Foucault-A Escrita de Si
Foucault-A Escrita de Si
Foucault-A Escrita de Si
1983
A Escrita de Si
I.
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1. (N.A.)Santo Atansio, Vita Antonii (Vie et conduite de notre Saint-Pere Antoine. crite et adresse aux moines habitant en pays tranger. par notre
Saint-Pere Athanase. vque d'Ale.xandrieJ, trad. B. Lavaud, Palis, d. du
Cerf, col. "Foi Viyante", nQ240, reedio 1989, 3~parte, 55: "Consells spirttuels du solitalre ses v1si~eurs", ps. 69- 70.
-(N.T.) Evgno - santo mrtir.
"
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Michel Foucault
- Ditos e Esclitos
1983 - A Esclita de Si
corpo rao de companheiros, seu grau de aplicao aos moVimentos do pensamento, seu papel de prova da verdade. Esses
diversos elementos j se encontram em Sneca, Plutarco,
Marco Aurlio, mas com valores extremamente diferentes e
segundo procedimentos totalmente diversos.
*
Nenhuma tcnica, nenhuma habilidade profissional pode
ser adquirida sem exerccio; no se pode mais aprender a arte
de Viver,a techn tou biou, sem uma asksis que deve ser compreendida como um treino de si por si mesmo: este era um dos
princpios tradicionais aos quais, muito tempo depois, os
pitagricos, os socrticos, os cnicos deram tanta importncia. Parece que, entre todas as formas tomadas por esse treino
(e que comportava abstinncias, memorizaes, exames de
conscincia, meditaes, silncio e escuta do outro), a escrita
- o fato de escrever para si e para outro - tenha desempenhado um papel considervel por muito tempo. Em todo caso, os
textos da poca imperial que se relacionam com as prticas de
si constituem boa parte da escrita. preciso ler, dizia Sneca,
mas tambm escrever.2 E Epcteto, que no entanto s deu um
ensino oral, insiste vrias vezes sobre o papel da escrita como
exerccio pessoal: deve-se "meditar" (meletan), escrever (graphein), exercitar-se (gummazein); "que possa a morte me apanhar pensando, escrevendo, lendo". 3 Ou ainda: "Mantenha os
pensamentos noite e dia disposio [prokheiron]; coloque-os
por escrito, faa sua leitura; que eles sejam o objeto de tuas
conversaes contigo mesmo, com um outro [...] se te ocorrer
algum desses acontecimentos chamados indesejveis, encontrar;s imediatamente um alvio no pensamento de que aquilo
no inesperado.',4 Nesses textos de Epcteto, a escrita apare-
2. Sneca, Lettres Lucilius (trad. H. Noblot), Pans, Les Belles Lettres, "Collection des Uruversits de France", 1957, t. m, livro XI, carta 84, 1, p. 121.
3. Epcteto, Entretens (trad. J. Souilh), Pans, Les Belles Lettres, "Collection
des Uruversits de France", 1963, 1. m, livro m, capoV: ceux qui quittent
l'cole pour raisons de sant, lI, p. 23.
4. Ibd., op. cit..livro m, capoXXIV:"No preciso se emocionar com o que no
depende de ns", 103, p. 109.
.!
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ce regularmente associada "meditao", ao exerccio do pensamento sobre ele mesmo que reativa o que ele sabe, toma
presentes um princpio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles, assimila-os, e assim se prepara para encarar o real.
Mas tambm se percebe que a escrita est associada ao exerccio de pensamento de duas maneiras diferentes. Uma toma
a forma de uma srie "linear"; vai da meditao atividade da
escrita e desta ao gummazein, quer dizer, ao adestramento na
situao real e experincia: trabalho de pensamento, trabalho pela escrita, trabalho na realidade. A outra circular: a
meditao precede as notas, que permitem a releitura, que,
por sua vez, revigora a meditao. Em todo caso, seja qual for
o ciclo de exerccio em que ela ocorre, a escrita constitui uma
etapa essencial no processo para o qual tende toda a asksis:
ou seja, a elaborao dos discursos recebidos e reconhecidos
como verdadeiros em princpios racionais de ao. Como elemento de treinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma
expresso que se encontra em Plutarco, uma funo etopoiitica: ela a operadora da transformao da verdade em thos.
Essa escrita etopoiitica, tal como aparece em documentos
dos sculos I e lI, parece estar localizada no exterior das duas
formas j conhecidas e utilizadas para outros fins: os hupomnmata e a correspondncia.
Os hupomnmata
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Por mais pessoais que sejam, esses hupomnmata no devem no entanto ser entendidos como dirios, ou como narrativas de experincia espiritual (tentaes, lutas, derrotas e vitrias)
que podero ser encontradas posteriormente na literatura
crist. Eles no constituem uma "narrativa de si mesmo"; no
tm como objetivo esclarecer os arcana conscientiae, cuja confisso - oral ou escrita - tem valor de purificao. O movimento que eles procuram realizar o inverso daquele: trata-se no
de buscar o indizvel, no de revelar o oculto, no de dizer o
no-dito, mas de captar, pelo contrrio, o j dito; reunir o que
se pde ouvir ou ler, e isso com uma finalidade que nada mais
que a constituio de si.
Os hupomnmata devem estar tambm novamente inseridos no contexto de uma tenso muito evidente na poca: em
uma cultura muito fortemente marcada pela tradicionalidade,
pelo valor reconhecido do j dito, pela recorrncia do discurso,
pela prtica "da citao" sob a chancela da antigidade e da
autoridade se desenvolvia uma tica muito explicitamente orientada para o cuidado de si na direo de objetivos definidos
como: recolher-se em si, atingir a si mesmo, viver consigo
mesmo, bastar-se a si mesmo, aproveitar e gozar de si mesmo.
Tal o objetivo dos hupomnmata: fazer do recolhimento do logos fragmentrio e transmitido pelo ensino, pela escuta ou
pela leitura um meio para o estabelecimento de uma relao
de si consigo mesmo to adequada e perfeita quanto possvel.
Para ns h nisso alguma coisa paradoxal: como se confrontar consigo por meio da ajuda de discursos imemoriais e
recebidos de todo lado? Na verdade, se a redao dos hupomnmata pode efetivamente contribuir para a formao de si
atravs desses logoi dispersos principalmente por trs razes principais: os efeitos de limitao devidos juno da
escrita com a leitura, a prtica regrada do disparate que determina as escolhas e a apropriao que ela efetua.
1) Sneca insiste nisto: a prtica de si implica a leitura,
pois no se poderia extrair tudo do seu prprio mago nem se
prover por si mesmo de princpios racionais indispensveis
para se conduzir: guia ou exemplo, a ajuda dos outros necessria. Mas no preciso dissociar leitura e escrita; deve-se
"recorrer alternadamente" a essas duas ocupaes, e "moderar uma por intermdio da outra". Se escrever muito esgota
(Sneca pensa aqui no trabalho do estilo), o excesso de leitura
dispersa: "Abundncia de livros. conflitos da mente."? Quan, do se passa incessantemente de livro a livro. sem jamais se
deter. sem retomar de tempos em tempos colmia com sua
proviso de nctar. sem conseqentemente tomar notas. nem
organizar para si mesmo. por escrito. um tesouro de leitura.
arrisca-se a no reter nada. a se dispersar em pensamentos
diversos. e a se esquecer de si mesmo. A escrita. como maneira de recolher a leitura feita e de se recoll).er nela, um exerccio racional que se ope ao grande defeito da stultitia.
possivelmente favorecida pela leitura interminvel. A stultitia
se define pela agitao da mente. pela instabilidade da ateno, pela mudana de opinies e vontades. e conseqentemente pela fragilidade diante de todos os acontecimentos que
podem se produzir; caracteriza-se tambm pelo fato de dirigir
a mente para o futuro. tomando-a vida de novidades e impedindo-a de dar a si mesmo um ponto fixo na posse de uma verdade adquirida.8 A escrita dos hupomnmata se ope a essa
disperso fixando os elementos adquiridos e constituindo de
qualquer forma com eles "o passado", em direo ao qual
sempre possvel retomar e se afastar. Essa prtica deve ser
encadeada a um tema muito comum na poca; de qualquer
maneira, ele comum moral dos esticos e dos epicuristas: a recusa de uma atitude de pensamento voltada para o futuro (que. devido sua incerteza, suscita a inquietude e a
agitao da alma) e o valor positivo atribudo posse de um
passado. do qual se pode gozar soberanamente e sem perturbao. A contribuio dos hupomnmata um dos meios pelos
quais a alma afastada da preocupao com o futuro. para
desvi-Ia na direo da reflexo sobre o passado.
2) Entretanto. se ela permite se opor disperso da stultitia, a escrita dos hupomnmata tambm (e deve permanecer)
uma prtica regrada e voluntria do disparate. Ela uma escolha de elementos heterogneos. Nisso ela se ope ao trabalho do gramtico que procura conhecer uma obra em sua
totalidade ou todas as obras de um autor; ela tambm se ope
ao ensino dos filsofos de profissO que reivindicam a unidade
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9. (N.A.) Epcteto, Entretiens, op. cit.. 1943, t. lI. livro I, capo XVII: "De Ia ncessit de Ia logique". 11-14, p. 65.
10. (N.A.) Sneca, Lettres Lucilius. op. cit., t. I, livro I. cartas 2, 5, p. 6; 3,
6, p. 9; 4, 10, p. 12; 7, 11. ps. 21-22; 8. 7-8, p. 24 etc.
11. (N.A.) Ibid.. carta 2, 4-5. p. 6.
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lado,-de unificar esses fragmentos heterogneos pela sua subjetivao no exerccio da escrita pessoal. Sneca compara essa
unificao, de acordo com metforas muito tradicionais, quer
coleta do nctar pelas abelhas, quer digesto dos alimentos, ou ainda adio de algarismos formando uma soma:
"No soframos quando nada daquilo que entra em ns permanece intacto, por medo de que elejamais seja assimilado. Digiramos a matria: caso contrrio, el~ entrar em nossa
memria, no em nossa inteligncia [in memoriam non in ingeniumJ. Unamo-nos cordialmente aos pensamentos do outro e
saibamos faz-Ios nossos, visando a unificar cem elementos
diversos tal como a adio faz, de nmeros isolados, um nmero nicO."12O papel da escrita constituir, com tudo o que
a leitura constituiu, um "corpo" (quicquid lectione collectum
est, stUus redigat in corpus). E preciso compreender esse corpo no como um corpo de doutrina, mas sim - segundo a metfora da digesto, to freqentemente evocada - como o
prprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas
se apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita transforma a
coisa vista ou ouvida "em foras e em sangue" (in vires, in sanguinem). Ela se toma no prprio escritor um princpio de ao
racional.
Mas, inversamente, o copista cria sua prpria identidade
atravs dessa nova coleta de coisas ditas. Nessa mesma carta
84 - que constitui uma espcie de pequeno tratado das relaes entre leitura e escrita - Sneca se detm por um instante
no problema tico da semelhana, da fidelidade e da originalidade. No se deve, explica, elaborar o que se guarda de um
autor, de maneira que este possa ser reconhecido; no se trata
de criar, nas notas que se toma e na maneira com que se reconstitui por escrito o que se leu, uma srie de "retratos" reconhecveis, porm "mortos" (Sneca se refere aqui quelas
galerias de retratos atravs das quais se atestava seu nascimento, se valorizava seu status e se marcava sua identidade
em relao aos outros). sua prpria alma que preciso criar
no que se escreve; porm, assim como um homem traz em seu
rosto a semelhana natural com seus ancestrais, tambm
12. (NA) Ibid., op. cit.. t. m. livro XI. carta 84. 6-7. p. 123.
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A correspondncia
do Peri phuses
de Epicuro
- que
deve
servir a Pythoc1es de material para ser memorizado e de suporte para sua meditao.
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17. (NA) Ibid., op. cit., 1. 1, livro IV, carta 34, 2, p. 148.
18. (NA) Ibid., op. cit., t. IV, livro XVIll, carta 109, 2, p. 190.
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]1
."
19. (NA) Ibid.. op. cit.. t. I. livro IV. carta 40. 1, p. 161.
20. (NA) Demtrio de Falero. De elocutione. IV. 223-225. (De l'locution.
trad. E. Durassier. Paris. Firmin Didot. 1875. ps. 95-99 (N.E.).)
21. (NA) Sneca, ibid.. op. cit.. t. m. livro X. carta 83. 1, p. 110.
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duzir conselhos de dieta considerados teis para o seu correspondente.22 s vezes, trata-se tambm de lembrar os efeitos
do corpo na alma, a ao desta no corpo, ou a cura do primeiro pelos cuidados dispensados segunda. Assim, a longa e
importante carta 78 a Lucilius: ela dedicada em sua maior
parte ao problema do "bom uso" das doenas e do sofrimento;
mas comea com a lembrana de uma grave enfermidade de
juventude sofrida por Sneca, que ft:a acompanhada de uma
crise moral. Sneca conta, a respeito' do "catarro", dos "pequenos acessos de febre" de que Lucilius se queixa, que ele tambm os experimentou, muitos anos antes: "No incio no
estava preocupado com eles; minha juventude tinha ainda a
fora de resistir s crises e de resistir bravamente s diversas
formas do mal. Mais tarde cheguei ao ponto em que toda minha pessoa se fundia em catarro e em que me vi reduzido a
uma extrema magreza. Tomei inmeras vezes a brusca resoluo de acabar com a existncia, mas uma considerao me
deteve: a idade avanada de meu pai." O que lhe proporcionou
a cura foram os remdios da alma; entre eles os mais importantes foram "os amigos, que o encorajavam, o vigiavam, conversavam com ele, e assim lhe traziam alvio".23 H tambm
casos em que as cartas reproduzem o movimento que levou de
uma impresso subjetiva a um exerccio de pensamento. Testemunha o passeio-meditao contado por Sneca: "Para mim
era indispensvel agitar o organismo, caso a blis se alojasse
em minha garganta, para faz-Ia descer, caso, por qualquer
motivo, o ar estivesse muito denso [em meps pulmes], para
que ele fosse rarefeito por um sacolejo com o qual eu me sentisse melhor. Por esse motivo prolonguei uma sada para a
qual a prpria praia me convidava: entre Cumes e a casa de
Servilius Vatia ela se estreitou, e o mar de um lado, e o lago do
outro, a afunilaram como uma estreita calada. Uma tempestade recente havia endurecido a areia [...]. Entretanto, como
de hbito, eu me pusera a olhar em tomo procurando alguma
22. (NA) Plnio, o Jovem, Lettres, livro m. carta 1. (Trad. A.-M. Guillem1n, Paris, Les Belles Lettres, "Collection des Universlts de France", 1927, 1. I. ps.
97-100 (N.E.).)
23. (NA) Sneca, Lettres Lucilius, op. cit., t. m, livro IX, carta 78, 1-4, ps.
71-72.
24. (NA) Ibid., op,'cit., t. 11,livro VI, carta 55, 2-3, ps. 56-57; ou tambm a
carta 57, 2-3, p. 67.
25. (NA) Ibid., op. cit., t. m, livro X, carta 83, 2-3, ps. 110-111.
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26. Sneca. De ira (De Ia colere. trad. A. Bourgery. carta 36. 1-2. in IJialagues, Paris. Les Belles Lettres. "Collection des Universits de France". 1922. t.
I. ps. 102-103).
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27. (NA.) Marco Aurlio. Lettres. livro IV. carta 6. (Trad. A. Cassan. Paris. A.
Levavasseur. 1830. ps. 249-251 (N.E.).)
---
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JFoucault
U4 tica,
Sexualidade,
Po ltica
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FORENSE
UNIVERSITRIA
Traduzido de:
Dils el crils
Ce/ ouvrage. publii dons le cadre du pragramme d'aide Ia publica/ion. biniJicie du sou/ie.n du Mini.,/ire
Franais des Affaires Errangires. de I'Ambassade de France ou Brisi/ er de Ia Maison de France de Rio de
Janeiro.
Este livro, publicado no mbito do programa de panici~
publicao, coutou com o apoio do MiniStrio
Fraucs das Relaes Exteriores, da Embaixada da Frana no Brasil e da Maison de France do Rio de Janeiro.
Ouvrage publii
Franais Chargi
de Ia Cul/ure
- Cen/re
Narional du Livre.
F1!6e
Foucault,
Michel, 1926-1984
03-2557.
COD 194
CDU 1(44)
""""da
sem permiss'o
a rqroduo
Io<a1 ou parcial. de qualqua- fmoa
.'fUS.a
do Edito!' (Lei n' 9.610. de 19.02.98).
ou p<r qualqua-
meio e1etr1ico
ou mecnico,
de So Francisco.
20
e-mail: [email protected]
http://wwwJorenseuniversitaria.com.br
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Prillted ill Brazil