Rútilo Nada em PDF Publicado Na Revista Mosaicum
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Joalheira da linguagem, Hilda Hilst nos desafia com uma obra ora doce com um afago, ora terrvel como um beijo de sangue. assim que somos confrontados ao primeiro contato com Rtilo Nada. Prosa potica ganhadora do Prmio Jabuti de 1994, fragmentada, composta por uma orquestrao dissonante de vozes, Rtilo Nada se aproxima do teatro do absurdo de Ionesco e do teatro da crueldade de Beckett. Este estudo explora os caminhos obscuros/ luminosos do texto hilstiano buscando seus atravessamentos com os estudos da Ps-modernidade. Palavraschave: Rtilo Nada, ps-modernidade, prosa potica. Abstract:
Resumo:
Hilda Hilst, who is a language jeweller, dares the reader with a work sometimes sweet like a caress, or terrible like a blood kiss. So, we stay face to face with Rtilo Nada, a poetic text, that won the Jabuti Prize, in 1994. Rtilo Nada is a fragmentad work, which is compound of a dissonant orchestration of voices, which approaches it to Ionescos absurd theater and to Becketts cruelty theater. This study explores the unknown/shining ways of Hildas Hilst text, looking for their intersections into the post-modernity.
Renata Bomfim
Henri Heine
Certa vez Hilda Hislt disse em entrevista ao Caderno de literatura brasileira: Toda a minha fico poesia. No teatro, em tudo, sempre o texto potico, sempre (HILST, 1993, p. 39). O percurso potico hilstiano pode ser conhecido e apreciado a partir da vasta obra deixada por esta escritora, que compreende, aproximadamente, cinqenta anos de produo literria que transita entre os gneros da poesia, da msica, da prosa e da dramaturgia. Este ensaio pretende abordar aspectos da ps- modernidade a partir da prosa potica Rtilo Nada, ganhadora do Prmio Jabuti em 1994. Acredito que tais aspectos so fatores importantes, pois fazem com que a obra de Hilda Hilst seja cada vez mais lida e conhecida no s no Brasil como em outros pases.
Rtilo Nada, desde o ttulo, j nos desafia. Insurreto e com uma abstrao quase absurda, a prosa potica nos lana num vazio que reverbera o vazio que existe dentro de cada um de ns. No Dicionrio eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa 1.0, encontramos a palavra rtilo definida como um adjetivo que designa luzente, cintilante, cujo brilho chega a ofuscar, j a palavra nada, descrita como coisa nenhuma, entre outras significaes, encontramos, verdadeira natureza divina concebida como oposio, [...] diferena ou transcendncia absoluta em relao aos seres e a realidade do mundo natural.
Hilda Hislt nasceu em Ja, interior de So Paulo, no dia 21 de abril de 1930. considerada, hoje, uma das mais importantes vozes da literatura brasileira contempornea. A crtica literria Nelly Novaes Coelho, no ensaio intitulado Da Poesia descreve a potica hilstiana como sendo obscura/ luminosa e destaca ainda a paixo desmesurada com que a poeta se entrega, desde sempre, ao corpo-a-corpo com a vida. Para Coelho, a poesia de Hilda Hilst ilumina- se contra o pano de fundo da tortuosa/luminosa/ efmera vida terrena, que se pressente participe de algo imensurvel e eterno, assumindo o papel de buscar Deus nas coisas terrenas (COELHO, 1999, p. 66-71).
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Destas vozes Kod afirma poder ver apenas as caras ptreas, caras granticas, dio e vergonha. Esta passagem da prosa nos instiga a pergunta: estaria este mesmo grupo to sensibilizado se soubesse que ali, um homem chora a morte de seu amante,
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A linguagem se metamorfoseia e experimenta em crculos e espirais, fluindo ora doce com um afago, ora terrvel como um beijo de sangue. Este texto traz variadas possibilidades de leitura, multifacetado e possui uma polifonia que busca capturar as vozes do mundo. Ele nos apresenta uma orquestrao dissonante, onde diferentes vozes e timbres formam um coro que evolui e reproduz o statu quo, como por exemplo, as vozes ouvidas por Lcius Kod no velrio de Lucas, as quais, ele no consegue identificar, mas que, aparentemente, so de pessoas estranhas a ele: coitado, o que foi hein? T demais branco o homem, olha ali, saiu de um velrio, quem que morreu? Foi o filho dele foi? foi a me? [...] ele est desfigurado, olha, olha (HILST, 1993, p. 14).
Conforme Terry Eagleton em As Iluses do Ps-modernismo (1998, p. 37), a histria ps-moderna desconfia de histrias lineares. Assim, Hilda Hilst estrutura Rtilo Nada de forma que sua temporalidade seja no linear, Ela subverte o tempo ordinrio tumultuando as cenas e as falas, os tempos presente-passado-futuro se misturam, resultando em um mosaico que vai sendo construdo numa relao dialtica com o leitor.
No trecho que se segue, o personagem Lcius Kod descreve poeticamente o momento em que se abre para o amor descobrindo suas contradies:
Os personagens Lcius Kod e Lucas experimentam as delcias e as dores da paixo, o desabrochar do amor, e conhecem o alto preo que deve ser pago pela realizao amorosa. A partir da fala destes personagens revelam-se facetas e nuanas do erotismo do texto hilstiano, que busca um para alm do amor orgnico e fsico da sexualidade, um algo mais profundo, um sentido maior para a existncia, um re-ligare, busca Deus.
Hilda Hilst dona de um eu lrico do co, e fazem parte da sua assinatura a polmica, a ousadia e a inquietude, que culminam numa busca ferrenha por configurar Deus. O narrador hilstiano, implacvel e muitas vezes cruel, nos ameaa com suas questes hermticas, filosficas e de alta erudio, como uma esfinge ps-moderna. Em uma escrita onde nada gratuito, onde a palavra cinzelada, Hilda uma artes da linguagem, percorre as dimenses da lngua, deslocando-se sem cerimnia do erudito para o chulo, o baixo calo, propositadamente brincando com as sensaes e emoes do leitor.
namorado de sua filha de 15 anos, que foi induzido ao suicdio pelo pai/av/perverso?
[...] Os atos no podem ficar flutuando, fiapos de paina desgarrados daquela casca to consistente, a casca era firme, abriu-se, o delicado foi se desfazendo, crculos, volutas, assim pelos ares, desfazido. Posso deduzir que escapei da casca consistente que eu estava encerrado ali, no, que o meu corpo era o fruto da paineira, todo fechado, e nem instante abriu-se. Abriu-se por qu? Porque j era noite para mim e aquele era o meu instante de maturao e rompimento. Porque fui atingido pela beleza como se um tigre me lanhasse o peito. O salto. O pnico. O que a beleza? Translcida como se o marfim do jade se fizesse carne, translcido Lucas, intacto, luz sobre os degraus ocres de certa escada na eloqncia da tarde. [...] Vejo-o de costas agora, slido, crvel, nada de anglico ou inefvel, e um novo ou talvez um antigo e insuspeitado Lucius irrompe, dois escuros e contraditrios, aguados e leves, violentos e slidos (HILST, p. 16, - Grifos nossos).
A potncia da escrita hilstiana traduz as inquietudes do nosso tempo e expressa s transformaes e as contradies de uma poca que ainda se configura. Terry Eagleton descreve a ps-modernidade como:
Uma linha de pensamento que questiona as noes clssicas de verdade, razo, identidade e objetividade, a noo de progresso ou emancipao universal, os sistemas nicos, as grandes narrativas, ou os fundamentos definitivos de explicao. [o mundo torna-se] um contingente gratuito, diverso, instvel, imprevisvel, [...] fenmeno to hbrido que qualquer afirmao sobre um aspecto dele, quase com certeza, no se aplicar a outro (EAGLETON, 1998, p. 35).
Rtilo Nada tem uma estrutura literria dinmica: as cenas se entrecruzam, a escrita muitas vezes do tipo telegrfica, que estilhaa as idias, desestruturando-as, adiciona-se uma violncia sem precedentes na prosa brasileira, que revela jogos ideolgicos e de poder que buscam inviabilizar o dilogo e a expresso das alteridades.
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pai de Lcius Kod. Este personagem j desnudado por Kod no incio da narrativa: [...] Lucas, meu amor, meus 35 anos de vida colados a um indescritvel verdugo, algum Humano e h tantos indescritveis Humanos feitos de fria e desesperana, existindo apenas para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia (HILST, 1993, p. 13 - Grifos nossos). O discurso deste personagem totalitrio, intolerante e repressor, e o corpo de Lucas, torna-se lugar privilegiado de enunciao, depositrio dos desejos deste personagem, de Lcius Kod, e de sua filha de 15 anos:
Um ilgico de carne e seda, um conflito esculpido em harmonia, luz dorida sobre as ancas estreitas, o dorso deslizante e rijo, a nuca sumarenta, omoplatas lisas como a superfcie esquecida de um grande lago nas alturas, docilidade e submisso de uma fmea enfim subjugada e aos poucos um macho novamente , altivo e austero, enfiando o sexo na minha boca viscoso. Cintilante. Pela primeira vez o meu olhar encontrava a juno do nojo e da beleza (HILST, 1993 p. 22).
Renata Bomfim
Hilda Hilst faz isso em profuso, em Rtilo Nada o corpo parte importante da trama, desdobrando-se em metforas at ao final: pesadelos da carne, o adorado corpo morto de Lucas, que mesmo morto no se cala, e conta, e denuncia, e fala, transgresso esta possvel apenas na literatura. A morte, um personagem que ronda como uma sombra faminta, a escura e finssima senhora, grande ventre sem decoro [...] recebendo o mundo, migalhas, excrementos, enfim, todos se alimentam do corpo. Em Rtilo Nada h uma busca por respostas para a esquizofrenia psmoderna, a busca pela unidade mtica, pela completude. Percebemos este aspecto na relao entre os personagens Lcius Kod e Lucas:
Roland Barthes levanta a questo: como fazer que o corpo fale?. Ele recorre a um meio tambm utilizado por Bataille, que julga interessante do ponto de vista do trabalho atual sobre o texto, articular o corpo no no discurso, mas na lngua (BARTHES, 2004, p. 306).
O corpo de Lucas a representao da alteridade, ele o outro, o poeta, Orfeu ps-moderno, encantado/ encantando com seu corpo lrico/potico, impiedosamente despedaado pelas bacantes. assim tambm o corpus literrio de Rtilo Nada como um todo, fragmentado, sacrificado, prenhe de transgresso e denuncia da opresso social amorosa, familiar, profissional, etc.
Quem s, Lucas? Inteirissimo poeta, de fiel construo, de realeza at, severo [...] quando vi que no sabia da tua identidade, eras aquele que me mostrava o poema? Muros escuros, tmidos Escorpies de seda No acanhado da pedra. [...] Ou eras o outro no quase escuro do quarto. Tua macia rouquido de uma sonhada mulher, s que no eras uma mulher, eras o meu eu pensando em muitos homens e em muitas mulheres (HILST, 1993 p. 22 - Grifos nossos).
Coellho nos diz que na escrita hilstiana a experincia de comunho com o Outro, a partir do corpo, atinge razes metafsicas do Ser e o faz sentir partcipe da totalidade (COELHO, 1999, p. 74). Terry Eagleton, por sua vez, destacou o corpo
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O prazer voltou com fora total para infestar um radicalismo cronicamente puritano, [...] O corpo- um tema to bvio e inoportuno para ser ignorado sem a menor cerimnia, durante sculos abalou as estruturas de um discurso racionalista enxge, e est no mento, em vias de tornar-se o maior fetiche de todos (EAGLETON, 1998, p. 34).
Dentre os temas que perpassam esta prosa potica encontramos o amor, o homo erotismo, o martrio, a morte, o encantamento, a busca por Deus, muitos deles, recorrentes tambm em outras obras da escritora. Amor e erotismo, em especial, do tnica a Rtilo Nada, e o instinto sexual no corresponde apenas a uma funo orgnica especfica, [...] mas a algo vasto e profundo, [diverso] do que se entende vulgarmente por funo sexual (COELHO,1999, p. 74). Para Hilda Hist, O ertico, quase uma santidade! (HILST, 1999, p. 31). Octvio Paz examina a proximidade entre o erotismo e a poesia, dizendo que o primeiro uma potica corporal, e a segunda uma ertica verbal. Ambos feitos de uma oposio complementar. Para Paz a linguagem composta de sons que emitem sentido, um trao, uma materialidade que d a idia de corpo e possibilita que sejam nomeadas sensaes, que so o que h de mais fugaz e evanescente no indivduo, e o erotismo sexualidade transfigurada em metfora (PAZ, 1994, p. 12 - Grifo nosso).
Em Rtilo Nada a questo da alteridade repensada, o oprimido no um fora, um excludo; pea importante do jogo que atua com fora, no havendo lugar para a figura do coitado.
A metfora um artefato literrio muito utilizado por Hilda Hilst, elas so especialmente luxuosas e cinzeladas com um preciosismo barroco: gritos finos de marfim, musgos finos pendendo dos abismos, areia- anil, ces de gelo, escorpies de seda. As metforas hilstianas tambm possibilitam que o inominvel seja nomeado, dito, muitas vezes gritado:
Os sentimentos vastos no tm nome. Perdas, deslumbramentos, catstrofes do esprito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos no tem boca, fundo de soturnez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto. Inventar palavras, quebr-las, recomp-las , ajustar- me digno diante de tanta ferida, teria sido preciso, Lucas meu amor [...] (HILST, p. 13 - Grifos nossos).
Octvio Paz declara que o significado da metfora ertica ambguo e plural, dizendo coisas diferentes, mas que em todas elas aparecem duas palavras: prazer e morte, para este autor o amor se apresenta na maioria das vezes como uma ruptura, uma violao da ordem social, desafiando costumes e instituies da sociedade (PAZ, 1994, 19-103), tal aspecto pode ser verificado em dilogos entre Lcius Kod e seu pai:
[...] ento, anos de decncia e de luta por gua abaixo e eu um banqueiro, com que cara voc acha que eu vou aparecer diante dos meus amigos, ou voc imagina que ningum sabia, crpula, canalha, tua srdida ligao, e esse moleque bonito era o namoradinho de minha neta, ento vocs combinaram seus crpulas, aquele crapulazinha namorou minha neta para ficar perto de voc. Gosta de cu seu canalha? Gosta de merda? Fez-se tambm de mulherzinha com o moo macho? Ele s pode ter sido teu macho porque teve a Revista Mosaicum , n. 6 - Ago./Dez. 2007 103
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decncia de se dar um tiro na cabea, mate-se tambm seu desgraado mate-se. (HILST, 1993, p. 13-4 - Grifo nosso).
Lcius Kod, encontra em Lucas, Eros, a expresso de uma subjetividade austera. Lucas um jovem de 20 anos, que estuda histria e poeta. Ele escreve sobre muros, Lucas pe os muros em xeque, por meio da poesia. Entendamos estes muros como uma das metforas centrais de Rtilo Nada, que desdobra- se ao final do conto com um poema deixado por Lucas. Otvio Paz alude poesia como sendo
Risadas. Meu pai: pederastas, vadios e vadias, escritorezinhos de merda, articulistas do meu caralho, voc defende esta corja de apartados [...] viciosos, assassinos miserveis e no me venha com discursos, com esse tipo de sensibilidade cretina, ou voc pensa que a ordem se faz com choramingas, com coraezinhos partidos, com tremeliques como que voc pensa que se faz uma fortuna, uma empresa de porte, um banco? Trabalho e sagacidade (HILST, 1993, p.19).
o testemunho dos sentidos. Testemunho verdico: suas imagens so palpveis, visveis e audveis. [...] feita de palavras enlaadas, que permitem reflexos, vislumbres e nuances:[...] A poesia nos tocar o impalpvel e escutar a mar do silncio cobrindo uma paisagem devastada pela insnia. O testemunho potico nos revela outro mundo dentro deste, o mundo outro que este mundo. Os sentidos sem perder seus poderes, convertem-se em servidores da imaginao e nos fazem ouvir o inaudvel e ver o imperceptvel (PAZ, 1994, p. 11 - Grifo nosso).
O banqueiro, pai de Lcius Kod, o outro lado da moeda, no suporta ver o filho inteiro livre, emancipado. Inveja-lhe o estado de liberdade de alma, livre pelo amor, contraditoriamente preso numa armadilha jamais pensada, apaixonado por outro homem. Esta figura emblemtica e autoritria, julga-se dona do poder, podendo arbitrar na vida do filho no apenas no mbito financeiro, mas tambm no afetivoemocional. Este patriarca uma figura contraditria, mas, ao final da narrativa, quando a sua mscara cai, podemos ver o que est por trs, o mais miservel e pobre dos indivduos, cuja nica relao possvel a de dominao e aniquilamento do outro, seu dinheiro no consegue comprar o amor. Otvio Paz define este tipo como libertino, segundo este autor, na libertinagem, a relao ertica est totalmente desvinculada do religioso, este tipo afirma o prazer como nico fim diante de qualquer outro valor como religio e tica, assim:
Lucas uma ameaa ao socialmente institudo, no caso, o capital simblico de honra da famlia convencional, ele pe em xeque tambm, o prprio Lcius Kod, o filho do banqueiro capitalista, o herdeiro, que em inmeras passagens do texto humilhado pelo pai por rejeitar um modo de vida pautado na hipocrisia e na mentira, e por ousar ser ele mesmo.
O Libertino necessita sempre do outro e nisto consiste sua condenao, depende de seu objeto e escravo de sua vitima.
A relao ertico-ideal implica , por parte do libertino, um poder ilimitado sobre o objeto ertico, unido a uma indiferena igualmente sem limites sobre a sua sorte, por parte do objeto- ertico uma complacncia total diante dos desejos do seu senhor (1994, p. 25- 26).
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O jogo ertico desenrola-se: o pai de Lcius Kod contrata dois capangas para espancarem Lucas. Estes personagens, ritualisticamente e com requintes de crueldade, tambm o violentam, deixando Lucas muito ferido. E o corpo da alteridade, representado pelo corpo de Lucas, revela a verdade ao deixar um bilhete para Lcius Kod:
Lcius, Os dois homens me tomaram como duas fomes, duas mandbulas.Um claro de dentes. Sorriam enquanto tiravam as camisas.vagarosamente desabotoaram os botes. Cheguei a sorrir porque os gestos eram como que ensaiados, lentos... lentos... idnticos. Depois os cintos escuros, as fivelas de metal. Depois as calas. Imagine, dobraram as calas, acertaram os vincos, colocaram as calas no espaldar da poltrona. Pensei: eles esto brincando. E disse: vocs esto brincando. Sorriram. O olhar era afvel, meus pulsos amarrados atrs das costas. [...] Vocs s podem estar brincando [eles responderam] pode chamar de brincadeira se quiser garoto (HILST, 1993, p. 23 - Grifo nosso).
Para o libertino, importante saber que o corpo que toca uma sensibilidade e uma vontade que sofre. Estabelece-se um jogo entre vitima e algoz de prazer e de dor. No cerne da libertinagem est o sadomasoquismo que, contraditoriamente, nega a soberania do libertino por tornar este dependente de seu objeto, e nega tambm a passividade da vtima. Paz nos esclarece que [...] A libertinagem contraditria: busca simultaneamente a destruio e a ressurreio do outro (PAZ, 1994, p. 26).
Quando os capangas foram embora, o banqueiro passou para ver o servio, o texto nos revela que o pai de Lcius Kod desliza o dedo ao longo da espinha de Lucas e lhe diz: vai ter tudo comigo , moo. Afaste-se de meu filho, e depois, volta a falar com Lucas: posso te tocar menino? (HILST, 1993, p. 24). Lucas suspende a cabea para ver e os lbios do banqueiro tremem. Rtilo Nada tem um desfecho excepcional, o pai de Kod sela com um beijo na boca, um pacto de morte com o seu objeto de desejo:
Ele beijou minha boca ensangentada. Eu sorri. De pena da volpia.[...] At um dia. Na noite ou na luz. No devo sobreviver a mim mesmo. Sabes porque ? Parodiando aquele outro: tudo o que humano me foi estranho.
Coelho acrescenta que Hilda Hilst rompe o circulo mgico de seu prprio eu, [...] para lanar-se na voragem do eu- outro, em face do enigma (da existncia, da morte, de Deus, da sexualidade, da finitude , da eternidade...). Para esta crtica, ao abordar o tema da morte, a poeta se entrega a um desafiante dilogo, [a morte ] enfrentada cara a cara [permitindo que a poeta entre] na intimidade dessa temerosa figura, revelando-a essencialmente participante da vida. (COELHO, 1999, p. 73- 75).
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Quanto a Lucas escolheu a morte, ele comete suicdio com uma arma deixada pelo banqueiro em cima da mesa. Neste jogo no houve ganhador, segundo Otvio Paz, como castigo, o parceiro [Lucas] no ressuscita como corpo, mas como sombra, o libertino transforma em sombras tudo o que toca, e ele prprio se torna sombra entre as sombras (1994, p. 26).
Os muros, sobre os quais Lucas escreve, tema que nos leva a refletir acerca da grande misria humana chamada preconceito, e os emparedamentos das alteridades que impedem o contato, as trocas simblicas, a aproximao, promovendo o isolamento, a dor e a morte. E o poeta nos apresentado como quele capaz de extravasar, de romper, transbordar e de sair dos confinamentos. Rtilo Nada termina com um poema sobre muros, escrito por Lucas:
[...] Muros longnquos Na polidura esgarada dos sonhos To altos. Fulgindo iluminuras. Muros de como eu te amei: Brindisi. Altamura. [...] Muros prisioneiros do seu prprio murar. Campos de morte. Muros de medo. Muros silvestres, de ramagens e ninhos: Os meus muros da infncia. Esfacelados. Muros de gua. Escuros. Tua palavra: Um mosaico de vidro sobre o rosto altivo. Devo me permitir te repensar? [...] (HILST, 1993, p. 27)
Renata Bomfim
Terry Eagleton afirma que o globo est mesmo perdendo funestamente a identidade (1998, p. 20), pensamento ratificado por Stuart Hall, que afirma que o declnio das velhas identidades que, durante muito tempo estabilizaram o indivduo socialmente esto ruindo, sendo fragmentadas, descentradas e deslocadas, dando origem a um sujeito de identidades mltiplas e gerando uma crise de identidade
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Leo Gilmar Ribeiro no ensaio intitulado Da Fico, aproxima a teatralidade da obra hilstiana com o teatro do absurdo, de Eugene Ionesco, e Samuel Beckett do teatro da crueldade, por espelharem questes comuns no campo do humano, revelando mazelas da uma sociedade hipcrita, mascarada (RIBEIRO, 1999, p. 80).
O dilogo em Rtilo Nada uma caracterstica que abre espao para o teatral, e ao enunciar o texto, como defende Roland Barthes em O rumor da lngua (2004, p. 40), o leitor toma parte na trama como personagem, sendo convidado a captar a multiplicidade de sentidos, dos pontos de vista, das estruturas, como um espao estendido fora das leis que proscrevem a prpria contradio. Voyers, assistimos extasiados/ assombrados ao espetculo, onde o narrador hilstiano domina a cena.
Paz nos diz que jogando conforme as regras dos opostos complementares, um dos acordes da unio amorosa a separao. Este autor salienta que estar apaixonado no nos exime de sentir dor, medo, que este sentimento no nos protege, ao contrrio, nos expe, nos abre para o outro, nos diz que qualquer amor, feito de tempo, e nenhum amante pode evitar a grande calamidade: [...] a morte (PAZ,1994, p. 188).
Em considerao ao que foi explicitado neste estudo, podemos concluir que a obra de Hilda Hilst est em total consonncia os novos tempos, pois ela desnuda o sujeito contemporneo cindido, dividido entre o desejo e a tradio e em busca de si mesmo e de suas verdades. Outra razo o fato de esta no ser uma obra unilateral. Ela acolhe as contradies e oposies possibilitando que num mesmo universo coexistam luz e sombra, amor e dio, sagrado e profano, vida e morte, plos necessrios ao fiat lux. Afinal, positivo e negativo, no assim que o fenmeno da luz se d? E rtila, Hilda Hilst j ultrapassou as fronteiras da lngua portuguesa, suas obras j foram traduzidas para o francs , o ingls, o espanhol, o alemo, o italiano. Pelo visto, nada ser empecilho para que continue, cada vez mais, conquistando novos espaos. Recebido e aprovado para publicao em outubro de 2007. Referncias BARTHES, Roland. O rumor da lngua. Traduo de Mrio laranjeira;reviso de traduo Andra Stahel M. da Silva. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004. EAGLETON, Terry. As iluses do ps-modernismo. Traduo de Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998. HARVEY, David. Condio ps-moderna. Traduo de Adail Ubirajara Sobral. Rio de Janeiro: Loyola, 1989. HOUAISS, Antnio; et al. Dicionrio Houaiss da lingua portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2001. PAZ, Octvio. A dupla chama: amor e erotismo. Traduo de Wladyr Dupont. So Paulo: Siciliano, 1994. RIBEIRO. Leo Gilmar. Da Fico. Cadernos de Literatura Brasileira. So Paulo, n. 8, out. de 1999.
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Embora haja todo um discurso de igualdade, percebemos que vivemos uma poca to excludente quanto s anteriores, percebemos formas de subjetividade se degladiando, e que a alardeada abertura para o outro que nos aponta um caminho de maior justia e respeito sociais, compartilha como concebeu Hilda, de momentos rtilos de esperana e neutro, nulos de desnimo e indiferena (EAGLETON, 1998, p. 43).
O termo crise vem do grego krsis e significa ao ou faculdade de distinguir, deciso (HOUAISS, 2001). Esta definio encaixa-se bem nas personagens Lucius Kod e Lucas, que a despeito do que pudesse acontecer, fizeram suas escolhas, buscando transpor os muros do preconceito, e romper com a dominao de um pai tirano, que bem uma representao do sistema patriarcal vigente.
(HALL, 1998, p. 14). Percebemos estas crises na estrutura estilhaada e convulsiva do texto e em especial nos personagens de Rtilo Nada.
COELHO, Nelly Novaes. Da poesia. Cadernos de literatura brasileira. So Paulo, n. 8, out. de 1999.
HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.