos experimentavam tempos diferentes, faziam rnuitos e diversos movimentos, eram outras e tantas personagens. Homens e mulheres eom caras e cartografias que destoavam do modelo que tentavam universalizar.
Para que esta empreitada fosse posslvel, lancarnos mao de um corpus documental que oeupa urn lugar especial neste trabalho, os processos crlminais".
Janeiro: paz e Terra, 1985; Sebastian Rogerio Ponte. Fortaleza Belle Epoque. 2" ed. Fundacao Democrito Rocha, 1999.
3 Sobre a nocao de memoria dominante e a relacao historia, memoria e historiografia, ver Edgar Salvadori De Decca, 1930- 0 silencio dos vencidos. Sao Paulo: Brasiliense, 1981, Revista Brasileira de Historia, Memoria, historia, historiografia. Sao Paulo: A,."N"PUHlMarco Zero, vol. 13, n? 25/26, set 92/ago 93 e Revista Projeto Historia, Trabalhos da memoria. Sao Paulo, nO 17, nov1l998.
4 Todos os processes foram pesquisados no arquivo da I" Vara do Tribunal do Juri de Campina Grande. Como a numeracso dos processos pesquisados e de dificil identificacao, criamos uma que vai do numero I ao 289. Esta nurneracao segue a ordem cronologica dos maces. Para 0 pesquisador interessado nesses processos, a primeira forma de identifica-los e buscando-os pelo nurnero do mayo. Os processos foram citados neste trabalho com as seguintes referencias: tipo de processo, nurnero e data (retirada no inquerito policial), nome do (a) reu (re) e mace onde se encontra. Ao final, nas referencias das fontes pesquisadas, acrescentamos algumas informacoes que facilitarn a vida dos interessados nos processos pesquisados.
2
Essa documentacao, associada a outras fontes, ampliou em muito 0 nosso olhar, as possibilidades de adentrarmos os rnundos que constituem a cidade e de descobrirmos coisas e praticas diferentes onde alguns apregoam e apontam para a vitorta inexoravel de certos padroes modernos e mslpldos de viver. Encontramos alguns aventureiros e baluartes na defesa dos padroes burgueses modernos e ... urn pouco mais do que isto. Os processos alargaram a geografia de certos becos/fontes e possibilitaram trazer para 0 leiter uma mirlade de vidas, vidas que pulsavam e pululavam em todos os cantos e recantos da cidade, como vera 0 leiter,
As questoes que nortearam este trabalho e seus recortes metodol6gico e temporal levaram a dialoqos diversos com a bibliografia que tern a cidade como palco principal ou como uma das suas preocupacoes,
o contato com novos trabalhos e olhares sabre a cidade s6 recentemente parece ter deitado razes entre os historiadores paraioanos. Isto nao significa que nao se tenha escrita nada sobre as cidades do Estado. Ha um nurnero siqniflcativo de trabalhos, chegando-se ate a afirmar a exlstencta de estudiosos e especialistas na hlstorta de alguns dos seus municfpios e microrregioes5. No entanta, sao obras que demonstram uma atracao conqemta pelos arroubos heroicos de parte das elites, do que este trabalho pretende ser em grande parte urn contraponto. Os exemplos para Campina Grande sao obras de Epaminondas Camara, Elprdio de Almeida e Josue Sylvestre6.
Mesmo que indiretamente, estes autores e muitos outros foram alvo de crfticas do materialismo hlstorico ou, rnais especificamente, da sua vertente mais voltada para os estudos s6cio-econOmicos. Nas obras Latifundio e afgodao em Campina Grande: moaemnecso e miseria, de Josefa Gomes de Almeida e Silva, e Marte e vida das oligarquias, de Eliete de Queiroz Gurjao, as
5 Jose Octavio, em seu artigo "A urbanizacao da sociedade paraibana'', fomece urn bom nurnero de obras e auto res que vern estudando a hist6ria dos municipios paraibanos sob a 6tica que estamos denominando de hist6ria rnunicipalista, In A Paraiba das origens a urbanizacdo, Jose Octavio (introd. e org.), Ed. da (JFPB/FUNAPElFundayao Casa de Jose Americo, 1983, pp. 109-119.
6 Elpidio de Almeida, Historia de Campina Grande. Za ed. Joao Pessoa: Editora Universitaria/Uf'Pb, 1979; Eparninondas Camara, Alicerces de Campina Grande. Campina Grande: Oficina Grafica da Livraria Moderna, 1943 e Datas campinenses. Joao Pessoa: Departamento de Publicidade, 1947; Josue Sylvestre, Da . Revolucdo de 30 a queda do Estado Novo. Brasilia: Senado Federal, Centro Grafico, 1993.
3
preocupacoes muitas vezes sao invertidas, alguns marcos mudam e os personagens tarnbern sao outros"
Nestes estudos, 0 progresso tao decantado pela bibliografia municipalista passa a receber 0 epfteto de capitalista, aparecendo como 0 causador de um desenvolvimento que traz tambern a fome, a rniseria e a exploracao para parcelas significativas dos trabalhadores urbanos e rurais. A forca que move toda a sociedade e os aspectos mais corriqueiros da vida dos trabalhadores do campo e da cidade e 0 Modo de Producao Capital ista , novo demiurgo que a tudo se irnpoe com uma "16gica tnexoravel" I que parece estar acima dos homens e de suas vontades, estranho poder a que Thompson nao se furtou a ironizar n'A misetie da teoria8.
Este modelo de analise da sociedade, ja bastante problematizado, contribuiu tarnbem para a constltuicao de uma historiografia crftica e mais atenta as ambigOidades da rnodernizacao e do progresso brasileiros. Mesmo que de uma forma preconceituosa e utilizando conceitos e categorias abstratas, descarnados, esta historiografia incorporou as suas anahses as problemas vivenciados pelos grupos marginalizados, especialmente pelos trabalhadores urbanos e rurais (embora estes aparecam, na maloria das vezes, como sujeitos coletivas abstratos au como submissos e derrotados''); ela tarnbern denunciou 0 ufanismo progressista da hist6ria municipalista ao criticar a rnarpmauzacao de parcelas significativas da populacao que 0 progresso produzia, 0 que significa que sao interlocutores com os quais se deve manter constante dialoga critico.
Na segunda metade dos anos 1980, vimos surgir 0 primeiro trabalho sobre Campina Grande com uma perspectiva teorico-metodoloqlca que se distancia das duas tradi<;oes anteriores 10. Em 0 Espefho de Narciso: uma visao histortc« das
7 Josefa Gomes de Almeida Silva, Latifundio e algoddo em Campina Grande: modernizacdo e miseria. Mestrado em Historia, Recife, UFPE, 1985 e Eliete de Queiroz GuIjilo, Morte e vida das oligarquias. Joao Pessoa: Editora Universitaria/Uf'Pb, 1994.
8 Ver E.P. Thompson, A miseria da leona. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1981 :184-185. 9 Eliete Queiroz Gurjao, op. cit., 1994:195 e 198.
lO 0 primeiro trabalho academico de que temos noticias de ter estudado a Paraiba a partir de uma perspectiva teorico-metodologica dentro do amplo campo que se convencionou denorninar de "novas tendencias" historiograficas foi Ariosvaldo da Silva Diniz., A maldiciio do trabalho (Homens pobres, mendigos, ladroes ... no imaginario das elites nordestinas -1850-1930). Mestrado em Ciencias Sociais, Joao Pessoa, UFPB, 1988.
4
trenstormecoes urbanas em Campina Grande (1935-1945), Cassandra Veras fez uma leitura foucaultiana das reformas implementadas na gestao Vergniaud Wanderley 11. As rnudancas sao vistas basicamente como estrateqtas de esquadrinhamento, dlscipllnarizacao e controle da vida das populacoes pobres e dos grupos tradicionais ligados a propriedade rural, tarnbern vltimas das novas formas de orqanizacao do espaco burques. A burguesia comercial e a parcela da elite que esta a frente de sse processo de redeflnlcao da vida da cidade.
Ha, no entanto, problemas na monografia de Cassandra Veras: 0 primeiro diz respeito a pesquisa realizada e as fontes utilizadas pela autora para fundamentar sua leitura do processo de urbanizacao como uma estrategia de dlsciphnarizacao dos espacos e moradores da cidade. Utilizando
predominantemente 0 depoimento
de uma
rnoradora antiga, algumas
reportagens do jornal 0 Rebate e urn relatorio oficial da Prefeitura, poucos sao os subsfdios para sustentar a tese da autora que, parece-nos, esta mais ancorada na opcao metodol6gica do que nas possibilidades abertas pelas fontes utilizadas; alern disso, ela terrninou construindo uma dicotomia que consideramos artificial entre os chamados grupos "tradicionais" I ligados a grande propriedade rural, e a "burguesia come rcia I" algodoeira, principalmente por deixar a irnpressao de que estes grupos ou classes agiam monoliticamente, em bloco. 0 que, como veremos no decorrer deste trabalho, e uma visao simplista dos conflitos ocorridos na cidade.
Ao mesmo tempo, a autora deixou de lado urn aspecto crucial no processo de otsctpnnarlzacao que investiga: as formas como os habitantes da cidade vivenciaram cotidianamente as empreitadas disciplinares e como reinventavam ou ressignificavam 0 que Ihes era imposto de clrna. A observacac dessa dimensao da vida dos moradores de Campina Grande e de como as reformas neta mtertenarn darla ao seu trabalho e a nocao de disciplina urn significado diferente daquele por ela ace ito. Grande parte do nosso exercicio vai exatamente no sentido de mostrar
o autor investiga 0 advento do mercado de trabalho e da industrializacao na Paraiba aproxirnando a obra do historiador social ingles E.P. Thompson a do fi16sofo pos-estruturaiista frances Michel Foucault.
11 Cassandra do Carmo Veras, 0 Espelho de Narciso; uma visao historica das transformaciies urbanas em C ampina Grande (J 935-1945). Monografia de Graduacao em Historia, Campina Grande, UFPB, 1988.
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o quanto se perde ao superdimensionar 0 poder e alcance das instituicoes modernas e burguesas no seio da populacao brasileira. Mais do que isto, uma vez que a institucionatizacao da sociedade e vivenciada diferenternente por seus moradores, que se apropriam dos novos equipamentos e produtos do mundo moderno de formas tambern diferenciadas, e precise, no rnlnimo, redimensionar a nocao de moderno, quase sempre lida no singular.
o trabalho de Cassandra Veras, como dissemos, inspirou-se no fltosofo e historiador frances Michel Foucault, especial mente em obras como Microfisica do poder e Vigiar e punir12, estudos sobre 0 surgimento da medicina social, da prisao e da pstqulatrta. entre outras formas de disciplinarizacao. No Brasil, varies outros estudos utilizaram Foucault para compreender 0 advento da sociedade mocema".
No campo especffico da rnstorla, vimos surgir Do cebeie ao lar, de Margareth Rago 14. Nesta obra na uma aproximacao do pensamento de Michel Foucault com 0 do historiador ingles E. P. Thompson 15, No entanto, nao ha duvida de que eta pen de mais para urn lado, facilmente verificado logo nos primeiros paraqrafos da introoucao". 0 problema e inicialmente colocado com a reproducao de trechos e fa las de membros da elite dominante que habitavam a Capital Federal, entre as uttirnas decadas do secuto XIX e as primeiras do XX, e que viam, entre estarrecidos e revoltados (ou mesmo temerosos), 0 afluxo de
12 Michel Foucault Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1977 e Microfisica do poder. (org.) Roberto Machado. 4a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
13 Entre eles, os pioneiros foram Roberto Machado et alii. A datniacdo da norma: Medicina Social e a constituicdo da psiqutatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978 e Jurandir Freire Costa, Ordem medica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
H Margareth Rago, op. cit, 1985.
15 Para urn balance da aproxirnacao entre Thompson e Foucault nos anos 1980, ver Margareth Rago "0 efeito-Foucault na historiografia brasileira" In Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, vol, 7, nO 1-2, outl1995:67-82. Ver ainda Durval Muniz de Albuquerque Jr, Falas de astucia e de angustias. Mestrado em Historia, Carnpinas, Unicamp, 1998 e Arisovaldo da Silva Diniz, op. cit 1988.
16 Nao 56 ern Do cabare ao lar, mas sobretudo em seus trabalhos posteriores Margareth Rago terminou aproxirnando-se cada vez mais das ideias centrais do pensarnento de Foucault, 0 que significou tambern redefinicoes na sua leitura do £11650fo frances: ver Os prazeres da noite: prostuuicao e codigos da sexuatidade feminina em sao Paulo. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1991; "As marcas da pantera: Foucault para historiadores" In Revista Resgate; n? 5, Campinas, SP: Centro de Memoria/Papirus, 1993, pp, 22-32 e "0 efeito-Foucault na historiografia brasileira", in Tempo SOCial, Revista de Sociologia da USP, vol. 7, n? 1-2, outlI995:67-82.
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imigrantes e a expansao e/ou prouteracao de habttos perniciosos para as elites da capital federal do perfodo.
Nas constantes aojenvacoes que acionam e constltuem imagens negativas de certas prances e atitudes de trabalhadores e nao trabalhadores, a autora vai perceber a "tormacao nos lnlcios da industnalizacao no Brasil ... [de] uma vasta empresa de mcrallzacao", que teria como objetivo principal a constitulcao de "uma nova figura do trabalhador, docil, subrnisso, mas economicamente produtivo"17.
o projeto disciplinar se espraia pela vida dos trabalhadores dentro e fora das fabricas, inclusive em suas atividades aparentemente mais livres, como nos momentos de lazer". Mas a teia em que medicos-higienistas e empresarios pensam enredar a classe operaria emergente termina enfrentando "as reststencias tenazes de trabalhadores que preservam suas tradicoes, sistemas de valores e costumes, que vatorizam sua atividade profissional, que cultuam seus santos, que possuem todo um codigo de representacoes simb6Iicas,,19.
Nos quatro capltulos que cornpoem Do ceoer« ao lar, ao projeto de dornmacao que tentam impor a classe operarta opoe-se um conjunto de pratlcas e resistenclas dos trabalhadores, denominados de "contra-poderes". Capitaneadas pelo projeto anarquista de sociedade, esses contra-poderes denunciam as tentativas burguesas de controle e dornesticacao do trabalnador, apontando como alternativas ide-las de autogestao das tabricas, uma pedagogia libertaria para a formacao do homem novo e "imagens libertarias da cidade do futuro". Isto nos leva a perceber que as constantes investidas disciplinares a que erarn submetidos os operarios sao parte de urn projeto que vai enfrentar reslstencias na sua consecucao e que, pensarnos, abre possibilidades de orpanizacao social alternativas, relativizando e/ou diminuindo a eficacia da sufocante rnaquinaria de controle e dornesticacao dos trabalhadores, que virnos durante todo 0 trabalho ser rnontada e azeitada pela autora.
Como ficou dito atras, 0 trabalho de Margareth Rago e rnoldado por urn arcabouco teortco-rnetoooicqtco que tern em Michel Foucault 0 seu principal
n Idem, p. 12. 18 Idem, p. 12. 19 Idem, p. 13.
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expoente (com seus seguidores Seguin e Corbin), arcabouco elaborado no seio da cntica ao advento da sociedade burguesa modern a e aos seus multiples mecanismos de normatizacao da vida dos indivfduos. Nao e dificil perceber como a inflat;ao e repencao constante de termos como mecanismo, otsposltivo. tecnologia disciplinar, praticas e relacoes de poder, exercfcio de poder e saber fazem parte de uma forma/modelo de compreender a advento da sociedade modema, em que se denuncia que esta nao inaugura um novo tempo de liberdade e autonomia para 0 homem, tal qual prega 0 pensamento lIuminista, mas, contrariamente, torna-o pnsioneiro de toda uma complexa rede de poderes, que e sobretudo disciplinar e que nao se pode combater de fora, pois envolve a todos na sociedade e dissemina-se par todos os espacos e lnstitulcoes socials, modeJando o proprio corpo, especialmente atraves de micropoderes presentes nas relacoes cotidianas na familia, escola, trabalho, lazer, arquitetura e orqanizacao do espaco.
Nos anos noventa Michel Foucault continuou inspirando estudos e pesquisas de pos-qraduacao em hist6ria2o. Podemos acompanhar mais um deles em Imagens da cidade. Secutos XIX e XX, nurnero especial da Revista Brasileira de Hist6ria, organizado por Maria Stella Brescianr". Em "Imagens do conforto: a casa operaria nas primeiras decadas do seculo XX em Sao Paulo,,22, Marisa V.T. Carpintero concebe os projetos de urbaruzacao das grandes cidades modernas como parte de estrateqias de dorninacao e controle social dos operarios, articuladas no discurso de sanitaristas, higienistas, engenheiros, arquitetos etc. Estes profissionais, formados nos preceitos modernos de intervenc;ao tecruca e cientifica na sociedade, constroem urn modelo de comportamento fundamentado na denuncia de pratlcas e habitos socials vistos como desviantes e anti-higienicos.
Construindo imagens negativas das formas de trabalhar, habitar e viver dos pobres, operartos e trabalhadores, os tecnicos assumem urn papel estrateqico na
20 Alern do trabalho abaixo comentado, ver Sebastiao Rogerio Ponte, op. cit, 1999 e Ana Claudia F. Brefe, A cidade inventada: a Pauliceia construida nos relatos memorialistas (1870-1920), Mestrado em Historia, Campinas, Unicamp, 1993, Durval Muniz de Albuquerque Junior, op. cit., 1988 e Ariosvaldo da Silva Diniz, op. cit, 1988.
21 Stella Bresciani (org.).lmagensda cidade ... 1994.
22 Ver Marisa V. T. Carpintero In lmagens da cidade, pp. 123-146.
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sociedade, que e 0 de detectar praticas desviantes e corrigi-Ias, elaborando politicas publicae que interfiram no cotidiano dos trabalhadores e operarlos, com vistas a transforma-los em trabalhadores docets e produtivos. Por outro lado, a autora contrap6e ao discurso higienista e disciplinar as imagens presentes nos textos de operanos e demais trabalhadores, definindo como um dos seus objetivos "desvendar mais uma dentre as tramas que envolveram nos anos 20, a gestao de uma nova polftica urbana na cidade de Sao Paulo,,23.
No geral, a obra de Michel Foucault inspirou um conjunto de historiadores, pslccloqos e filosofos que apreenderam 0 advento da modernidade no Brasil a partir da constinncao de estrateqias disciplinares e de mecanismos de controle social dos comportamentos vistos como desviantes, antl-hlqlenicos e perlqosos'". No entanto, recortamos 0 nosso objeto a partir de uma perspectiva em muitos sentidos contraria a esta, pois interessarn-nos "os significados culturais diversos e conflitantes que permeavam as praticas socia is" em Campina Grande no perlodo de 1920-1945; buscamos reconstituir as tensoes e experiencias que marcaram 0 advento das instituiyoes e valores modern os. Portanto, diferentemente dos autores que dao enfase a rede disciplinar, recuperamos as atitudes dos moradores que a rompiam, jam de eneontro a ela, ressignificando seus fios e enlelos, dando-Ihes dlmensao polissernica'".
Outra vertente que preconiza urn novo olhar sobre a eidade foi eonstitufda pela recepcao no Brasil da obra do pensador, escritor e entice da cultura Walter Benjamin. Vanos foram os historiadores, fil6sofos e cientistas socials brasileiros que procuraram inspiracao nas obras de Benjamin para refletir as mudancas ocorridas na sociedade, especialmente nas nossas grandes cidades, muito ernbora a dirnensao caleldoscoptca de sua obra tenha lnsplraco leituras sobre empreendimentos em locals tao dfspares como as cidades de Londres, Paris e Sao Paulo e a construcao da estrada de ferro Madeira-Mamore nos
23 Idem, pp. 124-125.
2~ Ver Fabio Gutemberg R. B. Sousa, "A historiografia brasileira e a nocao de "poder discipliner?", Revista Saeculum (no prelo), em que analisarnos a apropriacao das obras de Michel Foucault por alguns historiadores brasileiros,
25 Ver Marshall Berman, op. cit., 1986:33-34 e Michel de Certeau. A invencdo do cotidtano. Artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1994: 111·116.
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confins da Arnazonta'".
A leitura empreendida por NicoJau Sevcenko em Orfeu extetico na metr6pole analisa 0 carater fremente da urbanizacao em Sao Paulo nos anos 1920 em suas relacoes com as vanguardas europeias, a dissolucao da cultura do seculo XIX e 0 surto de modernismo paulista. Na leitura de Nicolau Sevcenko, observa-se a dissolucao de uma cultura baseada na razao, na palavra e na tradlcao neoclassica do seculo XIX frente a uma nova ordem, de carater essencialmente urbano, das grandes metropoles e de seu ritmo rrenetico e desorientador. A cidade se transforma em um palco de acao teatral da modernidade, no qual a poputacao sofre um sentimento de desenraizamento, de perda de individualidade, de grandes rnudancas na percepcao e clrculacao urbana. Uma perda de identidade, certamente, mas tambem uma construcao de novas identidades ja integradas a modernidade, alern do resgate de novas sensibilidades27.
o estudo de Nicolau Sevcenko sobre a cidade de Sao Paulo nos anos 20 e embtsrnatico, especialmente pela riqueza e dimensao crfticas diante de urn processo que, ao mesmo tempo que abre novas perspectivas de vida para seus habitantes, marginaliza outros tantos; ha, porern, dois aspectos que 0 diferenciam do nosso trabalho.
o primeiro associa-se ao uso dos corpus documental. Nao descuramos do significado que teve 0 surgimento de uma nova sensibilidade com 0 advento do mundo moderno e do modo como essa sensibilidade foi expressa pelos olhares dos letrados, mas buscamos recuperar as leituras diversas e as prancas que destoam desse olhar moderno, mostrando as tensoes que ocorrem quando diferentes formas de viver e usar a cidade se encontram. Para isto, alern dos jornais e obras nteranas. que sao os canais privilegiados para observar 0 novo olhar que se espraia entre letrados, adentramos aspectos do cotidiano dos
26 Stella Bresciani, Londres e Paris no seculo XIX .. , 1987; Nicolau Sevcenko, op. cit., 1992; Willi Bolle, Fisiognomia da metropole modema. Sao Paulo: Editora da Universidade de Sao Paulo, 1994 e Francisco Foot Hardman, Trem fantasma. Sao Paulo: Cia das Letras, 1988. Optarnos por discutir Orfeu extatico de Nicolau Sevcenko, por ser a obra que trata do periodo mais proximo ao nosso, No campo da historia e de estudos sobre a cidade, Stella Bresciani parece ter side a pioneira na recepcao de Walter Benjamin no Brasil.
27 Nicolau Sevcenko, op. cit, 1992:33.
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moradores da cidade atraves dos processos crimmais que apresentam uma dimensao que val aiern do que a imprensa possibilita, ampliando 0 espectro dos olhares e experiencias vivenciadas com 0 advento do mundo rnoderno nos tropicos,
o segundo aspecto esta associado ao recorte metodol6gico e espacial. Um olhar benjaminiano sobre grandes cidades e capitals brasileiras em momentos de freneticas mudancas dificilmente se adequa a experiencia da Campina dos anos 1920-1945, onde percebe-se no meio do crescimento populacional e das reformas por que passa, formas peculiares de acomodacao entre valores e slmbolos modernos e prancas culturais anteriores, 0 que Ihe oa uma dirnensao diferente das que ocorriam em cidades com vertiginoso crescimento, como Londres, Paris, Rio de Janeiro e Sao Paulo28. Campina Grande e outras cidades brasileiras seguiram caminhos e ritmos prcprios, como veremos adiante.
Vamos fazer urn outro movimento, afastando-nos das grandes metr6poles europeias e do sudeste brasileiro nas decadas iniciais do seculo xx. 0 dialogo envolve pesquisas realizadas nos anos 1990 sobre a cidade de Recife entre 0 crepusculo do seculo XIX e as primeiras decadas do seculo XX29.
Em (Des)encantos modem os: hist6rias da cidade do Recife na oeceo« de vinte, Antonio Paulo Rezende se volta para a analise da sociedade recifense e, de forma mais geral, para as formas como representava 0 modemo e 0 tradicional, 0 novo e 0 velho3o. Combinando a nocao de lmaqinarto social, presente na obra de Castoriadis, com as crfticas benjaminianas ao advento da sociedade modema, 0 autor vai se voltar para as representacces das elites intelectuais da epoca e as tensoes que viviam em uma cidade que passava por transformacoes modern izantes , mas que tinha uma s6lida intelectualidade voltada
28Nao estamos negando que nestas rnetropoles 0 advento da modernidade tenha side marcado par conflitos entre 0 antigo e 0 novo; ao contrario, eles deixaram suas marcas em todas as sociedades que vivenciaram mudancas aceleradas, mas estamos chamando atencao para as diferentes dimensoes e impactos que essas mudancas causam quando ocorrem em grandes metr6poles ou em pequenas e medias cidades, mais ainda ~uando se trata de metropoles europeias e cidades brasileiras corn tradicces socio-culturais diferentes.
2 Antonio P. Rezende, Os (destencantos da modernidade. Doutorado em Historia, Sao Paulo, USP, 1992 e Raimundo Alenear Arrais, Recife: culturas, confrontos, identidades (a parttcipaciio das camadas urbanas na Campanha Salvacionista de 1911) Mestrado m Historia, Recife, UFPE, 1995. Utilizamos tambem como referencia ern algumas discussoes deste item, Fernando Moreira Diniz, op. cit., 1995: 11-45.
30 Antonio P. Rezende, op. cit, p. 03.
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para a defesa da tradlcao, capitaneada por Gilberto Freyre.
Quando nos voltamos para a decada de vinte em Recife, nao podemos fugir de sua especfficidade, para que esse dialogo entre os tempos historicos se aprofunde e as mquietacoes nao se percam. Na oecada de vinte, em Rectfe, aquilo que provocava urn forte irnpacto pela sua novidade, pelos seus ares de moderno, tinha urn outro contexto, outras representacoes, outro imaginilrio. 0 novo e 0 velho eram mais nltidos, a referencia a tradicao era constante, a memoria nao estava tao fragmentada, 0 cotidiano da cidade nao sofria tao velozes invas6es, convivia com ansiedades bern dtferentes das nossas'",
Escrito sob 0 impacto da discussao da cnse da modernidade e, por extensao, de tradicionals paradigmas das cienctas socials e da histcria, 0 trabalho de Antonio Paulo Rezende tem sua riqueza e limites extraidos desse tempo de incertezas, onde "0 estatuto da verdade passa a ser pensado nas reiacoes diretas com as estrateqias de poder". No Brasil, e um momenta de efervescencia entre historiadores, em que se poem em xeque paradigmas voltaoos para a cornpreensao total da sociedade e que concebiam a hlstorta numa perspectiva unilinear. Contrapondo-se a estas concepcoes, 0 autor defende a ideia da sociedade movida por sonhos e projetos diversos, marcada por contraolcoes e lutas, 0 que significa dizer que a "verdade" ou os fatos rustortcos sao vivenciados diferentemente pelas pessoas e grupos socials, e e 0 resgate dessa diversidade e multiplicidade que deve rnobilizar 0 historiador.
Duas questoes nos distanciam do texto de Antonio Paulo Rezende: por um lado, ele acompanha as rnudancas modemizantes de Recife na historiografia que tern nos conceitos de modernidade e pos-modermdade a centro da ciscussao: par outro, analisa os embates e tensoes no seio das elites, deixando em urn segundo plano as suas unplicacoes para a vida de parcelas slgnificativas da sociedade recifense nos anos vinte, perdendo de vista aspectos cruciais da rnultiplicidade socio-curtural na cidade em mudanca, aspecto fundamental de nosso trabalho.
31 Idem, p. 14.
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Nestes aspecto, Recife: cultures, confrontos, identidades, de Raimundo Alencar Arrais, amplia 0 dialogo32. Este autor volta-se para 0 lugar e papel autonorno desempenhado pelas camadas populares no epis6dio da campanha salvacionista de 1911 em Pernambuco, que derrubou 0 domlnio de cerca de duas decadas do Conselheiro Rosa e Silva e levou Dantas Barreto ao governo do Estado.
Para fundamentar metodologicarnente 0 seu trabalho, 0 autor recorre a urn conjunto de obras vinculadas a tradicoes histortoqraflcas diversas. Inspira-se em visoe« da liberdade, de Sidney Chalhoub, para sua ideia da extstencia de uma "cidade popular", que vai ser perseguida pelas autoridades republicanas na primeira decada do seculo XX, numa aproxirnacao ca "cidade negra"; ao mesmo tempo, trabalha com nocoes como "praticas culturais" retiradas de Roger Chartier, e "mundo da cultural! de Natalie Zemon Davis, este ultimo para a analisar "as relacoes entre a violencia dos levantes urbanos e os ritos". Pr6ximo a leitura de Chartier, 0 autor val lancar mao tambem de A invencso do cotkiieno, de Michel de Certeau, para recuperar as "estrateqias, astucias e capacidade de reaoropriacao do homem ordlnario" diante das imposicoes dos poderes dominantes e da massincacao dos comportarnentos'".
Comungamos com duas idelas que permeiam este trabalho. Em primeiro lugar, com a importancia de resgatar a diversidade de experienclas e projetos das camadas populares em epis6dios que normalmente costumam subordinar ou diluir no seio de projetos dos grupos dominantes, e que uma certa leitura marxista abandonou, por fazer parte de uma suposta oommacao ideol6gica das elites (que, nesta visao, sempre consegue levar a reboque os trabalhadores, transformados em meras tabuas rasas ou consumidores passivos de sua ideologia). Raimundo Arrais faz uma leitura na contra mao destas visoes, Buscou nos canais e espacos de sociabilidade cotidiana das camadas populares urbanas do Recife (como clubes carnavalescos, pastoris, bandas de muslca,
32 Raimundo Alencar Armis, op. cit, 1995.
33 Idem, p. 06 e Sidney Chalhoub, op. cit., 1990:175-248, Michel de Certeau, op. cit., 1994, Roger Chartier, A historia cultural. Entre praticas e representacoes. Lisboa: DIFEL, Rio de Janeiro: Bertrand, 1990 e Natalie Zemon Davis, Culturas do povo. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1990.
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mamulengos e festas religiosas) 0 cerne das experlenclas que vao ser acionadas na campanha salvacionista de Pernambuco, em 1911. Oai surge uma dlmensao diversa dessa participacao sobretudo em confronto com a perspectiva que academtcos. bachareis, jornalistas e sanltaristas desejavarn que tivesse, dando literalmente urn colorido especial as ruas e marcando a cena diferentemente do que as elites intelectuais esperavam delas34.
Em segundo lugar, a preocupacao, mesmo que superficial (especialrnente por conta da escassez de documentos), em resgatar a diversidade e os conflitos no seio das proprias camadas populares, chamando a atencao para a ideia de que elas nao agiam homoqenea e mo nohtlca mente, 0 que significa trabalhar de uma nova perspectiva, com conceitos como identidade e cultura, lidos no plurar".
No entanto, diferencia-se 0 nosso trabalho do de Raimundo Arrais em um aspecto que reputamos baslco: com uma abundante documentacao, em que se destacam os processos criminals, pudemos aprofundar a reconstrtuicao dos usos dos espacos e dos conflitos nos meios populares, objetlvo que, no trabalho comentado, nao vai multo alern da intencao. Fazendo-o, deparamo-nos com um amplo leque de prances e conflitos em que as poiarzacoes entre dominantes e dorninados sao matizadas em nome de tensoes que atingem 0 espectro social de diferentes maneiras, 0 que amplia 0 leque de interlocutores.
Para a construcao do trabalho a que nos propusemos, e fundamental 0 dialogo com autores como Sidney Chalhoub, Martha Abreu Esteves, Ana Lanna e Raquel Rolnik.36 Preocupados com 0 cotidiano dos trabalhadores e com a experlencia de grupos sociais e etnicos diversos, entre a segunda metade do seculo XIX e as pnmeiras decadas do XX, esses autores deixam ensinamentos que inspiraram passagens deste texto. Amparados em densas e sonoas pesquisas, em que os processos criminals tern um papel crucial, estes autores combinam a problemafizacao do tema e certas teituras na "contramao", ou
34 Ver Arrais, op. cit, especial mente os itens "A cidade em festa" e "A cidade vitoriosa" , p. 164-178.
35 Idem, p. 5-9, ever tambem criticas de Suzanne Desan a E. P. Thompson eN. Z. Davis in Lyn Hunt (org) A Nova historia cultural. Sao Paulo: Martins Fontes, 1992:63-96.
36 Sidney Chalhoub, op. cit., 1986 e 1990; Martha de Abreu Esteves, Meninas perdidas. paz e Terra, 1989; Ana L D. Lanna, op. cit, 1996; Raquel RoInik, op. cit, 1997.
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"internals" (como dina Thompson, inspirado em Blake), com preocupacoes metodol6gicas que tern no seu centro a busca de tensoes e conflitos em torno de significados gerais que permeiam a vida social em periocos de mudancas".
Outra caracteristica crucial dessas obras e a preocupacao em recuperar aspectos da experlencla de grupos socia is diversos, dando uma dtmensao humana aos personagens que viveram a epoca", 0 que abre urn amplo caminho, que buscamos trilhar em nosso trabalho, muito embora tenhamos envidado esrorcos para faze-to com passos pr6prios. Destacamos dois aspectos metodol6gicos a diferenciar os caminhos seguidos. Primeiro, diferentemente de Sidney Chalhoub (1986) e Ana Lanna (1996), demos enfase tanto aos trabalhadores e populares como as elites em suas tensOes e andarcas pela cidade; segundo, tentamos uma aproxirnacao diferente com grupos especfficos, como donas de casas, agricultores, carregadores etc., 0 que, na nossa compreensao, redimensiona conceitos e nocoes como classes trabalhadoras, populares e pobres, tal como veremos abaixo.
Passemos as maos do leitor, urn mapa das trilhas seguidas.
Comecamos com um capitulo que identifica os lugares e territories da cidade e certos usos que deles faziam os seus moradores entre 1920-1945. Recuperamos onde moravam, os usos que faziam dos espacos e territories e as retacoes e tensOes ai existentes entre carregadores, operarios da industria e da construcao civil, prostitutas, engraxates, jornaleiros, ponctars. carregadores, bodegueiros, artistas, agricultores, donas de casa, letrados, rneoios e grandes comerciantes, proprietarios de terra, industriais e banqueiros, em momentos de rnudancas nas areas centrals de Campina Grande.
No segundo capitulo, fizemos uma entrada diferente, para compreendermos a presence de grupos e categorias profissionais especfficos: recuperamos os significados e irnplicacoes que suas retacoes e atividades tinham para as cartografias da cidade e como utilizavam e constituiam alguns territ6rios; reconstitulmos tarnbern aspectos das trajet6rias desses grupos e pessoas no seu
37 Dos quatro auto res referidos na nota anterior, apenas Raquel Rolnik nao utiliza os processos criminais.
38 Aspecto crucial dos trabalhos de Sidney Chalhoub, 1986, 1990 e 1996, Ana Lanna, 1996 e Martha Abreu Esteves, 1989.
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cotidiano, privilegiando escalas menores, como as andancas pelas ruas e suburbios e os conflitos e praticas de solidartedade que as constitufam e davam a cidade uma oirnensao multipla39.
No capitulo seguinte, deixamos de lado os grupos especfticos e acompanhamos os moradores em momentos de lazer e dlversao por ruas e diferentes terntorios da cidade, reconstituindo as sentidos que estes territories assumiam, as usos que deles faziam quando se divertiam e como vao se constituindo enquanto espacos e lugares diferentes, segregados. Esta e a questao central do terceiro capftulo.
Por tim, discutimos uma experiencia de reforma urbana que e caucataria dos chamados valores modernos e burgueses e que tinha como meta, segundo seus idealizadores, transformar a cidade em um ambiente moderno e civilizado, ° que confere ao empreendimento uma inegavel dtrnensao universal, aproximando-o de outras expenencias ocorridas mundo afora. Ao mesmo tempo, lembrando e retomando 0 que ficou dito nos capitulo anteriores, analisamos como a universalidade das ideias que nortearam as mudancas em Campina Grande resultaram em prances diversas, sendo assim foram compreendidas pelos seus moradores, fazendo deja uma cidade com uma historia e traletorla tarnbem peculiares. Peculiaridade vista tarnbem num aspecto da reforma ernpreendlda pelo prefeito Vergniaud Wanderlei: a retirada arbitraria do centro da cidade tanto dos casaross das elites como das casinhas alugadas em que moravam os pobres, expertenca nao registrada peta historiografia que tem a cidade como palco de lnvestlqacao.
39 Parte da historiografia que tern como objeto a cidade norneia e identifica essa multiplicidade, mas rararnente aprofunda-a na direcao dos grupos populares. Na rnaioria dos casos opta-se por acompanhar a discurso de intelectuais e letrados sabre as diversos grupos e classes ou fencmenos como a rnultidao, ver Stella Bresciani, op. cit., 1987 e 1994; Robert Moses Pechman, op. cit., 1992; Sebastiao Rogerio Ponte, op. cit., 1999, Sandra J. Pesavento, op. cit., 1994, etc. As excecoes que conhecemos sao os trabalhos de Ana L. D. Lanna, op. cit, 1996, Sidney Chalhoub, op. cit, 1996, Raimundo Arrais, op cit., 1995 e Maria Odila L.S. Dias, Quotidiano e poder. 2" ed. Sao Paulo: Brasiliense, 1995. Raquel Rolnik, op, cit, 1997 e Cristina Cortez Wissembach, "Da escravidao a liberdade ... " in Nicolau Sevcenko (org), Historia da vida privada. VoL 3, Sao Paulo: Cia das Letras, 1998:49-130, fazem este exercicio para ex-escravos e negros.
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Tragado 0 mapa, detxamos 0 resto por conta do leitor. Ao percorrer os labirfnticos caminhos que se Ihes mostram a frente, talvez descubram que para chegar ao local onde 0 tesouro foi escondido sao necessanas razoaveis doses de espfrito de aventura, esforco e discernimento. Saudamos principalmente os aventureiros que gostam de ir adiante, mesmo que para isto ten ham que despender estorco e um pouco de perspicacia e argucia.
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CAPiTULO 1
TERRITORIOS EM MOVIMENTO: AS RUAS E SEUS PERSONAGENS
Em meados de agosto de 1938, folheando as bern compostas paginas do jornal oficial A Uniao 1, 0 leitor se depararia com urn envolvente artigo do historiador Celso Mariz, intitulado "0 Batismo das Ruas'". Nele, tern-se a irnpressao de que 0 autor se debatia contra suas pr6prias conviccoes. Mais uma vez vinha a baH a uma discussao que tornara-se recorrente desde a proclarnacao da Republica: a rnudanca de nome das princlpais ruas das cidades oraslleiras e, especificamente, de Joao Pessoa''.
"De anos a esta parte, cada prefeito novo executa urn pensamento de alteracoes parciais". Segundo 0 autor, "e justo reconhecer-se a todos 0 intento de corrigir, acertando urn cataicqo feliz"; e informa que a ernpresa tinha outros colaboradores ilustres: "para isso nenhurn [prefeito] deixou de encarecer a colaboracao dos entendidos da cromca e da toponlrnia local". Parece, no entanto, que os resultados dessa e das outras empreitadas que a precederam tinham la seus contratempos para os "entendidos", pols, " ... 0 fato e que as modificag6es acabaram somando a confusao do presente".
A empreitada do prefeito pessoense Fernando Nobrega" nao era plonelra, Em outras cidades brasileiras a questao ja havia sido tratada; cerca de cinco anos antes do envolvimento do historiador Celso Mariz na querela, em Carnpina Grande urn "movirnento" na mesma direcao tomara a atencao de parte da rapioa gestao
1 0 jornal A Unido foi fundado no dia 2 de fevereiro de 1893 e e ate os dias de hoje orgiio oficial do governo do Estado da Paraiba, ver Fatima Araujo. Paraiba: imprensa e vida. 2' ed. revista e atualizada. Campina Grande: Grafset, 1986:255-273 e Eduardo Martins. A Unido, jomal e historia da Paraiba. Joao Pessoa:
Editora de A Uniao, 1977.
2 Celso Mariz, "0 Batismo das mas" em A Unido, n? 183, 18/08/1938, p. 03 e 07. Este mesmo artigo foi publicado em Cidades e Homens. Campina Grande: Grafset, 1985:09·11. Ver ainda A Unido, n? 180, 13108/1938, p, 03 e n? 250, 30/10/1942, p. 02.
} Ver Maria Vicentina de P. do A Dick. A Dindmica dos names na cidade de Sao Paulo ~ 1554-1897. Sao Paulo: Annablume, 1997, Antonio Rodrigues Porto. Historia da cidade de sao Paulo atraves de suas mas. Sao Paulo: Carthage, 1996, Sandra Jatahy Pesavento, op. cit, 1994: 114-117 e Ana L. D. Lanna., op. cit., 1996:89. Para a Aerica espanhoia., ver Angel Rama., A cidade das letras. Sao Paulo: Brasiliense, 1985:51 ·53. 4 Fernando Nobrega foi prefeito de Joao Pessoa no periodo de 11/0111938 a 09/07/1940.
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do prefeito Antonio Pereira Diniz5. Quem da notfcias dessa iniciativa e 0 cronista campinense Cristino Pimentel, atraves de sua col una "Cousas da Cidade'".
Tangida pelo vendaval das bocas humanas, saracoteiou (sic) e penetrou nas conchas dos meus ouvidos a notlcia de que 0 prefeito Pereira Diniz pretendia baixar urn decreto rnudando os nomes de diversas ruas da cidade, escolhendo para substitui-los outros nomes de filhos e lutadores desaparecidos do convfvio serrano e amistoso dos habitantes da nossa gleba7.
o cronista nao se fez de rogado, rasgou loas a iniciativa de Pereira Diniz e. como nao poderia deixar de ser, saiu a frente de todos (ou de multos), fazendo desfilar, atraves dos tipos das paginas de 0 Rebate8, uma lista com dezessete nomes de "filhos e lutadores da gleba", que deveriam fazer parte do cotidiano das ruas de urbs tao prospera e em busca de ares de civlllzacao".
Os names destes "Iutadores" nao estavam na lista por rnero acaso do destino, mas porque "forarn vultos que, em vida, algo fizeram de util a terra once viveram e rnorrerarn", e "trabalharam pelo progresso material e intelectual da terra querloa". No afa de fortalecer sua proposta, Pimentel buscou um argumento de
5 Antonio Pereira Diniz era bacharel formado na Faculdade de Direito de Recife, em 1931; foi promotor publico de Campina Grande entre 1932-1934, tendo deixado 0 cargo para assumir a prefeitura da cidade como prefeito nomeado durante 1 ano e t mes, entre 1934 e 1935. Em seguida, foi nomeado prefeito da capital, cargo a frente do qual ficou no periodo de 13/0911935 a 08/05/1936.
6 "Cousas da cidade" e como Cristino Pimentel nomeava suas cronicas nos anos 1930 e 1940. Segundo 0 proprio cronista, inspirado em coIuna de um jornalista pernambucano. Nao conseguimos identificar a data da cronica, pois obtivemos copia da mesma de album organizado pelo proprio autor, que nao datou todas elas. No entanto, e possivel saber 0 periodo em que foi publicada pelas referencias que faz ao prefeito Antonio Pereira Diniz, As "Cousas da cidade" foram publicadas em sua maioria nos jornais locais, 0 Rebate, A Ordem e Voz da Borborema. Ver tambem as obras Pedacos da historia da Paraiba. Camp ina Grande: Ed. Teone, 1953, Abrindo 0 livro do passado. Campina Grande: Teone, 1956, Pedacos da historia de Campina Grande. Campina Grande: Livraria Pedrosa, 1958 e Mats urn mergulho no passado. Historia campinense. Texto inedito e sem referencias.
7 Cristino Pimentel, "Cousas da cidade", sem referencias,
80 jornal 0 Rebate trazia 0 subtitulo de "Orgao Proletario de interesse Regional", foi fundado em 1932 e circulou ate 1960, ver Fatima Araujo, op. cit, 1985:87.
9 Epaminondas Camara em Datas Campinenses, 1947:89-92 e 149-156 traz rapidas informacoes sobre alguns dos nomes relacionados por Cristino Pimentel: Lino Gomes da Silva (jornalista e comerciante), Joao da Silva Pimentel (capitalista), Joao Vieira (vulgo Joao Carga D'agua, foi llder do movimento denominado de QuebraQuiles - 1874), Belmiro Barbosa Ribeiro (oficial superior da guarda nacional/capitalista), Idelfonso Souto Maior ( oficial da guarda nacional/capitalista), Joao Lourenco Porto (foi chefe politico local ate 0 inicio do seculo XX), Joao Maria de Sousa Ribeiro (oficial superior da guarda nacional e/ou capitalista), Probo da Silva Camara (fazendeiro e proprietario), Sulpino Colaco (fazendeiro e proprietario), Jose Dias da Costa (vulgo Ze do Precipicio, era oficial da guarda nacional e capitalista), Lindolfo de Albuquerque Montenegro (oficial da guarda nacional e capitalista), Joao de Sa (professor e jornalista), Jose Alves Sobrinho (poeta e jomalistaj.;".
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autoridade, envolvendo na dlscussao um aliado que, caso encampasse a empreitada, selaria 0 seu "destine".
E facil a S.S. saber quem foram esses batalhadores recorrendo a memoria ou ao arquivo, que 0 deve ter 0 dr. Hortencio Ribeiro, por ser 0 campinense mais conhecedor da rustona da sua terra nataL.. Apelo para a erudicao do Dr. Hortencio Ribeiro, esperando vs-ios citados para que figurem no futuro decreto do governo municipal10.
Hoje, cerca de 70 anos depois, quem quiser ir a cidade percorrer as ruas Joao Lourenco Porto, Sulpino colaco, Probo Camara e todos os outros nomes da relacao, pode faze-lo. Tera apenas que ter boas pernas, ja que nomeiam ruas de bairros diversos.
A querela criada pelos letrados em torno dos nomes de ruas era parte do projeto civilizador que eles pretendiam trazer para 0 povo campinense e pessoense, mas era tambern uma forma de ajuste tardio aos tempos e sfmbolos imperials e republicanos 11. Havia algo mats, no entanto, deixando antever diferentes percepcoes e modos de relacao com 0 espaco urbano. Celso Mariz observava incomodado:
Urn presidente antigo abriu a rua que denominou de Formosa. De construcao lenta, pouca habitayao e nulo transite, seu leito se encobria no inverno de ramos e trepadeiras de Sao Caetano. Val 0 povo e Ihe poe o batismo de rua do Melao 12.
Um exemplo gritante de como os moradores ou pessoas que viviam e pisavam cotidianamente aquele terrae tinham sensibilidades peculiares, que muitas vezes nao se confundiam com as "mooernas" formas de nomear dos que governavam a cidade. Aquele modo de nomear as ruas era oposto ao de prefeitos que, ao sabor de sua vontade, mudavam regularmente os nomes das arterias da capital, 0 que tornava a sua identlticacao algo impraticavel. No entanto, parece-
10 Cristino Pimentel, op. cit., sem referencias,
11 Em Camp ina Grande, como na rnaioria das cidades brasileiras, os letrados misturaram sirnbolos e nomes de monarquistas e republicanos e incorporararn a nomenclatura de suas ruas e logradouros. Isto se explica, em parte, pelos arranjos conservadores que marcaram a implantacao e os destin os posteriores da Republica. Ver Jose Murilo de Carvalho, Aformacdo das almas. a imaginario da Republica no Brasil. Sao Paulo: Cia das Letras, 1990.
12 Celso Mariz, artigo citado, 1985:09~11.
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nos que algo mais complexo ocorria para que os nomes dos ilustres
"desbravadores e fundadores" acabassem nao vingando. Continua Celso Mariz:
Diante disso, que destine aquardarao os novas vunos destacados para o patronato de grandes ruas antigas? Joao Suassuna, que alias gostava pouco de nossa cidade, espera ter rnais sorte naquele trecho da rua da Areia do que 0 her6i da Passagern de Humalta? Jose Tavares que tempo contia dernorar na avenida Gonceiyao?( ... ) Tarnbern para que trocamos, sem urn imperativo real, nomes de aCidentes naturais, de fatos de nossa cronlca, e de modestos fundadores, nomes consagrados pelo uso e pela tradiyao? Nomes perfeitamente eutonicos e aqradaveis, como Ladeira das Pedras, Beco da Gompanhia, Portinho, Mato-Negro, rua dos Pintores, Monte Alegre, Gurva do Sol, Boa Vista, rua das Flores. Maria Eulina, Meira de Menezes, etc.?13
AI tem-se 0 jogo armado: prefeitos e letrados das duas maiores cidades do estado, aparentemente sozinhos, decidern jogar entre si urna partida com resultado previamente acertado (ao men os era 0 que pensavam) e embalados pelo momento de excecao 14. Nos tempos em que esses senhores decidiarn sobre o destino dos nomes das ruas e logradouros das ditas cidades, esqueceram-se de que administravam e escreviam sobre e para urn mundo mats amplo do que sua tormacao bacharelesca e suas conviccoes modernas deixavam a ntever. A resposta desse outro "mundo", bem ao res do chao, foi mais ou menos capitaneada pela 16gica que inspirara sua atitude: uma emblemanca inditerenca.
Em Campina Grande, ate hoje e posslvel ouvir, vez per outra, um transeunte au morador se referir a urna de suas ruas centra is como antiga rua da Floresta, e nao pela oficial denornmacao de rua Coronel Joao Lourenco Porto, per exemple. Outras vezes, a mudanca de nome esteve relacionada a outros acontecimentos e embates. 0 velho Major Jovino do 6, propnetarto e construtor de praticamente toda uma rua nas irnedtacoes do centro de Campina Grande 15, ao chegar it altura dos seus oitenta anos parecia inconformado com os destinos da rua que recebera
13 Idem.
14 Antonio Pereira Diniz e Fernando Nobrega foram prefeitos nomeados em dois diferentes momentos de excecao: 0 primeiro, sob os auspicios do governo provisorio (1934-35), e 0 segundo sob 0 Estado Novo.
15 A patente tinba urn senti do proximo ao de coronel, e havia sido adquirida a custa de muito cabedal e contos de reis na algibeira. Era tambem proprietario de milhares de hectares de terra no Serrotao, hoje area de expansao urbana. Sobre a aquisicao de patentes na Paraiba ver Linda Lewin, Politica e parentela na Paraiba. Rio de Janeiro: Record, 1993 e sobre as propriedades rurais de Jovino do 6 ver Eronides Camara Donato,
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seu nome. Nela se concentrava parte dos prostlbulos da cidade ate 0 inicio da decada de 1930 e, por isso, era denominada popularmente de rua do R6i Couro 16. Veio a retirada dos cabares, a higienizacao e 0 saneamento da area; 0 major, junto com ciosos aliados, achou que aquele era 0 momento propfcio para a rua mudar de nome e de ares. Em vao. Por rua do R6i Couro os moradores da cidade continuaram norneando-a. 0 jeito foi mudar de estrateqla e 0 poder publico municipal pas em pranca um plano para retirar da rua um nome que envergonhava a todos. Moral da hist6ria: fazia parte da estrateqla, ap6s a expulsao das prostitutas da area, dar a ela um nome de peso. Por rua 4 de Outubro ficou conhecida na epoca. 0 velho Jovino do 6 deve ter partido desgostoso, com 0 nome em uma ambigua rua da cidade a disputar um lugar no panteao da memoria e sem gl6ria 17.
A ideia central deste capitulo e identificar os lugares e territ6rios e os usos que deles faziam os moradores de Campina Grande, no perlodo de 1920-1945. Recuperar onde viviam carregadores, operarios da industria e da construcao civil, prostitutas, engraxates, jornaleiros, policials, carregadores, bodegueiros, artistas, agricultores, comesncas, medics e grandes comerciantes, proprtetarios de terra, industriais e banqueiros; os usos que faziam dos espacos e terntortos e suas relacoes e tensoes num momento de reform a nas areas centrals da cidade.
Buscamos compreender a diversidade de olhares e praticas que se articularam em tomo do espaco que duas decadas depois seria considerado por alguns como "capital do sertao nordestino" ou "centro cornerciat do Nordeste,,18; ao mesmo tempo, estaremos tratando das tensoes que surgem quando 0 poder publico, a justica e os letrados interferem na vida dos moradores da cidade, como no emblernatico episodto do batismo das ruas. Sao tentativas de compreender como projetos e mtervencoes imbufdas de urn certo discurso cientificista e ares
Identidade, identidades: um estudo sabre trabalhadores do Serrotdo - Campina Grande. Mestrado em Sociologia Rural. Campina Grande, lJFPB, 1995.
16 Era popuJarmente denominada "Rei Couro" a rua que concentrasse um numero significativo de prostibulos, 17 Severino Machado, "Ruas de Carnpina: Jovino do 0" in Revista Tudo, suplemento semanal do jomal Diario da Borborema, 06/1111983.
18 Ver epilogo deste trabalho e Maria Francisca Thereza C. Cardoso. "Campina Grande e sua funyiio como capital regional". Separata da Revista Brasileira de Geografia, Ano XXV, n? IV, maio de 1964. Edicao
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ut6picos deixam a margem ou desconsideram as diferenc;as e usos cotidianos dos espacos e territ6rios da cidade, que fazem desses rnais do que simples lugares de corneroio, tetras, resioencias e indusmas, ou, como quer esse discurso, lugares de progresso e civillzacao 19; ou mesmo, que fazem do cornerclo, das restoencias e lndustnas, das letras e do progresso nocoes e lugares tarnbern de conflitos, onde, portanto, cada urn desses termos pode ser lido e vivido diferentemente.
No ano de 1947, Epaminondas Camara publicou sua obra Datas campinenses20. Inspirado em historiadores paraibanos, como Irineu J6fili e Irineu Pinto21, decidiu investir parte do seu tempo na pesquisa de epis6dios e datas que considerava marcantes para a hist6ria de Campina Grande. 0 resultado e uma obra com uma selegao de fatos e datas de duzentos e cinquenta anos da mstorta da cidade, do seu aldeamento inicial, em 1697, ao ana de 1947.
A historia de Campina fol dividida em fases, destacando-se fatos, datas e personagens importantes em cada uma delas, Observando-se a "Relacao das Pracas, Ruas, Travessas e Bairros da cidade, existentes no tim de 1918,,22, tem-se uma ideia relativamente clara dos contornos de Campina Grande nas primeiras decadas do seculo XX. Associando as inforrnacoes do Datas Campinenses a planta da cidade para ° ana de 1918, temos condicoes de imaginar e reconstituir, mesmo que precariamente, alguns caminhos feitos por seus moradores. 01er mapa 1).
Comemorativa do Centenario de Campina Grande e Service Social do Cornercio (SESe) Departamento Nacional. Campina Grande - um centro comercial do Nordeste. Szreferencias.
19 A nocao de "progresso" aparecera no texto com os sentidos que os contemporaneos a ela atribuiam. Alguns auto res por nos utilizados discutem ou fazem comentarios sobre os significados desta nOyaO para letrados brasileiros e europeus, ver Sidney Chalhoub, 1996:35 e 93, Sebastiao Rogerio Ponte, op. cit., 1999:27, Nicolau Sevcenko, "Introducao. 0 preludio republicano, astucia da ordem e ilusoes do progresso" In Historia da Vida Privada no Brasil, vol. 3, 1998:07-48 e Jacques Le Goff. Historia e memoria. 4a ed. Campinas, Sao Paulo: Editora da Unicamp, 1996:233-282.
20 Epaminondas Camara, op. cit., 1941. 0 autor publicou parte da obra em jornais Iocais e da capital.
21 Historiadores paraibanos que viveram entre a segunda metade do XIX e as prirneiras decadas do seculo XX. Ver Irineu Jofili. Notas sobre a Paraiba. Brasilia: Teshaurus, 1976 e Irineu Ferreira Pinto. Datas e notas para a his/aria da Paraiba. Joao Pessoa: Editora Universitaria/Uf'Pfs, 1977, vols. I e II.
22 Epaminondas Camara, op. cit. , 1947: 11 7-123.
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Areias
Sao Jose
;,:".
Piabas
Mapa 1 - Planta de 191 B com demarcecao feit3 por Epaminondas Camara
Podemos iniciar a "viagem", para dar mais cores e vida aquelas ruas, seguindo as pistas deixadas par Epaminondas Camara. Seu texto indica que ja naqueta epoca existiam espacos diterenclados, Na propria exposicao, 0 autor nos sugere uma aparentemente sutil diferenca: divide a cidade em "parte central" e "bairros", Nao devia ser exatamente a mesma coisa. E realmente nao era. Cerca de dezesseis anos antes da pubucacao do Datas, em 1931, urn articulista anorumo do jornal Brasil NOV023 vociferava contra 0 que denominou "casebres repugnantes", que se localizavam em uma area que em breve serta mcorporada ao centro da cdade e ao patrimonio das elites.
Ha, na travessa da Luz, uns casebres que a gina denominou de "caixas de fosforos". 0 apelido nao traduz 0 que eles sao.
23 Segundo Fatima Araujo, op. cit., 1986:86, "Brasil Novo, semanario fundado par Tancredo de Carvalho, a lOde janeiro de 1931, era um jornal inspirado nos ideais da Revolucao de 1930, au seja, reivindicando mudancas radicais na estrutura politico-social do Brasil".
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Era necessario um cognome que significasse porcaria, nojo, repuqnancia, e tudo 0 quanta 0 diclonarlo possui com essa siqnificacao. De fate, sao uns casebres de taipa, pendidos uns sobre os outros, inclinados para 0 solo, como pedindo urn ernpurrao que Ihes joguem per terra. E desafiam 0 sen so estatica dos responsaveis pelo embelezamento da nossa urbe. Ha dots anos que se anundam a dernolicao almejada, mas as dlas passam e os casebres ficam. A Empresa de Luz esta fazendo urn grande aterro em frente as "Caixas de F6sfores", e parece querer soterra-las.
Etas, porem, gargalham pelas suas portas irnundas, contra "pousse", que Ihes mingua 0 terreno. Mulheres sordidas continuam morando la, e por ser urna arteria movimentada, exibem aos transeuntes, a sua miseria e a sua porcaria. Quase todas meretrizes de baixo calao, de vestes porcas e imundas, repugnam, pelo exibicionismo de suas mazelas. Sabernes des intuitos do sr. Prefeite, de embeJezar a Travessa da Luz, dernoiindo 0 tal "cortlco". Aplaudimo-Ie e lembramo-lhe que a medida e de ernerqencia.
Aquila se tolera em subUrbio, nao no centro de uma cidade como a nossa24. (grifos nossos)
Este lntolerante ubeto e uma expllcita denuncia da rnudanca na sensibilidade dos nossos letrados. Ele informa que em Carnpina Grande, tal como em outras cidades brasileiras, os lugares e terntorios, a partir de um certo momenta, foram mudando de nome, diferenciando-se e configurando espacos para isso e para aquila, para esses e para aquetes". E clare que nem tudo havia cornecado com 0 articulista do Brasil Novo que, em 1931, com um olhar ja treinado e amadurecido por ares modernos, podia exercitar a vontade sua verve intolerante.
o pr6prio Epaminondas Camara, em Alicerces de Campina Grande26, reconstitui desde as pnrnordios do povoado as locais onde moravam ricos e
1~ "As Caixas de Fosforos" em Brasil Novo, n° 6, 14/02/1931, p. 06.
25 Hi uma vasta bibliografia que discute, entre outras questoes, a hierarquizacao dos espacos em cidades e capitais brasileiras, entre a segunda rnetade do XIX e as primeiras decadas do XX. Ver Sidney Chalhoub, op. cit., 1996; Nicolau Sevcenko, op. cit., 1992 e 1998; Oswaldo Porto Rocha, op. cit., 1995; Jaime Larry Benchimol, op. cit., 1992; Stella Bresciani, op. cit., maiol1994; Sandra Jatahy Pesavento, op cit., 1994; Marcelo Badaro Mattos, op. cit., 1991; Margarida de Souza Neves. "0 Povo na Rua, Urn 'Canto de duas Cidades" In Olhares Sabre a Cidade org. e apres. Robert Moses Pechman. Rio de Janeiro: Editora UFRj, 1994:135· 155; Raquel Rolnik, op. cit., 1997 e Ana Lucia D Lanna, op. cit., 1996.
26 Eparninondas Camara em Alicerces de Campina Grande. Campina Grande: Oficina Grafica da Livraria Medema, 1943:13, referindo-se is "tres mais antigas e maiores familias brancas que povoaram Campina Grande e adjacencias durante a epoca colonial", afirma que "E interessante apreciar-se a maneira porque (sic) tais familias se isolavam. Os Oliveira Ledos, os mais orgulhosos e desconfiados, donas do rnaior quinhao de terra do agreste e cariri; imbuidos num patriarcalisrno retrograde, escondem-se nos solares de Santa Rosa ou Oria, abandonando 0 povoado aos novatos, Em seguida, os Nunes acastelam-se na rua das Barrocas, onde edificam casaroes senhoriais. E ciosos da linhagem peninsular, sentern-se inojados dos missangueiros e
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pobres. Ja havia, naqueles tempos remotos, mecanismos de segregagao ou formas pr6prlas de se misturar em publico sem ser confundido, mantendo em guarda as velhas e indefectlveis hierarquias. Os tempos modernos vao ser testemunhas de mudancas que, incorporando bens e sfmbolos acessiveis a grupos socials diversos (cinema, trem, energia etetnca, largas avenidas etc.), sofisticaram e lapidararn os mecanismos que reproduziam as hierarquias socials e as segrega~6es espaciais'".
Sigamos outras pistas, para fazermos aquele exercicio que prometemos ao leitor: "dar vida" as ruas. Talvez tenhamos cornetido 0 erro de ter iniciado 0 exercfcio com falas e desejos que pareciarn rna is querer a morte do que a vida, ou menos exageradamente, que nao admitiam em certos lugares da cidade vidas e habitos outros que nao a de seus pares, iguais na moral, na algibeira e nas letras.
RUAS CENTRAlS
Como ocorre ate os nossos dias, e dificil ir a uma cidade e nao visitar 0 seu centro comercial, epicentro de muitos movimentos e atividades, que ca as cidades urn colorido todo especial, mas que tarnbern explicita, por ser a sua vitrine, as principais mazelas e vicissitudes de toda a sociedade.
A reconstitulcao do que era a area central de Campina Grande, no pertodo que abrange este trabalho, merece uma rapida pretirninar. Mais do que reconstituir espacos e lugares fixos, interesse-nos recuperar as rnudancas de sentido, funcao e uso que os seus territorlos assumiam, utilizando as propnas valoracoes que os contemporaneos a elas davam. Isto torna 0 exercicio mais complexo. Lancemos mao de um exemplo. Durante 0 periodo que val de 1920 a 1945, 0 que Epaminondas Camara denomina de "parte central" da cidade, alem de nao ser algo homoqeneo, passou por sutis ou bruscas recenmcoes. Nos anos 20, a rua Grande, ou Maciel Pinheiro, era um "centro" de quase tudo na cidade, mas as
mercadores do largo da Igreja. Os Vianas preferiram os Iatifundios do Zabele ou do Loango, onde cultivavam rebanhos, ao viver rnesquinho da gente do povoado".
27 0 trabalho A Cidade e a Lei, de Raquel Rolnik, e exemplar no sentido de reconstituir 0 processo de hierarquizacao e segregacao de espacos e terri tori os na cidade de Sao Paulo, entre 1886 e 1990.
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duas ruas paralelas e proxrrnas a eta eram espacos marginals e com fortes marcas populares. No seu Iado leste, encontrava-se a rua do Emboca, rua que ate a inlcio dos anos 30 era habitada par populares e povoada de pensoes e meretriclos28; do lad a oeste, havia a Venanclo Neiva, uma pequena e sinuosa rua com ares de beco e mumeras casinhas alugadas a populares, algumas casas comerciais e de couro, como a Casa Rosbach, e resqufcios de um riacho, que se transformava em vala ou esgoto escorrendo no seu leito. Par estes tempos recebeu denomina<;5es que denunciavam as usos que dela faziam a popuiacao:
Seeo do Mijo, 8eco da Merda etc29.
A rua Grande e as ruas Venancio Neiva e Emboca eram parte da mesma area central de que nos fala Epaminondas Camara e, no entanto, eram bastante diferentes: morar au estar em uma e nas outras nao era exatamente a mesma eoisa. No final do perfodo que investlgamos, 1945, as coisas e as lugares haviam mud ado bastante. A Venancto Neiva, agora saneada e alinhada, nao era mais eonfundida nem ehamada de beco; a rua do Emboca havia mudado ° nome para Peregrina de Carvalho, sendo as putas e cafetinas torcadas a se retirar; e a antiga rua Grande definitivamente passara a ser ehamada de Maciel Pinheiro, se transformando-se n uma rua eminentemente comercial: nela nao mais habitavam os ncos da cidade, que haviam se deslocado para ruas adjacentes, recentemente va lortzadas , ou para os novos bairros em surgimento, como a Prata.
E um pouco deste movimento que vamos reeuperar agora.
o roteiro que seguiremos foi elaborado a partir dos dados do Anuario de Campina Grande, de 1925, elaborado por Joao Mendes3o. As propagandas que compoern 0 Anuario fornecem ao leitor um sopro de vida, espeeialmente da vida das elites locais. Aparecem nas propagandas do Anuario dezoito logradouros, entre ruas, pracas, travessas e largos. A rnaiorta deles, cerca de quatorze, localizados na area que Epaminondas Camara denomina "parte central" da
3D Anuario de Campina Grande. Diretor Joao Mendes, Recife: Grafica do Jomal do Comercio, 1925.
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cldade. As outras quatro eram ruas adjacentes ao centro, embora a sua propria ctasstncacao seja dlscunvet".
o morador, ou 0 chegante, que safsse a vadiar, passear, mendigar, buscar a sobrevivencia ou fosse as compras na decada de 1920 e cornecos dos anos 1930, iria encontrar uma razoavel diversidade. Por essa epoca a populacao do municipio de Campina Grande variava entre cerca de 70 e 100 mil habitantes; a sua sede tinha entre 9 e 20 mil almas, que moravam nas 2.012 casas no inicio de 1920, que ja eram 4.781 em 1930, incluindo cerca de 5 sobrados de dots pavimentos e um nurnero significativo de casas de taipas, espalhadas principalmente pelos suburbios'".
Os meios dlsponlveis para um tour pela cidade, especial mente em principios da decada de 20, eram os proprios pes, 0 lombo de burro ou cavalo, as carrocas e os cabnotes'", A opryao provavelmente estaria relacionada ao local de onde 0 transeunte viesse, as suas posses, seus afazeres e ao ana da decada a que estivermos nos referindo. Vindo do "suburbio", de distritos ou da zona rural do rnuniclpio'", no corneco da decada de 1920, chegava-se principalmente no lombo de animais e ape; saindo das Areias, Acude Velho, Piabas e Sao Jose, bairros identificados par Epaminondas Camara, a rnaioria deveria fazer 0 percurso a pe ou no lombo de anlrnais. De uma ou outra forma, para uma oopuiacao de lonqa tradicao no caminhar sob 0 sol causticante dos meses de verso, nao deveria ser
31 Estranhamos a colocacao, na sua classificacao, da rna dr, Joao Leite (antiga rua das Areias e atual Joao Pessoa) no bairro das Areias, pois ela corneca, segundo sua propria leitura, no "coracao" cia cidade, ou seja, a praca do Algodao, final ou inicio da Marques do Herval. No entanto, a classificacao do autor esta associada a questoes que discutimos em seguida,
3~ Dados extraidos do censo de 1920, de Epaminondas Camara, op. cit., 1947 e Elpidio de Almeida, op. cit., 1979.
33 As referencias a seges e cabrioles, urn trans porte de elite, nao aparecern na maier parte da documentacao pesquisada. Escrevendo sobre 0 final do seculo XIX e a prirneira decada do XX, William Tejo afirma que "Os pobres andavam ape, leguas e leguas, Os rices tinham cavalos de montaria e 0 que era de rnercadoria era transportada nas costas de burros. Os cabrioles, em Campina Grande, so apareceram depois de 1900 como transporte de gente abastada" In Anuario de Campina Grande. Campina Grande: Grafset, 1981, p. 67.
34 Segundo 0 C6digo de Posturas de 1927:3, em seu Titulo 1- Divisao do Municipio em Zonas, «§ 1 - AZona urbana e constituida pelas mas, pracas e terrenos arruados da sede e das povoacoes, dentro dos Iimites estabetecidos trienalmente pela Prefeitura; A Zona suburbana, a que fiear compreendida entre os limites cia primeira Zona e uma Iinha que se desenvolva paralelamente aqueles limites e deles distantes cento e cinquenta metros. A Zona rural, a que ficar fora dos limites das duas primeiras. § 2 - A medida que forem sendo estabelecidos arruamentos na parte atualmente nao armada, que constitui a terceira Zona, passarao os terrenos respectivos a ser considerados como pertencentes a Segunda Zona" ver Ato do Poder Legislative de
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diffcil vencer um ou dots quil6metros, distancia que a separava da parte central da cidade35.
Na segunda metade dos anos 1920, tentou-se modificar essa snuacao, colocando Campina Grande no circuito das cidades que se utilizavam do bonde, transporte que era urn forte slrnboto do rnundo moderno, fazendo parte do cotidiano da capital e de diversas outras cidades brasileiras desde a segunda metade do seculo XIX36. Segundo Epaminondas Camara, em fevereiro de 1926, a prefeitura municipal havia asslnado urn contrato com um particular para a mstatacao de linhas de bonces na cidade. Mas essa experiencia foi curta e cheia de imprevistos. 0 servico foi iniciado em novembro daquele rnesmo ano com duas linhas, uma que ia das Areias ao centro e outra dar ao Acude Velho, ligando, assim, a rua de maior volume comercial da cidade a sstacao da ferrovia Great Western, principal meio de escoamento".
Os conflitos e disputas comerciais, associados a topografia irregular e ondulada da cidade, haviam abortado a mete6rica experiencia cos bondes, que trariam, segundo alguns imaginavam, rnovimento, facilidade, progresso e civilizacao para Campina Grande.
Havia outra possibilidade de meio de transporte, especificamente para aqueles que vinham da capital, de algumas cidades do brejo, do litoral38- ou de
Campina Grande. Lei N° 32, de dezembro de 1927, Da Novo Codigo de Posturas ao Municipio de Campina Grande. Recife Tip. da Empresa Diario da Manha S.A.
35 Os autores de "Camp ina Grande: Urn Centro ... ", em conversas com operarios na decada de 60, ouviram de alguns que faziam em cerca de 30 a 40 minutes os percursos mais longos dentro da sede do municipio. Em 1960 Campina Grande tinha 116.226 habitantes na sua sede, ver Resumo historico e estatistico de Campina Grande, Edicao da Assessoria de Imprensa da Prefeitura Municipal de Campina Grande, 1964:9.
36 Sobre 0 advento do bonde em cidades e capitais brasileiras, cf. Raquel Rolnik, op. cit., 1997:101-143; Jose Octavio, Os coretos no cotidiano de uma cidade. Joao Pessoa: Fundacao Cultural do Estado da Paraiba, 1990~ Sebastiao Rogerio Ponte, op. cit., 1999:29; Jaime Larry Benchimol, op. cit., 1992:96-111 e Antonio Paulo Rezende, op. cit., 1992:82-84.
37 Segundo Epaminondas Camara, "a principio a empresa funcionou regularmente, nao obstante 0 privilegio no service de trans porte, de que resultaram algumas greves e sabotagens dos donos dos caminhoes prejudicados com 0 contrato. Meses depois, por deficiencia tecnica, os bondes comecaram a descarrilar na ladeira da Estacao (mas Irineu Jofili e da Republica). 0 comercio reagiu contra 0 monopolio dos reboques eo povo, como rnedida de seguranca pessoal, abandonou os bon des", op. cit. 1947: 13 7 -138.
,8 A Paraiba e dividida geograficamente em seis micro-regioes. Sao elas: Zona da Mata (literal), Brejo, Agreste, Curimatau, Cariris Velhos e Serrao. Segundo Epaminondas Camara, em glossario de Alicerces ()943: 1), 0 Agreste e a "Regiao central da Paraiba, entre 0 Curirnatau, 0 Brejo, a caatinga e 0 cariri, onde estao localizadas as atuais cidades de Carnpina Grande e Esperanca". Entre Carnpina Grande e Joao Pessoa os trens da Great Western paravarn nas seguintes estacoes: Galante, Inga, Mogeiro, Pilar, Itabaiana, Cruz do
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Pernambuco e Rio Grande do Norte: os trens da Great Western Railway, chegados na cidade em 1907, que transformaram Campina Grande em ponta de trilhos39; amda havia 0 carninhao, transporte que, junto com 0 trem, levou ao declfnio uma atividade e urn grupo social, os tropeiros, ate hoje simbolo da cldade'".
Durante grande parte da decada de 1920, devia ser pouco comum passear pelas ruas de autornovel, privilegio de poucos. 0 primeiro automovel, urn Studebacker, havia chegado a cidade em 1914, causando grande mobiiizacao dos curiosos que ainda nao conheciam a maquina'". Esse quadro, no que diz respeito aos automoveis, vai mudar consideravelmente entre 0 final dos anos 1920 e as decades de 1930-40, quando os rnelos de deslocamentos pela cidade e seus arredores vao sofrer significativas rncdmcacoes.
Ao mesmo tempo, os moradores de Campina Grande viram suas nocees de tempo e espaco serem modificadas. 0 trem, em 1907, 0 autom6vel, em 1914, 0 advento do carninhao e, logo em seguida, dos onibus, nos anos 20, vao transportar, primeiro, mercadorias e abastados e, em seguida, os populares, num ritmo diverse daquele a que haviam se acostumado, que tinha no lombo de animais, nos carros de bois e carrocas e no caminhar suas maiores expressoes. No entanto, essas rnudancas, que redefinem certas nocoes de tempo e espaco, foram incorporadas paulatinamente, so causando urn irnpacto maior em famllias e grupos que ate entao sobreviviam do transporte de mercadorias em lombo de
Espirito Santo, Mulungu e Guarabira (relacao das estacoes da Great Western no Anuario de Campina Grande, 1925: 106~1 07).
39 Elpidio de Almeida, op. cit, 1979:341~350; Gervacio Batista Aranha. 0 (rem no imaginario paraibano: modemidade e mito (1880-1930). Doutorado em Historia, Campinas, Unicarnp, 1994 (projeto dedoutorado) e o imaginario do (rem na Paraiba: tramas do politico, imagens do modemo - 1880-1925. Doutorado em Historia, Campinas, Unicamp, 200} (tese em elaboracao) e William Tejo "0 dia em que 0 Trem Chegou" In Anuario de Campina Grande. Campina Grande: Grafset, 1980:54-55.
-10 Sobre 0 papel dos caminhoes no trans porte do algodao, de passageiros e de mercadorias, bem como suas consequencias para 0 declinio das atividades dos tropeiros e mudancas das nocoes de tempo e espaco na Paraiba na decada de 1920, ver Gervacio Batista Aranha, op. cit. 1994 e "Camp ina Grande no comeco do seculo XX: trem e mudanca cultural" in Cademo Especial do Jomal da Paraiba, 1111011997; "Carnpina Grande" em 0 Rebate, 04/1011949; e Euripedes de Oliveira "Campina Grande" In Anuario de Campina Grande, 1981:54-56.
41 William Tejo, "Campina no fim do seculo XIX e a chegada do primeiro carro" in Anuario de Campina Grande, 1981 :67-68.
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animals e em carrocas'". 0 advento e a populanzacao do autom6vel (no sentido da exlstencia na cidade de um maior numero e da sua utiiizacao como transporte de aluguel, como 0 carro de praca, por exemplo) vao trazer novas rnudancas para a vida das pessoas, sua circulacao, moradia e os usos de certos territorios da cidade. Durante toda a decada de 1930, vamos ver as ruas centrals serem alargadas e pavimentadas para facilitar 0 uso dos autornovels e os conseqOentes abusos dos tresloucados motoristas'". Nao ha como negar: uma caminhada pelas ruas centrals de Campina, em 1925 ou 1945, era feita diferentemente.
Com esses dados nas maos podemos voltar aos caminhos e passeios que faziam os conternporaneos por algumas das casas comerciais relacionadas no Anuetio de 1925, pelas ruas descritas por Epaminondas Camara e pelos locais que tinham como OP980 para comprar ou simplesmente othar. Naquele longinquo ana de 1925, poucos estranhariam ter que fazer suas andancas por ruas, becos e pracas de chao bafido, embora algumas com arvores podadas artisticarnente'".
Parte da rua das Areias, a rua dos Arrnazens, ou Marques do Herval, e a rua Grande, ou Maciel Pinheiro, bern como a praca Epitacio Pessoa (urna continuidade desta ultima), eram 0 epicentro do cornercio a varejo e atacado daquele tempo. Cronistas e memorialistas observaram que a Maciel Pinheiro era principalmente a rua das moradias elegantes da elite da cidade nesse perfodo, ate pelos menos os primeiros anos da decada de 1940. No entanto, nao ha paradoxo entre a moradia das tamutas finas e elegantes e as casas cornerciais. Estas, em grande parte, pertenciam ou serviam aquelas. Muitas vezes moradia e comercio estavam juntas no mesma sobrado. Na rnaiorta das grandes cidades brasileiras, so nas pnmeiras decadas do seculo XX 0 hablto de associar moradia e cornercio foi modificado significativamente45.
42 Segundo Epaminondas Camara, no ano de 1923, "Desapareceram por determinacao da municipalidade, as carrocas de boi que faziam 0 trans porte urbano de mercadorias. Existiam mais de cern ... " e foram substituidas ror carninhoes, op. cit, 1947:129.
3 "Cousas da cidade", de Cristino Pimentel em a Rebate (s/referencias), 0 Rebate n? 10, 03/1211 932, p. 01 e A Batalha n? 12,0310 I11935, p. 03, denunciando as desabaladas corridas de motoristas peJas ruas da cidade, que punham a vida de seus moradores em risco.
44 Varias fotografias da Maciel Pinheiro nas decadas 1920-1930 mostram como as arvores eram cuidadosamente podadas.
~5 Heranca da Idade Media europeia e do periodo colonial brasileiro, tanto no Velho Mundo como aqui, esse costume foi perdendo forca a medida que as areas centrais das cidades eram reformadas e/ou que essas areas
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Caminhando pelo chao batido da rnais atraente das ruas da cidade na primeira metade dos anos 192046, poder-se-ia encontrar no nurnero 10, a lrnpecavel Alfaiataria Londres, com 0 seu sortimento variado de "cassemiras, palm-beachs, alpacas, brins brancos e de cores". Aqui, dizia 0 anuncio, vestia-se com "elegsmcia e perfeicao". A propaganda que observamos estimula conjecturas.
(""ompleto sortimento de Casemiras. Pal m-b ea ch«, Alpacas, Br ms br anco s
e de cores
:~
E4E.GANCIA E PERFEI<;:AO
Propaganda da Alfaiataria Londres, Anuario de Campina Grande, p. 28.
Caso urn rico fazendeiro e/ou criador la do sertao quisesse, poderia adquirir nas varias lojas das tmediacces tude que fosse necessario para ficar tao elegante como 0 cavalheiro que ilustra a propaganda. Othanoo-o, ele seria demovido de qualquer duvida ao se deparar com 0 quadro de urn fino senhor trajando um impecavel conjunto. Mesmo para elhos adestrados pela pararernana que cemputadores, cinema, televisao, outdoors etc. nos proporcionam hoje, e irresistivel.
Na viagem seguinte do rico propnetario e plantador de algodao a Campina Grande, de sua algibeira sairia perto de urn conto de reis para a Alfaiataria Londres
se dinamizavam com 0 crescirnento comercial e portuario. Para a Europa ver Raquel Rolnik, op. cit., 1988 e Francoise Choay, cp. cit, 1997; para capitais brasileiras, como Sao Paulo, Fortaleza, Porto Alegre e Florianopolis ver, respectivamente, Raquel Rolnik, op. cit., 1997, Rogerio Sebastiao Ponte, op. cit, 1999, Sandra Jatahy Pesavento, op. cit, 1994 e Hermetes Reis de Araujo, op. cit, 1989.
46 So no ano de 1926, na gestio de Emani Lauritzen (I 924-1928), e que Carnpina Grande vai ter sua primeira rna calcada, a Maciel Pinheiro (praca Epitacio Pessoa), ver Epammondas Camara, op, CIt., 1947:137 e Elpidio de Almeida, op. cit., 1979:387,
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ou a Alfaiataria Brasil, outros para as compras rotineiras e, e clare, uns tantos mil rels seriam gastos entre 0 hotel, as cabares, muita bebida e as fogosas putas. Nos anos 1930 e 1940, alguns contos a rnais seriam gastos com bebidas e prostitutas finas, trazidas e atraidas a cidade pela Pensao Moderna e pelo Cassino Eldorado.
Urn trajeto parecido poderia ser feito por urn trabalhador ou pes so a de menores posses. Ele ou ela visltaria, ou passaria em frente as vitrines, e se oeslurnbraria com as Alfaiatarias da Maciel Pinheiro, com suas gran des casas comerciais, localizadas em casaroes em estilo colonial, filhos das ultirnas decadas do XIX, com altura, tamanho e fachadas que deveriam encantar os olhos do homem e da mulher cornuns'". Urn jornaleiro ou agricultor com certeza cornpraria menos, ou talvez nao cornprasse nada. Mas a noite, como era tarnbern filho de Deus, dormiria com sua puta de mil rels, dinheiro suficiente para se deitar com uma daquelas "mulheres sordidas" ou "meretriz de baixo catao" a que se referia acima 0 anonlrno articulista do Brasil Novo.
Indo adiante, mas continuando na Maciel Pinheiro, encontrava-se, logo apos a parada obrigat6ria na Alfaiataria Londres, a Casa Guerra. Suntuoso sobrado de dols pavimentos (durante urn born tempo 0 unico da Maciel Pinheiro), localizado em uma esquina e com 0 pujante nome lapidado no seu frontispicio, para que nao houvesse duvidas. Anunciava ter "urn variado sortimento de tecidos de todas as qualidades", alem de "miudezas, chapeus. perfurnarias e outras novidades". Para atrair a freguesia, usava dois bons argumentos: 0 primeiro informava que 0 variado sortimento de seus artigos era adquirido nas "pracas de Recife, Parafba, Maceio, Salvador, Rio de Janeiro, Sao Paulo e outras"; 0 segundo anunciava que "0 programa desta casa e vender barato para vender multo", mas deixava escapar uma aovertencla: "Pre90 fixe - vendas a dinheiro".
47 Sobre os estilos ecleticos e neo-classicos dos antigos casaroes e sobrados de Campina Grande e as modificacoes na arquitetura da cidade advindas com a segunda gestae de Vergniaud Wanderlei, ver Cassandra Veras, op. cit., 1988:3l-32, Fabricio Lira Barbosa, De Rainha a plebeia: inventario das transformaciies urbanas e arquitetonicas de Campina Grande entre 1935-19./5, Graduacao em Arquitetura e Urbanismo, Natal, UFRN, 1999,2 vols., especialmente pp. 14-15 (vol. 1) e p. 51 eo capitulo "Arquitetura", pp. 65-85 (vol, 2), Silede Leila O. Cavalcanti, op. cit., 2000:68-73 e Hermano Jose, "Art deco campinense: 0 resgate do tesouro", caderno Cidade do Jamal da Paraiba, 14/0111996, p. 05.
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Deveria com certeza ter uma clientela rna is am pia do que a Alfaiataria Londres; por isso, no anuncio de tecidos lemos que 0 "sortimento [era] de todas as qualidades", brecha para empurrar corpo abaixo e acima dos comuns mortals os tecidos grosseiros, que uma dona de casa, um agricultor, jornaleiro, carregador, prostituta ou policial podiam comprar com os parcos mil reis que conseguiam ganhar.
Andando um pouco mais, e na mesma dlrecao, encontrava-se no nurnero 43 o Recamo, com "completo sortimento de ferragens e estivas", que eram vendidas "ern grosso e a retalho" (anunciava ter side fundada em 1915). Logo vizinho, ficava a Gasa Royal, ruirnero 47, que tinha "completo sortimento de calcados e chapeus, para - homens, senhoras e criancas", alem de "perfurnarias, sedas e outros artigos de luxos". Por fim, a tradicional Casa lracema, no numero 49, que dizia ser "especialista em tecidos fines, para senhoras, bordados, rendas, fitas, perfumarias e artigos para homens". Um carregador ou jornaleiro (ou uma operarta, dona de casa ou agricultor), dificilmente podia comprar algum dos "artigos para homens" da Casa Iracema, ou mesmo adquirir para a sua "senhora", um dos "artiqos de luxo" da Gasa Royal48.
Ate aqui mostramos algumas das principais casas comerciais da Maciel Pinheiro que por esses tempos estavam abertas a clientela, mas nao podemos esquecer que esta era tamoem a rua habitada pela elite da cidade. Nesse caso nao ha duvida, a Maciel Pinheiro estava aberta quase que so mente para uns poucos abastados. Para alern destes, aceitava-se como moradores apenas os ernpregados de algumas casas comerciais e padarias. Em urn livre de memorias publicado no final dos anos 1990, Harrison Oliveira, saudosamente, revive os "tempos aureos" da Maciel Pinheiro, na epoca tarnbern conhecida como Rua Grande.
A rua Maciel Pinheiro ( ... ), naquela epoca, era a rua chic da provinciana cidade, onde, inclusive, realizava-se 0 footing. Arteria mats residencial que cornercial, ali moravam algumas famllias ricas da cidade e de tradlcao: 0 empresano Joao Araujo, 0 comerciante Vieira da Rocha, 0 major da Guarda Imperial Tito score ( ... ), 0 comerciante Jose Cherpark,
48 Adiante, no numero 60, ainda encontraria A. Bastos & Cia, lidando com comissoes e consignacoes.
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judeu instalado com uma movelaria, 0 bacharel em direito, Severino Pimentel, 0 dentista Antonio Carnbolrn. Sr. Joao Florentino, 0 comerciante Alfredo Guerra (0 sobrado de seu Guerra, assim se chamava 0 unico primeiro andar da Maciel Pinheiro), 0 comerciante Jovino do O. Todas essas famHias que residiam naquela rua conviviarn com urn intenso cornercio, notadarnente dos ramos de tecidos e calcados, A Nova Aurora era a loja de tecidos mais chic da rua, seguida da Casa Iracema (dos irmaos Arruda). A Principal, do sr. Moura, urn portuques muito simpatico e muito partador (sic) ... A Sapataria do sr. Amaral, burgues que usava e abusava do born scotch, a Sapataria Royal do dr. Ernidio, a Sapataria de Marcelino, a Sapataria Borborema ... , a Farrnacia de Julio Honorlo de Melo, a rnercearia 0 Castelo de Bronze, do Sf. Severino ... Na rua Grande existia uma (mica hospedaria: 0 Hotel Central, de propriedade do velho Lyra ... Era urn velho sobradao, pintado de roseo, ja meio carcomido pelos anos ... Subindo a rua ate a connuencta com a Monsenhor Sales (Beco do 31), existiam outras casas comerciais: a Farmacia Azevedo, administrada palo farmaceutlco sr. Monteiro ( ... ). seguindo em frente, havia a farmacia de Severino Cabetao, a loja de miudezas A Simpatia .... 49. (grifo no original)
Este trecho acrescenta, e ciaro, ao rol de comerciantes que anunciaram no Anuerio de 1925, outros que, na epoca, ou nao haviam ainda se estabelecido, ou nao contribufram com reclames para a sua confeccao. De qualquer forma, 0 leitor tern, ao menos de relance, a certeza de que, ao caminhar pela Maciel Pinheiro daqueles tempos, punha os pes no que existia de mats nobre na cidade, tanto em termos comerciais como de habitacoes. Este aspecto da rua, que alem do rna is era uma das arterias por onde se esparramava, as quartas e sabados, a feira da cidade50, sofreu pequenas rnudancas, como 0 seu calcamento, no segundo lustro da decada de 20; em termos flsicos, porern, 56 foi modificada significativamente com 0 "bota-abaixo", na segunda gestao de Vergniaud Wanderley, entre 1940 e 194551.
Podemos, ainda, ligar as pontas do tempo na Maciel Pinheiro com Jaivos de memoria expelidos pela pena de Cristino Pimentel, recuperando outre aspecto que a mem6ria dominante parecia querer embotar. Entre muitas outras ooisas, 0 texto vale par movimentar e dar rnais vida a rua cas elites da cidade, tambern
·W Harrison Oliveira. Urn C erto Coronel Chico Maria, s/referencias, p. 3 I -33.
50 Sobre a feira na Maciel Pinheiro e sua transferencia para as proximidades do novo mercado, ver capitulo 4 e Regina Coeli Nascimento, op. cit., 1997: 18-33.
51 Ver capitulo 4.
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pisada par pes descatcos e de calcados simples, apesar de tantas sapatarias e sapatos finos ali existentes. 0 titulo da cronica e Rua Maciel Pinheiro.
( ... )
o que acontecia de alegre em Campina Grande, a rua Maciel Pinheiro era testemunha. Procissoes, retretas, cinemas, camaval, e tudo enfim que servia de divertimento social.
( ... )
As vendas de Tito Sodre, de Idelfondo Souto, de Joao Ribeiro; as padanas do eel. Probo, major Padeiro, Neco Xavier e Neco Belo, chelas de gente humilde prosando, e bebendo cacnaca. Jose Carnelo, Nequinho de Licurqo, Pedro Maranhao, Inacio Manta, Fortunato, Jacinta Preta, Cobra D'agua, Lamparlna, Severino Bispo, Joao Doido, Couro Grosso, Ze Congo e Bento Lopes, todos fregueses da venda do major Tito, que nunca estava vazia e chamava-se "0 Amigo do Povo". Era uma especie de quartel general dos oesqracados, que afogavam na aguardente as rnaqoas que traziam no peito. E "Seu" Tito, born, paciente, brincava com todos e os consolava ( ... ).
Urn fato interessante registrou-se nessa rua, num dia de "Topa boi". A Maciel Pinheiro cheia de gente. Urn curral armado e dentra urn touro bravio, que havia de ser "topado" pelo negro Cambraia, eximio nesse genera de luta. Se achava no local 0 negro Jose Congo, bebedor de aguardente. Francisco Afonso, vulgo Perua Preta, dono da "Loja da l.ua", que passava por doido, mas era somente engrayado, abeira-se do negro e 0 convence de que devia "topar" 0 bol. 0 negro, urn tanto esquentado, "comeu a corea" e saltou dentro do curral com urn pau de carrapateira na mao. Espanto gera!. 0 touro, como que sentindo a insulto e querendo apenas assustar 0 negro, pegou-o com as pontas e jogou-o fora do seu domlrno. 0 negro foi cair no meio da rua. Protegeu-o uma camada grossa de areia do leito da rua, Levantou-se, sacudiu a roupa, puxou uma faca da cintura e gritou: "apareca 0 fio da p ... qui dixe que eu sabia topa bol" ... 0 velho Perua Preta, escafedeu-se ... ( ... )52. (grifo no original)
Entremeando lernbrancas com anexins e aforismos ("Ha quem nao ame 0 progresso, quem censure a civiliza~o. E 0 mesmo que fechar os olhos a luz do alfabeto"53), a cronista vai desfilando para 0 deleite do leitor urn carnaval de personagens que a mem6ria dominante parecia querer enterrar mats uma vez ... A
S2 Cristino Pimentel, op. cit, 1956:56·62. Era comum nas cronicas do final do seculo XIX e inicio do xx, 0 recurso a aforismos e anexins; ver Olavo Bilac, Vossa Insolencia. Cronicas. Org. Antonio Dimas. Sao Paulo:
Companhia das Letras, 1996, Raul Pompeia, Cronicas do Rio. Org, Virgilio M. Moreira. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura, DGDIC, Divisao de Editoracao, 1996, Joao do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Rio de Janeiro: DGDIC, Divisao de Editoracao, 1995. Wellington Pereira em Cronica. Arle do util ou do fldl? (Ensaio sobre a cronica no jornalismo impressa}. Joao Pessoa: Ideia, 1994, faz uma arqueologia do tenno "cronica" e uma discusao sobre a cronia no Brasil nos seculos XIX e Xx.
53 Cristino Pimentel, op. cit. 1956:56-62.
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rua Maciel Pinheiro, a acreditar nessa cronlcazmemona, era rnais do que "a rua da elite, dos grandes comerciantes, de destacados fazendeiros, e [d]os polfticos mais conhecidos"; era rna is do que 0 seu local de sociabilidade, como queria Severino Machado, traduzindo em paginas recentes os anseios e anqusttas de velhos moradores: "Nas noites de lua, nas calcadas da rua Grande (Maciel Pinheiro) as senhoras da alta sociedade sentavam-se nas cadeiras, em frente de suas casas e casaroes, para bate-papos, conversas amigas. Era tao comum esta cena que, com a mocernlzacao desta rua, tudo ficou somente na lernbranca de bern poucos ... ,,54. Foi tarnoern palco das bebedeiras de Ze Congo, dos espetaculos do negro Cambraia e de personagens como Cobra O'agua, Jacinta Preta, Lamparina e outros mais'". Nao deviam, em certos momentos, ser boas companhias para as "senhoras da alta sociedade", que por ali "sentavam-se nas cadeiras".
Podemos imaginar (tudo fruto de nossa imaginar;ao!) 0 inveterado bebum Ze Congo, ao sair da mercearia do "seu" Tito score, falando soztnho, maldizendo a vida, pilheriando fantasmas e arneacando despencar pelo chao batido da portentosa rua, tombando de urn lado para 0 outro em direr;ao ao local onde as "senhores da alta sociedade" haviam acabado de por suas cadeiras. Urn despauteriol! !
Concluindo a caminhada pelos cerca de 150 metros da Rua Grande a partir do largo da Matriz desembocamos, ao seu final, na praca Epitacio Pessoa, uma connnuacao ampliada daquela rua. E interessante mostrar ao leitor como essa arteria terminou sendo registrada petas cameras dos fot6grafos. As fotografias que retratam a praca Epitacio Pessoa e a rua Maciel Pinheiro sao muitas, 0 que nao e de sstranhar, ja que nas decadas de 1920 e 1930, como quer 0 proprio Anuario de 1925, procurava-se vender uma imagem da cidade como 5e fosse um novo eldorado. Essas artertas, que se diziarn duas, mas que deixam a lrnpressao de
54 Severino Machado "Ruas de Campina: Maciel Pinheiro" In Tudo, suplemento do Diario da Borborema, 07/08/1983.
55 Em levantamento no Banco de Dados, no item "Dados dos Processes", encontramos 26 processos criminais na sua maioria de agressao e luta corporal ocorridos nas ruas Maciel Pinheiro e Joao Pessoa, 0 que era motive de indignacao e irritacao por parte de promotores e juizes. A irnprensa tarnbem costurnava noticiar corn forte irritacao as contendas e lutas nas principais ruas da cidade, ver "Etc & Tal" in 0 Seculo, n? 23, ano I, 01/12/1928, p. 04.
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continuidade, com final ample e feliz, se prestavam como cartoes postais do progresso que grassava na cidade. 01er Fotografias 01, 02 e 03).
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Mais uma vez podemos parar e refletir sobre essas imagens. 0 olhar dos que fotografavam a epoca era seletivo e informado por um certo repertorio". Quando nao retratavam famflias da elite rural e urbana, dedicavarn-se a registrar 0 progresso da cidade (compreenda-se, ao menos aqui, os seus stnais exteriores): imagens panorarnlcas do movimento da feira, das ruas centrals, onde destacavam-se as fachadas das suas "vivendas modernas" e dos casaroes colonials: mostravam as casas comerclais, as pracas e ruas arborizadas: industrias, autom6veis, caminboes transportando fardos de algodao etc. Tudo isso salpicado de um ou alguns poucos moradores aqui e ali, quando nao era posslvel esvaziar a rua ou fotoqrafa-la a horas rnortas'".
Nao conseguimos localizar fotografias de Campina Grande nos anos 1920 que rnostrassern habitacoes nos suburbios ou tipos populares, tal como vemos no acervo lconoqrafico de outras cidades brasileiras'". No maximo, as pessoas comuns apareciam em alguma inauquracao ou rnarutestacao politi ca , cuidadosamente organizada pelos administradores municipals.
Ha sinais claros na docurnentacao do que era a cidade para seus moradores ilustres e para os que os acompanhavam, como os fot6grafos, per exemplo. Retornemos, porern, as andancas pela praca Epitacio Pessoa, para alern do que as fotografias nos deixam ver. Segundo 0 Anuario de 1925, concentrava-se num trecho aparentemente pequeno urn numero significativo de casas cornercials. Ao menos dez casas estavam ali localizadas, especiatizadas em vender "fazendas, miudezas, chapeus, perfumarias, artigos de modas, etc.". Encontramos esses produtos anunciados em sete das dez casas (0 Grande Ponto, 0 Invencfvel, Bazar Industrial, Bazar Sertanejo, Loja Estrela, Casa Colombo e Casa Indiana);
56 Ver Bertrand de Souza Lira. Fotografia na Paraiba ~ Um inventario dos fotografos atraves do s retratos ~ 1850-1950. Joao Pessoa: Editora Universitaria, 1997 e Mauro Guilherrne P. Koury (org.). !magens & ciencias sociais. Joao Pessoa: Editora Universitaria/Uf'l'B, 1998:109-117
57 Bertrand de Souza Lira, op. cit., 1997:216 e Mauro G. P. Koury, op. cit., 1998:109-117.
58 Autores que mostram fotografias e imagens de rnoradias e tipos populares em periodos proximos ou anteriores ao deste trabalho: Zelia de Oliveira Gominho, op. cit, 1998; Sandra latahy Pesavento, op. cit, 1994; Sidney Chalhoub, op. cit., 1996; Maria Odila L. da S. Dias, op. cit., 1995 e Nicolau Sevcenko (org.), op. cit., 1998. 0 trabalho anteriormente referido de Bertrand de Souza Lira, que pretende ser urn inventario dos fotografos na Paraiba, entre 1850 e 1950, nao registra qualquer fotografia de tipos populares para 0 periodo que investigarnos.
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em tres (0 Progresso, 0 Invenclvel e Casa Indiana), encontramos urn amplo espectro de produtos, vendidos em grosso e a retalho: "farinha de trigo, arame farpado, charque, acucar, aguardente, alcoot, cafe, sal, 10U98S, vinhos, manteigas, doces, querosene, sabao, 6leos, etc."; algumas ainda anunciavam produtos especfficos, como a 'fabricacao de malas e bolsas para viagem" (0 Invencfvel) ou "completo sortimento de materiais de ferreiros, marceneiros, sapateiros, co rreeiros, fogueteiros, pintores, seleiros, etc." (Casa Indiana).
Na praca Epitaclo Pessea podia-se tarnbern saborear "os deliciosos paes de seda" , na Padaria Sao Jose, e vestir-se decentemente na casa que dizia ser a rnais antiga da cidade no ramo, a Alfaiataria BrasiL Aqui encontrarfamos, segundo os anunclos publicados, "sortimento completo de casemiras nacionals e estrangeiras, seda-palha, frescots, palm-beachs, tricolines para camisas, meias, gravatas, colarinhos e objetos para homens". De quebra, ainda cantarolava, "Prontidao absoluta - Garantia incontestavel. Precos otirnos".
Associada ou consorciada com a Rua Grande, a praca era tarnbem lugar de outras atividades e usos. Por ela, nos anos vinte, davam-se nos finais de semana ou nas campanhas eleitorais as concorridas retretas, animadas pelas charangas Epitacio Pessoa e Afonso Campos, pertencentes aos partidos rivais, remanescentes do imperio. Ali tambem encontravamos clubes, 0 precto do mercado, a praca de autornoveis de aluguel e 0 Gabinete de Leitura 7 de Setembro, lugar em que os rnocos e letrados avidos de lapidar 0 "espirito" se reuniam em tertulias nos finais de semana, logo apes asslstlrern a missa do domingo de manna.
Ap6s se deleitar na Maciel Pinheiro ou nela tomar uma carraspana, 0 caminhante podia entrar pelo estreito 8eco 31 ou rua da lndependencla'" e seguir ate 0 seu final, onde cairia na rua dos Armazens, seguiria a sua direita e logo chegaria a praca do Algodao, que era 0 ponto de liga~o entre a rua das Areias (ou Dr. Joao Leite, futura Joao Pessoa) e ados Armazens. 0 outro caminho era
59 Nilo se sabe se por maldade ou inconscientemente, buscaram urn dos becos ou ruas rnais estreita do centro para homenagear data tao significativa da nossa historia. Talvez 0 seu proponente naquele tempo ja soubesse o quanta estreita e precaria era nossa independencia. Com a morte do paroco local, monsenhor Sales, a ruaibeco/travessa recebeu seu nome, embora durante rnuito tempo ainda se referissem ao local como Beco do 31.
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seguir em frente na praca Epi1acio Pessoa, entrar a esquerda na 7 de Setembro, margear a praca do Algodao e cair na rua das Areias. No infcio dos anos 20, 0 caminhante teria que fazer todo esse trajeto por ruas de terra batida, esburacadas e lamacentas; ao final da decada. porern, faria em parte pisando na novidade que era 0 calcarnento a paratelepfpeoos'".
Em nurnero de casas comerciais, a Rua Grande e a praca Epitacio Pessoa s6 seriam ultrapassadas nos anos 1920, pela rua das Arelas, Nesta, vendia-se principalmente em grosso ou atacado (como ocorre ate os dias de hoje). Tinha um espectro de produtos mais amplo do que 0 que se vendia nas arterias anteriormente comentadas, pols, alern daqueles produtos, comercializava "acess6rios para autom6veis, camas de ferro, lavat6rios, madeira para construcao, cimento, engenhos para cana, descaroc;adores de algodao, cilindros para padaria, motores "Deleo-licht", etc. Alern desse leque de produtos, que tornou a rua das Areais famosa nas decaoas seguintes, tfnhamos diversas casas de "comissoes e consiqnacoes, representacoes e conta pr6pria", alguns compradores de algodao e casas de irnportacao e exportacao.
Ali tarnbern podia-sa dormir em paz e com tranquilidade, segundo os anuncios que encontramos de um hotel e de uma pensao. 0 Hotel Centenario, informava 0 A nuerio , era "0 mais higienico da cloace", com uma "cozinha nacional e estrangeira", onde 0 fregues ou viajante disporia de "refeic;oes a qualquer hora do dia ou da noite": havia passado recentemente por uma reforma e suas "acomodac;6es [eram] arejadas", proporcionando "conforto a contento do fregues", tudo tsso por "dianas modlcas", Entre uma e outra lnrorrnacao, fica-se sabendo que ali reinava "moralidade e ordem".
A outra opcao, para quem nao tivesse condic;6es de pagar as "diarias m6dicas" do Hotel centenano, era dar uma passada no nurnero 63, na Pen sao Sertaneja. Aqui, ao menos 0 anuncio era economico: "disp6e de bans cornodos, contortaveis e higienicos para famflias e cavalheiros. Cozinha de 1 a ordem. Precos cornodos". Mas talvez para 0 nosso caminhante nao fosse interessante pensar em dormir antes de ver 0 espetaculo que Ihe of ere cia a rua dos Arrnazens, ou
60 As fotografias e as constantes denuncias e reivindicacoes a prefeitura dao-nos uma boa medida desses
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Marques do Herval. Na oecada de 20, esta rua ja despontava como a centro do cornercio da malvacea que fazia a alegria de alguns poucos na cidade: 0 alqodao'". Pobre au rico, coronel ou lavrador, gatuno ou industrial, todos queriam ver aquele movimento intense em tome da rua que dava guarida com 0 seu leito as pilhas de algodao ensacado, prestes a fazer sua ultima viagem via Great Western em direcao a capital ou ao porto do Recife.
Ao adentrar a praca do Algodao, logo no nurnero 5, encontramos Severino Afonso & Cia, com 0 seu "armazem de compra e venda de alqcdac". Era um corneco promissor para quem sata da rua das Areais e se aproxirnava da Marques do Herval em busca do "ouro branco". Na rua dos Armazens, das seis casas que anunciaram no Anuario de 1925, tres viviarn principalrnente da compra e venda de alqodao; 0 Escritorio de Corrussoes de Santino de Carvalho anunciava que na rua da Republica tinha um deposito nos nurneros 46, 48 e 50; Dernosthenes Barbosa & Cia, que, pelas suas proporcoes, ocupava os nurneros 17, 25 e 33; e Arrnazens e Escritorios de Jose T. de Moura; havia uma ainda negociava "autornoveis e acessorios em geral para automovels, motocicletas e bicicletas e seus pertences (auto e caminhoes Chevrolet, pneurnaticos Goodyear, Dunlop e Michelin"); outra era os Arrnazens e Molhados, "loja de ferragens e miudezas", que ocupava os numeros 21 e 23; e, par fim, a Padaria e Mercearia das Neves, que era urn tipo de panificadora e loja de converuencia da epoca, po is anunciava "Pastetaria e panificacao em geral, [aceitando] contratos de bolos para batizados e casarnentos", fazia "bolachinhas e biscoitos para cha", mas dizia tarnbern ter "estoque permanente de todos os gEmeros de estivas".
A praca do Algodao e a antiga rua dos Armazens tarnbern ficaram nos anais da memoria, registradas pelas maos de cronistas e olhares de fot6grafos, avidos e habeis em mostrar 0 principal slrnbolo da riqueza crescente da cidade. As imagens dizem quase tudo: sao inurneras, retratando as chegadas e saldas, cargas e descargas de volumosas sacas de alqodao, no lornbo de animais ou em
aspectos.
61 0 mais completo estudo sobre a econornia algodoeira em Campina Grande e os seus reflexes nas relacdes de poder e dominacao na cidade e Latifundio e algoddo em Campina Grande: modernizacdo e miseria, de Josefu Gomes de Almeida e Silva, op. cit, 1985.
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eaminh6es com grandes volumes e. rnais do que isso, a rua abarrotada'"; tem-se a impressao de um movimento frenetico de carregadores, tropeiros, gerentes e tunclonarios das casas de importacao e exportacao, carros de aluguel, motoristas e proprietarios de caminh6es, e os grandes senhores a fiscalizar tudo aquila. (Ver fotografias 04,05 e 06).
62 Bertrand de Souza Lira, op. cit, 1997:213, referindo-se a um fotografo de Camp ina, informa que "Soter era contratado, amiude, pelos exportadores, orgulhosos de sua producao, para fotografar os grandes carregamentos de algodao". 0 C6digo de Posturas de 1927 tentou disciplinar 0 que aos olhos dos letrados se transformara num "caos" na decada seguinte,
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Nas fotograflas da rua Marques do Herval, com suas dezenas de fardos de algOOao esparramados em frente aos arrnazens, encontramos, ladeando os grandes volumes, estivadores e cabeceiros a carregar e descarregar carninhoes ou comboios, que os levariam ate a estacao da Great Western peta Irineu Joffily au Vida! de Negreiros, rua da Republica e dali...para ° rnundol
Entre os fardos de alqodao, conseguimos vez par outra capturar criancas, muitas de!as pobres, algumas vezes participando da carga e descarga ou do transports no lombo de anirnais; outras, bnncando par cirna das montanhas de "ouro branco" 63. No entanto, aquelas fotografias, que ainda hoje encantam, mostravam as coisas parcialmente, como qualquer imagem 0 faz. Segundo urn certo discurso, que, filtrado, chegou aos nossos olas, 0 "ouro branco" democratizara a riqueza na cidade, fazendo nascer muitos novos rices. Alguns teriarn feito grandes fortunes tendo cornecado apanhando 0 alqodao que cala dos carmnhoes, que 0 transportava pelas ruas e estradas de acesso a cidade. Foi assim que, segundo Harrison Oliveira, cornecou "urn certo coronet Chico Maria,,64_
63 Na cronica "A Rua Marques do Herval", de Cristino Pimentel em 0 Rebate, n? 766, 04/1011949 e em Antonio Pereira de Morais, op. cit., 1985:56·57, encontramos relatos sobre as pilhas de algodao na Marques do Herval e como serviam de esconderijo ou espaco para brincadeiras de criancas.
64 Harrison Oliveira, op. cit..
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Mas 0 algodaa deixou, tarnbern, marcas menos nobres entre certos membros da elite. Harrison de Oliveira, que criou uma versao sabidamente mftica para 0 infcio her6ico do seu pal, nao se fez de rogado e mostrou uma das facetas utlllzadas pelos grandes senhores do alqodao da cidade (alguns daqueles ilustres moradores da Macie! Pinheiro e praca Epitacio Pessoa) para aumentar ainca mais seus ja suspeitosos patnmoruos relampaqcs: nos anos 1940, urn grupo substancial de "reis" do alqodao se envo!veu em dais escandalos escabrosos, lesando terceiros e abarrotando seus bolsos de contos de reis6s.
Alern das fotografias registrando a riqueza e 0 progresso da cidade, tinhamos diversos e eterneros jornais, que tarnbern reqozijavarn-se com tudo aquila. Folheando os que circulavarn na cidade ou na capital nas decades de 1930 e 1940, percebe-se que 0 "ouro branco", alem de movimentar a riqueza da regiao, atrair inumeros forasteiros, investimentos estranqetros'" e aqucar a cobica de rnuitos, havia criado au estimulado uma corja de pequenos taraplos que vivia a surrupiar, dia e noite, os arrnazens e casas comerciais da cidade. Eram os famosos "bucheiros?". Ou seja, 0 alqodao havia atrafdo e estimulado 0 surgimento de grandes e pequenos ladrces. Mas no jornal do dia au da semana seguinte a descoberta de um dos grandes escandalos, lia-se as seguintes manchetes: "Os laoroes de ga!inha estao agindo a locel. .. ": "Foi descoberto 0 autor dos roubos da "Libanesa" e do Dr. Idelfonso Aires"; "Fatos policiais - os tarapios em acao" etc.: sobre os "escancalos" dos senhores do alqodao, como os denominam Harrison Oliveira, nenhuma linha.
Um roteiro provtsorlo do nosso caminhante irnaqinario poderia ser 0 seguinte: fazer compras durante 0 dia entre as ruas Grande e dos Arrnazens e nas pracas Epitacio Pessoa e do Alqodao. Ap6s a realizacao dos neqocios, buscava
6S Idem, p. 17-18; ver tambem cornentario acre de Epaminondas Camara, op. cit., 1947:227-228, denunciando o enriquecimento rapido e crirninoso de "novos aristocratas" e "novos rices", pessoas ligadas a agricultura e a pecuaria beneficiadas par vantajosos emprestimos do Banco do Brasil durante a 2a Guerra, em detrirnento de toda a populacao da cidade,
66 Os dois maio res simbolos de capitals estrangeiros investidos a epoca na cidade, especialrnente voltados para a prensagem e melhoramento do algodao, eram a Anderson Clayton e a Sanbra, Sobre 0 papel econornico e a repercussao da chegada da Sanbra e Anderson Clayton em Camp ina Grande ver J osefa Gomes de A Silva op cit, 1985:181-212.
67" Encontramos nos jornais locais as seguintes manchetes: "Ladroes e bucheiros", 0 Seculo, 29/07/1928 e "Roubadores de 'buchas'", de Hortensio Ribeiro ern Voz da Borborema, 67, ana II, i4!09iI 938, p. 01.
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amigos para uma boa palestra em bares ou mercearias no Beeo 31 ou na praca Epitacio Pessoa e, a noite, dormia em "bons cOmodos" a "precos medicos", Talvez, acompanhado de uma puta no fervor da idade, com seus quinze a dezenove anos, como encontramos nas decadas de 1930 e 1940, servindo aos forasteiros e "matutos" nas casas de lenocinio ou nas pensoes e cabares mais atamaoos'". Caso nao estivesse satisfeito com 0 que Ihes ofereciam as ruas e pracas acima, poderia seguir a caminhada por diversas outras ruas que, mesmo situando-se em areas conUguas ou entremeadas as ruase precas ja percorridas, pareciam ser suas adjacenclas, ou mesmo estar a margem delas,
Secundando as ruas e pracas acima mencionadas, havia outras travessas, largos e becos tarnbern comerciais, como a travessa da Independencla (Monsenhor Sales), que cornecava na praca Epitacio Pessoa e terminava na rua Marques do HervaL Nela encontramos seis casas comerciais, predominantemente vendendo "fazendas, miudezas, perfumarias, a rtefatos , ferragens, tecidos finos, artigos de luxo para presentes, bijuterias, tecidos grossos, etc.". Na praca 7 de Setembro, que se localizava entre a praca Epitacio Pessoa e as ruas 7 de Setembro, Peregrina de Carvalho e da Lapa, encontramos a Movelaria Brasil e uma casa "compradora de peles, couros, borracha, etc,", Na rua Cardoso Vieira, que iniciava na praca Epitacio Pessoa e terminava na rua Marques do Herval, havia uma casa de irnportacao e exportacao de estivas em geral e a Sandalia Forte, que tinha "completo sortimento de caicaoos e aviamentos para sapateiros e seleiros, [alem de] executar qualquer trabalho concernente a seu ramo de neg6cio". Na rua Venancio Neiva, que cornecava na praca da Luz e terminava na rua da lndependencia, aparece nas propagandas de 1925 apenas com 0 Apiario Sao Jose, que dizia vender "pure mel de abelha 'Europeia". A Visconde de Pelotas, ou rua do Progresso, que cornecava no largo do Rosario e terminava na rua 13 de Maio, tinha duas casas de irnportacao e exportacao de algodao: Jose
68 Hi algumas denuncias na imprensa local envolvendo "pensoes" e "cafes", quase sempre casas de lenocinios: "Casas de lenocinio" em A Batalha, n" 22, 14/03/1935, "Noticias de Campina Grande" em A Imprensa, Joao Pessoa, nO 876, 17/03/1935, p. 02 e "Queixas e Reclamacoes" em A Imprensa, Joao Pessoa, n? 223,07/10/1940, p. 04; ver tambem Regina Coeli Nascimento, op. cit. 1997:27-33.
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Limeira & Cia, no numero 5, Agnello Amorim & Cia, no numero 29, ahem do Emporio Comercial, que dizia vender "Completo sortimento de generos do pais. Mantern grande estoque de charque, querosene, sal, sabao, loucas. miudezas e ferragens"; e conclufa dizendo ser "Agente da Anglo-Mexican Petroleum Co. Ltd". o Largo do Rosario, que ficava entre as ruas Irineu Jofili, Visconde de Pelotas e Marques do Herval tinha a Loja Campinense de J.C. Barbosa, nurnero 50, que vendia "Fazendas, rniudezas, chapeus e camisas" e alardeava ser "a casa que vende mais barato". Enfim, a rua Vidal de Negrelros, que comecava na praca da Luz e terminava na rua da Republica, aparecia apenas com a Mercearia Ideal de J.A. Pequeno, 2, anunciando "Completo sortimento de ferragens, molhados, estivas e miudezas a varejo". dizendo ter "Especialidade em manteiga, charque, bacalhau, vinhos fmos, nacionais e estrangeiros, etc.".
As ruas mats afastadas da area central que apareciam no Anueno eram a do Serid6, ou Lapa, urn trecho da rua Barao do Abiai, alern da praca 7 de Setembro, atraves da estrada do Serid6. A primeira tinha 0 que se autodenominava Grande Deposito de Madeiras Paraenses, no nurnsro 24 que anunciava "completo sortimento de tabuas de cedro, freijo, pau setim e acapu, e grande variedade de outras madeiras, barrotes, etc.", e a Mercearia Modema, com "completo sortimento de estivas, miudezas, doces, vinhos, etc", de Luiz Jose da Rocha. Na rua Barao do Abiaf, que cornecava na praca Lauritzen e acompanhava a estrada do Serid6, ficavam a Padaria e Mercearia Primavera, no n° 47, que tinha "completo sortimento de paes, bolachas, bolachinhas, biscoitos e ararutas" e pertencia a Francisco venancio de Andrade, e a Fabrica Cruz de Ouro, que anunciava "Vinhos, vinagres, conhaques, gasosas, genebras, xaropes de frutas", pertencia a Moura e Alepha e dizia garbosamente ter side "premiada com medalha de bronze na exposicao internacional do Rio de Janeiro em 1922-1923" e possuir "grande diploma de honra conferido pelo Instituto Agricola Brasileiro". Na rua da Republica, antiga rua do Caminho da Estac;ao, que comec;ava na bifurcac;ao das ruas lrineo Joffily, Jovino do 6 e Vidal de Negreiros, locauzava-se J. Motta & lrrnao - Cortume Sao Jose, nos nurneros 12, 14 e 16, que anunciava "Compramos casca de angico, couros de bel e peles especiais para cortume.
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Vendemos solas e vaquetas preta, marrom, chocolate, granja, encarnada, brilhante, canario e de cor natural, Raspas brutas e tingidas com diversas cores. Carneiro de cor natural e angico, triturados para outros curtumes. Olaria de telha e tijolo, etc.", e A Mundial, de Irineu Persiliano da Fonseca, localizada no nurnero 4, que dizia ser "Agencia de loterias, romances, figurin~s, carimbos de borraeha A. H. da Costa, revistas do Rio de Janeiro e Sao Paulo, etc,". Na rua Almeida Barreto, que comecava na rua da Republica e acompanhava a estrada do professor Clementino ate 0 Alto do Seixo, encontrava-se 0 escrit6rio de Pinto, Alves & Cia, a Industria e cornerco Fabrica de Bebidas Lealdade de Celso Barreto, que ficava nos nurneros 19 e 20 e dizia ter como especialidades "Genebra Red-Cat, Conhaque fino Cruzeiro, vinho de cana Lealdade, vinagre Cristal e gasosas especiais" e, por firn, Wharton Pedroza, "compradora e exportadora de algodao em pluma, caroco de algodao e demais generos do pais",
Naturalmente, mesmo sendo bastante extenso, este roteiro mostra-se tarnbern incompleto. Nele nao vemos as muitas e muitas quitandas e mereearias que por estes tempos se imiseufam entre uma rua e outra, nas travessas e beeos mais obscures. Ali bem proximo ao roteiro mais comercial e chique da cidade, cerea de cento e cinqOenta metros da rua Maciel Pinheiro, ao lado da cadeia publica e vizinho ao largo do Rosario, localizava-se a rua do R6i Gouro, empestada de bodegas, mercearias, barbearias e pens6es de putas. Mas esse e outro roteiro e nao e facil encontra-lo em anuncios de uma obra que havia sido elaborada para "que atestasse ta fora, 0 surto de nosso progresso e as nossas mais altas possibilidades, dado 0 extraoromarto desenvolvimento comercial que se vem operando em nosso meio"69,
Larguemos de mao os moradores e visitantes de Campina Grande dos anos 1920-1930 ao bel-prazer do seu caminhar, e facarnos urn passeio pelo corpus documental que possibilitou este exercicio.
69 Anulirio de Campina Grande, 1925:03.
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QUESTOES METODOLOGICAS: AS FONTES
Apes tonga e cansativa caminhada pelas ruas centrais e pelo seu comercio, podemos parar para refietir, ao menos urn pouco, sobre os carninhos reoonstituldos em busca da Campina Grande dos anos entre 1920 a 1945. Ate 0 momento, a docurnentacao utilizada proporciona voos panorarnicos sobre os lugares por onde andavam, moravam e buscavarn a sobrevtvencia carregadores, jornaleiros, a rtistas , operanos, pequenos bodegueiros e prostitutas, grandes comerciantes, industriais, senhorios e proprletarios de terra.
Os textos de Epaminondas Camara, 0 Anuerk: de 1925, as mernorias de Harrison Oliveira ou de D. Esmeraldina Agra, as fotografias e os jornais que por esse tempo precariamente circularam na cidade explicitam, confirmam e retorcarn imagens que ostentam 0 ponto de vista dos letrados da epoca, associados a medlos e grandes comerciantes e propnetarlos, Nao estamos com esta afirmativa negando que muitas das ideias e projetos presentes neste material fossem esposadas e estimuladas por outros grupos sociais e pessoas". Mesmo assim, elas eram esposadas especialmente por letrados, comerciantes e proprietarios rurais e urbanos. Todas, uma por uma, caso as analisemos em separado, provern de olhares bastante seletivos. 0 oatas Campinenses, segundo 0 seu autor, " .... nao e propriamente a historia de Campina Grande; apenas a relacao de datas dos principals acontecimentos da cidade e do municfpio,,71.
Se nele figuram as datas em que faleceram varias pessoas, escapando milhares doutras, e porque desejei prestar simples homenagem aos que se destacaram no cornercio, na lavoura, na pecuaria, na industria, na politica, nas letras ou na formacao educacional dos campinenses, como os mais progressistas, os mais construtivos72.
7() Basta dizer que dois jornais utilizados neste trabalho, A Batalha e a Rebate, se declaravarn ou foram associados aos interesses dos trabalhadores e proletarios, mas neles pode-se encontrar ideias e posicoes sobre higiene, prostituicao, etc. esposadas nos mesmos termos por jomais Iigados a partidos politicos e membros da elite comercial da cidade. Ver Fatima Araujo, op. cit, 1986:86-90 e Josue Silvestre, op. cit, 1993:34-35 e 201-212. Para a imprensa operaria e trabalhadores do Rio e Sao Paulo ver Margareth Rago, op. cit. 1985: 199- 203 e para alguns paises europeus, Stella Bresciani, op. cit 1987:78-108.
71 Epaminondas Camara, op. cit., 1947:03.
72 Idem, p. 05.
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Ve-se logo que nem todos os moradores da cidade aparecem em tal obra, pols muitos nao chegaram a se destacar "no cornercio, na lavoura, na industria, na polftica, nas letras ou na formacao educacional dos carnplnenses", de forma a nao serem percebidos pelo seletivo olhar de Epaminondas Camara. Eram simples carregadores, empregados do cornercio (vez por outra aparecem nas fotografias em frente da casa comercial onde trabalhavam), moradores ou trabalhadores nas grandes propriedades do municipio e da regiao, dornesticas e operarios. Dificilmente 0 conceito de progresso, que tanto significa nos escritos da epoca, contemplaria tats figuras, muito embora nenhum dos significados desse conceito prescindisse do labor diario destas pessoas para rnatenanzar-se: exigia-se, no entanto, urn trabalhador higienizado e produtivo, livre das peias e vezos antigos, associados a incivilidade. Ao final, os trabalhadores e pobres, quando apareciam nos escritos dos letrados, era em grande parte como contraponto ao progresso, que urn dia os varreria com seus haoitos e vfcios inaceitaveis73.
Os anuarios, especial mente 0 de 1925, sao propagandas com 0 claro objetivo de construir para a cidade uma irnagem que atrafsse clientes e compradores para os produtos do comercio local, investimentos de particulares, inclusive de estrangeiros, industrias e os olhos dos governantes estaduais, a fim de perceberem 0 quanto a cidade merecia em beneffcios, 0 que a tornaria ainda mais atrativa para os olhares exterlores". As fotografias do Anuario de 1925 cornpoern urn autennco quadro dos que mandavam na cidade desde as famflias mais tradicionais e ligadas a propriedade da terra (embora ja com urn pe firme no cornercio), ate os chegantes e novos ricos, como diretores da agemcia do Banco do Brasil, banqueiros que vao surgindo com 0 crescirnento dos neqoclos do algodao, pequenos industriais e gerentes de multinacionais. A esses podemos associar bachareis, medicos, religiosos e letrados diversos, que sao tambem os
73 Leitura que seguia a matriz europeia e nao era muito diferente das imagens dos letrados do Velho Mundo sobre os trabalhadores e a multidao das grandes metropoles do seculo XIX, segundo Stella Bresciani, op. cit., 1987.
14 Uma obra do genero "foi editado pela Casa Boris Freres & Cia, a mais poderosa das firmas estrangeiras no Ceara, e impresso na Franca" com vistas a divulgar os ares civilizados de Fortaleza em 1908, segundo Sebastiao Rogerio Ponte, op. cit., 1999: 131.
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novos politicos, ligados quase sempre por laces de parentescos ou enlaces matrirnoniais aos velhos e tradicionais coronets e proprietaries de terra.
Os jornais consultados dificilmente escapam ao universo acima referido.
Seus proprietaries, gerentes, redatores e articulistas faziam parte do mesmo rol: sao politicos, propnetarios rurais e comerciantes, intelectuais a esses vinculados por laces diversos e deles dependentes na maioria das vezes. Talvez urn ou outro nao tivesse relacao de dependencia com os grupos que economicamente dominavam, sendo antes os seus estslos. no sentido de mudar sua mentalidade e comportamento para aproxlrna-los dos chamados valores modernos".
A rnais seria dissidencia de que temos conhecimento no seio do projeto modernizador dos letrados campinenses, e que matiza a leitura que vimos fazendo sobre a imprensa, veio a tona durante os anos 1934-1935, quando na cidade circulou 0 jornal A Batalha, dirigido pelos jovens Arlindo Correia da Silva e Isidro Ayres Castro. 0 efemero dtarlo, alern de divulgar ideias e projetos de sindicalizagao e organiza980 dos trabalhadores, denunciava 0 descumprimento por industriais e comerciantes da legisla<;8:o trabalhista, estampando manchetes cotidianas com os abusos cometidos pelo prefeito ou denunciando os problemas que a prefeitura nao combatia, como a falta de higiene. Chama a atencao tambern por ter travado calorosas polemicas com pessoas e grupos politicos locais, desafiando-os e enfrentando-os, 0 que causou aos seus diretores arneacas de empastelamento, agressao fisica, atentados a bala, persegui<;ao e, por fim, a fuga apressada da cidade, ap6s urn deles ser envolvido em dois processos por crimes de lrnprensa, movidos pelo prefeito Antonio Pereira Drniz e pelo medico e diretor do Hospital Pedro I, Joao Arlindo Correia76.
15 Estamos lembrando de Hortensio Ribeiro, mas tambem de Cristino Pimentel, embora urn e outro possarn em algum momento ter obtido favor de urn poderoso de plantae. Hortensio Ribeiro principalmente, pois sempre 0 encontramos escrevendo na imprensa local e da capital ao lade de todos os govern os, fosse municipal, estadual ou federal. Neste ultimo caso, especialmente durante 0 Estado Novo, que defendeu ardorosamente. Nao se pode, no entanto, embotar algumas ambivalencias nas suas atitudes, pais encontramos o mesmo Hortensio Ribeiro denunciando a censura imposta it imprensa pelo govemador Argemiro de Figueredo, ver "Nota do dial' em A Imprensa, de 1 01041I 935.
76 Ver "Nota do Dial', de Hortensio Ribeiro emA Imprensa, 18/08/1935, p. 02, A Batalha, 1934·1935, Josue Sylvestre, op. cit. 1993:209-212, Sumario Crime n? 67,1935, Arlindo Correia da Silva, mayo de 28102 a 16/12/I 935 e Ayao Criminal n? 84, 1935, Arlindo Correia da Silva, rnaco de 15/03 a 27/0911935.
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Essa dissidencia, ou tentativa de articulacao de um projeto rnals radical no entre os letrados e politicos locais, no entanto, nao nega 0 que era fundamental na imprensa da eocca: sua profunda aproxirnacao ao comercio e aos rnandoes locals, fontes da rnanutencao de todos os jornais que circularam na cidade a epoca.
Por tim, as memortas de Harrison Oliveira, escritas com 0 claro intuito de transformar em herol a velho pai ha rnuito falecido, e as de D. Esmeraldina Agra, marcadas por urn passadismo que denuncia 0 declinio de certas formas de
mostrarn que nem todos os grupos e famflias tradicionais
conseguiram manter suas poslcoes nas novas teias de poder que estavam sendo articuladas com 0 advento das modernas praticas de dorninacao.
Estas fontes, no entanto, se aproximadas a outras series documentais, descortinam uma cidade ou cidades diversas, que elas oferecem pistas para seguirmos algumas form as de pensar e agir na Campina Grande dos anos 1920- 1945. Mas nao podemos ser complacentes com os limites e 0 carater sabidamente ideol6gico destas fontes, ou mesmo com os lugares de ande falam seus autores. Produzidas por rnaos e olhos de letrados avidos de progresso e civilizacao (ou de formas peculiares de compreender cada um destes termos), elas terminam por nos farnecer rnais do que dados sabre a Campina do perfodo, falando muito dos projetos e utopias de parte de seus habitantes, ou do que alguns deles queriam que viesse a ser a cidade.
Outro corpus documental, os processos crirnlnais, amplia nossos horizontes.
A idela deve ser repetida para que fique clara para 0 leiter: os processos ampliam nosso olhar sobre a Campina Grande dos anos 1920-1945. Eles nao nos oferecem em absolute a chave do que era a cidade, mas colocam na dlscussao outros tantos indicios que, seguidos com cuidado (detetivescamente, como diria Carlo Ginzburg7\ poderao proporcionar ao historiador mapas de alguns tesouros. E uma documentacao marcadamente probternanca, que deve ser utilizada e manuseada com cuidado e carinho. Em geral, sao documentos elaborados por agentes de uma das instituicoes que rnals forternente tentou rnoldar a sociedade
77 Carlo Ginzburg. Mitos, emblemas e sinais. Sao Paulo: Companhia <las Letras, 1989: 143·}80.
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aos seus preceitos e projetos, urn baluarte do que alguns cornpreendiarn na epoca como civilizacao. Tern uma linguagem propria e mecanismos tarnbern peeu liares , constituidos por diseursos e praticas que historicamente visam e atingem principalrnente trabalhadores e populares em seus "vfcios" e "desregramentos" .
Contudo, eles sao confeccionados de tal forma, por uma diversidade de atores e falas, que, lidos cuidadosa e trabalhosamente, revelam um universo mais amplo do que outras fontes, oferecendo 0 registro das acoes e rnotivacoes de pessoas e grupos que raramente nelas aparecem. Aqui precisarfamos fazer ressalvas, pois 0 direito a fala de populares nos processos acontece em circunstancias bastante singulares e coercitivas. Tais filtros, entretanto, ja foram bastante discutidos pelos rnstortadores". Cientes disso, e buscando dar tirar proveito, temos que ir adiante.
Dos 289 processos criminais pesquisados, envolvendo crimes de agressao (0 maier nurnero), homicidio, tentativa de homicfdio, e alguns de co ntravencao , roubos e injurias79, a grande maioria tern como protagonistas pessoas comuns que, em algum momento, entre 0 final dos anos 1920 e 0 ano de 1945, moraram ou passaram por Campina Grande.
Ao folhear cada um daqueles processos (meio abandonados em prateleiras tomadas par acaros, tracas, muita poeira e pouco ou nenhum cuidado), vemos desfilar, nem sempre pomposamente, nomes e personagens que por breve tempo se despem para nosso olhar esquadrinhador. Como 0 leitor vera, alguns ganham as nossas simpatias desde logo, sao verdadeiros artistas da vida; costumam, com suas man has e arquclas, pregar "pecas" e fazer "artes" contra aqueles que tentam impedir que a arte de viver tenha eontinuidade e nao seja privilegio de alguns
78 Autores que comentam au fazem discussoes rnetodologicas sabre 0 usa dos processos criminais enquanto fonte: Sidney Chalhoub, op. cit., 1986:20-24; Martha Abreu Esteves, op. cit., 1989; Boris Fausto. Crime e Cotidiano Sao Paulo: Brasiliense, 1984:20-29; Silvia Hunold Lara. Campos da Violencia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988:24-25; Marcelo Badaro Mattos, op. cit 199173-99; Ana Lanna, op. cit. 1996;29 e Suaenn Caufield, Em dejesa da honra. Moralidade, modemidade e nacdo no Rio de Janeiro (1918-1940). Carnpinas, SP: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em Historia Social da Cultura, 2000:38-41,
79 Ver nota 3 da Introducao.
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poucos'". Deles, retern-se com certa faciltdade os nomes e alguns pequenos traces.
A 16gica dos historiadores e inversa a de muitos daqueles personagens: quanto rnais eles aparecem, mais nos sentimos bern e em condicoes de dar densidade as nossas hist6rias e vazao as nossas teses e olssertacoes: quando isso nao acontece, lamentamos a perda'". Para eles, ao contrarlo, quanto mais aparecem, mais suas vidas sao devassadas pelo poder, que funciona tao mats eficazmente quanto rnais enreda em suas teias os que nelas calram, Esses movimentos, da jusnca da epoca, dos personagens que cao substancia aos processos e dos historiadores de hoje comp6em 0 universo de que trataremos adiante e nos capitulo seguintes. Mas 0 que se en contra de mais marcante nisso tudo, acreditamos, sao os movimentos e plasticidades de alguns dos nossos personaqens,
Essas pessoas, ou 0 que delas caiu em nossas rnaos (0 que nem de longe e a mesma coisa), transformam a insipidez da cidade, no singular, em abundancia de vida, em cidades no plural. Claro que suas vidas nao foram facets: muitas inspirariam traqedlas, mas terfamos boas comedias tambem. Com elas a cidade se transform a em algo plural, como alguns nao gostariam; transforma-se em algo vivo, barulhento, alegre, imprevisfvel e incontrolavel, de diffcil definicao, movimentado, apesar de muitos desejarem 0 contrario, ou mesmo 56 aceitarem 0 movimento do dinheiro, do comerclo, dos fluidos, dos carros, das mereadorias; das senhorinhas, rapazes e famftias fazendo 0 footing pela rua Maciel Pinheiro e praca Clementino Procopio: do "ouro branco" chegando e saindo em caminh6es, lornbos de animais, carrocas e trem e fazendo a riqueza e 0 progresso... de poucos.
Sigamos as pistas deixadas por alguns epis6dios. Mesmo que de uma forma diferente esperamos, com 0 seu uso proporcionar ao leitor a continuacao daquela caminhada que vfnhamos fazendo pelas ruas centrais e comereiais da cidade. Os
80 Os trabalhos de Marcelo Badaro Mattos, op. cit, 1991 e Sidney Chalhoub, op. cit., 1986 e 1990 sao groficuos em exernplos .desta assertiva:
caminhos serao outros e [ngremes, como diffcil era a vida de rnuitos moradores de Campina Grande que nao participararn da farra que 0 cornerclo do algodao proporcionou a alguns. Buscaremos cartografar algumas ruas e trajetos dos moradores de Campina Grande, especial mente das pessoas anonlrnas, que pouco apareciam nas fontes ate aqui compulsadas.
Para melhor situar 0 leitor, esclarec;amos como foram estruturados os caminhos que serao seguidos. As hlstorias e episodlos escolhidos, todos compondo parte de processos criminais, seguem um roteiro previo. Essa parte do capitulo foi composta com a mtencao de ampliar 0 universo de caminhos que os moradores da cidade percorriam, especialmente nos anos 1930-1945. Os que viveram ou passaram pela cidade durante este perfodo vao protagonizar ou coadjuvar rnudancas diversas tanto no espaco ffsico da cidade como em seus territ6rios ou espacos afetivos82. Foram decades de mudanc;as para a cidade e para os seus moradores. Com 0 aparecimento do trem, de Cinemas, autornoveis e carninhoes, areas da cidade foram integradas, i1uminadas, passando a viver novos problemas; outras foram marginalizadas e ao seu redor foram construfdos estigmas e preconceitos; as ruas centrais foram catcadas, encheram-se de postes de llumlnacao e paralelepfpedos e os motoristas aceleraram seus autos e carrunnoes: as casas foram mudando de cor e forma e algumas desapareceram; ruas, be cos e travessas surgiram e desapareceram; novas ruas foram abertas; a linguagem foi se modificando: novas palavras, novas discuss6es; a tudo juntavamse praticas antigas, que vinham de longe, e tudo isso desembocava em algo diferente do que ate entao se tinha visto. Alguns dos eplsodios que se seguem falam das diferentes leituras dos c6digos modernos e das tensoes que provocavam.
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PERSONAGENS NAS RUAS
Urn epis6dio ocorrido em 1944 mostra 0 quanto, no dia a dia, 0 trabalho e alguns conflitos costumavam juntar moradores que habitavam as rna is diversas areas e ruas de Campina Grande83. 0 epis6dio envolvendo Luiz Gonzaga de Franca, auxiliar do comercio, e Oscar Machado Rios, funcionario dos Correlos e Teleqrafos, nao havia cornecado exatamente na manna de 20 de junho de 1944. Derivava de um atrito anterior, entre a noiva do reu e a vitima. Dessa hist6ria interessa reter os lugares de onde vieram os seus protagonistas, principalmente reu e vltirna, e os que indiretamente nela se envolveram, as testemunhas.
Oscar Machado Rios, casado, 50 anos, funcionario publico federal, no momenta em que foi agredido por Luiz Gonzaga, vinha pelas 8:30 horas
... de sua residsncia [a rua Octacilio de Albuquerque] para a repartlcao dos correios e teleqrafos, nesta cidade, on de trabalha; que vindo s6, ao passar na rua Solon de Lucena [transversal a Octacilio de Albuquerque], nesta cidade, no local proximo a mercearia de Clementino Candido e outra mercearia que tern em frente desta, e entre estas estava parado urn caminhao, cuja placa nao pode precisar; que na ocasiao que ele declarante se aproximava do carninhao, ia com a vista sobre urn telegrama que ia lendo; que tendo passade pelo carninhao, urn individuo que saiu de tras do veiculo, atracou-se corn 0 declarante, vindo per detras de sua
84 .
pessoa ...
Diante da luta que se seguiu acorreram dois popularss'" e um conhecido de nome Chagas. Os desconhecidos populares que, segundo Oscar Machado Rios, 0 livraram da sanha do seu agressor, eram trabalhadores de urna construcao localizada nas proximidades de onde se deu a contenda, e que ficava proxima a sua moradia, no nurnero 187 da rua Octacllio de Albuquerque. Eles oferecem algumas pistas sabre os trajetos que fizeram ate a rua Solon de Lucena naquela rnanha de 20 de junho, onde intervieram na contenda. 0 encanador Jose Geroncio
82 Sobre os problemas que implicarn essa separacao ver Rolnik, Raquel, "Historia Urbana: Historia na Cidade?" In Cidade & Historia, org. Ana Fernandes e Marco Aurelio AF Gomes, Salvador: UFBAf Anpur, 1992:27-29.
83 Surnario Crime nO 233, 1944, Luiz Gonzaga de Franca, maco de 13104 a 31/081I 944. S~Idem.
85 A expressao "populares" esta aqui sendo utilizada com 0 sentido que a propria justica dava ao terrno na epoca, ou seja, nomeava pessoas humildes, trabalhadores,
57
Ricardo, solteiro, alfabetizado, 16 anos, residente a rua Felipe Camarao, conta "que estava trabalhando no service de sua profissao na rua Solon de Lucena, e por volta das oito para nove horas, foi chamado por urn popular que Ihe disse que ali fora havia uma briga ... ". No depoimento perante 0 [uiz, Jose Geroncio acrescentou que 0 local onde estava trabalhando ficava "proximo a praca Antonio Pessoa". 0 operario Jose Domingos da Silva, solteiro, 30 anos, residente a rua Arrojado Lisboa, confirmou a versao do seu companheiro de trabalho e foi um dos que socorreu Oscar Rios. Por fim, 0 alfaiate Euripedes Guedes da Silva, solteiro, 26 anos, alfabetizado, residente a travessa Afonso Pena, sIn, conta
... que no dia 20 do corrente rnes, pelas oito horas, numa ocaslao em que saia da alfaiataria em que trabalha, indo a bodega de Clementino de Tal, a rua Solon de Lucena, e ao aproximar-se da dita bodega viu ali dois hom ens pegados, lutando urn contra 0 outro ... 86,
Os depoimentos deixam pequenos indfcios de como os moradores da cidade mediam e utilizavam referencias diferentes para identificar os espacos por onde circulavam e como essas referencias eram constituldas de forma particular, propria. Os dois desconhecidos operarios, que providencialmente acorreram ao local, utilizam-se de marcos assoctados diretamente aos seus afazeres para lnformar como souberarn da briga e como para la se dirigiram. Trabalhavam no "service de sua prottssao" em uma construcao localizada na rua Solon de Lucena, proximidades da praca Gel. Antonio Pessoa. A vftima sara de sua casa para 0 trabalho na praca da Bandeira. No seu relate, chama a atencao para as duas rnercearias em frente de onde foi agredido e para um carrunhao estacionado na rua Solon de Lucena, pols foi de tras dele que saiu seu agressor. Quando era agredido, pediu socorro, nao a qualquer desconhecido, mas ao senhor Chagas, propnetario de urna padaria ali na Solon de Lucena, e ao delegado de polfcia Severino Dias Novo. Para 0 alfaiate Euripedes Guedes da Silva, 0 local de trabalho e a bodega proxima, para on de se dirigia quando do epis6dio, eram as referencias para marcar 0 tempo e sua nocao de espaco.
36 Idem, Sumario Crime nO 233.
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Para que este eptsooto chegasse ate nos, passado mais de rneio secure. fOI necessario 0 encontro, naquele 20 de junho, de pessoas que moravam em diferentes locals da cidade. A vltirna, ja sabemos, fOI agredida a pouco mais de cern metros de sua casa, proximo a praca coronel Antonio Pessoa, localizada na confluencla das ruas Irineu J6fili, 4 de Outubro e Vidal de Negreiros, tres arteries que desembocavam no centro. Estava-se a cerea de trezentos metros de algumas das ruas comerciais acima percorridas, muito ernbora ja nao fossem mais as mesmas, tendo passado por diversas rnudancas, reahzadas por prefeitos e govern adores na decada de 1930 enos prirneiros anos da oecada de 1940.
o reu, Luiz Gonzaga, teve que andar bastante para se desforrar da of ens a sofrida por sua noiva. Ao sair do numero 215 da rua 15 de Novembro, antiga rua da Lapa, na manha do dia 20, ele atravessou parte da cidade no sentido norte-sui para estar, por volta das 9 horas, na confluencia da rua Solon de Lucena com a Octacilio de Albuquerque e a Rui Barbosa, onde pas as rnaos em Oscar Rios. Talvez tenha feito 0 trajeto ape, 0 que e pouco provavel, pois era um auxiliar do cornercio e trajava roupas de boa qualidade para se enfrentar 0 sobe e desce das ruas que 0 separavam do seu destino, mesmo numa amena manna do final de junno'". E mais provavel que tenha pego urn onibus, que tazia precariamente 0 trajeto Centro-15 de Novernbro-Centro'".
87 Alguns auxiliares do cornercio eram frequentemente fotografados em trajes finos junto aos patroes e desde a fundacao da sua associacao, em 1920, escolhiam como presidente urn grande cornerciante local, 0 que na epoca nao parecia ser uma excecao, pois comumente encontramos associacoes e sindicatos de trabalhadores com sua diretoria composta por letrados e rnembros da elite economica (em muitos casos, ocupando a propria presidencia). Ver ainda Linda Lewin. Politica e Parentela na Paraiba. Rio de Janeiro'. Record, 1993 :330-33. 88 Segundo lemos na materia H A cidade esta sem transporte urbano. Urge uma solucao ao caso", de 0 Rebate, n° 509, de 04 /1 011 943,p. 18:
"A cidade de Campina Grande com 63.300 metros quadrados de area habitavel e com 50.000 habitantes
esta sem transporte urbano.
C·)
Com a construcao dos novos predios assobradados, gracas a orientacao do prefeito Verniaud (sic), que esta
mudando 0 nosso aspecto de .aringa [ilegivel] africana, situando Campina Grande no lugar que lhe compete, ainda rna is adensada fiCOD a populacao, exigindo por conseguinte meios mais rapidos de transportes para locomocao do pessoal que trabalha no cornercio, reparticoes publicas, etc.
Quanta ao operariado das industrias a situacao ainda e mais vexatoria, Obrigado a morar nos suburbios, onde 0 aluguer de casa e mais barato e as habitacoes mais saudaveis, tern que fazer a pe a percurso para as refeicoes, tendo de andar quilornetros e mais quilornetros ape, num esforco sobre humano
C·· )
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Os oois operarios que providenclalrnente apareceram para livrar a cara de Oscar Rios de mais bordoadas tarn bam tiveram que se desiocar de areas e ruas diversas para naquele dia estarem envolvidos no episodlo. 0 encanador Jose Gercncio Ricardo havia se ceslocado do nurnero 91 da rua Felipe Carnarao (bairro de Sao Jose). Deve ter feito 0 trajeto a pe. Jose Domingos, que morava na rua Arrojado Lisboa (hoje separa os bairros de Monte Santo e Bela Vista e e uma das ruas de acesso ao bairro de Boooconcc). teve que andar um pouco mais para chegar ao trabalho naquele dia. 0 transporte para 0 deslocamento dos personagens dessa historia podia variar, mas nao tanto. De carro particular, nenhum se deslocou; de btclcieta e posslvel, mas, como ha poucas referencias a sua existencia na cidade por esses tempos, provaveimente nao foi utilizada. Como convern ao trabalhador de construcao e aos operarios, numa cidade com cerca de 50 mil habitantes e transporte urbane precano, ° caminhar para ir ao trabatho e a alternativa mais cornum'" (ver mapa 2).
.~.
." ... 1 .. ~f"f~adQ '2;15 de
[tapa)
J. Bairro =4.loca!
Mapa - 2 Moradias e trajetos realizados
89 Ver "Noticias de Campina Grande" em A Imprensa n? 876, 17/03/1935, p. 02, "Casas de lenocinio" emA Batalha, n" 22, 14/03/1935, e "Queixas e Reclamacoes" em A Imprensa n" 223, 07/1011940; para urn periodo posterior ao deste estudo ver "Queixas & Reclamacoes - Precisamos de Mais Transportes", em 0 Reba te, n" 858, de04/l01l950.
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Os trajetos feitos pelas pessoas envolvidas no episodlo de 1944 tala-nos sobre caminhos outros da cidade, trajetos que foram feitos para alern do que as rnudancas nas ruas centrais impunham. Ate 0 encontro entre t.uiz Gonzaga de Fran<;a e Oscar Machado Rios, todas as pessoas que ali apareceram buscavam os seus tocals de trabalho. 0 eptsodlo, no entanto, consegulu desarticular por urn momento as redes que envolviam aquelas pessoas, colocando diante de todos a possibilidade de novos tacos e contatos. Ou seja, urn conflito terminou mudando aspectos do destino daquelas pessoas em uma certa martha de 1944, interferindo nas suas form as de estar na cidade e mostrando 0 quanto 0 planejamento e as tentativas de homogeneizar os espacos enfrentavam imprevistos no dia a dia para os quais as metncas da reforma das ruas, casas, edificios e pracas nao haviam sido preparadas. Mas nao so os epis6dios casuais interferiam e constitufam os usos dos espacos e terntonos da cidade.
Cerca de seis anos antes, no dia 24 de julho de 1938, ocorreu outro episodic que permite vislumbrar um pouco dos caminhos que se faziam e como eram feitos. Com certeza, os caminhos eram outros, bem diferentes daqueles vistos na prirneira parte deste capitulo. Comecemos, tal qual os processos criminals, com a denuncia'",
No dia 24 de julho proximo passado, mats ou menos as 18 horas e meia, os 3 denunciados, individuos farristas e de pessirna conduta, ao passarem na rua Frei Caneca, nesta cidade, depois de pilherlarem injuriosamente a mulher Josefa Felizardo de Araujo, travaram luta com 0 marido da mesma, Felizardo Jose Maria, em quem causaram a faca peixeira, os ferimentos graves descrltos no auto de cerpo de delito sen de 0 crime praticado no terreiro da casa da vitima ... 91
unz Gonc;alves de Freitas, 19 anos, rnecaruco, solteiro, residente na praca do Trabalho (Sao Jose), altabetizado, em seu primeiro depoimento tentou armar
9Q Os processos criminais do periodo investigado trazem a capa com norne(s) do reuts), numero (nem todos tern), autuacao e escrivao (va) etc., e na folha seguinte a denuncia do Ministerio Publico, a partir de onde iniciava-se sua numeracao. No entanto, 0 processo comeca com 0 inquerito na policia, Ver Jose Ferreira de Novais, Roteiro policial. Parahyba do Norte: Impensa Official, 1917 e Carlos Antonio Cordeiro. Consultor criminal. Sa ed. Rio de Janeiro: H. Gamier, 1910.
91 Sumario Crime n" 120, 1938, Josafa Alves do Nascimento e outros, mayo de 10/01 a 29/1211938.
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uma forma de se defender da acusacao que a ele era imputada. Para tanto, articulou a barraca de Nazlnho, situada no baldo do Acude Novo, como palco de suas manobras e de seus cornpanheiros de farra, que dizia haver conhecido na martha daquele dia. Na barraca haviam se encontrado, se conhecido e al ocorrera o primeiro convite para beberem juntos, que dlz nao ter sido ace ito , mas confessa terem os tres saldo em seguida fazendo trocas pelas ruas da cidade. Outro acusado forneceu pistas que coiocararn em cheque 0 depoimento de Luiz Goncalves. Antonio Andre da Silva, a rti sta , 26 anos, solteiro, residente a rua Aristides Lobo, alfabetizado, relatou que ele, Luiz e Josafa eram amigos de costumeiras farras pela cidade e, nas suas andancas naquele dia, haviam provocado com palavras uma mulher na rua Frei Caneca. Apes a aqressao ao marido de Josefa Felizardo, Luiz e Josafa teriam se dirigido a Mandchuria, zona do meretrlcio da cidade92.
Por sentimento de culpa ou arrependimento (ou talvez onentacao de algum advogado), 0 mecanicc Luiz Goncalves de Freitas voltou a polfcia dois dias apes seu primeiro depoimento, modificando espontaneamente seu primeiro depoimento em detalhes importantes. Agora a htstorla era outra e a cidade arnpliava-se. Domingo de manna, os tres companheiros decidiram fazer um dia de tarras'". Josafa e Luiz salram de suas casas, 0 primeiro a praca Epttacio Pessoa'" e 0 segundo a praca do Trabalno, no bairro Sao Jose, e se dirigiram a casa de Antonio Andre; tendo se encontrado na barraca de Nazinho, no baldo do Acude Novo, tracararn os rumos das andancas do dia e dar fizeram a pe os tres quilometros que os separavam de Bodoconqo.
Bodocongo a epoca era uma vasta area ainda em formacao e pouco povoada. Aparece nos processos e na imprensa do perfodo como urn suburbia em
92 Josafa Alves do Nascimento, padeiro, solteiro, alfabetizado, residente a praca Epitacio Pessoa, principal acusado, se recusou a dar qualquer informaeao sobre 0 caso ao depor na policia.
93 Em levantamento nos processos pesquisados, observamos que era nos finais de semana (sabados e dorningos) que costumava ocorrer a grande rnaioria dos crimes na cidade, especial mente os crimes envolvendo bebidas alcoolicas. Do total de 65 processos criminais em que consegui identificar 0 dia da semana em que ocorreu 0 crime, temos: segunda - 04; terca - 01; quarta - 08; quinta- 05; sexta - 05; sabado - 21; e domingo - 21. Os episodios occrridos aos sabados e domingos perfazem 64 % do total de crimes quantificados.
94 Como era area comercial e habitada pela elite da cidade, suspeitamos que rnorava na propria padaria onde trabalhava, 0 que parecia ser comum na epoca, cf tambem Sumario Crime n" 102, 1934, Arnobio Araujo e
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crssclmento'". Era uma area de moradias esparsas de agricultores e operarios, especiatmente trabalhadores da industria textil e de curtumes instalados desde 0 final da decada de 1920 nas proximidades OU margens do acude'". Este fora construfdo em 1916 para ajudar no abastecimento de aqua da cidade, mas terminou se transformanda num fator de dinamlzacao das atividades agrfcolas e industrials e da arnpliacao da pooulacao do suburbio, 0 que em certos momentos provocou tens6es em torno do usa da sua aqua entre moradores e proprietaries de terras das proxirnidades'": Com a tempo, passou tarnbern a ser usado como batneario onde "casais suspeitos" iam se "divertir" e moradores tomavam banho "em trajes de Adao". Em pelo menos tres outros cases. 0 acude de Bodoconqo aparece como urn lugar de praticas despudoradas, onde lam se divertir prostitutas e homens que para la levavam au tentavam levar suas conquistas, mesmo as refratarias'".
Os tres amigos naquele domingo nao fizeram um trajeto rapido e pequeno, mas uma verdadeira viagem de dois a tres quilometros por ruas, estradas, veredas e caminhos em grande parte ainda pouco devassados. Ficaram em Bodocongo, provavelmente em uma mercearia ou boteco nas proximidades do acuoe, ate cerca das 16 horas, quando retornaram peJa rua 7 Mucambos, via Bela Vista, margearam 0 Acude Novo, entraram na 13 de Maio e, adiante, desceram a Frei Caneca, tendo a aqressao ocorrido na parte central da rua, na conftuencia com a Solon de Lucena. Logo apes a aqressao, dirigiram-se para uma das pracas localizadas na area central (urn se refere a Clementino Procopio, outro, a Presidente Joao Pessoa; distava uma da outra cerca de duzentos metros), 0
outros, mayo de 10102 a 15/12/1936 eo item "0 mundo dos vendedores de paes e a cidade" no capitulo 2, p. 85-101.
95 Quase sernpre a rna principal de areas que se transfonnaram posteriormente em bairros sao tarnbern denominadas pelo nome mais geral da area. Exemplos: a rua Campos Sales no futuro bairro de Jose Pinheiro aparece em diversos processos com 0 nome de Jose Pinheiro. A mesma coisa ocorre com Bela Vista, Santo Antonio, Alto Branco etc,
96 Em 1936 foi inaugurada a vila operaria pertencente a S A Industria Textil, nas proximidades do acude de Bodocongo, ver A Unido, n" 287, 27/1211936, p. 01 (2" sessao), A prirneira vila operaria cia cidade foi a Leao Xlll, pertencente a Uniao Operaria Catolica, ver "Campina Grande" em A Imprensa n? 556, 25/1111933, p. 03.
97 Ver item "0 mundo dos agricultores" no capitulo 2.
98 Ver denuncia em "Queixas e reclamacoes", 0 Seculo, nO 16,0311111928, p. 04; Acao Criminal n? 10, 1928, Ignacio Ferreira da Silva, maco de 24fll a 2211211931 e Ayiia Criminal n° 174, 1941, Joao Felipe de Lira e Osvaldo Rangel Scbrinho, mayo de 20/02 a 2911211941, este ultimo crime de atentado ao pUdOL
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projeto inicial era acabar a norte na Mandchuna, zona do meretrfcio da cidace, ao toque de um cavaquinho. 0 incidente parece ter mterferido nos pianos des tres camaradas (ver mapa 3).
o
Mapa 03 - Locals de rnoradia e trajetos
Os tres ilustres "farristas" regaram 0 dia a cachaca, comum entre populares na epoca'". Bodoconoo, 0 seu acude e a possibi!idade de encontrar mulheres; botecos, cachaca, cavaquinho e a Mandcnuna, para fechar 0 dia de fOlga. 0 rnecanico Luiz, 0 encarregado de padaria Josafa e 0 artista Antonio Andre, mesmo marcando 0 tempo e os lugares de forma diversa, em seus depoimentos, demonstravam que no seu universo de diversao, na Campina Grande de 1938, Bodoconqo e a zona do meretrfclo eram !ugares atrativos. Com os trajetos que
99 Era comurn populates carnpinenses e de todo 0 Brasil, no periodo ou em periodos anteriores, regarem seu lazer e diversao a bebidas alcoolicas, especialmente cachaca, 0 que levou letrados, filantropos e autoridades a denunciarem e fazerem constantes campanhas contra a alcoolisrno. Ver Sidney Chalhoub, 1986, especialmente o capitulo .. "Marando 0 bicho" e resistindo aos "rneganhas", p. 165-230, Sebastiao Rogerio Ponte, 1999: 168- 169 e Sandra J. Pesavento, op. CIt., 1994124-126. Para perf ado mais recente ver Luiz A. M. da Silva, "0 significado do botequim" in Cidade, usos e abuses argo Lucio Kowarik, Sao Paulo: Brasiliense, 1978:77-114.
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fizeram naquele dia, mostraram que, numa mesma empreitada de diversao, podiase caminhar e aproximar longinquos lugares, unindo cantos e antros da cidade, movimento considerado perigoso pelos agentes policiais e jurldicos, que, no impeto de coibir aqueles abusos que atentavam contra uma eerta cartografia da moral e da civilizagao, transformararn os tres camaradas em "indivfduos farristas e de pessimas eondutas", tal qual se ve na denuncla do Ministerio Publico.
Voltarernos, agora, ao inlcio da decada de 1930. Esse terceiro episoclo. ocorrido no final de 1934, mobfllzou a oplruao publica de Campina Grande100. Ele teve sua origem bern perto da area central, na contluencia das ruas Vidal de Negreiros com a travessa da Pororoca, na epoca habitada predominantemente por populares 101. Foi um dos muitos crimes escabrosos ocorridos na cidade, envolvendo dois irmaos proprietaries de urna padaria, seus empregados, alguns figuroes da elite, 0 delegado, 0 promotor e diversos populares.
A vftima, como muitos outros companheiros vendedores de paes, fazia a cidade com suas andancas de balaio a caoeca, para tirar 0 dinheiro da feira. Chegava a andar, todos os dias, entre quinze e vinte quil6metros para vender paes por estradas e caminhos escassamente povoados, indo ate as proximidades do distrito de Lagoa Seca 102. E foi, segundo seu depoimento, numa dessas viagens que Ihe roubaram a quantia de 62 mil reis. Verdadeira ou nao, a versao do roubo foi 0 que desencadeou um rnartino para 0 "velho Cfcero", como era eonhecido 0 vendedor de paes de 43 anos. Ao retornar, no domingo 21 de outubro de 1934, a padaria Automates e eomunicar 0 ocorrido aos seus patrOes, ninquem deu credito a sua historia e, a mando destes, foi levado a urn lugar ermo e submetido a uma sessao de espancamento e aqressao, desaparecendo logo depois quase sem deixar vestfgios.
100 Idem Sumario Crime n° 102"
101 Os processos criminals pesquisados mostram que a Vidal de Negreiros era habitada por rnernbros da elite e populares, mas com 0 tempo foi se elitizando; a travessaJrua Pororoca, contrariamente, era habitada predorninantemente por populares e prostitutes nos anos 1930-1940. Ainda hoje e uma rua de habitacoes simples, muitas remanescentes dos anos 30 e 40, inclusive urn beco, mesmo estando situada em uma area do centro da cidade.
[02 Lagoa Seca ou Alagoa Seca (como na epoca era denominada), era distrito de Campina Grande no periodo; localiza-se ao norte do municipio e dista cerca de sete quilornetros de sua sede.
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o crime mobilizou rnuitos moradores em torno da descoberta do paradeiro de Cicero Rodrigues, 0 que terminou proporcionando indiclos sobre diversos e desconhecidos lugares, que lam sendo incorporados as redes e tentaculos da cidade em expansao, 0 promotor Paulino de Barros chegou a associar 0 seqOestro de Cicero Rodrigues a producoes cmematoqraflcas e literarias, sendo os proprtetarlos da padaria comparados a gangsters americanos 103.
Cicero Rodrigues, no dia em que ocarreu 0 episodio do seu espancamento e seqOestro, havia saldo cedo da sua casa, a rua da Garage Grande, e se deslocado pela rua Joao Pessoa (antlga rua das Areias), chegando a Vidal de Negreiros, onde estava localizada a padaria Automatica. Pegou os paes e, de caixa na cabeca, saira para atender a sua freguesia. Na volta, fai assaltado por urn "negro".
Apos esse lance inicial, ha um deslocamento paulatino do cenario do crime: inicialmente para a rua Vidal de Negreiros, onde localizava-se a padaria; em seguida, para 0 Alto do Seixo, que distava cerca de tres quilornetros do centro da cidade 104; novamente, para a rua Vidal de Negreiros e suas irnediacoes (travessa da Pororoca); em seguida, para 0 Serrotao e, por fim, para 0 distante distrito de Cochichola, na epoca municfpio de Sao Joao do Cariri105. Nesse ponto a cidade de Campina Grande ja havia se transformado num verdadeiro pandernonto, em busca do esconderijo onde os irrnaos Araujo haviam encarcerado Cfcero Rodrigues.
Os irmaos Araujo, ao tentarem resolver a rorca a querela dos 62 mil reis sugerem-nos meios e caminhos outros, que os moradores faziarn pelas ruas e suburbios da cidade. Para obter a confissao e 0 dinheira de volta, dois dos seus empregados deslocaram-se para um lugar erma da cidade e al, sem testemunhas, submeteram Cicero Rodrigues a uma verdadeira sessao de tortura. No gesto, indicaram a possibilidade da utilizayao de codiqos de contravencao e
)03 Idem Sumario Crime n" 1 02.
104 Foi espancado no Alto do Seixo, suburbio que na maior parte do periodo da pesquisa aparece como area de habitacoes escassas e pouco povoada. Era habitada predominantemente por populares. Dos 289 processos pesquisados, tres tratam de episodios ocorridos no Alto do Seixo.
1050 municipio de Sao Joao do Cariri, localizado na micro-regiao dos Cariris Velhos, esta situado a cerca de cern quilometros de Campina Grande. Cochichola a epoca era distrito do municipio de Sao Joao do Cariri.
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violemcia como caminhos ao alcance de alguns, quando queriam resolver diferenc;as ou conflitos sem serem enredados pelas teias da policia e da justica.
No dia seguinte, conouzlrarn Cfcero de autornovel pelo trajeto que fazia em direcao is Lagoa Seca. Af Cicero Rodrigues teve que se submeter a acareacees com sua freguesia, para confirmar ou nao 0 recebimento do dinheiro dos paes vendidos na semana. A viagem que Cicero fez em urn autornovel de praca para Lagoa Seca, acompanhado de dois outros funcionarios da padaria Autornatica, indica que aquela forma de transporte e deslocamento, ainda pouco comum nos anos 1920, havia sido arnpliada na decada seguinte e servia para atividades outras, alern do puro e simples deslocamento. A "barata", um automovel dirigido por Antonio Situ, ficou a disposigao dos irmaos Araujo durante todo 0 caso e foi nele que Cfcero Rodrigues foi transportado para diversos lugares da cidade e seus suburbios. ate finaimente ser escondido no municipio de Sao Joao do Cariri, a cerca de cern quilometros de Campina Grande. Neste longo trajeto em fuga das diligencias da pollcia e do Ministerio Publico, 0 autornovel mostrou-se a marca da amphacao da geografia dos moradores da cidade; alern de ser um meio que encurtava distancias e facilitava deslocamentos, fazia-o em um tempo diferente do que era feito ate entao pelo meio de transporte mais comum, a aflmaria. A facilidade e a rapidez nos deslocamentos mais longos foram do is recursos de que os irmaos Araujo se utilizaram para burlar os seus perseguidores.
No entanto, se 0 autornovel foi providencial na empreitada dos irmaos Araujo, ele tambem forneceu as pistas para a descoberta do paradeiro de Cfcero Rodrigues e 0 desvendamento do rrusteno do seu desaparecimento. Na volta da viagem de acareacao em Lagoa Seca, quando 0 eprsodto ja cornecava a extrapolar os muros da padaria Autornattca e alguns padeiros e paezeiros cornecavam a dar com a lingua nos dentes, passaram a utilizar-se das mal iluminadas noites campinenses para deslocar Cicero Rodrigues da casa da genitora des irrnaos Araujo, ali perto, no beco da Pororoca. Mais uma vez, recorreram ao chofer Antonio Situ. Na noite em que, as escondidas, tentaram ocultar 0 paozeiro da policta, terminaram sendo flagrados por populares que,
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debrucados nas janelas de suas casas, ou eonversando e eonfabulando pelas calcadas do beco da Pororoca, estranharam 0 movimento ineomum de um autom6vel novo em arteria pouco transitada. Curiosos com 0 fato inusitaoo, passaram a observar atentamente todo 0 movimento de
... urn autornovel novo e fechado, passando pela citada rua, vindo do lado da avenida Joao Tavares, em diregao a rua Vidal de Neg reiros , parou urn pouco antes de dar saida junto ao portae do muro da casa da mae de Am6bio; ... parado 0 carro, 0 chauffeur apagou a Iuz do veiculo, abrindo uma das portas ... ; que 0 homem dentro do carro, 0 chauffeur retirou-se sem nenhuma demora, e saindo do beco, entrou na rua Vidal de Negreiros, de onde nao rnais pode observar a dlregao que tornou106.
o progresso dos transportes rnais uma vez deixava indfeios de que eram muitos e de dificil controle os usos e as leituras daqueles sfmbolos do mundo modemo. Na percepcao de um auxiliar do cornercio, morador do beeo da Pororoca, 0 movimento de urn autornovel novo peJa inosprta arteria era alga que merecia ser apreeiado. Dez anos antes, 0 movimento teria sido muito rnais inusitado ainda, alga como urn espetaculo a mobilizar todos ao seu redor; dez anos apes, poderia passar desapercebido. Mas nao naquele ano de 1934 numa arteria habitada em sua maioria por populares e prostitutas. Quando a estranha e trepidante rnaquina adentrou aquela sinuosa travessa, as prostitutas safram de seus quartinhos e ficaram em alerta, seus diversos moradores ficaram a postos, tudo isso nos proporeionou a descncao acirna.
Este eptsodio deixa pistas para se pensar os efeitos e usos diversos que os ehamados simbolos do mundo moderno tinharn numa atmosfera que paulatinamente se modificava. No perlodo em que ocorreu 0 sequestro de Cicero Rodrigues, ainda era forte 0 encanto que 0 autornovel causava quando conduzido sobriamente pelas ruas centrais da cidade ou quando usado no corso pelas elites. o seu uso para a contravencao e para atividades criminosas pareeia ser coisa apenas do cinema hollywoodiano. Mas episodlos como a de Cfcero Rodrigues e os constantes atropelamentos e destemperos dos motoristas pelas ruas de Campina Grande, e de diversas outras cidades e metropoles brasileiras no
106 Idem Sumario Crime n? 102.
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periodo, proouziu duvldas nos que 0 admiravam 107, Alern de ser utilizado como um dos mais vistosos sfmbolos do progresso e de status; de transportar rnercadorias, seus proprietarios e clientes por ruas e avenidas abertas ou enlarguecidas em nome do mesmo progresso; e de ser visto, junto com 0 trem de ferro, como um maquinismo civilizador 108, ve-se a sua adaptacao a pratcas que ampliavam a geografia dos moradores da cidade e a geografia do crime e da contravencao.
Cerca de cinco anos apos a seqOestro de Cicero Rodrigues, outro eplsodio oferece ricas informacoes sobre os locals por onde populares andavam na Campina Grande em reform a 109. E mais um episodic atraves do qual e possivel fazer urn pequeno tour por partes desconhecidas da cidade, acompanhando alguns habitos de seus moradores. Joao Albino Teodoslo, numa manna de segunda-feira, 24 de [ulho de 1939, saira da «republica,,110 em que morava, na rua da Lapa, com suas roupas para serern lavadas pela madrasta, que morava na rua des Paus Grandes, ali proximo. Foi acompanhado pelo seu camarada Eleno Batista, morador da rua do Emboca, adjacente as ruas "centrals" da cidade, e nao muito distante da rua dos Paus Grandes, Logo se fizeram acompanhar de urn outro camarada, Severino Josata.
Apes deixarem as roupas na casa da madrasta, foram beber em algumas bodegas, tendo passado tambern em uma barbearia, onde apressadamente Joao Albino cortou 0 cabelo. Nessas andancas tomaram varias "bicadas", 0 que os deixou "quentes". Assim chegaram a casa do pai de Joao Albino, aonde haviam ido almocar. No momenta em que a mesa estava sendo posta, deram uma safda para a bodega vizinha e al tomaram mais uma "bicada", sendo interrompidos pela madrasta de Joao, que as chamou para 0 alrnoco. Oepois da refeicao, Severino Josata dirigiu-se para urn "rancho" que ficava vizinho ell casa onde haviam almocado e passou a assediar uma prostituta que por 18 se encontrava, tendo sido
107 Sobre 0 Recife nas primeiras decadas do seculo xx, ver Flavio W. Teixeira, op. cit., 1995:40 e Antonio Paulo Rezende, op. cit, 1992:83-88 e sobre Sao Paulo nos anos 20, Nicolau Sevcenko, op. cit. 1992:73-77. 108 Jose Americo de Almeida, op, cit, 1977:339-375.
!()9 Surnario Crime, n" 133, 1939, Joao Albino Teodosio e Severino Josafa, maco de 02/01 a 30/12/1939.
110 Em dois outros processos ha referencias a grupos de trabalhadores morando em locais que denominavam de "republica", ver Acao Criminal nO 257 e Ayao Criminal n? 27l. No caso, Joao Albino Teodosio provavelmente rnorava com outros amigos ou cornpanheiros de trabalho, embora a estes nao tenha feito referencias em seu depoimento.
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por isso admoestado porFrancisco Felix, inquilino do rancho 111, 0 que desembocou em uma discussao entre ambos, que acabou com a morte de urn velho que ali estava hospedado.
Esta narrativa, linear e rapida, nao diz tudo 0 que fo; aquele dia para os protagonistas do crime do rancho da rua dos Paus Grandes. Com 0 depoimento do artista Eleno Batista, 19 anos, 0 rotetro e as andancas dos tres camaradas se ampliam. Antes de voltar pela segunda vez a casa da madrasta de Joao, haviam se dirigido as imediacoes da Mandchurta, zona do baixo meretrfcio da cidade e, na rua Manoel Farias Leite, tomaram varias "bicadas", ate chegar a fome e decidirem ir almocar,
As pistas encontradas no episodic nos conduzem aos meandros da vida de alguns populates. A maior parte dos envolvidos no eplsodlo, homens e mulheres, pertenciam as camadas populares e habitavam ruas adjacentes a area central da cidade, mesmo que algumas deJas fossem consideradas suburblos na epoca. Bodegueiros, eng raxates , comesticas, barbeiros, inquilinos de um rancho sabidamente suspeito (parecia, segundo depoimentos de algumas testemunhas, ser tarnbem uma casa de lenocinio), operarios etc. eram homens do povo. Suas falas, suas atividades, relacces e praticas indicam-nos uma forma de viver que era comum entre populares e, por isso mesmo, constante alvo dos discursos des letrados e das elites dominantes, para quem os habitos populares deviam ser higienizados.
As "farras" eram veemente e constantemente denunciadas por promotores, julzes e advogados como pratlcas contrarias ao labor e trabalho morigerado, que queriam e esperavam de todos os moradores da cidade e que simbolizava a civuizacao. "Farristas", "cachaceiros", "desordelros'. vadios e vagabundos foram implacavelmente perseguidos pela sanha de uma justica que primava em punir os seus desvios.
III "Rancho" era 0 local onde se hospedavam tropeiros e viajantes de passagem pela cidade; alguns tambem davam guarida a prostitutas. 0 inquilino do "rancho" era Francisco Felix, mas 0 mesmo pertencia a Antonio Pedro Nunes, que prestou declaracoes no processo e, como forma de se defender, atacou 0 inquilino denunciando que 0 mesrno fazia do local urn antro de prostituicao, sob os seus protestos e contra a sua vontade.
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Essa farra, protagonizada per tres jovens numa segunda-feira, mostra aspectos cornplexos da geografia social de Carnpina Grande no final da decada de 1930. Joao Teod6sio, provavelmente ortao de mae, morava em uma "republica" na rua da Lapa. Utilizava-se, no entanto, da casa onde 0 pal morava com a madrasta para que suas roupas fossem lavadas e, vez par outra, para fazer reteicces. Isto tinha la seus siqniflcados. Os seus services como engraxate, uma atividade autonorna, proporcionava-Ihe um controle maier sabre seu tempo e sua vida; par isso estava com amigos, bebericando pelas ruas proxirnas ao centro da cidade, numa segunda-feira de julho. 0 proprio Severino Josafa deixou pistas de como as populares espraiavam as tacos de uma extensa e sub-repticia rede de sol1dariedade por todos as recantos da cidade. Nao se sa be pelo processo muita coisa a seu respeito, mas um dos amigos com quem havia farreado pelos cabares da Mandchorta na madrugada do domingo para a segunda-feira, informou que 0 mesmo havia passado pela sua casa no dia do crime e pego umas "mudas" de roupa velha que ali havia deixado anteriormente, sugerindo que Severino dormia ou usava sua casa como apoio para as farras que fazia pela cidade, ou para outras coisas que nao pudemos vislurnbrar no processo.
Alguns jovens passavam os finais de semana, e mesmo alguns dias da semana, bebendo e farreando nas inurneras bodegas, vendas e bares que aparecem aos borbotoes nos processos crimes, especlalmente as bodegas e vendas que ficavam nas imediacoes da Mandchuria, area que se transformou em outro centro da cidade.
A zona do meretrfcio em Campina Grande, como em varies outras cidades brasileiras, foi deslocada das diversas ruas proxirnas ao centro, por onde se espalhava, para 0 bairro dos Currais, au Piabas, tornando-se no infcio dos anos 1930 um centro de lazer e diversao de moradores da cidade, da zona rural e de outros rnunicipios paraibanos 112. No final da decada de 1930, mesmo podendo encontrar casas de lenocfnio em varias partes da cidade, a area polanzada pela rua 5 de Agosto ou Manoel Pereira de Araujo, da qual faziam parte ruas como a 12 de Outubro, Currais, Piaoas, Nova Olinda, dr. Antonio de Sa, Manoel Farias
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Leite e travessa do Oriente, era onde se concentravam e para onde jovens se dlrigiam, quando em farras pela cidade (ver mapa4).
Mapa 04 - Locals de moradla e Mandchuria
Nos epis6dios ate aqui reconstituidos, chama a atencao um aspecto que nao era exatamente marginal na Campina Grande daquele tempo: rnuitos, quase todos os caminhos levavarn os jovens e homens a ... Mandcruiria. Comerclo, ruas centrais, hotels. foram as primeiras possibilidades vistas acima; Sao Jose, centro, Bodocong6, Mandchuna foi outro trajeto; 0 percurso adlacenctas-centroMandchuria-adjacencias fai 0 ultimo cos caminhos percorridos. Nos dais proximos epis6dios ver -se-a outros aspectos da estranha capacidade dos cabares da Mandchuria de atrair as moradores da cidade.
Foi um eplsodio de grande repercussao na cidade, envoivendo figuras da elite au que com ela conviviam, mas constitui urn ponto de observacao das acoes de muitos dos seus moradores. Aproxima-nos tamoern de lugares centrals,
112 Para Fortaleza ver Sebastiao Rogerio Ponte, op, cit., 1999:174, Sao Paulo, Raquel RoInik, op. cit., 1997:85-88 e Florianopolis, Hermetes Reis de Araujo, 1989:54-55.
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freqOentados por comerciantes, industriais e autortdades locals, como 0 cine Capltolio, a Confeitaria Petr6polis e 0 Cafe Ponto Chic 113.
o crime foi cometido nas irnediacoes da avenida Getulio Vargas com a rua Rio Branco, a poucos minutos da parte central da cidade, mas ainda uma area de escassa nabitacao. Na manna do dia seguinte a poHcia fez 0 exame do local, assim descrito pelos peritos:
.... e um lugar vazio a falta de habitacoes, isto em face de ser 0 lado da rua onde verificou-se 0 crime, cortado por um grande beco com cirecao para 0 bairro da Prata, sendo que, aquele beco e munido de uma grande sarjeta, onde vimos manchas de sangue, tanto nesta, como antes e em uma descida para a mesma. Essa sarjeta e guamecida por matos pequenos; em uma rfbanceira vimos vestiqios, como se ali estivesse permanecido alguem. Na entrada do grande beco, onde val ter 0 local do assassinate. ve-se urn paste de luz eletrica locaL. .. 114
Os assassinos de Aurelio da Cunha Lima pareciam ter medido bem os passos quando da pratica do crime na madrugada do dia 14 de dezembro de 1941. Escolheram como local de emboscada urn terreno ermo, distante cerca de quatrocentos metros ao poente da area onde tentaram articular 0 alibi de urn deles, e urn dos pontos de encontro de parte das elites nas noites campinenses do lnlcio da decada de 1940. 0 local ermo, na confluencia de duas ruas pouco habitadas, servia perfeitarnente para a reauzacao da empreitada, pols nao teria testemunhas e facilitaria a fuga ap6s 0 crime pelos matagais das imedlacoes. Pensaram ainda em outro aspecto importante: a arma do crime deveria ser uma faca, pois ficariam resguardados do silemcio que proporciona quando usada. Uma arma de fogo chama ria a atencao dos moradores das poucas casas que existiam na area e isto poderia frazer problemas na hora da fuga.
Dos lances seguintes ficamos sabendo pelo depoimento de Amadeu Verissimo Lima, casado, 51 anos, sapateiro, residente a avenida Rio Branco, irmao do inditoso Aurelio Cunha Lima. Ele informou,
us Sumario Crime n" 194, 1941, Abrahao Vieira da Costa e Manoel Jovino Monteiro, maco de 09/01 a 25/05/1942.
114 Idem Surnario Crime n" 194.
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". que ontem, cerca de 23 horas, estava em sua residencia dorrnindo, quando foi acordado pelo seu irmao Aurelio Cunha Lima, fhe convidando para ir dormir com ele Aurelio, visto que estava s6 e querer dormir acompanhado; ... que ao sairem da casa dele declarante, atravessaram a rua Rio Branco para a avenida Getlllio Vargas, onde reside Aurelio, e ao aproximarem-se daquela rua, em frente a urn poste de iluminayao elemca focal, onde estavam dots sujeitos desconhecidos e parados como quem esta esperando alguem; ... que ap6s a morte do seu irmao, Manoel Jovino e 0 seu companheiro, sairam correndo para 0 Jado do Seixo Miudo, procurando os Jugares mais escuros a tim de se esconderem dentro do
115 mataga!... .
Com 0 exame dos peritos e 0 depoimento de Amadeu Lima fica-se sabendo o local em que 0 crime ocorreu e 0 seu entorno, alem da direcao inicial que 0 assassino e seu cumplice tomaram, ° Seixo Miudo. 0 caminho ou caminhos que fizeram em seguida nao e facil de reconstituir, mas temos pistas dos locals por onde andaram ap6s terem se separado, medida de precaucao para evitar mcnrmnacac, especialmente do cumpnce Abrahao Vieira da Costa. Como nem nos crimes mais perfeitos tudo e previsto, 0 assassino parece ter passado por maus momentos quando, na fuga, deparou-se, nas imediacoes da praca do Trabalho (no bairro Sao Jose), com um guarda civil.
Ap6s escafeder-se da mao do guarda, Manoel Jovino Monteiro embrenhouse em um matagal pr6ximo a barragem do Acude Novo, esperou um pouco 0 distanciamento do seu perseguidor e, no momenta adequado, atravessou a dita barragem e buscou ruas e lugares mais escuros, ate chegar a uma travessa da rua Nova Olinda, ou Oriente, onde encontrou-se com Aorahao, que 0 nomiziou no n° 355, casa da sua conhecida Edfsia Rocha.
Os dois companheiros de emboscada tiveram que fazer engenhosos malabarismos pelas ruas da cidade para nao serem pegos pela pollcla e Ilvrar 0 flagrante. Na empreitada, demonstraram um dominio bastante singular da geografia das ruas centrais e de suas adjacencies. No crime, e principalmente na fuga, escolheram lugares pouco movimentados e devassados pelos empreendimentos modemizantes do poder publico municipal, na epoca a todo vapor. Os c6digos da nova geografia que as reformas tentavam impor aos
115 Idem.
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moradores da cidade eram lidos e vividos diversamente, mesmo quando haviam sido pensados para hornoqenelzar. Cidade iluminada, mesmo que precariamente, e ruas centrais calcadas. 0 assassino e 0 seu cumpllce buscaram os caminhos e iugares bern proxirnos ao centro, mas que nao haviam ainda side atingidos por aquelas benesses do proqresso Ruas escuras e pouco i!uminadas, de chao batido eirregulares; matagais providenciais, quando do encontro com mtrusos: esses os !ugares que Manoel e Abrahao procuraram quando de sua fuga. 0 assassino, para preparar sua salda da cidade, hornizlou-se na casa de uma prostituta em uma das ruas da labirfntica zona do meretrfcio, local vez por outra escolhido por reus em rota de fuga 116(ver mapa 5).
Mapa 05 - Area Central e Mandchliria
No entanto, as engenhosas rnudancas impostas pelas picaretas redentoras do prefeito Vergniaud Wanderley, ou mesma algumas que vinharn se arrastando desde a decada de 1920, nao podem ser subestimadas; elas tinham 18 seus segredos e c6digos a decifrar, 0 que fez com que a reforma das ruas centrals e de
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116 Em pelo menos dais outros processos as reus tentam se esconder ou fogem em direcao a Mandchuria, ver Agilo Criminal n" 234, 1944, Emeterio Leite e Outros, mayo de 11/03 a 031101l944 e Apelacao Criminal n" 268,1945, Vicente Thomaz de Aquino, maco de 03/02 a 2811111945.
suas aojacenclas tarnbem trouxessem problemas para as fugitiv~s 117. A luz no local da emboscada ajudou 0 irrnao da vftima a reconhecer seu algoz no momenta do crime; na fuga, ao se deparar com 0 guarda civil Antonio Lopes, 0 assassino usou de um ardil, embrenhando-se no matagal, mas antes teve as cores de suas vestes identificadas e alguns de seus traces fisicos iluminados, apesar da precaria luz da Campina Grande que se reformava 118.
Parte do alibi de Abrahao foi forjado na oraca da Bandeira, entre 0 cafe Ponto Chic e a Confeitaria Petropolis. novas pontos elegantes e de sociabilidade da cidade, onde, nas noites amenas de dezembro de 1941, a elite e seus agregados se encontravam para bebericar, conversar sabre a guerra ou sobre as rumos redentores do Estado Novo e seu Ifder, Getulio Vargas. Essa area estava se transformando no novo centro de lazer das mocas e rapazes da "sociedade", superando a tradicional rua Maciel Pinheiro, que centralizara as diversoes e passeios na cecaoa de 1920 e em boa parte da decaca de 1930. As i rnediacoes da praca da Bandeira era 0 lugar para onde acorriam os que lam fazer 0 footing au palestrar sabre as neg6cios e as reformas que estavam sendo feitas na cidade, inclusive na presenca do proprio prefeito Vergniaud Wanderlei, que era um dos habitues do lugar; outros para la se dirigiam em busca de novidades e mexericos, comuns numa cidade daquele porte; ou mesmo para irem aos cinemas Capitono e Babilonia, ali bem pr6ximos. Mas aquele ponto de lazer da epoca podia ser apenas uma parada para f1ertar com os senhorinhas casadoiras, encontrar amigos, por as conversas em dia e, em seguida, gular um carro, pegar urn taxi au caminhar urn pouco e acabar a noite nos braces de uma bela puta no Cassino Eldorado, ao sam de urna jazz band, acornpanhado de uma boa cerveja, scotch ou charnpaqns.
ll7 Ver "A luz eletrica e 0 policiamento urbane" em A Unido n? 144, 24/0611931, p. 08, em que 0 autor cementa utilizacao da energia eletrica pela policia de Nova York
ns Desde a sua inauguracao, em 1920, que a luz de Campina Grande virou urn grande problema para os moradores da cidade, que sempre denunciaram sua precariedade e insuficiencia, Todo a periodo que este trabalho abrange e marcado por denuncias e mobilizacoes de letrados e moradores contra a sua precariedade, No Voz da Borborema, 1937-1940, hi pelo menos umas tres dezenas de artigos e cronicas denunciando 0 "problema" da luz em Camp ina Grande.
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Campina Grande no inlcio dos 40 parecia uma cidade afeita a grandes emocoes, au assim queriam alguns dos seus moradores ilustres. 0 final do ana de 1941, como vimos acima, havia sido marcado pelo assassinate do "cidadao' Aurelio da Cunha Lima. Este crime, no entanto, nao foi ° unico do ano envolvendo membros daelite. Nos primeiros dias do mes de fevereiro daquele movimentado ana, urn jovem filho da elite proprietarta e comerciante decidiu tomar a cena e protagonizau um crime que, mais uma vez, mobilizou a "oplnlao publica" da cidade119. A novidade, meio que heretics, era que a opiniao publica fora mobilizada por cafetinas e prostitutas do Cassino Eldorado e aojacencras, capitaneadas por madame Josefa Tributino 120. Era para 0 Cassino Eldorado, como afirmamos alhures, que se dirigiam alguns ricos e populares, apos a passagem estrateqica pelo Cafe Ponto Chic, pela Confeitaria Petropolis. au ainda pelo bar Fla-Flu e pelos cinemas Capitolio e Babil6nia. 0 Eldorado conseguira mais uma noite deslocar 0 centro de lazer das elites para os seus saloes.
o episodio ocorreu dentro das dependenctas do Cassino, seu salao de dancas, em uma noite de carnaval. Foram muitas as testemunhas, mas elas ficaram claramente divididas. As prirneiras pessoas que depuseram no inquerito policial tentaram armar mais uma farsa, com 0 intuito de livrar a cara de Geraldo Cavalcanti de Castro, 0 homicida. Com certeza, pela longa tradicao de impunidade, alguns nao contavam com a argucia de Josefa Tributino na aruculacao do contra-ataque a versao mirabolante que nos primeiros depoimentos se desenhava. A envolvente Zefa Tirbutino, por essa epoca proprietaria do Cassino Eldorado, mobilizou 0 que pooe em termos de putas que testemunharam o crime, ou estavam nas imedia¢es do Cassino, au souberam do caso, eram desafetas ou tinham alguma queixa do homicida; ela as instruiu no sentido de reverter 0 quadro e dar-the novas cores (talvez tenha contado com 0 apoio de algum advogado amigo ou desafeto da familia do homicida).
119 A~o Criminal n" 285, 1941, Geraldo Cavalcanti Castro, maco de 15/04 a 20/07/1946.
120 Josefa Barbosa da Conceicao, vulgo Zefa Tributino, foi inicialmente proprietaria da Pensao Modema (que funcionou na rua do Rei Couro e depois na travessa do Oriente, proximidades da Manoel Pereira de Araujo, quando os prostibulos foram localizados na Mandchuria) e no inicio dos anos 1940 adquiriu 0 Cassino Eldorado. Era desde 0 inicio dos anos 1930 a cafetina mais conhecida e poderosa da cidade, uma verdadeira
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Morigerada nas armacoes das elites da cidade (afinal amasiara-se no seu seio 121), usou de toda sua persuasao e cabedal para tornar 0 caso publico, mas de uma forma que sensibilizasse a populacao e a colocasse do lado da pobre e honesta prostituta Maria de Lourdes. Os efeitos dessa empreitada nao se fizeram esperar: em pouco tempo, 0 caso havia cafdo na "boca do mundo" e 0 assassino, segundo Josefa um "cangaceiro" J como tal. passou a ser visto por parte da populacao da cidade. Ate 0 juiz que acompanhou 0 caso tarnbern foi sensibilizado pela "revolta" da opiniao publica. Cerca de dois meses ap6s a pronuncia de Geraldo Castro, que foragiu-se da cidade apes 0 crime, ele foi capturado em Joao Pessoa e, no rnes de junho, foi entregue a justica de Campina Grande. Seus advogados, drs. Ascendino Moura e Plinio Lemos, dois pesos pesados da advocacia campinense, rapidamente recorreram da sentenca que pronunciou 0 seu cliente e pediram agravamento da mesma ao Egregio Tribunal.
Talvez pareca um exagero, mas as batalhas que foram travadas em locals diversos da cidade nos dias emeses seguintes ao crime, ao men os per alguns momentos, subverteram e embaralharam a geografia social e poHtica da Campina Grande em reforma. As putas e cafetinas levantaram trincheiras do alto do Cassino Eldorado, transformado em um centro de poder e operacoes por aqueles tempos. 56 que era um centro de poder de muitos tentaculos e envolvente. Dele fazia parte tarnbern um Significativo numero de abastados da cidade e de cldades circunvizinhas; policiais ali estavam e delegados por la viviarn. Junto com urn ample leque de servicais e gigolos, eram a clientela dominante do fino cabare 122.
Com seus tentaculos por todos os lugares e grupos sociais, cafetinas e prostitutas difundiram versoes mirabolantes do epis6dio pela cidade e conseguiram, ate um certo momento, sensibilizar muitos, inclusive alguns que nao freqOentavam aquele mundo. Para tanto, mesclaram na empreitada praticas
empresaria do sexo, ver Silede Leila 0. Cavalcanti, op. cit. 2000:141-160 e Ronalda Dinoa, op. cit, 1994:551-556, vol. 1.
121 E tarnbem uma referencia a um dos amasios de Josefa Tirbutino, "cidadao" do comercio local. Ver tambem Acao Criminal n" 44,1933, Djanira de Tal. Alice Tenorio e Josefa Tirbutino, mace de 24/07 a 28/12/1933.
122 ° Cassino Eldorado, quando de sua inauguracao, emjulho de 1937, pertencia it cafetina Carminha Vilar e ao seu amante, Joao Verissimo. No inicio dos anos 1940, foi arrendado a Josefa Tirbutino. Alguns entrevistados afirmam que 0 seu auge deu-se quando Carminha Vilar 0 administrava, posteriormente foi se popularizando, ver Ronaldo Dinoa, op. cit. 1994: 543-548 e p. 551-556, vol. 1 e p. 549-555, vol, 2.
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antigas e modernas. Usaram principal mente a fala e seus encantos; atraves dela, o episodio tomou uma dimensao ampla, que a muitos desaqradaria, Associado a essa forma milenar e complexa de fazer as inrormacoes circularem, investiram nos caminhos legais, os da jusfica. Para depor a favor da vltirna, apareceram cerca de dezoito pessoas, entre putas e habitues do cabare. alem de duas criancas que haviam testemunhado os ultimos e agonizantes momentos de Lourdes. Na relacao tamoern estava outra famosa cafetina, Carminha Vilar. Todas com um discurso sabidamente aflnado.
Os rnetodos utilizados par Josefa Tirbutino para dar urn destine diverso ao homicida receberam acres e desesperadas respostas dos advogados do reu e dos que sempre se beneficiavam com a tradicao de impunidade local. Eles se senti ram por uns bons momentos encurralados por prostitutas e vociferaram com toda a forca que seus pulmoes permitiam. Josefa fol astuta na sua empreitada, acionando os meios legais; quase tudo estava perfeitamente dentro dos conformes da jusnca. com excecao da mobihzacao da opmtac publica contra 0 reu, uma forma de pressionar os agentes jurldicos. Os advogados do reu perceberam a manobra, soltaram irnprecacoes, mas se mostraram impotentes diante de algo tao bem armado num mundo que pensavam controlar a perfeicao. Mais uma vez, vociferaram e amaldlcoararn a opiniao publica, que havia sido mobilizada por outros que nao eles. Tentaram em sua minuta por em duvida a validade da opinlao publica, chamando a atencao para os riscos que se correria quando a propria jusnca cedesse as suas pressoes. Segundo vaticinavam, a opiniao publica estava eivada de irracionalismo e movida por paixoes menores e mcontessavels.
Enquanto isso, Josefa Tirbutino e as prostitutas souoanas a Lourdes davam uma dernonstracao de que conheciam, dominavam e, mais do que isso, exploravam os complexos c6digos do mundo jurfdico e medico da epoca, especial mente as suas brechas e arnbivalencias. Utilizavam-se de diversos c6digos do mundo que queria exclul-las e faziam com que estes se voltassem contra seus alqozes,
Denunciaram a principal farsa do processo, 0 laudo do exame cadaverico realizado pelos doutores Severino Cruz e Vital Rolim. Para os codiqos da iustica
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da epoea (como hoje). 0 exame de corpo de delito ou 0 exame cadaverico, comprovando a materialidade do crime, e uma prova basica. Os dois medicos, quando do exame cadavertco de Lourdes, tergiversaram, dando um parecer ambiguo, que inocentava 0 reu e retirava das rnaos do Minlsterio PubliCO uma de suas principals armas para punir 0 crirninoso. Em poucos dias tornava conta das ruas, beeos e avenidas da cidade, sem se pagar qualquer anuncio em jornal, a inforrnacao de que 0 laudo navia sido encomendado pelos parentes de Geraldo de Castro pela bagatela de 30 contos de reis! Os depoentes que se referem a tal epis6dio fazem-no de forma htlarta, usando de subterniqios, ao mesmo tempo que infarmam que tais suspeitas e insmuacoss "eram do domfnio publico".
As putas que haviam acompanhado 0 exame, inclusive a propria Josefa, passaram durante alguns dias a discutir, levantar duvidas e colocar-se como autoridades no nebuloso campo do saber medico modemo. Os advogados do reu nao se conformaram com tamanha ousadia: as prostitutas coiocavam em cheque nao so a moral e 0 profissionalismo dos dois conhecidos esculaoios, mas principal mente adentravam um campo de saber que, caso fosse devassado pelo mundo popular, muitos perderiam 0 manancial de poder que tinham sabre 0 corpo, o dinheiro e a vida das pessoas. 0 movimento que as prostitutas articularam em tome da morte de Lourdes atentava diretamente contra a geografia do rnando de parte das elites locals, pois, usando dos seus proprios codlqoe. punham em cheque mecanismos de controle da populacao quando desacreditavam mais uma vez os homens que manipulavam a sauce, a vida e a morte dos moradores da cidade.
A querela em torno do laudo fraudulento dos medicos significava multo mais do que a punic;ao ou nao de um homicida da elite. Entretanto, 0 mais intrigante do libelo anti-prostitutas dos doutores Ascendino Moura e Ptinio Lemos era veicular um discurso, em certos aspectos, contrano aos preceitos e valores que os letrados cotidianamente defendiam nas paginas dos jornais locais, dizendo-se esteios do progresso e da civiliza~o, inclusive cultores da ilustrada Franca 123. Neste
n:; Mereceria urn estudo it parte a reacao dos letrados campinenses diante da invasao e tomada da Franca pelos alemaes na 2" Guerra. Em artigos diversos de Voz da Borborema e clara a decepcao com a queda do principal referencial simbolico da civilizacao e cultura para os letrados locais: "A Franca eterna vive", nO 89,
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episodio. embora nao s6 nele. 0 discurso do progresso e da civiliza<;ao havia sido arrebatado das rnaos dos letrados e empunhado por quem eles consideravam mais vii na sociedade: as prostitutas.
Entre os valores modernos de que as putas lancararn mao, estavam alguns bastante elementares: a igualdade de todos perante a lei; 0 fim da impunidade dos crimes cometidos por membros da elite local; a denuncia de fraudes e da manipulacao dos novos saberes medicos que garantiam a impunidade; e por fim, o direito elementar de interferir politicamente nos rumos de suas vidas. Talvez, a ansla de progresso das nossas elites nao contempJasse esses preceitos basicos do discurso burques moderno, especial mente porque partiam de grupos marginais e dos que a eles se associavam.
o desfecho do episodic nao surpreendeu, pois era algo "perfeitamente logico"124.
CIDADE, CIDADES
Nao seria diffcil, para os que leram estas ultirnas linhas, darem uma resposta categorica ao titulo acima: cidades!125. E ao menos duas justicas, duas formas de viver, muitos modos de estar no mundo e dois finais diferentes. Tinha-se, a acreditar no ultimo episodic, duas cidades que conviviam, amavam-se e odiavamse, divertiam-se juntas, mas eram diferentes, porque eram tratadas diferentemente
03/12/1938, p. 01; "A forca que cedeu", de Antonio A Mangabeira, n? 39, 29/0611940, p. 04 e "Golpes de vista", de Joao Mendes, nO 40, 03/07/1940, p. 01. 0 historiador paraibano Jose Octavio de Arruda Mello em Do Estado Novo a redemocratizacdo. J oao Pessoa, 1998: 10-11, faz uma leitura diferente, chamando atencao para a grande simpatia existente entre letrados paraibanos aos regimes nazi-fascistas, Sobre a influencia das ideias francesas no Brasil pos-proclamacao da Republica, ver Jose Murilo de Carvalho, op. cit., 1990.
124 0 reu fugiu da cadeia com a ajuda de familiares e a complacencia do carcereiro e policiais quando na iminencia do julgamento e, talvez, de uma condenaeao por causa da pressao popular, ver A~aol Apelacao Criminal n? 178, 1941, Joao Alfredo de Albuquerque e Outros, mayo de 20/02 a 29112/1941. Tres anos apes a fuga obteve habeas-corpus do Tribunal Federal, que tambem anulou 0 processo e, quando os depoimentos foram retomados, todo 0 fulgor das batalhas iniciais havia esvanecido. Os advogados usaram todo 0 seu cabedal para protelar 0 julgamento e nas duas vezes em que 0 homicida foi submetido a juri, a ultima em 04 de agosto de 1948!, foi absolvido por urn corpo de jurados composto por seus pares.
12S Ver Margarida de Souza Neves, op. cit., In Roberto Moses Pechman (org) a/hares sobre a Cidade. Rio de Janeiro: Editora UFRj, 1994:135-155. Nicolau Sevcenko em "A vitoria-regia do Tamisa" in Mais!, Folha de sao Paulo, 21/01/200 1, p. 04-07 e Stella Bresciani, "Logica e dissonancia, Sociedade de trabalho: lei, ciencia, disciplina e resistencia operaria" In Revista Brasileira de Historia, Sao Paulo, vol. 6, n" 11, set 85/ev 86, p. 31,
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por mstltulcoes que existiam para toms-las iguais e afirmar que tinham os mesmos direitos perante elas. A cidade dos idos dos anos 40, povoada por prostitutes, [ornaleiros, eng raxates , carregadores, donas de casa, artistas, vendedores de paes, operarlos, mendigos, vadios, agricultores, motoristas, etc. podia ser a mesma povoada por comerciantes, proprietaries de terra e de irnovels urbanos, empresarlos, bachareis, medicos, juizes, promotores, mas nao exatamente a mesma.
No entanto, as coisas eram mais complexas do que a prime ira vista se possa imaginar. Pareeia existir duas eidades, dois mundos e ate duas classes. Dezenas, eentenas de artigos, obras, cronicas e reportagens, pelo Brasil e mundo afora, deixam poucas duvidas quanto as otvisoes socials que marcaram as sociedades ocidentais entre os seculos XIX e XX126. Mas quando se trata de entender os usos que os espacos urbanos tinharn no meio daquele emaranhado social, percebe-se uma multiplicidade de formas de viver os terntortos e espacos da cidade. 0 que embaralha urn poueo as cartas do social, tambem na Campina Grande da primeira metade do seculo XX.
Podernos, agora, retomar algumas questoes levantadas no inicio e dar um fecho ao capitulo.
A conclusao de "0 Batismo das ruas", de Celso Mariz, parecia indicar 0 reconhecimento de que aquele era um campo ao qual era dlflci! impor regras. Ele havia descoberto, junto com alguns outros pares, que certas praticas e costumes nao eediam facilmente aos decretos de prefeitos e governantes; afinal, os moradores da cidade, todos os moradores, por suas ruas, becos, travessas, vletas e logradouros andavam, conversavam, trabalhavam, brincavam, amavam e sobreviviam. Eles tinham seus oropros habitos e expenenclas, que os habilitavam tarnbern a nomear os lugares e pessoas aos quais estavam ligados por lacos
reproduzem trechos de autores que denominavam de "duas nacoes' as diferencas e segregacoes sociais que marcavarn cidades como Londres e Paris no seculo XIX.
116 Da bibliografia utilizada neste trabalho, ver Sidney Chalhoub, op. cit., 1986; Nicolau Sevcenko, op. cit. 1992; Jose Murilo de Carvalho, op. cit. 1987; Oswaldo Porto Rocha, op. cit. 1995; Jaime Larry Benchimol op. cit. 1992; Stella Bresciani, (org.), op. cit., 1994; Sandra J Pesavento, op. cit. 1994; Marcelo Badaro Mattos, op. cit 1991; Margarida de Souza Neves, op. cit., 1994:135-154; Raquel Rolnik, op. cit 1997; Ana Lucia D. Lanna, op. cit. 1996.
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afetivos, embora 0 fizessem de formas diversas. Certas medidas e atltudes, que apareciam como novidades do tempo ou como sinonirnos das rnudancas modemizantes par que a sociedade estava passando, teriam que se acomodar as vontades e formas seculares de nomear e compreender daquelas pessoas.
Os projetos que tinham seu ancoradouro no binomio proqresso/civllizacao eram tarnbem marcados par arnolvalencias. Muitos dos letrados que as abracararn fizeram-no claramente acreditando contribufrem para melhorar a vida de toda a sociedade e, no seio desta, ados moradores da cidade. Ao mesmo tempo, e difidl imaginar que trabalhadores e pessoas comuns fossem por princlpio ou qualquer outra coisa, refratarios a limpeza e saneamento das ruas, ao embelezamento e asseio de suas casas, a compra de um sapato novo ou de uma rnuda de roupa da moda. No entanto, uns e outros, educados em bancos de escolas e educados na vida, pareciam conceber cada uma daquelas conquistas ou possibilidades diferentemente. A casa contortavel e higienica podia ser pensada por uns como um caminho promissor para a prevencao de epidemias e a preservacao de uma famflia nuclear laboriosa e educada, mas, alern de estar ao alcance de poucos, nao teria significado nenhum para outros, se acabasse com as possibilidades que ofereciam para a sua sobrevivencia, como mostra a ernbternatco exemplo dos mucambos em Recife, que, alern de simples rnoradias, eram 0 caminho mais curto para 0 acesso ao caranguejo, a sobrevivencla dos mucambeiros 127. Naturalmente o mucambo nao era apenas urn lugar de soorevivencla material, mas 0 receio de perder esse meio de muitas sobrevivenctas parecia claro para os que nao aderiam aos encantos das novas e higienicas habitacoes.
Nao eram diferentes as usos e significados das ruas. Inspirados em utopias surgidas com 0 advento do mundo modemo, que pensavam em transformar as ruas e as cidades em lugares aprazlveis e conrortaveis para os seus moradores; onde a vida, transportes e mercadorias f1ufssem mais ordenadamente; onde cada equipamento e nova maquinaria estivesse em lugares previamente definidos; muitos letrados europeus e brasileiros acreditaram poder fazer esse sonho tornarse alga ao alcance de todos. Mas diversos outros moradores das cidades
127 Ver Zelia de Oliveira Gominho, op. cit. 1998:34 e Antonio Paulo Rezende, op. cit., 1992:51.
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reformadas retiravam suas possibilidades de viver e sonhar exatamente da sinuosidade das ruas e becos, 0 que em certos momentos colocava-os em campos diferentes 128. A conclusao dos primeiros sobre a cornpreensao limitada do futuro da humanidade pelos segundos, ancorada no cientificismo moderno, estimulou multo suas empreitadas reformistas, algumas utoplcas, sirn, mas embalactas, na maioria dos casos, por arbitrariedades e vlolencias e pela percepcao dos trabalhadores como seres semi-racionais ou barbaros 129.
Apesar de muitos assim desejarem, nao conseguiam modificar de uma vez por todas as prancas arraigadas ou as leituras diversas que se faziam das empreitadas modernizantes e progressistas no seio de grupos, famflias e pessoas que por aqueles tempos habitavam as nossas cidades 130. Seria necessario rnais do que a percepcao onlnca profunda, adrniravel e com "fartura de estetica" de alguns letrados, arquitetos e urbanistas modernos (presente no cotidiano dos moradores da cidade em forma de calcamentos, annhamentos de ruas, saneamento, construcao de extensas e largas avenidas, de predios e ediffcios monumentais, parques e pracas aprazfveis, novos tipos de nabltacoes populares etc.) para reorientar os passos, os caminhos e as formas de andar dos moradores de Campina Grande, Joao Pessoa, Recife, Porto Alegre, Salvador, Rio de Janeiro, Sao Paulo e tantas outras cidades brasileiras 131.
Voltemos ao ano de 1931, as prostitutas e ao articulista anonimo do jornal Brasil Novo, e recoloquemos as questoes acima discutidas de uma forma diferente. Deixando de lado parte de sua virulencla, sejamos seletivos. Dizia 0
128 Sobre a dimensao ut6pica das reformas urbanas e sociais a que arquitetos e urbanistas se associavam, ver Francoise Choay, op. cit., 1997: 1-56; sobre a rna como lugar da vida e sobrevivencia popular e operaria, ver Sandra 1. Pesavento, op. cit, 1994:114-143, Robert Moses Pechman. Os excluidos da rna: ordem urbana e cultura popular in Stella Bresciani, op. cit., 1994:29-34 e as excluidos da historia, de Michelle Perrot, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988:101-126, trabalho que inspirou os dois anteriores.
129 Ver Stella Bresciani, op. cit 1985 e 1987, Ariosvaldo da Silva Diniz, Colera: representaciies de uma angustia coletiva (a doenca eo imaginario social no seculo XIX no Brasil. Doutorado em Historia, Campinas, Unicamp, 1997: 1-34 e Sebastiao Rogerio Ponte, op. cit, 1999.
130 Apesar do momento historico ser outro, leu-ados e cronistas campinenses continuam nos anos 1960 vociferando contra a pouca civilizacao e educacao dos populares e de alguns rapazes de elite nas ruas, cinemas, shows de auditorio, etc., cf Antonio Clarindo Barbosa. Sociedade, cultura e lazer na Campina Grande dos anos 1950-60. Recife, UFPE, 1997 (projeto de doutorado). Ver tarnbem jomal local 0 Momenta, especiaimente a coluna intitulada "Isto Acontece em Campina Grande", numeros 1 a 8 (17, 24 e 30 de setembro; 08,15 e 29 de outubro; e 12 de novembro de 1950, sempre na pagina 2).
13J Ver bibliografia referida na nota 128, pagina 75.
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articulista que os "casebres de talpa" desafiavam "0 senso estetico dos rssponsaveis pelo embelezamento da urbe", acrescentando que "as caixas de f6sforos gargalham pelas suas portas imundas, contra "pousse", que Ihes mingua o terreno" ... para concluir: "Sabemos dos intuitos do Sf. Prefeito, de embelezar a Travessa da Luz, demolindo 0 tal "cortico". Aplaudimo-Io e lembramo-Ihe que a medida e de emergencia. Aquilo se tolera em suburbia, nao no centro de uma cidade como a nossa."
As prostitutas que nas "caixas de f6sforos" moravam pareciam pensar diferentemente. Usavam OS espacos de suas moradias e 0 entomo, "exibiarn-se" provocantemente para fazer 0 que uma prostituta faz: procurar parceiros ou clientes interessados em pagar por uma hera, uma noite ou um dia de prazer e trabalh0132. Nada mais sensato, na sua 16gica, do que oferece-la ende os compradores e fregueses estavam. Na sua forma de agir, seguiam uma 16gica um tanto quanto parecida com ados comerciantes, que buscavam ou sonhavam com as melhores e mais centrals ruas para colocar 0 seu neg6cio, pais era 0 centro da cidade que era buscado pelo forasteiro, 0 morador do suburbio nos dias de feira, os que habitavam a zona rural e se dirigiam para a cidade, clientela em potencial das putas e comerciantes. Ali era tarnbern 0 lugar ideal para elas se exibirem aos transeuntes.
A expulsao que se seguiu a tais apelos e a forma como foi feita foram convenientemente apagadas dos registros e da memoria dos letrades. As referencias feitas ao eptsodlo por historiadores e cronistas locais nao passam de registros secas e lacorucos sobre "0 lugar onde existiam as 'caixas de f6sforos"'; lernbrancas de que, em algum momento, elas haviam estado perigosamente proxlmas a praca da luz e da cadeia, a cinqOenta metros do Largo e da Igreja do Rosario, a duzentos da Igreja Matriz, a cem ou urn pouco mais da rua Grande ou Maciel Pinheiro, onde, por aqueles tempos, abundavam casaroes de moradia e cornercio. Eis dots desses registros.
132 Ver Cristiana Schetinni Pereira "A Policia vai as putas (Ou no silencio da lei, 0 barulho das mas)", site do Cecult/Unicarnp, 2000, Sandra J. Pesavento, op. cit, 1994:128-143 e Lena Medeiros de Menezes. Os estrangeiros e 0 comercio do prazer nas mas do Rio (1890-1930j. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
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No lado entre as extremidades da Afonso Campos e Vidal de Negreiros, on de hoje se. ergue a igreja Batista e vanas casa novas, existia naquele tempo uma sene de mocambos de taipa e telha, conhecido por Caixa de F6sforos 133.
Isto foi a que nos legou Epaminondas Camara, em Datas Campinenses.
Vejamos duas referencias de Cristino Pimentel, em Abrindo 0 livro do passado. Na primeira, a autor esta situando algumas casas e moradores nas imeotacoes da rua Maciel Pinheiro.
as seus limites [residencia do sr. Frederico Gil] confinavam com a rua Jose do Precipicio, chamada hoje Venancio Neiva, que dava para a "Caixa de F6sforo", de Vicente Aviao, um arruado de casinhas baixas, nas imediacoes da atual Vidal de Negreiros. Com 0 correr dos anos desapareceu a "Caixa de F6sforo" e 0 dep6sito de lixo que a prefeitura fazia ali 134.
E na segunda, esta comemorando a mudanca desta paisagem, com a debacle das "calxas de fosforos" e 0 surgimento de construcoes modernas.
Em recantos imundos, que serviram de deposito de lixo, como foram a "Caixa de Fosforo" e a Rua da Cadeia, erguem-se casas notaveis, pracas como a "Clementino Procopio" ... 135.
Com esses registros, ficamos sabendo que as "caixas de fosforos" existiram e estavam perigosamente proximas ao centro da cidade: "com 0 correr dos anos", desapareceram ... dando lugar a "casas notaveis e pracas": 0 mats e silencio ... Par isso, na nossa ternbranca, alnda eeoam as fortes palavras do anonimo articulista do Brasil Novo: "Sabemos dos intuitos do sr. Prefeito, de embelezar a Travessa da Luz, demolindo 0 tal "cortico", Aplaudimo-Io e lembramo-Ihe que a medida e de ernerqencia" .
Entre os apelos em defesa do "senso estenco" e do "embelezamento da urbe" e a imagem ann-estetlca e anti-higienica do tal "cornco", nao hi! duvida que a
prefeito Lafaiete Cavalcanti, ainda que para alguns tardiamente, achou justo 0 pedido e a medida de "emerqencia" 136.
Agora temos rnais lndlcios de como os territoriose as ruas eram usados por domesticas, engraxates, paezetros, prostitutas, proprletartos, comerciantes e tantos outros, inclusive alguns que foram escorracados das "caixas de f6sforos" e da rua do R6i Couro. Na decaoa de 1920 e no inicio dos anos 30, estes personagens viviam em sua maier parte em ruas centrais, ou multo proximo a elas. Em alguns casos, misturavam-se mesmo com os moradores rnais abastados nesses lugares. No entanto, a medida que a cidade fOI assurnindo ares modernos, foram paulatina ou bruscamente jog ados para as ruas e becos adjacentes e, posteriormente, para os suburblos, muitas vezes areas escassamente pcvoadas, pequenos sftios e fazendas que vao sendo incorporadas pela cidade em expansa0137. Com 0 tempo, especialmente entre 1935 e 1945, foram empurrados para a periferia da cidade, onde vamos encontra-los devidamente estratificados e hierarquizados nos anos 1960138. Uma longa e eficaz medida do progresso. Esse movimento de deslocamento e exputsao de trabalhadores e pobres das areas centrais das cidades brasileiras reformadas seguia uma certa tradicao, que tinha um dos seus rnais emblernatlcos cornecos e urn paradigma na reforma da Paris do Segundo Imperio, sob os ausplcios do barao Haussmann 139; mas em Campina Grande ela assurniu caracterfsticas peculiares.
136 Lafaiete Cavalcanti foi prefeito de Campina no periodo de 1929 a 1932.
137 Cristino Pimental em "Lembrar e viver", 06106/1961 e em "A Gameleira da velha Mariquinha Serrao", 05/06/1961, ambos no Diana da Borborema, vai fazer constantes referencias saudosistas aos sitios existentes nas adjacencies da area central da cidade, nas primeiras decadas do seculo xx.
13g Segundo a obra Campina Grande - urn centro comercial do Nordeste (p. 24), "Nos bairros situados nas partes altas [de Campina Grande] - Palmeira, Monte Santo, Bela Vista, Alto do Prata, Alto Branco - e comum encontrar-se esse padrao de distribuicao das casas nas ruas: na parte baixa, encontram-se as melhores, mais bern construidas. No meio da rna, na ladeira do morro, veem-se casas de tijolos mal construidas, com pouca altura, muitas vezes com as divisoes intemas feitas de "taipas" e com uma "puxada", tambem de taipa, construida na retaguarda da casa e servindo de cozinha. A medida que a rua sobe 0 morro e que se caminha para 0 cume, predominam as casas piores. Sao de taipa, de pequeno tamanho e pequena altura, 0 que lhes em presta urn ar de mesquinhez e de miseria, ( ... ). De certo modo, a posicao espacial do individuo, nos bairros pobres, e urn indicio de sua classe social (, .. t.
139 A nossa intencao com essa associacao nao e transforrnar a reforma haussmaniana em urn modele transhistorico, mas reconhecer que ele desencadeou forcas, ideias e praticas que de formas diversas embalaram 0 imaginario de letrados reformistas do mundo ocidental; isto nao significa que os caminhos seguidos por outros paises tenham sido exatamente os mesmos da Franca. Para 0 estudo da dimensao paradigmatica da reforma de Paris, ver Francoise Choay, op. cit, 1997:1-56, Stella Bresciani, op. cit., 1985 e Sebastiao Rogerio Ponte, op. cit., 1999:32-44.
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Nao foram apenas os moradores menos afortunados que tiveram que se deslocar das areas centrals da cidade por esses tempos. Alguns abastados tarnoern foram dar escorracados como medida do progresso 140, Esse processo de desterritorialtzacao e reterntoriatlzacao, que atingiu grupos diversos, de forma tarnbern diversa, fo! muito rnais complexo do que se possa imaginar a prtrneira vista. Basta dizer que, por alguma ironia nao se sabe do que ou de quem, com a oecadencta nas decades de 1950 e 1960 da Mandcnurta, que nas duas decadas anteriores concentrava a maioria dos cabares da cidade, diversos prostibulos surgiram ou ganharam nome exatamente na area central da cidade, a cerca de duzentos metros de onde outrora existiram as "caixas de fosforos" e 0 R6i Couro 141.
Agora temos urn ou vanes quadros sobre a cidade que era Campina Grande, ou em que se transformou, entre os anos 1920 e 1945. Entremeando processos criminais com fontes diversas, os horizontes da cidade parecem rnais complexos; o nurnero de ruas amplia-se e as conhecidas assumem nomes diferentes, porque pareciam ser vividas diversamente; elas parecem mais sinuosas do que continuavam sendo ou haviam sido as ruas centrals: os decretos e proposicoes oficiais foram embaralhados. Ruas novas, nomes novos e desconhecidos, ou ruas antigas que aparecem com nomes diversos e em abundancia, once a vida tarnbern pululava.
Com os lampejos de vida ou de morte, como as de Maria de Lourdes, Josefa Tirbutino, Cicero Rodrigues, Am6bio Araujo, Joao Albino Teodcsio, Luiz Gonc;alves Freitas, Felizardo Jose Maria e tantos outros fica-se sabendo que a cidade tinha cartografias, lugares e territories diversos, ruas com caras e nomes que na boca de urn letrado soam dissonantes, tal qual se viu n'"O Batismo das ruas" de Celso Marlz. No entanto, rnais que uma questao de nomear diferentemente os temtorios da cidade, as formas diversas de usa-los e nele aparecer tmharn imptlcacoes fortes para a vida de certos trabalhadores e moradores da Campina Grande do perfodo. Estes sao 0 mote do proximo capitulo.
140 Retomaremos essa discussao no capitulo 4.
PI Ronaldo Dinoa, op. cit, 1994:543-548, vol. 1 e p. 549·555, vol. 2.
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CAPITULO 2:
CARTOGRAFIAS DO TRABAlHO: HOMENS E MUlHERES EM A~O
Ha formas diversas de adentrar 0 que as vezes se denomina mundos do trabalho, classes trabalhadoras, camadas populares ou pobres urbanos 1. Nos ultimos tempos a historiografia braslleira costuma faze-to em duas direcoes: na primeira, voltando-se para momentos de conflitos e lutas sociais e para as instituicoes que os articulam, como sindicatos e partidos polfticos"; na segunda, para 0 cotidiano e a cultura popular ou operana, dentro e fora dos locais de trabalho, os empreendimentos disciplinares e as formas de resistencia a lnstitulcao da sociedade burguesa rnoderna". Resistencia e movimentos de escravos e libertos urbanos contra a escravidao, revoltas urbanas como a Revolta da Vacina e a do Vintem, greves e lutas operanas, orqanizacao sindical, 0 cotidiano e a cultura popular. Os momentos de tensoes e confronto aberto e a entrada abrupta de certos personagens coletivos e das multid6es na cena urbana parecem deixar algumas pistas para compreendermos 0 universe mental e as formas materiais de sobrevivencia das populacoes urbanas, embora nos ultimos tempos tenham perdido espaco para estudos preocupados em reconstituir sua cultura e 0 seu cotidiano e/ou questoes especlficas, como a moradia, dcencas e saude, festas, rituais religiosos etc. Na maioria desses estudos, os grupos e categorias profissionais que cornpoern as classes trabalhadoras ou camadas populares
1 As nocoes de mundos do trabalho e classes trabaIhadoras aparecern em Eric Hobsbawn em Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1987 e Sidney Chalhoub, op. cit., 1986; camadas urbanas e populares em Sebastian Rogerio Ponte, op. cit, 1999 e Raimundo A Arrais, op. cit., 1995; pobres em Sandra J Pesavento, op. cit, 1994; Cristina Wissenbach, op, cit, 1998:49-130, utiliza simultanearnente as nocoes de classes trabalhadoras e camadas populares.
2 Sobre revoltas escravas ver Joso Jose Reis, Rebeliiio escrava no Brasil. Sao Paulo: Brasiliense, 1986; a Revolta da Vacina em Sidney Chalhoub, op. cit, 1996, Jose Murilo de Carvalho, op. cit., 1987 e Nicolau Sevecenko, A Revolta da Vacina. Sao Paulo: Brasiliense, 1984; movimento operario e sindical nos primeiros anos da Republica, ver Paulo S. Pinheiro e Michael M. Hall. A ciasse operaria no Brasil (1889-1930): documentos. Sao Paulo: Alfs-Omega/Brasiliense, 1979/1981,2 v; Foot Hardman e Victor Leonardi. Historia da industria e do trabalho no Brasil. 2a ed. Sao Paulo: Atica, 1991.
3 Sidney Chalhoub, op. cit., 1986, Margareth Rago, op. cit, 1985, Maria Odila S. Dias, op. cit, 1995.
CAVALCANTE, Regina Barbosa Lopes. A Preservação Do Cemitério Nossa Senhora Da Piedade Como Patrimônio para Maceióal. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Alagoas, Maceió