Rua Que Te Quero Criança

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CAPACITAO DE AGENTES DE DESENVOLVIMENTO COMUNITRIO EDUCADORES SOCIAIS

Parceria:
Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento
Secretaria de Justia e Direitos Humanos
Academia de Polcia Militar MG
Corpo de Bombeiros Militar - MG
Programa Paz nas Escolas

RUA QUE TE QUERO CRIANA (*)


- Texto para reflexo e instrumento de trabalho "Bandido de 15 anos caado e morto como bicho de rua."
Esta era a manchete, em letras enormes, do jornal "O Povo", do dia 14 de
junho de 1990, dia santificado, comemorativo do "Corpus Christi".
Li essa manchete, de dentro de um nibus, em uma banca de jornais do
centro de Belo Horizonte, quando me dirigia ao CRHJP para participar de um
seminrio sobre "os meninos de rua". Eu seria um dos palestrantes e o tema central
da discusso era: "O menino de rua: porque um problema?" Em minha cabea
misturavam-se: a manchete do jornal e as idias que eram expostas pelos
participantes.
Quando foi a minha vez de falar, esqueci o que havia preparado e apresentei
as reflexes que se seguem:
Por que as crianas, sempre vtimas, podem e so tratadas como "problema"
por viverem nas ruas?
Por que essas crianas de-e-na rua nos incomodam e nos ameaam tanto?
Por que um jovem de 15 anos pode se tornar um "bicho de rua", como afirma
esse jornal?
Por que? Por que?
A rua e a casa so duas faces de uma mesma moeda. Se completam, mas se
negam; interagem, mas se repelem; se misturam, mas se detestam. Por que?
A casa, ou o lar (como tambm conhecida) o lugar da vida, do sossego, da
harmonia, da paz, enquanto a rua o lugar da luta, da batalha, da peleja, do
trabalho. Ningum diz "vamos luta", ao dirigir-se para casa, mas quando sai s
ruas.
A casa onde vive o conhecido, o lugar onde at os animais tem nome. a
rua o mundo do desconhecido, do "cada um por si", do estranho. Ali no tem
animais, s bichos e, em geral "vira-latas".
A casa representa o que h de positivo na sociedade, enquanto a rua o
lado negativo. por isso que a "mulher de casa" sempre "dona de casa"; a "mulher
da rua", por sua vez, o outro nome que se d a "prostituta" ou a "mendiga".
Em casa s existe "criana", na rua que tem "menor", essa generalizao
preconceituosa e discriminatria que, no satisfeita com seu significado excludente,
gerou
outras
palavras
e
designaes
piores:
"trombadinha",
"pivete",
"marginalzinho"... "bicho de rua".

Assim, esses dois espaos fsicos, sociais e simblicos - a casa e a rua justapostos, complementares, coerentes e com papis sociais bem definidos, ante
nossos conceitos e preconceitos, de repente, se desestruturam diante de algo
ameaador: "o(a) menino(a) de rua". Por que? Por que?
O menino de rua destri, apenas com sua presena fsica, a nossa lgica e
nossa racionalidade fundamentadas nessa dicotomia "casa-rua". De repente, uma
criana, resultante de uma sociedade opressora, injusta e excludente, torna-se um
smbolo ameaador e joga por terra "verdades" incontestveis. Por que? Por que?
Por que o menino e a menina de rua fazem e vivem na rua o que a nossa
lgica insiste em fazer e s admite viver em casa. Por que? Por que?
Porque, na rua, essa criana:
come sem pagar pela comida;
brinca onde no foi feito para brincar;
joga num lugar que no foi feito para se divertir, mas construdo para
caminhar e trabalhar;
dorme sem ter cama;
toma banho sem ter chuveiro;
mora sem ter casa;
anda pendurado em nibus, em vez de sentado;
corre entre os carros e no dentro deles;
por fim, vive onde no se deve (ou pode) viver (como pensa e determina
nossa cultura).
Por isso essa criana uma ameaa. Ela mostra o quanto est na rua a nossa
sociedade. Ela expe as contradies da nossa sociedade moderna, ocidental,
branca, capitalista, crist, individualista e excludente. E isso o que nos incomoda
tanto, a ponto dessas crianas serem tratadas, quase sempre, como "molstia social",
um cncer a ser extirpado.
O remdio tem sido, alm da soluo extrema do extermnio, tirar as
crianas da rua para no nos incomodar com sua presena, ou para no prejudicar
a esttica social-e-urbana de nossas cidades com sua presena indesejvel, seu
cheiro amargo e, principalmente, com sua teimosia em fazer das ruas, casa.
Sacar os meninos da rua no basta nem resolve nada, pois esta no a
soluo para essas crianas, pois isto tem sido feito ao longo da histria, no
pensando nelas (crianas), mas para livrar a cara da sociedade da falncia do seu
modelo de justia social.
Enquanto no formos capazes de mergulhar fundo nas nossas contradies,
como nica condio para enfrent-las e revert-las; enquanto no transformarmos
essa "cultura de rua" e no exorcizarmos essa viso ideologizada e preconceituosa
sobre os "meninos de rua", no estaremos nem arranhando a superfcie deste
problema, por melhor que sejam nossas intenes e aes.
O "menino de rua" no um problema, antes ele soluo, porque ele
parte da soluo, assim como a rua tambm parte da soluo. Se no mudarmos
a rua, se no superarmos a dicotomia casa-rua como opostos entre si, se no
humanizarmos as ruas, se no as transformarmos em espaos de solidariedade
humana, as crianas tambm no mudaro.
Nossa miopia cultural ou nosso medo de realizar o no-feito ainda, estes sim,
so os verdadeiros problemas. Por isso, que falem, que vivam e que sejam as
crianas, todas, sem distino alguma, cidads e sujeitos de direitos da rua, da casa,
da escola, das praas, das cidades... do mundo!
Tio Rocha
Presidente/CPCD

(*) Este artigo foi elaborado a partir de uma exposio oral feita no Seminrio
"Nios de la Calle", promovido pela Fundao W. K. Kellogg, envolvendo tcnicos
especialistas e educadores da Amrica Latina, realizado em Belo Horizonte (MG),
nos dias 14 e 15 de junho de 1990.

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