Aldeias Indígenas e Povoamento
Aldeias Indígenas e Povoamento
Aldeias Indígenas e Povoamento
São
Paulo: Hucitec/Anpocs, 1993, p. 195-219.
“O açúcar matou o índio”. Assim sintetiza Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, a sua
maneira de entender o impacto da colonização sobre os povos indígenas, afirmando que a
reação ao domínio europeu “foi quase a de pura sensibilidade ou contratilidade vegetal, o
índio retraindo-se ou amarfanhando-se à nova técnica econômica e ao novo regime social e
moral”.
Criticando o padrão descrito por Freyre, de “reação vegetal” do índio ao branco, Florestan
Fernandes retoma essa discussão, para questionar a hipótese subjacente, de que o processo de
destribalização se inscrevia exclusivamente na esfera de influência e de ação dos brancos.
Reformulando o problema, o autor propõe-se discutir a questão do ângulo dos fatores
dinâmicos que operavam a partir da organização social indígena, não sem antes ressaltar,
apropriadamente, que não foi o açúcar que matou o índio, mas sim a exploração territorial e
processos decorrentes, “que expuseram os indígenas, que não conseguiram se retrair além das
fronteiras móveis do sertão, a condições heteronômicas ou anômicas de existências, nas
relações com os portugueses” (Fernandes, 1975: 129).
Invertendo a perspectiva de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes estudou a reação dos povos
Tupi à conquista, nos séculos XVI e XVII, para concluir que há uma conexão entre o padrão
tribal de organização social e as relações com os brancos. O sistema organizatório dos Tupi,
por ter se mantido relativamente rígido e impermeável às pressões externas, forçou-os a duas
únicas opções: fuga ou submissão.
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grande esforço tem sido feito na busca de perspectivas analíticas que dêem conta das relações
de dominação presentes no contato interétnico, considerando duas evidências históricas: a) a
forte pressão integrativa da chamada “sociedade nacional” sobre as sociedades tribais, e b) a
organização tribal como fator ativo na relação entre índios e brancos.
Como sabemos, foi na Zona da Mata, nas áreas propícias à plantação de cana-de-açúcar, que
se instalaram os primeiros núcleos portugueses de povoamento, dando início, logo no século
XVI, ao processo depopulativo dos grupos indígenas que habitavam essa área, através do
extermínio e expropriação de seus territórios. Entretanto, apesar da alta mortalidade, alguns
grupos conseguiram permanecer no local de origem, em situação de contato intenso com a
população regional, enquanto outros fugiram, dispersando-se pelo interior da própria região,
escondendo-se nas serras e nos sertões, até alcançar as fronteiras ainda inabaladas do Piauí e
Maranhão.
Os índios que habitavam o sertão somente foram tirados de seu relativo isolamento pela
expansão pastoril, nos séculos XVII e XVIII, quando então foram igualmente expulsos da
terra ou dizimados. Os remanescentes refugiaram-se nas áreas mais áridas e mais afastadas,
ainda não ocupadas porque destituídas de interesse econômico para o Estado português. Uma
parcela desses índios também permaneceu no local de origem, no sertão já agora ocupado
quase inteiramente com a distribuição de sesmarias, sobrevivendo em contato com o mundo
dos brancos.
Qual era o destino das populações indígenas e como se distribuíram na região, no período
final da colonização portuguesa, quando a maior parte de seus territórios já havia sido
alcançada pelas frentes de expansão?
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Em virtude da limitação das fontes, iremos nos deter, neste trabalho, apenas à análise do perfil
demográfico dos grupos que se enquadram na terceira possibilidade, ou seja, aqueles que
continuaram a viver em suas terras, agora confinadas ao espaço reduzido dos aldeamentos
indígenas. Uma vez que os documentos pesquisados não trazem dados sobre a composição
étnica do total da população, ficamos impedidos, por ora, de qualquer conjetura sobre o
destino dos índios isolados, dispersos na população circundante.
Utilizamos como fonte de pesquisa os censos estatísticos do final do século XVIII e julgamos
que a democracia histórica apresenta-se como ponto de partida para uma revisão histórica do
destino dos povos indígenas do Nordeste. Sua principal contribuição é fornecer novos
indicativos sobre a dinâmica da organização social, através da reconstituição do perfil da
população e descrição de suas características.
AS FONTES
Tomamos como base de estudo o primeiro censo geral de população do Nordeste, realizado
em 1777 em quatro capitanias – Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará,
que contém dados referentes ao tamanho e composição da população por idade, sexo
e domicílio e indica as taxas de natalidade e mortalidade.
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todas as capitanias do Brasil, que determinava a realização do primeiro recenseamento geral
dos habitantes da colônia. A partir dos dois documentos, o governador José César de Meneses
organizou e remeteu a Lisboa, em 1782, a “idéia” da população das quatro capitanias,
acompanhada de um longo relatório.
O censo Nordeste de 1777-1782 é considerado o mais completo registro demográfico de
Brasil do século XVIII (Alden, 1963), já tendo sido objeto de estudos anteriores (Ribeiro
Júnior, 1976; Marcílio, 1986). Entretanto, grande parte dos dados que contém acham-se
inexplorados.
Antes de passarmos à análise das fontes convém apontar alguns problemas, já mencionados
por outros pesquisadores na avaliação dos censos setecentistas no Brasil. O primeiro
problema decorre da própria dificuldade nas contagens, devido à grande dispersão da
população, relativamente pequena, numa extensa área geográfica. Além disso, uma resistência
passiva entre os colonos, receosos de que as informações resultassem em cobranças de
impostos e recrutamento militar, dificultava o trabalho dos recenseadores. O principal
problema, porém, é de ordem técnica e decorre de erros e imprecisões na preparação dos
relatórios, que passavam por muitas mãos, uma vez que eram feitos pelos capitães-gerais e
pelos bispados, a partir da coleta de seus subordinados, principalmente os mestres de campo e
padres das paróquias (Alden, 1963:181-2).
Os três documentos contêm algum tipo de incorreção ou discrepância nos resultados, de tal
forma que a abordagem comparativa fica, em parte, prejudicada. São erros de natureza
variada, que serão apontados ao longo do texto, à medida que forem surgindo. É importante
reconhecer, entretanto que os censos setecentistas fornecem informações extremamente
valiosas, apesar das limitações. Eles são a fonte mais fidedigna de que dispomos, até o
momento, sobre o povoamento da região e distribuição da população. São documentos
básicos, que servem de ponto de partida para uma reavaliação das relações interétnicas no
contexto da história regional, à luz da documentação arquivística inédita que vem sendo
localizada pelas pesquisas mais recentes de fontes sobre a história indígena e do indigenismo
em arquivos brasileiros.
Em fins do século XVIII, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará formavam uma
única capitania, denominada “Capitania de Pernambuco e suas anexas”, que incluía também
parte do que hoje é Alagoas. Paraíba foi anexada administrativamente a Pernambuco em
1755, voltando à autonomia em 1799. O Rio Grande do Norte estava sendo subordinado ao
governo de Pernambuco desde1701, quando se desligou da Bahia, e sua autonomia só foi
concedida em 1820. O Ceará, separado do Maranhão desde 1656, esteve subordinado a
Pernambuco até 1799. Alagoas só foi desmembrada de Pernambuco em 1817. A extensão
territorial sob jurisdição do governador e do bispado de Pernambuco era de 2.203 léguas.
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Ribeiro Júnior mostra que, durante a vigência do monopólio, houve um considerável aumento
da produção açucareira. A produção de couros, resultante do grande rebanho bovino que se
formava na região, também cresceu em ritmo acelerado. O tráfico escravo intensificou-se,
principalmente no intercâmbio com Angola, que, além de fornecer mão-de-obra, consumia
manufaturas e produtos brasileiros, como o tabaco, a aguardente e o açúcar (idem:206).
A dinamização da vida econômica pode ser avaliada pela expansão demográfica. Comparando
documentos de 1762-63 com os censos de 1777 e 1782, Ribeiro Júnior mostra que a
população mais do que duplicou em um período de quinze anos, passando de 169.582
habitantes em 1762-63 para 363.238 habitantes em 1777, atraída pelas novas perspectivas de
sobrevivência e pela possibilidade de um mercado seguro para escoamento de sua produção.
Conforme conclui o autor : “estava no plano da metrópole a promoção demográfica visando
aumentar a produção e, portanto, a arrecadação”(idem:73).
Com essas medidas o governo português buscava, primordialmente, novos meios de submeter
a população livre e a população indígena ao trabalho, para atender a suas próprias
necessidades e às demandas das classes produtoras , e enfrentar o problema de escassez de
mão-de-obra, decorrente do declínio precoce da escravidão. Com efeito, um dos elementos
mais significativos das mudanças que se processavam na sociedade nordestina é a rápida
redução do número de escravos no total da população e a crescente presença de negros e
pardos libertos. Em 1762-63, os escravos representavam apenas 23% da população. Do total
de 120.263 habitantes livres, 10.132 eram negros forros e 13.737 pardos forros, os escravos
libertos representando quase 20% da população livre (idem:73).
Pelo censo de 1777-1782, a população das quatro capitanias distribuía-se por 85 freguesias.
Pernambuco contava com 45 freguesias, Paraíba com 11, Rio Grande do Norte com 9 e Ceará
com 20.
Havia apenas três cidades na região – Olinda, em Pernambuco; Nossa Senhora das Neves, na
Paraíba; e Natal, no Rio Grande do Norte – e 36 vilas, sendo 14 em Pernambuco, 5 na
Paraíba, 4 no Rio Grande do Norte e 13 no Ceará. Isso significa que 46 freguesias, a maior
parte delas em Pernambuco, ficavam totalmente na área rural, desprovidas de núcleos
populacionais que pudessem ser caracterizados como propriamente “urbanos”, uma vez que a
vila era a unidade mais simples da organização administrativa.
Um dado surpreendente é que, das 36 vilas existentes, 22 eram “vilas de índios”, isto é,
antigos aldeamentos missionários fundados e controlados, em sua maioria, pelos jesuítas, que
atuaram no Nordeste de 1549 até 1759, data de expulsão da Companhia de Jesus do Brasil,
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colaborando de forma decisiva para a implantação do projeto colonizador do Estado
português.
Havia, ainda, quatro “lugares de índios”, ou seja, pequenos núcleos de população indígena
que não foram elevados a vila com as reformas de Pombal, sendo três deles em Pernambuco e
um no Ceará, perfazendo um total de 26 freguesias de índios.
O grande número de aldeamentos indígenas é, por si só, um indicativo eloqüente do alto grau
de contato das populações nativas com as frentes de expansão da região e da forte presença
indígena no substrato étnico da população.
Não resta a menor dúvida de que o indigenismo pombalino teve um efeito desagregador maior
sobre a organização tribal que o regime anterior das missões. Visando transformar o índio
numa força de trabalho controlada, as vilas pombalinas do final do século XVIII foram o
locus por excelência da fricção interétnica, o espaço onde se davam os conflitos, centrados na
questão da terra e do trabalho.
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Tomando o conceito de “frente de expansão” do ponto de visa de sua estrutura interna e de
sua dinâmica, Roberto Cardoso de Oliveira (1967) mostra como a desorganização das
sociedades tribais e a e população indígena são processos que não se dão ao acaso, sendo
necessário entender os interesses que motivam a ação dos agentes externos envolvidos. A
distinção do autor entre “fronteira demográfica” e “fronteira econômica” leva-o a concluir que
a faixa situada entre essas duas fronteiras – o sertão – é a área onde tem lugar,
preferentemente, o conflito.
A maior parte dos habitantes vivia, ainda, ao longo da estreita faixa do litoral que formava a
Zona da Mata, onde o povoamento era praticamente contínuo desde Natal, no Rio Grande do
Norte, até Penedo, nas margens do rio São Francisco, atual Estado de Alagoas. Na área mais
extensa do sertão, que corresponde à 50% da região, incluindo quase todo o Ceará, Paraíba e
Rio Grande do Norte e grande parte de Pernambuco, a dispersão era maior e a densidade
demográfica bem inferior à Zona da Mata.
A densidade populacional era elevada para a época, nos principais centros urbanos de
Pernambuco, como Recife (18.053 habitentes), Goiana (17.038), Tracunhaém (13.049), Luz
(11.212 ), Cabo (9.952), Olinda (9.580), Ipojuca (9.047), Serinhaém (8.919), Una (7.143),
Jaboatão (7.461) e Igaraçu (7.158).
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Na Paraíba, a maior concentração demográfica se dava na cidade da Paraíba (17.425), vindo a
seguir Mamanguape (8.328), Pombal (7.514), Taipu (4.270) e Seridó (3.382).
No Rio Grande do Norte a população urbana era menor. Os principais núcleos eram Assu
(4.277), São José (3.550), Natal (3.221), Pau dos Ferros (3.118) e Goianinha (3.066).
No Ceará a densidade urbana também era baixa. A população se distribuía com maior
uniformidade pelo sertão, em núcleos de porte médio para os padrões da época, tendo como
principais vilas Aracati (6.863). Sobral (6.089), Icó (6.028), Viçosa (4900), Cariris Novos
(4.336), Inhamuns (4.345), Aquirás (3.642) e Fortaleza (3.132).
A família nordestina tinha, em média, cerca de seis indivíduos, sendo 5,87 o número médio de
habitantes por domicílio, o que não se distanciava muito da média da família brasileira, de
aproximadamente cinco habitantes por “fogo” 9Alden, 1963:200).
É importante ressaltar as diferenças nos padrões de povoamento das duas grandes zonas
geográficas e humanas: Mata açucareira e Sertão pecuário, que se revelam nitidamente no
arranjo domiciliar . O número de habitantes por “fogo” era mais alto no Rio Grande do Norte
e Ceará, de povoamento mais recente, com grande dispersão dos moradores por todo o
território, vivendo agrupados em um número menor de domicílios. Em Pernambuco e na
Paraíba o povoamento era mais denso na faixa litorânea, de ocupação mais antiga, onde as
unidades familiares se multiplicavam , com menor concentração de moradores por domicílio.
Embora não haja dados sobre a composição familiar dos “fogos”, o equilíbrio quanto à
presença de homens e mulheres na população permite inferir uma organização social
estruturada dentro do modelo em que a família nuclear ocupa lugar central.
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Esse equilíbrio contrasta com a excepcionalidade das frentes de expansão da pecuária do
século XVII e início do século XVIII, onde a presença das mulheres era reduzidíssima, com
predomínio quase absoluto de homens vaqueiros nas fazendas de gado, poucos casais
constituídos e um número muito pequeno de crianças . No final do século XVIII, a fronteira
móvel da pecuária extensiva avançava para o Piauí e ainda acusava um considerável
excedente de homens na população. Mesmo assim, os domicílios piauienses com família
conjugal já eram predominantes (50,3%), vindo a seguir os domicílios com famílias múltiplas
(16,2%), formados de dois, três ou quatro casais não aparentados vivendo numa mesma casa.
Os domicílios com família extensa eram menos freqüentes (6,7%), sendo o padrão mais
comum desta categoria a convivência de sobrinhos ou sobrinhas junto com seus tios, com ou
sem primos, ou famílias extensas ascendentes, representadas exclusivamente por sogras. Os
domicílios com apenas um morador eram raros e viver isoladamente, mesmo num núcleo
urbano, representava uma escolha excepcional (Mott, 1978:1206-7).
Outras inferências sobre o predomínio da família nuclear podem ser feitas a partir do perfil de
idade da população. O grande número de crianças e jovens revela altas taxas de fecundidade e
crescimento demográfico. O elevado índice de população de idade inferior a 15 anos, aliado
ao equilíbrio da presença de homens e mulheres na população, reforça a suposição de que a
família conjugal, composta do casal e seus filhos vivendo em um domicílio comum, constituía
o modelo predominante de organização familiar.
Infelizmente, a distribuição por faixa etária dos censos apresenta o problema de dividir os
grupos de idade para os dois sexos em faixas diferentes, impossibilitando a sua comparação.
Enquanto o censo de 1777 agrupa as mulheres adultas entre 14 e 50 anos, os homens adultos
são agrupados entre 15 e 60 anos. Apesar dessa limitação, o grande número de adultos dos
dois sexos revela que o tamanho e a estrutura da família correspondiam às imposições da vida
produtiva, com uma proporção elevada de indivíduos aptos para o trabalho.
Os dados são suficientes para mostrar a importância da família enquanto lugar da divisão
sexual do trabalho, sobretudo no sertão, onde a presença de escravos era pequena e o trabalho
livre enraizava-se na produção doméstica e na divisão do trabalho familiar, que
caracterizavam a organização da vida camponesa no complexo algodoeiro-pecuário (Porto
Alegre, 1987).
A comparação entre as faixas etárias fornece algumas pistas adicionais para o entendimento
da dinâmica do povoamento. No Ceará e Rio Grande do Norte, a proporção de crianças entre
0 e 7 anos era mais elevada que em Pernambuco e na Paraíba, evidenciando uma população
em crescimento mais acelerado no sertão. Por outro lado, a expectativa de vida era superior na
Zona da Mata, com um maior número de mulheres acima de 50 anos e de homens acima de 60
anos.
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Distribuição da População por Idade-1777
M F M F M F M F
Rio Gde. Norte 3.360 3.093 2.352 2.045 6.339 5.096 776 1.286
Além de sua importância enquanto grupo social básico, a formação da família sertaneja dentro
dos padrões do catolicismo metropolitano e da catequese representou um poderoso agente
ideológico e modelo cultural para a construção de uma ética positiva do trabalho que
revertesse os efeitos danosos provocados pelo estigma da escravidão e facilitasse a
incorporação do homem pobre livre ao sistema econômico dominante.
Nesse sentido, houve uma forte utilização das estruturas criadas nos aldeamentos indígenas,
tanto jesuíticos como pombalinos, na organização de um mercado de trabalho “livre”
embrionário, isto é, não escravo, no século XVIII. A estratégia de uso das missões como foco
de recrutamento do trabalhador livre pode ser percebida através da posterior atuação de
missionários no século XIX, como o padre Ibiapina , que percorreu o sertão nordestino , entre
1860 e 1875, pregando, construindo igrejas, açudes, cemitérios e casas de caridade (Pinheiro,
1990). Ibiapina foi um dos mais destacados agentes religiosos empenhados na construção de
uma nova ideologia do trabalho. Na sua pregação o trabalho perde o caráter aviltante para se
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transformar em um meio de salvação das almas e a religião desempenha um papel importante,
como instrumento pedagógico para que a crescente população sertaneja se submetesse ao
trabalho regular e disciplinado.
A população indígena aldeada também distribuía-se muito desigualmente nas quatro cpitanias,
só que em sentido inverso ao da população não-indígena. Era muito pequena em Pernambuco
(3,7% da população), um pouco mais numerosa na Paraíba ((10,2%), no Ceará aumentava de
forma significativa , representando 27,9% da população e no Rio Grande do Norte tornava-se
ainda mais elevada, chegando a 35,1% do total da população.
As aldeias indígenas mais populosas eram Viçosa (4.900 habitantes) e Crato (2.792) no
Ceará; São José (3.550) e Estremoz (2.503) no Rio Grande do Norte e; Atalaia (2.782) em
Pernambuco. A população de Arronches, no Ceará, calculada em 6.070 habitantes, está
superestimada, evidenciando um erro nas contagens. Entre as aldeias médias contavam-se
Simbres (1.186) e Alhandra (1.659) em Pernambuco: Conde (1.907), são Miguel (1.386) e
Pliar (1.040 na Paraíba; Arez (1.731) no Rio Grande do Norte; Mecejana (1.538) e Soure
(1.388) no Ceará. A maior parte das aldeias de Pernambuco era bem pequena, Representando
enclaves em meio à densidade populacional da região, como Assunção (650), Águas Belas
(577), Santa Maria (511) e Porto Real (372). Vila Flor (849) era a menor aldeia indígena da
Paraíba e Porto Alegre (765), a menor do Rio Grande do Norte. No Ceará havia quatro
pequenas aldeias: Monte-Mor-o-Novo (710), Monte-Mor-o-velho (264), Arneiroz (203) e
Almofala (198).
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Pernambuco 8.512 229.713 3,70
Paraíba 5.050 52.468 9,62
Rio Gde. Norte 8.182 23.812 34,35
Ceará 13.244 61.408 21,56
Total 34.988 367.401 9,53
O processo de despovoamento das aldeias e desorganização da vida tribal fica mais evidente
quando examinamos a composição por sexo e idade da população indígena. Nas freguesias de
índios a proporção de crianças entre 0 e 7 anos é maior que nas demais freguesias, indicando
que a fecundidade e o crescimento vegetativo da população indígena eram superiores aos da
população não indígena. Entretanto, o número de indivíduos do sexo masculino começa a
diminuir a partir dos sete anos, acentuando-se na idade adulta, justamente a que corresponde à
fase produtiva, dos índios em idade de trabalhar, que, como já dissemos, fugiam das aldeias
para escapar ao trabalho compulsório.
A limitação dos dados não permite uma análise no interior da organização familiar dos índios
aldeados. Contudo, sabemos que as vilas pombalinas se empenharam deliberadamente em
desorganizar o sistema de parentesco tribal, sob o pretexto de promover a “civilidade dos
índios” ( Leis do Diretório, 1759). O diretório procurava alterar a política dos jesuítas, por
achar que dava demasiada autonomia aos índios, com leis explícitas sobre a Substituição das
moradias coletivas por “casas iguais às dos brancos”, separando as famílias em unidades
conjugais e recomendando que se construíssem “casas decentes para os seus domicílios ,
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desterrando o abuso e a vileza de viverem em choupanas”. Recomendava, ainda, o casamento
entre brancos e índios e o estabelecimento de moradores não-índios nas aldeias, incentivando
a mestiçagem.
M F M F M F M F
Pernambuco 1159 1249 795 653 1894 1881 288 600 4136
Paraíba 624 596 494 373 1357 1287 144 307 2619
Rio Gde. Norte 1271 1100 730 682 2111 1917 250 488 4362
Ceará 2011 1970 1229 2110 2364 6391 440 640 6044
Total 5065 4915 3248 3818 7726 11476 1122 2035 17161
M F M F M F M F
Pernambuco 1133 1304 800 692 1850 1813 290 630 4037
Paraíba 605 617 450 418 1301 1271 166 222 2522
Rio Gde. Norte 1264 1151 723 629 2062 1578 206 569 4255
Ceará 2427 2268 1086 1016 2675 2672 364 736 6552
Total 5429 5340 3059 2755 7888 7334 1026 2157 17402
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Se a estreiteza do campo de observação nos impede de apresentar resultados mais
conclusivos, podemos, no entanto, afirmar, sem medo de errar, que a política indigenista da
Segunda metade do século XVIII dedicou-se com particular afinco à desarticulação deliberada
da vida tribal junto aos grupos indígenas que viviam em contato com a população nacional.
Tal política inseria-se em um projeto mais amplo da Coroa portuguesa, visando a
incorporação , no conjunto da população, dos índios remanescentes das guerras e conflitos
que caracterizaram o contato na fase de ocupação do território nos séculos XVI e XVII.
O projeto do Estado português, através das leis do Diretório pombalino, procurou anular as
marcas distintivas das inúmeras etnias em presença, atingindo diretamente sua cultura e a
própria identidade étnica. Impôs a obrigatoriedade da língua portuguesa , proibiu o uso das
línguas nativas, ou mesmo da “língua geral”, obrigou a adoção de sobrenomes portugueses,
forçou a separação das famílias, castigou o não-uso de vestuário, sobretudo por parte das
mulheres, procurando, por meio da desarticulação cultural das sociedades tribais, a melhor
forma de dominá-las.
Todas essas interferências diretas na vida das aldeias certamente impuseram o aceleramento
das transformações na identidade étnica, impossíveis de serem apontadas hoje. Entretanto,
como mostram os resultados desta pesquisa, não resultaram no “desaparecimento” do índio da
região.
A hipótese que levantamos, a partir dos aspectos demográficos analisados, é que se achava em
curso um processo de sobrevivência étnica, já iniciado no período da tutela jesuítica,
construído através da substituição gradativa da autonomia das culturas tribais específicas por
algo que pode ser chamado de uma “cultura de contato”. Germinada no interior dos
aldeamentos, a dinâmica cultural do contato expandiu-se para fora desses limites controlados
e mais visíveis, através da dispersão dos povos indígenas pelo sertão, incorporando mudanças
e reproduzindo continuidades.
Utilizamos o conceito de “cultura de contato” no sentido empregado por Moreira Neto, para
designar o modelo adotado nos núcleos jesuíticos do Guaíra e do Alto Uruguai e repetido na
Amazônia, cujo produto final é o “tapuio”:
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por uma cultura compósita, uma espécie de cultura de contato feita frutificar pelas
missões, e que não podia geralmente ser referida a nenhuma cultura indígena em
particular, embora de muitas delas, do mesmo modo que a tradição cultural européia,
houvesse herdado, redefinido e incorporado elementos” (Moreira Neto, 1988:46).
O tapuio, esse índio genérico destribalizado, encontra seu duplo no “caboclo”, tantas vezes
identificado pelos antropólogos nas pesquisas sobre as “frentes de expansão”, e é esse
caboclo que vamos encontrar em gestação no Nordeste, nesse momento. O tapuio/caboclo
surge, historicamente, onde a colonização se fez com o uso intensivo da população indígena e
presença diminuta de colonos brancos e onde a mestiçagem ganhou terreno rapidamente,
assinala Moreira Neto. Caso, precisamente, do sertão nordestino no final do século XVIII, que
concentrava uma massa ainda considerável de índios, poucos escravos e uma economia em
expansão necessitando de mão de obra.
A nosso ver, contudo, a “cultura de contato”, resultante da presença ainda forte de povos
indígenas vivendo em pequenos enclaves em meio à população regional cada vez mais
numerosa, não se configura de modo unilateral imposição do branco sobre o índio. Não se
trata de mera negação do domínio instrumental e normativo de uma cultura e sua substituição
deliberada por uma mistura de outras tradições culturais. Tomemos cuidado para não deslizar
novamente para as teses de “reação vegetal do índio ao branco”, deixando perceber o caráter
dinâmico da mudança cultural e o papel ativo do próprio índio nesse processo.
Podemos concluir, portanto, que, apesar do esvaziamento progressivo das aldeias, uma parte
dos índios do Nordeste conseguiu permanecer no seu local de origem. A perda de visibilidade,
o chamado “desaparecimento”, guarda uma relação direta com a emerg6encia da categoria
denominada “caboclo”, produto da dinâmica cultural do contato. Buscando formas variadas
de preservar sua unidade, os povos indígenas remanescentes na região valeram-se da dinâmica
da “cultura de contato” para sobreviver. E souberam agir com eficácia em determinados
momentos, apoiando-se na identidade étnica, para continuar a viver em suas terras, pelo
menos até meados do século XIX, quando novas pressões ameaçaram extinguir
definitivamente a maioria das aldeias.
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PERNAMBUCO
1. Olinda 9.580
2. S. Pedro Mártir 1.534
3. Recife 18.053
4. Várzea 4.491
5. S. Lourenço da Mata 6.886
6. Tracunhaém 13.049
7. Luz 11.212
8. Santo Antão 4.892
9. Jaboatão 7.461
10. Moribeca 6.525
11. Cabo 9.952
12. Ipojuca 9.047
13. Serinhaém 8.929
14. Una 7.143
15. S. Bento do Porto Calvo (AL) 2.938
16. Porto Calvo (AL) 4.278
17. Camaragibe (AL) 5.477
18. Alagoa do Norte (AL) 5.103
19. Vila das Alagoas (AL) 5.892
20. S. Miguel das Alagoas (AL) 4.347
21. Penedo (AL) 5.488
22. Porto da Folha (SE) 2.671
23. Cabrobó 4.755
24. Limoeiro* 252
25. Escada* 530
26. Atalaia* 2.782
27. Porto Real (AL)* 372
28. Águas Belas* 577
29. Simbres* 1.186
30. Assunção* 650
31. Santa Maria* 511
32. N. S. do Ó do Meirin (AL) 1.535
33. Poxin (AL) 2.198
34. Tacratu 1.720
35. Bom Jardim 4.440
17
36. Bezerros 1.299
37. Garanhuns 3.341
38. Maranguape 2.280
39. Igaraçu 7.158
40. Itamaracá 5.454
41. Goiana 17.038
42. Tijucopapo 3.374
43. Taquara 3.722
44. Alhandra (PB)* 1.659
45. També 4.467
Total 226.248
PARAÍBA
CEARÁ
66. Aquirás 3.642
67. Soure* 1.388
68. Messejana* 1.538
69. Arronches* 6.070
70. Crato* 2.792
71. Monte-Mor-o-Velho* 264
72. Monte-Mor-o-Novo* 710
18
73. Arneirós* 203
74. Viçosa* 4.900
75. Fortaleza 3.132
76. Aracati/Russas 6.863
77. Quixeramobim 2.466
78. Icó 6.028
79. Cariris Novos 4.336
80. Amontada 1.632
81. Inhamuns 4.345
82. Sobral 6.089
83. Granja 2.344
84. Almofala* 198
85. Serra dos Cocos 3.442
Total 62.382
(* freguesias de índios)
19