Aldeias Indígenas e Povoamento

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Publicado em: Diniz, E.; Lopes, J. S. L. e Prandi, R. (orgs.). Ciências Sociais Hoje, 1993.

São
Paulo: Hucitec/Anpocs, 1993, p. 195-219.

ALDEIAS INDÍGENAS E POVOAMENTO DO NORDESTE


NO FINAL DO SÉCULO XVIII: ASPECTOS DEMOGRÁFICOS
DA “CULTURA DE CONTATO”

Maria Sylvia Porto Alegre

“O açúcar matou o índio”. Assim sintetiza Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, a sua
maneira de entender o impacto da colonização sobre os povos indígenas, afirmando que a
reação ao domínio europeu “foi quase a de pura sensibilidade ou contratilidade vegetal, o
índio retraindo-se ou amarfanhando-se à nova técnica econômica e ao novo regime social e
moral”.

Criticando o padrão descrito por Freyre, de “reação vegetal” do índio ao branco, Florestan
Fernandes retoma essa discussão, para questionar a hipótese subjacente, de que o processo de
destribalização se inscrevia exclusivamente na esfera de influência e de ação dos brancos.
Reformulando o problema, o autor propõe-se discutir a questão do ângulo dos fatores
dinâmicos que operavam a partir da organização social indígena, não sem antes ressaltar,
apropriadamente, que não foi o açúcar que matou o índio, mas sim a exploração territorial e
processos decorrentes, “que expuseram os indígenas, que não conseguiram se retrair além das
fronteiras móveis do sertão, a condições heteronômicas ou anômicas de existências, nas
relações com os portugueses” (Fernandes, 1975: 129).

Invertendo a perspectiva de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes estudou a reação dos povos
Tupi à conquista, nos séculos XVI e XVII, para concluir que há uma conexão entre o padrão
tribal de organização social e as relações com os brancos. O sistema organizatório dos Tupi,
por ter se mantido relativamente rígido e impermeável às pressões externas, forçou-os a duas
únicas opções: fuga ou submissão.

A fuga com isolamento teria representado a alternativa mais consistente na dinâmica do


sistema organizatório tribal dos Tupi, possibilitando a preservação da herança biológica,
social e cultural. Nesse caso, o preço pago pela autonomia foi elevado, deslocando a luta pela
sobrevivência para o terreno ecológico. Os Tupi tiveram de adaptar-se, progressivamente, a
regiões cada vez mais pobres, para escapar ao destino de transformarem-se em camponeses,
diluindo-se demográfica e culturalmente nas populações caboclas regionais (idem:30).

Quanto à diluição demográfica e cultural implicada na alternativa da submissão, as


dificuldades de análise são bem maiores, pois dizem respeito à complexa dinâmica do contato
interétnico e da mudança. A antropologia no Brasil, desde os anos 50, vem refutando a visão
dos “intérpretes” generalistas da cultura brasileira, bem como os estudos sobre aculturação, de
base evolucionista, inspirados nas teorias funcionalistas do “encontro entre culturas”. Um

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grande esforço tem sido feito na busca de perspectivas analíticas que dêem conta das relações
de dominação presentes no contato interétnico, considerando duas evidências históricas: a) a
forte pressão integrativa da chamada “sociedade nacional” sobre as sociedades tribais, e b) a
organização tribal como fator ativo na relação entre índios e brancos.

Conceitos como “fricção interétnica”(Oliveira, 1968), “transfiguração étnica”(Ribeiro, 1970),


“identidade étnica”(Oliveira, 1976) e “etnicidade”(Cunha, 1979) provocaram uma revisão
contundente dos modelos de aculturação e suas tipologias, e contribuíram decisivamente para
mostrar a resistência à extinção por parte de sociedades tribais de alto grau de contato com as
populações regionais.

O rompimento com as teorias deterministas, que erroneamente preconizaram o


desaparecimento inevitável do índio na atualidade, revelou a necessidade de aprofundamento
da pesquisa de novas fontes documentais, na busca de evidências que permitem traçar um
perfil mais compreensivo e menos impressionista da relação das “frentes de expansão” com os
povos indígenas, reavaliando as formas históricas de ocupação de espaço regional e a suposta
transformação do índio em “caboclo” ou “camponês”.

OS POVOS INDÍGENAS E A COLONIZAÇÃO DO NORDESTE

Seguindo as pistas de Florestan Fernandes, vemos que os aspectos ecológicos envolvidos no


contato interétnico assumiram uma ênfase explícita no Nordeste, onde os avanços da
colonização dividiram a região em duas grandes zonas de ocupação demográfica e econômica
distintas: a Mata litorânea e o Sertão interior.

Como sabemos, foi na Zona da Mata, nas áreas propícias à plantação de cana-de-açúcar, que
se instalaram os primeiros núcleos portugueses de povoamento, dando início, logo no século
XVI, ao processo depopulativo dos grupos indígenas que habitavam essa área, através do
extermínio e expropriação de seus territórios. Entretanto, apesar da alta mortalidade, alguns
grupos conseguiram permanecer no local de origem, em situação de contato intenso com a
população regional, enquanto outros fugiram, dispersando-se pelo interior da própria região,
escondendo-se nas serras e nos sertões, até alcançar as fronteiras ainda inabaladas do Piauí e
Maranhão.

Os índios que habitavam o sertão somente foram tirados de seu relativo isolamento pela
expansão pastoril, nos séculos XVII e XVIII, quando então foram igualmente expulsos da
terra ou dizimados. Os remanescentes refugiaram-se nas áreas mais áridas e mais afastadas,
ainda não ocupadas porque destituídas de interesse econômico para o Estado português. Uma
parcela desses índios também permaneceu no local de origem, no sertão já agora ocupado
quase inteiramente com a distribuição de sesmarias, sobrevivendo em contato com o mundo
dos brancos.

Qual era o destino das populações indígenas e como se distribuíram na região, no período
final da colonização portuguesa, quando a maior parte de seus territórios já havia sido
alcançada pelas frentes de expansão?

Para responder a essa pergunta partimos da consideração de três possibilidades diferenciais de


reação das sociedades tribais à situação de contato: (a) extinção, (b) migração, ou (c)
permanência no local de origem.

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Em virtude da limitação das fontes, iremos nos deter, neste trabalho, apenas à análise do perfil
demográfico dos grupos que se enquadram na terceira possibilidade, ou seja, aqueles que
continuaram a viver em suas terras, agora confinadas ao espaço reduzido dos aldeamentos
indígenas. Uma vez que os documentos pesquisados não trazem dados sobre a composição
étnica do total da população, ficamos impedidos, por ora, de qualquer conjetura sobre o
destino dos índios isolados, dispersos na população circundante.

Utilizamos como fonte de pesquisa os censos estatísticos do final do século XVIII e julgamos
que a democracia histórica apresenta-se como ponto de partida para uma revisão histórica do
destino dos povos indígenas do Nordeste. Sua principal contribuição é fornecer novos
indicativos sobre a dinâmica da organização social, através da reconstituição do perfil da
população e descrição de suas características.

AS FONTES

Os censos do século XVIII estão organizados a partir de freguesias, unidade básica de


estrutura administrativa civil e eclesiástica das capitanias. Através da identificação
das chamadas “freguesias de índios” é possível então comparar as populações
indígenas com o restante da população, embora não se possa determinar a proporção
de índios e não-índios no interior dessas freguesias, onde vivem também brancos e
mestiços em pequeno número.

Tomamos como base de estudo o primeiro censo geral de população do Nordeste, realizado
em 1777 em quatro capitanias – Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará,
que contém dados referentes ao tamanho e composição da população por idade, sexo
e domicílio e indica as taxas de natalidade e mortalidade.

Utilizamos três documentos, sendo os dois primeiros manuscritos pertencentes ao fundo


Caixas de Pernambuco, do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, e o terceiro
um relatório impresso, publicado nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro:

a) “Relação de todas as igrejas parochiaes que pertencem ao Bispado de Pernambuco


dividido em capitanias; as distancias das freguezias, suas capellas alem das matrizes, o
número dos sacerdotes, que nellas existem, alem dos parochos, seos fogos e as pessoas de
dezobriga, por mandado de el rey nosso senhor. D. Thomaz, Bispo de Pernambuco,
Olinda, 19 de fevereiro de 1777”. A.H.U., Caixa de Pernambuco n.65.
b) “Mapa que mostra o número de habitantes das quatro capitanias deste governo, a saber,
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ciará. Jozé Cesar de Menezes, Recife de
Pernambuco, 30 de setembro de 1777”. A.H.U, Caixa de Pernambuco n. 70.
c) “Idéia da população da capitania de Pernambuco e de suas annexas, extenção de suas
costas, rios, e povoações notaveis, agricultura, numero dos engenhos, contractos, e
rendimentos reaes, augmento que estes tem tido & a. & a. desde o anno de 1774 em que
tomou posse do governo das mesmas capitanias o governador e capitam general Jozé
Cezar de Menezes”. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, volume XL (1918),
Rio de Janeiro, 1923.

A “relação” e o “mapa” de 1777 foram enviados pelo governador de Pernambuco à Secretaria


dos Negócios do Reino, em resposta à ordem real de 18 de setembro de 1776, extensiva a

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todas as capitanias do Brasil, que determinava a realização do primeiro recenseamento geral
dos habitantes da colônia. A partir dos dois documentos, o governador José César de Meneses
organizou e remeteu a Lisboa, em 1782, a “idéia” da população das quatro capitanias,
acompanhada de um longo relatório.
O censo Nordeste de 1777-1782 é considerado o mais completo registro demográfico de
Brasil do século XVIII (Alden, 1963), já tendo sido objeto de estudos anteriores (Ribeiro
Júnior, 1976; Marcílio, 1986). Entretanto, grande parte dos dados que contém acham-se
inexplorados.

Antes de passarmos à análise das fontes convém apontar alguns problemas, já mencionados
por outros pesquisadores na avaliação dos censos setecentistas no Brasil. O primeiro
problema decorre da própria dificuldade nas contagens, devido à grande dispersão da
população, relativamente pequena, numa extensa área geográfica. Além disso, uma resistência
passiva entre os colonos, receosos de que as informações resultassem em cobranças de
impostos e recrutamento militar, dificultava o trabalho dos recenseadores. O principal
problema, porém, é de ordem técnica e decorre de erros e imprecisões na preparação dos
relatórios, que passavam por muitas mãos, uma vez que eram feitos pelos capitães-gerais e
pelos bispados, a partir da coleta de seus subordinados, principalmente os mestres de campo e
padres das paróquias (Alden, 1963:181-2).

Os três documentos contêm algum tipo de incorreção ou discrepância nos resultados, de tal
forma que a abordagem comparativa fica, em parte, prejudicada. São erros de natureza
variada, que serão apontados ao longo do texto, à medida que forem surgindo. É importante
reconhecer, entretanto que os censos setecentistas fornecem informações extremamente
valiosas, apesar das limitações. Eles são a fonte mais fidedigna de que dispomos, até o
momento, sobre o povoamento da região e distribuição da população. São documentos
básicos, que servem de ponto de partida para uma reavaliação das relações interétnicas no
contexto da história regional, à luz da documentação arquivística inédita que vem sendo
localizada pelas pesquisas mais recentes de fontes sobre a história indígena e do indigenismo
em arquivos brasileiros.

PADRÕES DE POVOAMENTO DO NORDESTE NO FINAL DO SÉCULO XVIII

Em fins do século XVIII, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará formavam uma
única capitania, denominada “Capitania de Pernambuco e suas anexas”, que incluía também
parte do que hoje é Alagoas. Paraíba foi anexada administrativamente a Pernambuco em
1755, voltando à autonomia em 1799. O Rio Grande do Norte estava sendo subordinado ao
governo de Pernambuco desde1701, quando se desligou da Bahia, e sua autonomia só foi
concedida em 1820. O Ceará, separado do Maranhão desde 1656, esteve subordinado a
Pernambuco até 1799. Alagoas só foi desmembrada de Pernambuco em 1817. A extensão
territorial sob jurisdição do governador e do bispado de Pernambuco era de 2.203 léguas.

Vejamos, inicialmente, o contexto da economia regional, nesse momento. Transformações


importantes haviam ocorrido na vida econômica das quatro capitanias, com a criação das
companhias de comércio, pelo Marquês de Pombal, em 1759. A chamada “Companhia Geral
de Pernambuco e Paraíba”, que funcionou entre 1759 e 1780, recebeu privilégio para atuar
numa área que, desde o início da colonização, fora a mais rentável. A política portuguesa
levava em conta o enorme potencial a ser explorado no Nordeste, quer pela produção
açucareira quer pelas fazendas de gado (Ribeiro Júnior, 1976).

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Ribeiro Júnior mostra que, durante a vigência do monopólio, houve um considerável aumento
da produção açucareira. A produção de couros, resultante do grande rebanho bovino que se
formava na região, também cresceu em ritmo acelerado. O tráfico escravo intensificou-se,
principalmente no intercâmbio com Angola, que, além de fornecer mão-de-obra, consumia
manufaturas e produtos brasileiros, como o tabaco, a aguardente e o açúcar (idem:206).

A dinamização da vida econômica pode ser avaliada pela expansão demográfica. Comparando
documentos de 1762-63 com os censos de 1777 e 1782, Ribeiro Júnior mostra que a
população mais do que duplicou em um período de quinze anos, passando de 169.582
habitantes em 1762-63 para 363.238 habitantes em 1777, atraída pelas novas perspectivas de
sobrevivência e pela possibilidade de um mercado seguro para escoamento de sua produção.
Conforme conclui o autor : “estava no plano da metrópole a promoção demográfica visando
aumentar a produção e, portanto, a arrecadação”(idem:73).

O projeto de expansão da produção associou-se a uma reformulação administrativa, com o


objetivo de criar mecanismos mais eficazes de arrecadação de impostos e impor novas formas
de controle da mão-de-obra. Adotando uma política urbanizadora, Pombal promoveu a
elevação da maioria dos núcleos urbanos à categoria de vila, numa ação centralizadora que
visava superar a dispersão e relativa autonomia dos povoados, principalmente aqueles do
interior, que ficavam mais longe do alcance e das vistas do Estado.

Com essas medidas o governo português buscava, primordialmente, novos meios de submeter
a população livre e a população indígena ao trabalho, para atender a suas próprias
necessidades e às demandas das classes produtoras , e enfrentar o problema de escassez de
mão-de-obra, decorrente do declínio precoce da escravidão. Com efeito, um dos elementos
mais significativos das mudanças que se processavam na sociedade nordestina é a rápida
redução do número de escravos no total da população e a crescente presença de negros e
pardos libertos. Em 1762-63, os escravos representavam apenas 23% da população. Do total
de 120.263 habitantes livres, 10.132 eram negros forros e 13.737 pardos forros, os escravos
libertos representando quase 20% da população livre (idem:73).

Cada capitania estava dividida em um pequeno número de comarcas, compostas de termos,


com sede nas vilas ou cidades respectivas. Os termos dividiam-se em freguesias,
circunscrição eclesiástica que servia também como demarcação para a administração civil e
formava a paróquia, onde se localizava a igreja-sede (Prado Junior, 1948:304).

Pelo censo de 1777-1782, a população das quatro capitanias distribuía-se por 85 freguesias.
Pernambuco contava com 45 freguesias, Paraíba com 11, Rio Grande do Norte com 9 e Ceará
com 20.

Havia apenas três cidades na região – Olinda, em Pernambuco; Nossa Senhora das Neves, na
Paraíba; e Natal, no Rio Grande do Norte – e 36 vilas, sendo 14 em Pernambuco, 5 na
Paraíba, 4 no Rio Grande do Norte e 13 no Ceará. Isso significa que 46 freguesias, a maior
parte delas em Pernambuco, ficavam totalmente na área rural, desprovidas de núcleos
populacionais que pudessem ser caracterizados como propriamente “urbanos”, uma vez que a
vila era a unidade mais simples da organização administrativa.

Um dado surpreendente é que, das 36 vilas existentes, 22 eram “vilas de índios”, isto é,
antigos aldeamentos missionários fundados e controlados, em sua maioria, pelos jesuítas, que
atuaram no Nordeste de 1549 até 1759, data de expulsão da Companhia de Jesus do Brasil,

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colaborando de forma decisiva para a implantação do projeto colonizador do Estado
português.

Havia, ainda, quatro “lugares de índios”, ou seja, pequenos núcleos de população indígena
que não foram elevados a vila com as reformas de Pombal, sendo três deles em Pernambuco e
um no Ceará, perfazendo um total de 26 freguesias de índios.

O grande número de aldeamentos indígenas é, por si só, um indicativo eloqüente do alto grau
de contato das populações nativas com as frentes de expansão da região e da forte presença
indígena no substrato étnico da população.

Distribuição das Freguesias – 1777-1782


Freguesias Cidades Vilas Freguesias de
Total Índios
Pernambuco 45 1 14 9
Paraíba 11 1 5 4
Rio Grande do 9 1 4 4
Norte
Ceará 20 - 13 9
TOTAL 85 3 36 26

São as seguintes as freguesias de índios constantes dos censos de 1777-1782:


- Pernambuco: Limoeiro, Escala, vila de Atalaia. Porto Real, vila de Águas Belas, vila de
Simbres, vila de Assunção, vila de Santa Maria, vila de Alhandra.
- Paraíba: vila do Conde, vila de Nossa Senhora do Pilar, vila da Bahia de São Miguel,
Vila Flor.
- Rio Grande do Norte: vila de Arez, vila de São José, vila de Estremoz, vila de Porto
Alegre.
- Ceará: vila de Soure, vila de Mecejana, vila de Arronches, vila do Crato, vila de Monte-
Mor-o-Velho, vila de Arneirós, vila Viçosa Real, vila de Monte-Mor-o-Novo, Almofala.

As transformações da segunda metade do século XVIII afetaram profundamente a vida das


antigas aldeias missionárias, que passaram quase todas à categoria de vila a partir de 1760,
regidas pelas leis do Diretório pombalino. A vila pombalina foi instituição bem diversa do
aldeamento missionário. Como mostra Moreira Neto em seu estudo sobre o tapuio da
Amazônia: “em primeiro lugar, o carisma religioso foi substituído pela presença e pela
opressão física da autoridade local e do colono mas, também, por valores abstratos quase
sempre incompreensíveis, como as posturas e normas legais, a autoridade (pouco convincente
e de duvidosa legitimidade) de índios e mestiços convertidos em juízes e vereadores – funções
veladas, via de regra, às lideranças tradicionais do grupo – e por símbolos profanos mas
ominosos, como o pelourinho. Acima de tudo, a nova ordem representava a desistência da
autonomia relativa – que é um dos traços mais característicos das comunidades de índios e
tapuios que coexistiram ou sobreviveram ao regime de missões”(Moreira Neto, 1988:25).

Não resta a menor dúvida de que o indigenismo pombalino teve um efeito desagregador maior
sobre a organização tribal que o regime anterior das missões. Visando transformar o índio
numa força de trabalho controlada, as vilas pombalinas do final do século XVIII foram o
locus por excelência da fricção interétnica, o espaço onde se davam os conflitos, centrados na
questão da terra e do trabalho.

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Tomando o conceito de “frente de expansão” do ponto de visa de sua estrutura interna e de
sua dinâmica, Roberto Cardoso de Oliveira (1967) mostra como a desorganização das
sociedades tribais e a e população indígena são processos que não se dão ao acaso, sendo
necessário entender os interesses que motivam a ação dos agentes externos envolvidos. A
distinção do autor entre “fronteira demográfica” e “fronteira econômica” leva-o a concluir que
a faixa situada entre essas duas fronteiras – o sertão – é a área onde tem lugar,
preferentemente, o conflito.

De fato, a documentação sobre os aldeamentos no Ceará, que se situam na faixa intermediária


do sertão entre o leste pernambucano e o meio-norte maranhense, mostra que a política
indigenista no sertão, no final do domínio colonial, tinha como principal objetivo submeter os
índios ao trabalho compusório. A mão-de-obra indígena foi largamente utilizada no Ceará,
sobretudo entre 1780 e 1820, para atender à demanda dos produtores de algodão para o
mercado externo. A população indígena foi alvo de intenso controle nesse período, com a
justiça sendo invocada continuamente para evitar a fuga das aldeias, os motins e rebeliões por
parte dos índios, que resistiam à submissão (Porto Alegre, 1992).

A documentação inédita, recentemente localizada no Arquivo Público do Estado do Ceará,


pela pesquisa do Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em Arquivos
Brasileiros, revela que a administração local continuou a usar leis do diretório pombalino,
mesmo depois de sua revogação em 1796, para tomá-las como base de autoridade e
legitimidade na dominação dos índios aldeados. Os índios do Ceará permaneceram sob a
tutela do diretório até 1824, sendo abundante a correspondência das câmaras sobre aluguel de
índios, cartas de doação de índios escravos, prisões e violência policial contra os índios, que
recorriam à fuga das aldeias e à deserção em massa para escapar ao destino de serem trataos
como escravos.

PERFIL DEMOGRÁFICO DOS NÚCLEOS POPULACIONAIS

As quatro capitanias do Nordeste tinham em 1777 uma população de 363.238 habitantes, o


que equivalia a aproximadamente 25% da população do país, calculada em 1.505.706
habitantes (Alden, 1963:190).

Essa população distribuía-se muito desigualmente pelo território: Pernambuco abrigava a


maior parte dos habitantes (62,3%), enquanto na Paraíba vivia 14% da população, no Rio
Grande do Norte 6,7% e no Ceará 17%.

A maior parte dos habitantes vivia, ainda, ao longo da estreita faixa do litoral que formava a
Zona da Mata, onde o povoamento era praticamente contínuo desde Natal, no Rio Grande do
Norte, até Penedo, nas margens do rio São Francisco, atual Estado de Alagoas. Na área mais
extensa do sertão, que corresponde à 50% da região, incluindo quase todo o Ceará, Paraíba e
Rio Grande do Norte e grande parte de Pernambuco, a dispersão era maior e a densidade
demográfica bem inferior à Zona da Mata.

A densidade populacional era elevada para a época, nos principais centros urbanos de
Pernambuco, como Recife (18.053 habitentes), Goiana (17.038), Tracunhaém (13.049), Luz
(11.212 ), Cabo (9.952), Olinda (9.580), Ipojuca (9.047), Serinhaém (8.919), Una (7.143),
Jaboatão (7.461) e Igaraçu (7.158).

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Na Paraíba, a maior concentração demográfica se dava na cidade da Paraíba (17.425), vindo a
seguir Mamanguape (8.328), Pombal (7.514), Taipu (4.270) e Seridó (3.382).

No Rio Grande do Norte a população urbana era menor. Os principais núcleos eram Assu
(4.277), São José (3.550), Natal (3.221), Pau dos Ferros (3.118) e Goianinha (3.066).

No Ceará a densidade urbana também era baixa. A população se distribuía com maior
uniformidade pelo sertão, em núcleos de porte médio para os padrões da época, tendo como
principais vilas Aracati (6.863). Sobral (6.089), Icó (6.028), Viçosa (4900), Cariris Novos
(4.336), Inhamuns (4.345), Aquirás (3.642) e Fortaleza (3.132).

A distribuição da população por sexo achava-se relativamente equilibrada, com um pequeno


excedente masculino na Paraíba e Rio Grande do Norte e um excedente feminino do Ceará.

Distribuição da População por Sexo – 1977


Masculino % Feminino % Total População
Pernambuco 112.830 49,86 113.418 50,12 226.248
Paraíba 26.182 51,16 24.987 48,83 51.169
Rio Gde. Norte 12.827 52,68 11.520 47,31 24.347
Ceará 29.615 48,17 31.859 51,82 61.474
Total 181.454 49,95 181.784 50,04 363.238

A família nordestina tinha, em média, cerca de seis indivíduos, sendo 5,87 o número médio de
habitantes por domicílio, o que não se distanciava muito da média da família brasileira, de
aproximadamente cinco habitantes por “fogo” 9Alden, 1963:200).

É importante ressaltar as diferenças nos padrões de povoamento das duas grandes zonas
geográficas e humanas: Mata açucareira e Sertão pecuário, que se revelam nitidamente no
arranjo domiciliar . O número de habitantes por “fogo” era mais alto no Rio Grande do Norte
e Ceará, de povoamento mais recente, com grande dispersão dos moradores por todo o
território, vivendo agrupados em um número menor de domicílios. Em Pernambuco e na
Paraíba o povoamento era mais denso na faixa litorânea, de ocupação mais antiga, onde as
unidades familiares se multiplicavam , com menor concentração de moradores por domicílio.

Embora não haja dados sobre a composição familiar dos “fogos”, o equilíbrio quanto à
presença de homens e mulheres na população permite inferir uma organização social
estruturada dentro do modelo em que a família nuclear ocupa lugar central.

Número de fogos Total População Habitantes por fogo


Pernambuco 40.012 226.248 5,65
Paraíba 8.405 51.169 6,08
Rio Gde. Norte 3.630 24.347 6,70
Ceará 9.804 61.474 6,27
Total 61.851 363.238 5,87

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Esse equilíbrio contrasta com a excepcionalidade das frentes de expansão da pecuária do
século XVII e início do século XVIII, onde a presença das mulheres era reduzidíssima, com
predomínio quase absoluto de homens vaqueiros nas fazendas de gado, poucos casais
constituídos e um número muito pequeno de crianças . No final do século XVIII, a fronteira
móvel da pecuária extensiva avançava para o Piauí e ainda acusava um considerável
excedente de homens na população. Mesmo assim, os domicílios piauienses com família
conjugal já eram predominantes (50,3%), vindo a seguir os domicílios com famílias múltiplas
(16,2%), formados de dois, três ou quatro casais não aparentados vivendo numa mesma casa.
Os domicílios com família extensa eram menos freqüentes (6,7%), sendo o padrão mais
comum desta categoria a convivência de sobrinhos ou sobrinhas junto com seus tios, com ou
sem primos, ou famílias extensas ascendentes, representadas exclusivamente por sogras. Os
domicílios com apenas um morador eram raros e viver isoladamente, mesmo num núcleo
urbano, representava uma escolha excepcional (Mott, 1978:1206-7).

Outras inferências sobre o predomínio da família nuclear podem ser feitas a partir do perfil de
idade da população. O grande número de crianças e jovens revela altas taxas de fecundidade e
crescimento demográfico. O elevado índice de população de idade inferior a 15 anos, aliado
ao equilíbrio da presença de homens e mulheres na população, reforça a suposição de que a
família conjugal, composta do casal e seus filhos vivendo em um domicílio comum, constituía
o modelo predominante de organização familiar.

Infelizmente, a distribuição por faixa etária dos censos apresenta o problema de dividir os
grupos de idade para os dois sexos em faixas diferentes, impossibilitando a sua comparação.
Enquanto o censo de 1777 agrupa as mulheres adultas entre 14 e 50 anos, os homens adultos
são agrupados entre 15 e 60 anos. Apesar dessa limitação, o grande número de adultos dos
dois sexos revela que o tamanho e a estrutura da família correspondiam às imposições da vida
produtiva, com uma proporção elevada de indivíduos aptos para o trabalho.

Os dados são suficientes para mostrar a importância da família enquanto lugar da divisão
sexual do trabalho, sobretudo no sertão, onde a presença de escravos era pequena e o trabalho
livre enraizava-se na produção doméstica e na divisão do trabalho familiar, que
caracterizavam a organização da vida camponesa no complexo algodoeiro-pecuário (Porto
Alegre, 1987).

A comparação entre as faixas etárias fornece algumas pistas adicionais para o entendimento
da dinâmica do povoamento. No Ceará e Rio Grande do Norte, a proporção de crianças entre
0 e 7 anos era mais elevada que em Pernambuco e na Paraíba, evidenciando uma população
em crescimento mais acelerado no sertão. Por outro lado, a expectativa de vida era superior na
Zona da Mata, com um maior número de mulheres acima de 50 anos e de homens acima de 60
anos.

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Distribuição da População por Idade-1777

0-7 7-15 7-14 15-60 14-50 +60 +50

M F M F M F M F

Pernambuco 26.198 25.069 21.171 17.435 58.194 54.147 7.267 16.767

Paraíba 5.993 5.462 4.668 4.744 12.949 10.986 2.572 3.795

Rio Gde. Norte 3.360 3.093 2.352 2.045 6.339 5.096 776 1.286

Ceará 7.986 7.648 6.138 6.369 14.043 15.460 1.448 2.382

Total 43.537 41.272 34.329 30.593 91.525 85.689 12.063 24.230

As taxas de natalidade e mortalidade também indicam um maior crescimento vegetativo da


população no sertão. Esse dado corrobora as teses de que a pecuária favoreceu a expansão
demográfica, em virtude do acesso ã terra, que era abundante, e de uma alimentação rica em
proteínas. No Ceará, onde o criatório já ocupava a maior parte das terras, no final do século
XVIII, além da carne de gado, a população criava animais de pequeno porte, como galinhas,
cabras, ovelhas e porcos tendo uma dieta alimentar superior à dos que viviam nas áreas
estritamente açucareiras (Pinheiro, 1990:50).

Total População – Taxa de Natalidade e Mortalidade – 1777


Nascimento % Óbitos % Total População
Pernambuco 8.715 3,86 6.085 2,68 226.248
Paraíba 1.719 3,35 1.018 1,98 51.169
Rio Gde. Norte 990 4,06 383 1,57 24.347
Ceará 2.515 4,09 1.064 1,73 61.474
Total 13.435 3,69 8.550 2,35 363.238

Além de sua importância enquanto grupo social básico, a formação da família sertaneja dentro
dos padrões do catolicismo metropolitano e da catequese representou um poderoso agente
ideológico e modelo cultural para a construção de uma ética positiva do trabalho que
revertesse os efeitos danosos provocados pelo estigma da escravidão e facilitasse a
incorporação do homem pobre livre ao sistema econômico dominante.

Nesse sentido, houve uma forte utilização das estruturas criadas nos aldeamentos indígenas,
tanto jesuíticos como pombalinos, na organização de um mercado de trabalho “livre”
embrionário, isto é, não escravo, no século XVIII. A estratégia de uso das missões como foco
de recrutamento do trabalhador livre pode ser percebida através da posterior atuação de
missionários no século XIX, como o padre Ibiapina , que percorreu o sertão nordestino , entre
1860 e 1875, pregando, construindo igrejas, açudes, cemitérios e casas de caridade (Pinheiro,
1990). Ibiapina foi um dos mais destacados agentes religiosos empenhados na construção de
uma nova ideologia do trabalho. Na sua pregação o trabalho perde o caráter aviltante para se

10
transformar em um meio de salvação das almas e a religião desempenha um papel importante,
como instrumento pedagógico para que a crescente população sertaneja se submetesse ao
trabalho regular e disciplinado.

PERFIL DEMOGRÁFICO DAS ALDEIAS INDÍGENAS

A população indígena aldeada também distribuía-se muito desigualmente nas quatro cpitanias,
só que em sentido inverso ao da população não-indígena. Era muito pequena em Pernambuco
(3,7% da população), um pouco mais numerosa na Paraíba ((10,2%), no Ceará aumentava de
forma significativa , representando 27,9% da população e no Rio Grande do Norte tornava-se
ainda mais elevada, chegando a 35,1% do total da população.

No seu conjunto as freguesias de índios somavam, em 1777, 39.405 indivíduos. A população


indígena mais numerosa vivia no Ceará, representando quase metade desse total. Em 1782 o
número de índios aldeados havia baixado para 34.988, registrando-se um esvaziamento
sensível dos aldeamentos cearenses, onde se centrava o conflito, como já dissemos, em torno
da terra e do trabalho , levando os índios homens adultos que não se submetiam às leis do
diretório a se evadirem em massa das aldeias, para escapar aos rigores das prisão e dos
castigos.

As aldeias indígenas mais populosas eram Viçosa (4.900 habitantes) e Crato (2.792) no
Ceará; São José (3.550) e Estremoz (2.503) no Rio Grande do Norte e; Atalaia (2.782) em
Pernambuco. A população de Arronches, no Ceará, calculada em 6.070 habitantes, está
superestimada, evidenciando um erro nas contagens. Entre as aldeias médias contavam-se
Simbres (1.186) e Alhandra (1.659) em Pernambuco: Conde (1.907), são Miguel (1.386) e
Pliar (1.040 na Paraíba; Arez (1.731) no Rio Grande do Norte; Mecejana (1.538) e Soure
(1.388) no Ceará. A maior parte das aldeias de Pernambuco era bem pequena, Representando
enclaves em meio à densidade populacional da região, como Assunção (650), Águas Belas
(577), Santa Maria (511) e Porto Real (372). Vila Flor (849) era a menor aldeia indígena da
Paraíba e Porto Alegre (765), a menor do Rio Grande do Norte. No Ceará havia quatro
pequenas aldeias: Monte-Mor-o-Novo (710), Monte-Mor-o-velho (264), Arneiroz (203) e
Almofala (198).

Distribuição da População Indígena -1777


Freguesias de índios Total População Porcentagem
Pernambuco 8.519 226.248 3,76
Paraíba 5.182 51.169 10,12
Rio Gde. Norte 8.549 24.347 35,11
Ceará 17.155 61.474 27,90
Total 39.405 363.238 10,84

Distribuição da População Indígena -1782


Freguesias de índios Total População Porcentagem

11
Pernambuco 8.512 229.713 3,70
Paraíba 5.050 52.468 9,62
Rio Gde. Norte 8.182 23.812 34,35
Ceará 13.244 61.408 21,56
Total 34.988 367.401 9,53

População Indígena – unidades familiares – 1777


Número de fogos Total População Habitantes por fogo
Indígena
Pernambuco 2.185 8.519 3,89
Paraíba 1.481 5.182 3,49
Rio Gde. Norte 1.544 8.549 5,53
Ceará 3.449 17.155 4,97
Total 8.659 39.405 4,55

O esvaziamento acelerado dos aldeamentos, no sistema pombalino, torna-se flagrante quando


observamos a estrutura das unidades familiares. O número médio de moradores por domicílio
nas aldeias indígenas é bem inferior ao dos demais núcleos de povoamento. Aquilo que
impropriamente poderia ser chamado de “família indígena” constituía uma unidade composta
em média por 4,5 moradores, não chegando a 4 moradores em Pernambuco e na Paraíba.

O processo de despovoamento das aldeias e desorganização da vida tribal fica mais evidente
quando examinamos a composição por sexo e idade da população indígena. Nas freguesias de
índios a proporção de crianças entre 0 e 7 anos é maior que nas demais freguesias, indicando
que a fecundidade e o crescimento vegetativo da população indígena eram superiores aos da
população não indígena. Entretanto, o número de indivíduos do sexo masculino começa a
diminuir a partir dos sete anos, acentuando-se na idade adulta, justamente a que corresponde à
fase produtiva, dos índios em idade de trabalhar, que, como já dissemos, fugiam das aldeias
para escapar ao trabalho compulsório.

Na comparação entre Mata e Sertão, vemos que a proporção de crianças em Pernambuco é


superior à do Ceará. É possível que essa discrepância não seja real mas sim devido a outros
erros nas contagens no Ceará. O número de mulheres adultas nessa capitania está
visivelmente inflacionado, como podemos comprovar comparando o censo de 1977 ao de
1782, em que a presença de mulheres índias adultas no Ceará é bem mais reduzida.

As taxas de natalidade e mortalidade novamente mostram um crescimento vegetativo superior


da população indígena no Ceará, chamando a atenção a mortalidade de índios em Pernambuco
e na Paraíba.

A limitação dos dados não permite uma análise no interior da organização familiar dos índios
aldeados. Contudo, sabemos que as vilas pombalinas se empenharam deliberadamente em
desorganizar o sistema de parentesco tribal, sob o pretexto de promover a “civilidade dos
índios” ( Leis do Diretório, 1759). O diretório procurava alterar a política dos jesuítas, por
achar que dava demasiada autonomia aos índios, com leis explícitas sobre a Substituição das
moradias coletivas por “casas iguais às dos brancos”, separando as famílias em unidades
conjugais e recomendando que se construíssem “casas decentes para os seus domicílios ,

12
desterrando o abuso e a vileza de viverem em choupanas”. Recomendava, ainda, o casamento
entre brancos e índios e o estabelecimento de moradores não-índios nas aldeias, incentivando
a mestiçagem.

População Indígena por Idade - 1777

0-7 7-15 7-14 15-60 14-50 +60 +50

M F M F M F M F

Pernambuco 1159 1249 795 653 1894 1881 288 600 4136

Paraíba 624 596 494 373 1357 1287 144 307 2619

Rio Gde. Norte 1271 1100 730 682 2111 1917 250 488 4362

Ceará 2011 1970 1229 2110 2364 6391 440 640 6044

Total 5065 4915 3248 3818 7726 11476 1122 2035 17161

População Indígena por Idade - 1782

0-7 7-15 7-14 15-60 14-50 +60 +50

M F M F M F M F

Pernambuco 1133 1304 800 692 1850 1813 290 630 4037

Paraíba 605 617 450 418 1301 1271 166 222 2522

Rio Gde. Norte 1264 1151 723 629 2062 1578 206 569 4255

Ceará 2427 2268 1086 1016 2675 2672 364 736 6552

Total 5429 5340 3059 2755 7888 7334 1026 2157 17402

População Indígena – Natalidade e Mortalidade - 1777


Nascimento % Óbitos % Total População
Pernambuco 495 5,81 443 5,20 8519
Paraíba 226 4,36 314 6,05 5182
Rio Gde. Norte 314 3,67 151 1,76 8549
Ceará 791 4,61 381 2,22 17155
Total 1826 4,63 1289 3,27 39405

A “CULTURA DE CONTATO” E A EMERGÊNCIA DO CABOCLO

13
Se a estreiteza do campo de observação nos impede de apresentar resultados mais
conclusivos, podemos, no entanto, afirmar, sem medo de errar, que a política indigenista da
Segunda metade do século XVIII dedicou-se com particular afinco à desarticulação deliberada
da vida tribal junto aos grupos indígenas que viviam em contato com a população nacional.
Tal política inseria-se em um projeto mais amplo da Coroa portuguesa, visando a
incorporação , no conjunto da população, dos índios remanescentes das guerras e conflitos
que caracterizaram o contato na fase de ocupação do território nos séculos XVI e XVII.

O projeto do Estado português, através das leis do Diretório pombalino, procurou anular as
marcas distintivas das inúmeras etnias em presença, atingindo diretamente sua cultura e a
própria identidade étnica. Impôs a obrigatoriedade da língua portuguesa , proibiu o uso das
línguas nativas, ou mesmo da “língua geral”, obrigou a adoção de sobrenomes portugueses,
forçou a separação das famílias, castigou o não-uso de vestuário, sobretudo por parte das
mulheres, procurando, por meio da desarticulação cultural das sociedades tribais, a melhor
forma de dominá-las.

Quando encontravam resistência, os agentes do governo sufocavam as rebeliões, transferindo


constantemente os índios de uma aldeia para outra. Unificavam aldeias, para que se tornassem
mais populosas, ignorando as diferenças tribais e misturando propositadamente diversas
etnias. Obrigavam que cada aldeia tivesse um mínimo de 150 moradores, facilitando o
estabelecimento de moradores brancos, com direito à posse de terra. Recomendavam e
promoviam os casamentos mistos, dando aos índios as mesmas honrarias e títulos concedidos
aos brancos. Enfim, aproveitavam todas as oportunidades para fazer aquilo que o Diretório
chamava de “reforma dos abusos, dos vícios e dos costumes”, na consecução de seus
objetivos.

Todas essas interferências diretas na vida das aldeias certamente impuseram o aceleramento
das transformações na identidade étnica, impossíveis de serem apontadas hoje. Entretanto,
como mostram os resultados desta pesquisa, não resultaram no “desaparecimento” do índio da
região.

A hipótese que levantamos, a partir dos aspectos demográficos analisados, é que se achava em
curso um processo de sobrevivência étnica, já iniciado no período da tutela jesuítica,
construído através da substituição gradativa da autonomia das culturas tribais específicas por
algo que pode ser chamado de uma “cultura de contato”. Germinada no interior dos
aldeamentos, a dinâmica cultural do contato expandiu-se para fora desses limites controlados
e mais visíveis, através da dispersão dos povos indígenas pelo sertão, incorporando mudanças
e reproduzindo continuidades.

Utilizamos o conceito de “cultura de contato” no sentido empregado por Moreira Neto, para
designar o modelo adotado nos núcleos jesuíticos do Guaíra e do Alto Uruguai e repetido na
Amazônia, cujo produto final é o “tapuio”:

“a singularidade cultural do tapuio é menos o produto da preservação de uma cultura


índigena dominante, que do processo inverso de perda da identidade étnica, substituída

14
por uma cultura compósita, uma espécie de cultura de contato feita frutificar pelas
missões, e que não podia geralmente ser referida a nenhuma cultura indígena em
particular, embora de muitas delas, do mesmo modo que a tradição cultural européia,
houvesse herdado, redefinido e incorporado elementos” (Moreira Neto, 1988:46).

O tapuio, esse índio genérico destribalizado, encontra seu duplo no “caboclo”, tantas vezes
identificado pelos antropólogos nas pesquisas sobre as “frentes de expansão”, e é esse
caboclo que vamos encontrar em gestação no Nordeste, nesse momento. O tapuio/caboclo
surge, historicamente, onde a colonização se fez com o uso intensivo da população indígena e
presença diminuta de colonos brancos e onde a mestiçagem ganhou terreno rapidamente,
assinala Moreira Neto. Caso, precisamente, do sertão nordestino no final do século XVIII, que
concentrava uma massa ainda considerável de índios, poucos escravos e uma economia em
expansão necessitando de mão de obra.

A nosso ver, contudo, a “cultura de contato”, resultante da presença ainda forte de povos
indígenas vivendo em pequenos enclaves em meio à população regional cada vez mais
numerosa, não se configura de modo unilateral imposição do branco sobre o índio. Não se
trata de mera negação do domínio instrumental e normativo de uma cultura e sua substituição
deliberada por uma mistura de outras tradições culturais. Tomemos cuidado para não deslizar
novamente para as teses de “reação vegetal do índio ao branco”, deixando perceber o caráter
dinâmico da mudança cultural e o papel ativo do próprio índio nesse processo.

Retomando as hipóteses de Florestan Fernandes, pensamos que a “cultura de contato” só pode


se desenvolver ali onde existe flexibilidade e fluidez nos grupos sociais em presença. Ela deve
ser buscada sobretudo, na capacidade que as sociedades tribais demonstram em seu sistema
organizatório de se adaptar ao contato e insistir em permanecer no local de origem,
preservando de alguma forma sua identidade mesmo deprivadas.

A flexibilidade, fluidez e capacidade de sobrevivência diante das transformações se traduzem,


num primeiro patamar, no padrão de reprodução demográfica : taxas elevadas de fecundidade,
crescimento vegetativo, alto número de crianças e jovens nas aldeias e baixa taxa de
mortalidade.

Naturalmente, as condições adversas do contato e seus efeitos desagregadores sobre a


organização tribal não devem ser minimizados. Tias fatores podem, também, ser avaliados
através dos dados censitários, como se observa, por exemplo, na rápida diminuição do número
de homens, tanto jovens como adultos.

Podemos concluir, portanto, que, apesar do esvaziamento progressivo das aldeias, uma parte
dos índios do Nordeste conseguiu permanecer no seu local de origem. A perda de visibilidade,
o chamado “desaparecimento”, guarda uma relação direta com a emerg6encia da categoria
denominada “caboclo”, produto da dinâmica cultural do contato. Buscando formas variadas
de preservar sua unidade, os povos indígenas remanescentes na região valeram-se da dinâmica
da “cultura de contato” para sobreviver. E souberam agir com eficácia em determinados
momentos, apoiando-se na identidade étnica, para continuar a viver em suas terras, pelo
menos até meados do século XIX, quando novas pressões ameaçaram extinguir
definitivamente a maioria das aldeias.

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15
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APÊDICE

FREGUESIAS DO NORDESTE – POPULAÇÃO EM 1777

PERNAMBUCO

1. Olinda 9.580
2. S. Pedro Mártir 1.534
3. Recife 18.053
4. Várzea 4.491
5. S. Lourenço da Mata 6.886
6. Tracunhaém 13.049
7. Luz 11.212
8. Santo Antão 4.892
9. Jaboatão 7.461
10. Moribeca 6.525
11. Cabo 9.952
12. Ipojuca 9.047
13. Serinhaém 8.929
14. Una 7.143
15. S. Bento do Porto Calvo (AL) 2.938
16. Porto Calvo (AL) 4.278
17. Camaragibe (AL) 5.477
18. Alagoa do Norte (AL) 5.103
19. Vila das Alagoas (AL) 5.892
20. S. Miguel das Alagoas (AL) 4.347
21. Penedo (AL) 5.488
22. Porto da Folha (SE) 2.671
23. Cabrobó 4.755
24. Limoeiro* 252
25. Escada* 530
26. Atalaia* 2.782
27. Porto Real (AL)* 372
28. Águas Belas* 577
29. Simbres* 1.186
30. Assunção* 650
31. Santa Maria* 511
32. N. S. do Ó do Meirin (AL) 1.535
33. Poxin (AL) 2.198
34. Tacratu 1.720
35. Bom Jardim 4.440

17
36. Bezerros 1.299
37. Garanhuns 3.341
38. Maranguape 2.280
39. Igaraçu 7.158
40. Itamaracá 5.454
41. Goiana 17.038
42. Tijucopapo 3.374
43. Taquara 3.722
44. Alhandra (PB)* 1.659
45. També 4.467
Total 226.248

PARAÍBA

46. Cidade da Paraíba 17.425


47. Mamanguape 8.328
48. Vila do Conde* 1.907
49. Pilar* 1.040
50. Bahia da Traição de S. Miguel* 1.386
51. Vila Flor (RN)* 849
52. Taipu 4.270
53. Cariri Velho 2.693
54. Campina Grande 2.365
55. Pombal 7.514
56. Seridó 3.382
Total 51.159

RIO GRANDE DO NORTE

57. Cidade do Rio Grande 3.221


58. Arez* 1.731
59. S. José* 3.550
60. Estremoz* 2.503
61. Porto Alegre* 765
62. Goianinha 3.066
63. Assu 4.277
64. Apodi 2.116
65. Pau dos Ferros 3.118
Total 24.347

CEARÁ
66. Aquirás 3.642
67. Soure* 1.388
68. Messejana* 1.538
69. Arronches* 6.070
70. Crato* 2.792
71. Monte-Mor-o-Velho* 264
72. Monte-Mor-o-Novo* 710

18
73. Arneirós* 203
74. Viçosa* 4.900
75. Fortaleza 3.132
76. Aracati/Russas 6.863
77. Quixeramobim 2.466
78. Icó 6.028
79. Cariris Novos 4.336
80. Amontada 1.632
81. Inhamuns 4.345
82. Sobral 6.089
83. Granja 2.344
84. Almofala* 198
85. Serra dos Cocos 3.442
Total 62.382

(* freguesias de índios)

MARIA SYLVIA PORTO ALEGRE é graduada em Ciências Sociais e doutora em


Antropologia pela Universidade de São Pulo. É autora de trabalhos sobre arte e cultura
popular, iconografia e uso da imagem nas ciências sociais. Professora do
Departamento de Ciências Sociais e Mestrado de Sociologia da Universidade Federal
do Ceará.

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