Josué de Castro - Geografia Da Fome
Josué de Castro - Geografia Da Fome
Josué de Castro - Geografia Da Fome
GEOGRAFIA DA FOME
(O DILEMA BRASILEIRO: PO OU AO)
10. EDIO REVISTA
antares
1984
CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Castro, Josu, 1908-1973. C351g Geografia da fome : o dilema brasileiro : po ou ao Josu de Castro. Rio de Janeiro : Edies Antares, 1984. (Clssicos das Cincias Sociais no Brasil) Bibliografia 1. Brasil Condies econmicas. 2. Fome. 3. Poltica nutricional. 4. Subnutrio. S. Subnutrio Brasil. I. Ttulo. II. Srie. CDU 613.24:308 613.24:308(81) 612.391:308 338(81)
84-0193
SUMRIO
Prefcio nona edio Andr Meyer Prefcio dcima edio Alceu Amoroso Lima Prefcio do autor I Introduo II rea amaznica III rea do Nordeste aucareiro IV rea do serto do Nordeste V As reas de subnutrio: Centro e Sul VI Estudo do conjunto brasileiro VII Glossrio Apndice oitava edio Biografia Bibliografia 339
A fome eis um problema to velho quanto a prpria vida. Para os homens, to velho quanto a humanidade. E um desses problemas que pem em jogo a prpria sobrevivncia da espcie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar contra as doenas que a assaltam, abrigar-se das intempries, defender-se dos seus inimigos. Antes de tudo, porm, precisa, dia aps dia. encontrar com que subsistir comer. E esta necessidade, a fome que se encarrega de lembr-la. Sob o seu ferro e para lutar contra ela. a humanidade aguou seu gnio inventivo. Ningum o ignora. E todo mundo sabe tambm que. nesse velho combate contra esta praga permanente, o homem conseguiu apenas uma vitria incerta e precria. Contudo e o que nos faz ver o Prof. Josu de Castro logo s primeiras pginas do seu livro a Geografia da Fome nos pases mais adiantados, parece que as geraes passadas preferiram no aprofundar muito esse grande problema. Para qu? No decurso da Histria, linha havido, sem dvida, pocas de fome. Mas isso parecia to remoto! Continuava a haver fome em certos pases. Mas isso parecia to distante! As guerras s vezes acarretavam a fome. Mas isso parecia to raro! Na realidade, sob essa aparente indiferena, havia algo mais do que simples imprevidncia e egosmo. Havia dois sentimentos mais profundos. O primeiro, oriundo da convico milenar de que os males provocados por flagelos naturais so inevitveis: o segundo, da idia de que a prpria organizao [pg. 11] das sociedades comporta desigualdades entre os homens e que estas, por sua vez, so inevitveis. Para que ento pensar no irremedivel? Essas duas idias, essas duas atitudes j se tornaram, porm, insustentveis. Um flagelo s inevitvel quando permanece em mistrio. Os males provenientes da falta de alimentos continuam sendo um problema, mas j no so um mistrio.
Foi este o resultado de cento e cinqenta anos de trabalho cientfico. J hoje sabemos em que consistem as necessidades em alimentos. J hoje sabemos o que alimentao. Trs etapas foram percorridas nessa conquista de importncia capital para a humanidade. Foi no sculo XVIII que Lavoisier abriu as portas e mostrou o caminho da primeira etapa. Descobriu o que o fogo, a combusto viva: uma fixao de oxignio, uma oxidao. A seguir, o que a calcinao das terras: uma combusto lenta e, por conseguinte, tambm uma fixao de oxignio, uma oxidao. E, finalmente, o que a respirao: uma combusto ainda mais suave, porm, da mesma forma, uma fixao de oxignio, uma oxidao. E foi assim que demonstrou que a prpria vida se assemelha aos grandes processos da Natureza. A vida traduz-se por um encadeamento organizado de acontecimentos fsico-qumicos. Quando nosso organismo mantm constante sua temperatura, enquanto declina a do meio ambiente ou quando ele desempenha qualquer trabalho muscular tudo isso se traduz em reaes qumicas: o gasto das reservas que se faz atravs da fixao do oxignio e da emisso de calor. O trabalho do organismo sua vida pode, pois. exprimir-se exatamente por essa emisso de calor que permite determinar-se o que ele perde. Determinar a perda significa tambm determinar as necessidades, uma vez que, para manter-se, o organismo precisa reparar suas perdas. E pela alimentao que fazemos essa compensao, essa restaurao. Consumimos fragmentos de seres vivos, que, por sua vez, so combustveis. Seu valor de reparao, de restaurao, seu valor como alimento pode tambm, por seu lado, ser medido com exatido, pelo calor que se desprende de sua combusto. Assim, as necessidades alimentares do homem e o valor de sua alimentao podem ser definidos fisicamente, tornando-se calculveis em termos de calor, em calorias. A segunda etapa teve lugar no sculo XIX. Seguindo as pegadas de Lavoisier, descobriram os qumicos que a Natureza [pg. 12] e os seres vivos, que nela se encontram so todos compostos de elementos simples que, segundo supunham, seriam imutveis e indestrutveis. O organismo formado de certo nmero desses elementos, presentes em determinadas propores. Uma parte desses elementos se perde no trabalho do organismo. Se essa perda no for reparada, o organismo estar em perigo mortal. Foi levantada a relao desses elementos indispensveis. Calculou-se o que o organismo gasta e o que necessita para recuperar estes gastos.
Pois, tal como ocorria com os qumicos do sculo XIX, mas no com os dos nossos dias o organismo no sabe fabricar elementos qumicos. Precisa encontr-los todos em sua alimentao. Esta se tornou, desde ento, quimicamente definida. Terceira etapa: a do sculo XX. Acreditava-se at ento que, de posse dos elementos, o organismo era capaz de sintetizar todas as molculas de que ele se compe, mas isso era um erro. Os seres vivos so qumicos incompletos. Descobriuse que existe toda uma srie de molculas (cidos aminados, cidos graxos, vitaminas) que eles no sabem fazer e que precisam encontrar j preparadas, dentro da alimentao. Mas essas molculas so indispensveis vida. Basta faltar alguns miligramas de algumas delas na alimentao cotidiana para sobrevir uma doena grave ou a morte. Os resultados dessas descobertas tm alcance incalculvel. Para comear, a palavra fome j no basta. que o termo evoca simplesmente a insuficincia da quantidade de alimentos, provocando a subnutrio e a morte pela fome. Trata-se agora de outra coisa. Viemos a saber que no apenas quando nossa alimentao insuficiente que estamos ameaados. Tambm o estaremos se ela for mal constituda. Neste ltimo caso, surge uma srie de estados de subnutrio. Quando essa subnutrio grave, pode tornar-se rapidamente mortal: traduz-se por doenas de h muito conhecidas, mas cujas causas permaneciam ignoradas. Se a carncia de molculas indispensveis for menos pronunciada, determinar o mau funcionamento do organismo, o desenvolvimento defeituoso das crianas, a fraqueza parcial dos adultos, certa desagregao do estado mental e, por fim, a degenerao progressiva terminando por provocar o desaparecimento de grupos humanos. Os efeitos de uma m alimentao so, por conseguinte, muito mais profundos e mais amplos do que se pensava. Influem na durao e na qualidade [pg. 13] da prpria vida, na capacidade de trabalho, no estado psicolgico das populaes. Mas esses males so facilmente curveis. Quem j tiver assistido ressurreio de um pelagroso coberto de horrveis leses, devorado pela doena, demente, moribundo, curando-se em poucos dias pela ingesto de alguns miligramas dessas molculas que faltavam na sua alimentao e que os qumicos fabricam hoje s toneladas, no duvidar dessa verdade. A subnutrio endmica no se presta, porm, a essas curas espetaculares. Exige interveno contnua. Pode ser eliminada e pode ser evitada por meios naturais: basta que se garanta s populaes uma boa
alimentao, suficiente, completa e equilibrada. Sabemos hoje em que consiste tal alimentao. Sabemos calcular em termos de calorias em que deve consistir a massa de alimentos cotidianos. Podemos calcular em gramas, em miligramas, o que essa alimentao deve conter de princpios alimentares, de molculas indispensveis. Temos, pois, doravante, noes slidas, inabalveis, permitindo determinar com bastante preciso o que deve ser a alimentao de uma criana, de um adulto em descanso ou trabalhando, de uma me, de uma famlia, de uma cidade, de uma populao inteira. E isso constitui um acontecimento de importncia capital na histria da humanidade. A questo , pois. a seguinte: existem, no nosso planeta, mais de dois bilhes de seres humanos. Como se alimentam eles? Os primeiros inquritos realizados nos permitem responder: alimentam-se mal. Mais da metade desses seres humanos se encontra, mais ou menos, em estado de subnutrio. E tal estado s tende a agravarse, uma vez que a populao da Terra cresce de ano a ano em cerca de 50 a 60 milhes de indivduos. Devemos acrescentar que a subnutrio no atinge apenas os pases mais atrasados, mas tambm grupos inteiros de populao nos pases mais adiantados do mundo. Trata-se, por conseguinte, de alimentar bem essas populaes. Ao plano de alimentao traado deve corresponder um plano de produo agrcola adequado. Os clculos indicam que esse plano dever comportar considervel aumento da produo atual. Ser tal aumento tecnicamente possvel? Neste caso ainda resposta ser bem diferente da que se poderia ter dado h um sculo atrs. Os progressos [pg. 14] da Cincia e da Tcnica tm sido de tal ordem dispomos hoje de inmeros meios pura aumentar a produo das plantas e do trabalho humano que j possvel, querendo, alimentar e alimentar bem todos os homens. Provocar sistematicamente um aumento considervel e ordenado da produo agrcola no problema de pura tcnica agronmica. um problema econmico. Efetivamente, trata-se de integrar a agricultura no conjunto da economia. No se pode criar uma agricultura moderna sem considervel despesa de equipamento. No se pode fornecer esse equipamento sem criar a indstria necessria. No se pode tornar a indstria e a agricultura fregueses recprocos, fazlas interdependentes, sem distribuir metodicamente a populao ativa de acordo com certa diviso do trabalho e sem que se organize, entre as diversas partes dessa
populao, uma distribuio da renda nacional, de modo a permitir o intercmbio entre elas. E ainda: no basta criar a capacidade aquisitiva, a capacidade de intercmbio. Faz-se mister aumentar progressivamente essas capacidades, aumentar a renda nacional. Ser isso possvel? Ainda neste ponto a resposta positiva: no impossvel uma vez que tal desideratum j foi conseguido nos pases mais adiantados. E no s. H uma condio indispensvel criao de uma economia de expanso e essa condio suscita um problema social. Para multiplicar os bens da Terra, valorizar o mundo e obter plena utilizao dos recursos naturais necessrio aplicar integralmente as possibilidades da Cincia e da Tcnica. Mas essa aplicao completa s se consegue atravs de um imenso esforo de educao, atravs de uma elevao progressiva do nvel cultural das populaes do mundo. E tudo isso depende da instruo que se der s crianas e aos adolescentes e das informaes que forem divulgadas entre os adultos. Por outro lado a expanso econmica e a multiplicao do intercmbio s sero conseguidas pela diversificao das necessidades humanas, fornecendo-se meios para satisfaz-las; aumentando-se ao mesmo tempo sua capacidade aquisitiva e a parte reservada s despesas de civilizao. Assim, a valorizao do mundo s possvel graas valorizao dos homens, permitindo-lhes a expanso de suas faculdades. No basta dizer que a valorizao do Homem deveria [pg. 15] constituir o objeto da Economia. Na realidade constitui ela a condio indispensvel para a expanso econmica. Essa grande obra que se ergue diante de ns nada tem de irrealizvel. Em nenhum ponto est fora do nosso alcance, desde que saibamos querer. O problema da fome difcil, no h dvida. Mas pode ser exposto claramente. As condies de sua soluo podem ser definidas e a ao a empreender para chegar ao fim j pode ser calculada. J no podemos, pois, silenciar sobre o assunto. E preciso, pelo contrrio, atac-lo com coragem, no interesse de todos. As cinqenta e sete naes membros da Organizao Internacional de Alimentao e Agricultura (FAO) j o compreenderam. E resolveram agir. dentro dessa ao de grande envergadura, de tanta amplitude e de importncia to fundamental, que se coloca o livro do Prof. Josu de Castro. E chega em momento oportuno. Uma das primeiras coisas a fazer levantar um inventrio,
to completo quanto possvel, da situao atual. preciso designar as populaes, os grupos mais ameaados e estud-los. Trata-se, no sentido mdico da palavra, de fazer a observao de seu estado de nutrio. No sentido geogrfico, de um ensaio ecolgico dessas populaes, estudando o complexo que criou o solo, o clima, as plantas e os animais. E no sentido sociolgico, um inqurito econmico-social. Historicamente, trata-se de um estudo da origem e do desenvolvimento da situao atual. O Prof. Josu de Castro estava bem apto para empreender essa difcil tarefa. No ele apenas um homem de laboratrio um conceituado fisilogo. tambm um gegrafo, um pesquisador, um historiador. E os resultados que conseguiu atravs dos mtodos de indagao de disciplinas to diferentes foram por ele ordenados filosoficamente. Seu livro no apenas uma coletnea sistemtica de fatos instrutivos. uma obra profundamente atraente porque eminentemente viva. Ningum poder esquecer, depois de as ter lido. as pginas em que o autor nos conta a tragdia dos seringueiros alquebrados pelo beribri, engolidos na voragem da floresta amaznica, nem aquelas em que nos descreve a seca alastrando-se pelo serto do Nordeste brasileiro, esterilizando as terras, matando os animais, expulsando os homens. Ou ento as pginas em que nos narra a histria impressionante dos colonos destruindo progressivamente a floresta do mesmo Nordeste, para plantar a cana-de-acar e deixando-se iludir pela [pg. 16] atrao do lucro, at suprimirem as prprias culturas de sustentao e destrurem aquelas mesmas populaes que edificavam sua fortuna. Nesta Geografia da Fome, o problema da subnutrio e da carncia alimentar aparece em toda a sua realidade, permitindo ao leitor compreender-lhe os diversos aspectos e a importncia primordial. Um livro como este suscita ao e serve-lhe de guia. O leitor ver que um livro de utilidade imediata e, ao mesmo tempo, um livro inteligente e generoso. Em suma: que um bom livro. Andr Mayer Professor da Universidade de Paris ex-Presidente do Conselho Executivo da FAO [pg. 17]
Nos dois artigos,* ora transcritos nesta nova edio de uma das obras clssicas de nossa literatura, a Geografia da Fome de Josu de Castro (1956), artigos esses publicados em 1973, tive ocasio de apreciar a atualidade, a originalidade e o sentido proftico da sua obra. O regime poltico ditatorial, que o perseguiu em vida, longe de afetar o valor de sua obra monumental em prospetiva, no fez seno ressaltar seu valor permanente. Passados 25 anos da publicao desse livro-chave, representa ele ainda hoje o retrato mais trgico e igualmente mais fiel de nossa realidade nacional. Comparvel a ele, somente Os Sertes de Euclides da Cunha. Durante esses 25 anos nada foi feito para que a carncia alimentar do nosso povo fosse atendida. A grande novidade do momento ... a volta agricultura. Nunca deveramos ter sado dela. O primado da agricultura, da minerao e da pecuria, em um pas de to vastas dimenses e de natureza to diversificada, no prejudica em nada, e antes incentiva, a organizao de um grande parque industrial. Campo e cidade devem sempre estar intimamente ligados. O que faz a sua separao a anttese de classes, como a poltica de recurso contnuo aos capitais estrangeiros, para promover o progresso nacional. Quando este deve ter sempre, por base, o trabalho e no o capital. Foi o segredo [pg. 19] do Japo. Pois o capital, para ser slido e no atentar contra a independncia nacional, prejudicando outrossim a prpria interdependncia, deve ter por base o trabalho. A poltica da primazia do recurso ao capital estrangeiro , sem dvida, uma das fontes desse drama da fome, que Josu de Castro foi o primeiro a colocar como o problema bsico do Brasil. Hoje se fala muito na primazia do Homem. bom que se fale, pois a verdadeira filosofia social se baseia nessa primazia. Mas, para que isso no seja apenas uma figura de retrica, preciso partir do problema da alimentao desse homem, em
cujo trabalho reside a riqueza nacional. Foi tudo isso que levou Josu de Castro a levantar esse monumento de sabedoria social, que tanto entusiasmou o Padre Lebret e , at hoje, como ser para sempre, uma das pedras angulares de nosso edifcio social.
* Os dois artigos a que se refere o prefaciador foram publicados no Jornal do Brasil, em 1973, sob o pseudnimo de Tristo de Athayde.
Hoje tambm se invertem outros valores que Josu de Castro sempre colocou como fundamentais. Procuram, hoje, reduzir artificialmente a populao, para melhor aliment-la. Josu de Castro, pelo contrrio, partia do elemento qualitativo e no do elemento quantitativo. No preciso reduzir artificialmente a populao, para melhor aliment-la. E sim aliment-la melhor, para que o seu aumento quantitativo se processe normalmente e no artificialmente. Invertendo a equao, colocando o carro da quantidade adiante dos bois da qualidade, altera-se completamente o equilbrio da situao homem-alimento, que Josu de Castro coloca numa base racional e moral e no irracional e amoral. Colocaram a pirmide com a ponta para baixo. Menos habitantes para melhor alimentao. Quando o racional melhor alimentao (base), para mais habitantes (ponta). Chesterton props, com humour, a seguinte frmula: quando existem 7 crianas e 6 chapus, ou se arranja mais um chapu, ou se corta a cabea de uma criana... Por essas e outras que a obra clssica de Josu de Castro merece ser relida e aproveitada, pois sua inspirao , ao mesmo tempo, cientfica e moral, como deve ser toda frmula social, para o bem de uma nacionalidade de vasto futuro como a nossa. Josu de Castro pagou caro sua sabedoria. Mas a posteridade lhe faz justia e h de aproveitar-se de sua cincia. Como a tragdia da fome no privilgio do Brasil, nem do Sahel, Josu de Castro [pg. 20] deixou, para a posteridade, aquela sua frase famosa, j citada em um dos meus artigos: Metade da humanidade no come e a outra no dorme com medo da que no come... Alceu Amoroso Lima Rio, 1980
O ESPECTRO DA FOME
Tempos atrs, um surto de sarampo, de tipo violento e infeccioso, que praticamente dizimou uma localidade mineira do vale do Jequitinhonha, revelou, ou antes, confirmou, a situao calamitosa, em matria de sade e desnutrio, em toda aquela vasta regio. Logo em seguida, ou pouco antes, as cifras enumeradas no documento trgico de 18 altas autoridades eclesisticas mostravam a mesma situao por todo o Nordeste. E outro documento, talvez ainda mais impressionante, dos bispos do Centro-Oeste (Marginalizao de um povo), confirmava o impacto do primeiro e acentuava-o. Ainda outro documento, no mesmo sentido, e talvez ainda mais alarmante, pois se refere regio considerada mais sadia de todo o Brasil: o Rio Grande do Sul, foi referido no O Estado de So Paulo de 12 de agosto: A Revista da Associao Mdica do Rio Grande do Sul publicou o resultado de uma pesquisa feita pela entidade, revelando que quase a metade das crianas gachas (1 milho em 2 milhes e 600 mil) so desnutridas (sic). A desnutrio responsvel pela alta taxa de mortalidade infantil e pela evaso escolar: menos de 10% dos alunos matriculados no primeiro ano atingem a oitava srie do ensino fundamental. A desnutrio causada pela falta de alimentos, dificuldades econmicas e desconhecimento dos princpios de alimentao balanceada. Uma criana de quatro anos da classe A (isto , das camadas ricas da populao, lembro eu), diz a revista, em geral, 9,19 centmetros mais altas que uma da classe B (isto , das camadas populares, lembro eu) e seu peso superior. [pg. 21] Isso significa que no Estado mais sadio da federao, a desnutrio est concorrendo, fundamentalmente, para a diviso crescente de nossa terra em dois modelos de populao: os tipos biologicamente superiores e os tipos biologicamente inferiores. E como estas estatsticas informam, a proporo entre os exemplarei: bem nutridos e sadios e os desnutridos e enfermios praticamente de 50%. Isso na regio mais sadia e rica de nossa ptria. Imaginemos ento o que ocorre nas regies que representam uma proporo de mais de 80% da nossa populao total. Alis, h muito que os nossos mais ilustres nutricionistas, como um Rui Coutinho, em obras rigorosamente cientficas, sem nenhum bias ideolgico ou
poltico, tm chegado a idnticas concluses. H muitos anos, alis, o eminente socilogo Josu de Castro, prematuramente falecido h pouco e afastado do seu pas pelo terrorismo cultural, desencadeado em 64, deu o alarme em sua obra clssica A Geografia da Fome e, como dirigente eventual da FAO, comeava anos atrs uma alocuo, em um congresso da instituio, com uma imagem impressionante: Enquanto metade da humanidade no come, a outra metade no dorme, com medo da que no come. Era, evidentemente, uma imagem literria forjada precisamente para impressionar os espritos e alertar as conscincias. Baseada, alis, em sentena semelhante lanada em 1950 por Lorde Boyd Orr, ento presidenta da FAO, que vejo contestada por outro especialista no assunto, o cientista Colin Clark, da Universidade de Oxford, em artigo transcrito no nmero de 17 de junho do LOsservatore Romano. Diz ele: A situao da fome (no mundo) muito grave mas ainda no envolve, de nenhum modo, metade da humanidade. E considera contraproducente qualquer exagero, pois o homem mdio reage imaginando que no pode fazer nada. Penso exatamente o contrrio. Justamente porque o homem mdio, isto , todos ns suficientemente bem nutridos, temos a tendncia natural a no pensar nos desnutridos e a crer que realmente as cifras e os alarmes so exagerados, que preciso despertar as nossas conscincias adormecidas para o flagelo que j chegou a introduzir um nome prprio e cientfico para a molstia da fome: kwaskiorkor ora grassando, dramaticamente, [pg. 22] no corao da frica. Nem creio que essas imagens sejam exageradas, embora acredite que a verdade a nica mestra autntica das convices. Acontece, porm, que a verdade sobre a fome incomoda os governos e fere as suscetibilidades patriticas e, por isso mesmo, so frequentemente vedadas ao grande pblico, pelas respectivas censuras polticas. Especialmente nos pases que se preocupam exageradamente com a imagem que deles se faa no estrangeiro. E no tm a mesma coragem de dizer as coisas pelos seus nomes como acontece particularmente na Inglaterra e nos Estados Unidos e em todos os pases onde existe verdadeira liberdade de informao. Alis, esse eminente cientista ingls, que subestima o perigo da fome e critica os que exageram as estatsticas, tambm nesse mesmo artigo declara que a populao mundial aumenta com um
ritmo de aproximadamente 2 por cento ao ano, quando esse ritmo chega, em certas regies latino-americanas, a ultrapassar 3,5 por cento, sem que a produo de alimentos e especialmente sua distribuio pelo povo seja equitativa. O prprio Clark, alis, embora subestimando o flagelo da fome, apela para a interveno imediata dos governos, como nico meio de corrigir o desnivelamento desumano entre os bem nutridos e os desnutridos, em conseqncia de fatores polticos e sociais. Se verdade que as disponibilidades de alimentos nos pases da frica, na mdia, so superiores ao mnimo necessrio, tambm verdade que uma inqua distribuio dos rendimentos acaba por deixar uma grande parte da populao margem da fome. E cita o caso do sistema de castas na ndia, que significa que muitos milhes de pessoas esto condenadas a uma existncia de discriminao e impossibilidade de progresso econmico. Entre ns, a situao ainda mais grave, pois no se traiu da existncia, nos costumes embora no mais nas leis , de um sistema de intocveis margem da sociedade e da satisfao das suas mais elementares exigncias de sobrevivncia. Entre ns est ocorrendo exatamente o mesmo, justamente na medida em que cresce a estrutura industrial e urbanstica, mas dentro diurna estrutura social de tipo nitidamente feudal. Acredito que o progresso tecnolgico esteja em condies de equilibrar o aumento mundial das populaes. Mas para isso preciso reagir [pg. 23] contra o sistema feudal que entre ns corresponde, analogicamente, ao sistema de castas, na ndia, ou ao sistema tribalstico, na frica, onde o flagelo da fome , neste momento, um pesadelo mundial. Como preciso que as verdades do desnutricionismo crnico da maioria de nossa populao sejam ditas livremente, pois no so as obras faranicas, nem mesmo os esforos da desanalfabetizao, que vo nutrir os famintos e vestir os nus, no apenas pirandelicamente.
AS DUAS FOMES
A propsito do flagelo da fome, a que ontem aludamos, o novo diretor da FAO, o tcnico holands A. N. Boehns, declarou recentemente que: A escassez mundial de alimentos a pior crise que se registra desde a Segunda Guerra Mundial,
pois o crescimento demogrfico de 2% ao ano, enquanto a produo de alimentos e a colheita agrcola do mundo, em 1972, teve 3% de reduo. (Apud ). B., 6.09.73). O crescimento demogrfico do Brasil, convm lembrar, de 3%. Mas essa defasagem entre o dinamismo crescente da vida e o dinamismo decrescente da tcnica no pode ser eliminada pela conteno do primeiro e sim pelo incremento do segundo. Como dizia Chesterton, em uma de suas imagens pitorescas, se s temos cinco chapus para seis crianas, h duas solues a empregar: ou arranjamos mais um chapu ou cortamos a cabea de uma das crianas... O nosso saudoso Josu de Castro, precursor entre ns, e mesmo no plano internacional, dos estudos cientficos a respeito desse problema trgico da humanidade, e que afeta de modo to desastroso e doloroso o nosso pas, mostrou bem claramente a interdependncia entre o problema sanitrio da populao, cuja fonte primacialmente de natureza alimentar, e o problema scio-econmico da estrutura poltica da nacionalidade. Josu de Castro faz mesmo remontar as causas originais da subalimentao endmica em nosso pas. ao incio de nossa colonizao. [pg. 24] A fome, no Brasil, conseqncia, antes de tudo, do seu passado histrico, com os seus grupos humanos sempre em lula e quase nunca em harmonia com os quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa portanto da agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas quase sempre por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que no significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil. Aventura desdobrada em ciclos sucessivos de economia destrutiva, ou pelo menos desiquilibrante da sade econmica da nao: a do pau-brasil, a da cana-de-acar, a da caa ao ndio, a da minerao, a da lavoura nmade, a do caf, a da extrao da borracha, e finalmente a da industrializao artificial baseada no ficcionismo das barreiras alfandegrias e no regime da inflao... E o fique rico to agudamente estigmatizado por Srgio Buarque de Holanda... Em ltima anlise, esta situao de desajustamento econmico e social foi conseqncia da inaptido do estado poltico para servir de poder equilibrante entre os interesses privados e o interesse coletivo. A princpio por sua tenuidade e fraqueza potencial diante da fortaleza e independncia dos senhores de terras, manda-chuvas em seus domnios de porteiras
fechadas... Ultimamente, num contrastante exagero noutro sentido, no excesso centralizante do poder... Conseqncia dessa centralizao absurda e da poltica de fachada da Repblica foi o quase abandono do campo e o surto da urbanizao... que no encontrando no pas nenhuma civilizao rural bem enraizada veio acentuar de maneira alarmante a nossa deficincia alimentar. (Geografia da Fome, 1946, pg. 293.) H trinta anos, portanto, um socilogo da estirpe de Josu de Castro j demonstrava, exaustivamente, a influncia dos fatores scio-econmicos sobre os prprios fatores biolgicos de nossa populao, atravs da deficincia alimentar e da primazia dos interesses privados, junto incapacidade equilibrante das instituies polticas. E como as causas sociais so sempre correlativas, essa deficincia alimentar, causada primacialmente por fatores poltico-sociais, veio afetar indiretamente essas estruturas polticas, sempre intimamente ligadas s subestruturas cconmico-sociais. [pg. 25] Ainda agora, o socilogo Glucio Soares publica um estudo do maior interesse cientfico e social, e, elaborado luz de uma sociologia analtica, enquanto a obra clssica de Josu de Castro foi elaborada luz de uma sociologia globalista e sinttica, sobre um problema anlogo. Esse magnfico trabalho sobre Sociedade e Poltica no Brasil (Dif. Europeia do Livro, S. Paulo, 1973, pp. 237 e ss.) estuda apenas o desenvolvimento, classe e poltica durante a Segunda Repblica, de 1945 a 1964, mas interessa toda a nossa formao social contempornea. Embora partindo de uma orientao sociolgica geral marxista, que diz serem os fenmenos supra-estruturais determinados, em ltima instncia. pela infra-estrutura scioeconmica (p. 15), na realidade mostra a interdependncia das infra e supraestruturas sociais, comprovando, ao longo de nossa histria mais recente, o domnio da oligarquia, isto , das elites instaladas, ricas, poderosas, sobre a poli-arquia, isto , as maiorias entaladas, isto , de situao profissional precria, pobres e impotentes. Estudo magnificamente documentado e coincidindo, embora a partir de orientao sociolgica diversa, com o de Josu de Castro na verificao da influncia decisiva e recproca de fatores scio-econmicos e polticos na constituio da sociedade brasileira. Josu de Castro, estudando a situao sanitria
e biolgica da populao, substancialmente viciada pela Fome Fsica: Glucio Soares, estudando a situao poltica tambm viciada pela marginalizao das maiorias, esmagadas pela Fome Poltica, isto , pela passividade e pela imparticipao nos negcios pblicos. O prof. Glucio Soares, examinando as conseqncias da Revoluo de 30 e da queda do getulismo em 1945, mostra como a poltica oligrquica no foi sucedida por uma poltica democratizada, com ampla participao de setores e classes menos privilegiadas. Seria ingnuo crer que o colapso da oligarquia foi total (com a queda da Primeira Repblica, lembro eu), e que as estruturas scio-econmicas que possibilitaram sua existncia ruram e que se abriu o caminho para a participao das classes populares na poltica, tanto no nvel eleitoral quanto no nvel de representao. Persistindo a distribuio desigual da propriedade e um sistema de valores claramente classista (isto , burgus, lembro eu), as pessoas que ocupam posies altas e mdias continuam [pg. 26] a gozar de maior prestgio que as demais, sendo de salientar que essa diferenciao aceita por amplos setores das classes populares (p. 136). E a propsito do golpe de 64 lembra que: No obstante, essa situao no provocaria um golpe de estado (64 no foi propriamente um golpe de estado, isto , de cima para baixo, mas um golpe contraestado, isto , de fora para dentro, lembro eu) se as classes mdias e a sua maior representante, a UDN, paladina da democracia liberal no Brasil, efetivamente acreditassem no princpio democrtico... No fundo, seu modelo no era a democracia liberal, mas sim o da democracia com participao restrita, que havia sido proposto pela primeira vez quarenta anos antes pelos tenentes e reiterado nos manifestos do Clube 3 de Outubro. Muitos dos antigos tenentes agora eram generais que, acionados politicamente pelos conservadores e socialmente pelas classes mdias, interromperam pela fora o Governo Goulart (p. 234). Durante o decnio corrente o predomnio absoluto do sistema oligrquico s fez aumentar. E as duas misrias, a da Fome Orgnica, denunciada por Josu de Castro, e a da Fome Poltica, denunciada por Glucio Soares, explicam os ps-de-barro da esttua de Nabucodonosor, isto , do famoso milagre brasileiro de nossos dias. [pg. 27]
PREFCIO DO AUTOR
1. O assunto deste livro bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilizao. realmente estranho, chocante, o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por to excessiva capacidade de escrever-se e de publicar-se, haja at hoje to pouca coisa escrita acerca do fenmeno da fome, em suas diferentes manifestaes. Consultando a bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-se a sua extrema exigidade. Extrema quando a pomos em contraste com a minuciosa abundncia de trabalhos sobre temas outros de muito menor significao. Tal pobreza bibliogrfica se apresenta ainda mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca do contedo do tema da fome de sua transcendental importncia e de sua categrica finalidade orgnica. J outros estudiosos se tinham espantado diante deste inexplicvel vazio bibliogrfico: no h muito, Gregorio Maraon, recolhendo material para a elaborao de um trabalho sobre a regulao hormonal da fome, 1 se surpreendeu com o nmero insignificante de fichas que conseguiu reunir acerca deste problema fundamental. Registrando o fato, o escritor espanhol, interessado no momento noutra ordem de idias, no se deu ao trabalho de buscar as razes ocultas que determinaram esta quase que absteno de nossa cultura em abordar o tema da [pg. 29] fome. Em examin-lo mais a fundo, no s em seu aspecto estrito de sensao impulso e instinto que tem servido de fora motriz a evoluo da humanidade (Espinosa) como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal. Sob este ltimo aspecto, se fizermos um estudo comparativo da fome com as outras grandes calamidades que costumam assolar o mundo a guerra e as pestes ou epidemias
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verificaremos, mais uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, exatamente a fome. Para cada mil publicaes referentes aos problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca da fome. No entanto, os estragos produzidos por esta ltima calamidade so maiores do que os das guerras e das epidemias juntas, conforme possvel apurar, mesmo contando com as poucas referncias existentes sobre o assunto. 2 E h mais, a favor deste triste primado da fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatria do terreno, quase que obrigatria, para a ecloso das grandes epidemias. Quais so os fatores ocultos desta verdadeira conspirao de silncio em torno da fome? Ser por simples obra do acaso que o tema no tem atrado devidamente o interesse dos espritos especulativos e criadores dos nossos tempos? No cremos. O fenmeno to marcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir obra do acaso, parece condicionado s mesmas leis gerais que regulam as outras manifestaes sociais de nossa cultura. Trata-se de um silncio premeditado pela prpria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem poltica e econmica de nossa chamada civilizao ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhvel de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espcie de interdio baseia-se no fato de que o fenmeno da fome, tanto a fome de alimentos como a fome sexual, um instinto primrio e por isso um tanto chocante pura uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomnio da razo sobre o dos instintos na conduta humana. Considerando o instinto como o animal e s a razo [pg. 30] como o social, a nossa civilizao, em sua fase decadente, vem procurando negar sistematicamente o poder criador dos instintos, tidos como foras desprezveis. A encontramos uma das imposies da alma coletiva da cultura, que fez do sexo e da fome assuntos tabus impuros e escabrosos e por isto indignos de serem tocados. Sobre o problema do sexo, foi mantido um silncio opressor, at o dia em que um homem de gnio, num gesto inconveniente e providencial, afirmou, diante do fingido espanto da cincia e da moral oficiais, que o instinto sexual uma fora invencvel, to intensa que atinge a
conscincia e a domina inteiramente. Freud demonstrou com tal genialidade o primado do instinto, que essencial, sobre o racional, que acessrio, no desempenho do comportamento humano, que no houve remdio seno aceitar-se, mesmo a contragosto, a sua teoria e deixar-se abrir os diques com que se procurava ingenuamente afogar as razes da prpria vida. Desde ento foi possvel debater-se em altas vozes o problema do sexo. Quanto fome, foram necessrias duas terrveis guerras mundiais e uma tremenda revoluo social a revoluo russa nas quais pereceram dezessete milhes de criaturas, dos quais doze milhes de fome, para que a civilizao ocidental acordasse do seu cmodo sonho e se apercebesse de que a fome uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo. Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econmicos das minorias dominantes tambm trabalhavam para escamotear o fenmeno da fome do panorama espiritual moderno. que ao imperialismo econmico e ao comrcio internacional a servio do mesmo interessava que a produo, a distribuio e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenmenos exclusivamente econmicos dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econmicos e no como fatos intimamente ligados aos interesses da sade pblica. E a dura verdade que as mais das vezes esses interesses eram antagnicos. Veja-se o caso da ndia, por exemplo. Segundo nos conta Rclus, 3 nos ltimos trinta anos do sculo passado morreram de inanio naquele pas mais de vinte milhes de habitantes; s no ano de 1877 pereceram de [pg. 31] fome cerca de quatro milhes. E, no entanto, de acordo com a sugestiva observao de Richard Temple enquanto tantos infelizes morriam de fome, o porto de Calcut continuava a exportar para o estrangeiro quantidades considerveis de cereais. Os famintos eram demasiado pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida. lgico que os grandes importadores, negociantes de Londres, Rotterdam e outras grandes praas europias, que tiravam grandes proventos de suas importaes da ndia, faziam o possvel para abafar na Europa os rumores longnquos desta fome longnqua, a qual, se tomada na devida considerao, poderia atrapalhar os seus lucrativos negcios.
Tambm os governos nazistas que se haviam apoderado do poder em vrios pases e de cuja poltica fazia parte obrigatria a propaganda intempestiva de prosperidades inexistentes, no podiam ver com bons olhos quaisquer tentativas que viessem mostrar, s claras, aos outros pases, em que extenso a fome participava dos destinos de seus povos. A prpria cincia e a tcnica ocidentais, envaidecidas por suas brilhantes conquistas materiais, no domnio das foras da natureza, se sentiram humilhadas, confessando abertamente o seu quase absoluto fracasso em melhorar as condies de vida humana no nosso planeta, e com o seu reticente silncio sobre o assunto faziam-se, consciente ou inconscientemente, cmplices dos interesses polticos que procuravam ocultar a verdadeira situao de enormes massas humanas envolvidas em carter permanente no crculo de ferro da fome. 2. Hoje, tendo sido possvel realizar com a aquiescncia oficial4 uma srie de pesquisas bem orientadas nas mais diferentes regies da terra acerca das condies de nutrio dos povos, e tendo-se evidenciado, dentro de um critrio rigorosamente cientfico, o fato de que cerca de dois teros da humanidade vivem num estado permanente de fome, comea a mudar a atitude do mundo. claro que para essa mudana de atitude muito tem contribudo a presso de fatos inexorveis. H a conscincia universal de que atravessamos uma hora decisiva, [pg. 32] na qual s reconhecendo os grandes erros de nossa civilizao podemos reencontrar o caminho certo e faz-la sobreviver catstrofe. Desses erros, um dos mais graves , sem nenhuma dvida, este de termos deixado centenas de milhes de indivduos morrendo fome num mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua produo e que dispe de recursos tcnicos adequados realizao desse aumento. Mundo capaz de produzir alimentos para cinco e meio bilhes de homens, segundo os clculos de East, oito bilhes, segundo os de Penk, e onze bilhes, segundo os de Kucszinski; portanto, pelo menos para o dobro da populao atual. 5 A demonstrao mais efetiva da mudana radical da atitude universal, em face do problema, encontra-se na realizao da Conferncia de Alimentao de Hot
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Desde 1928 a Liga das Naes inscreveu o problema da alimentao no programa de seus trabalhos, fazendo realizar, sob o patrocnio de sua Organizao de Higiene, estudos detalhados em diferentes pases e dando publicidade a uma srie de valiosos relatrios sobre o assunto. 5 Ferenczi, Imre, LOptimum Synthtique du Peuplement, 1938.
Springs, a primeira das conferncias convocadas peias Naes Unidas para tratar de problemas fundamentais reconstruo do mundo de aps-guerra. Nesta conferncia reunida em 1943, e que deu origem atual Organizao de Alimentao e Agricultura das Naes Unidas a FAO quarenta e quatro naes, atravs dos depoimentos de eminentes tcnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento, quais as condies reais de alimentao dos seus respectivos povos e planejaram as medidas conjuntas a serem levadas a efeito para que sejam apagadas ou pelo menos clareadas, nos mapas mundiais de demografia qualitativa, estas manchas negras que representam ncleos de populaes subnutridas e famintas, populaes que exteriorizam, em suas caractersticas de inferioridade antropolgica, em seus alarmantes ndices de mortalidade e em seus quadros nosolgicos de carncias alimentares beribri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia, raquitismo, osteomalcia, bcios endmicos, anemias, etc. a penria orgnica, a fome global ou especfica de um, de vrios e, s vezes, de todos os elementos indispensveis nutrio humana. Para que as medidas projetadas possam atingir o seu objetivo, faz-se necessrio, no entanto, intensificar e ampliar, cada vez mais, os estudos sobre a alimentao no mundo inteiro; donde a obrigao, em que se encontram os estudiosos deste [pg. 33] problema, de apresentarem os resultados de suas observaes pessoais, como contribuies parciais pura o levantamento do plano universal de combate fome, de extermnio mais aviltante das calamidades, uma vez que a fome traduz sempre um sentimento de culpa, uma prova evidente de que as organizaes sociais vigentes se encontram incapazes de satisfazer a mais fundamental das necessidades humanas a necessidade de alimentos. Um dos grandes obstculos ao planejamento de solues adequadas ao problema da alimentao dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestaes simultaneamente biolgicas, econmicas e sociais. A maior parte dos estudos cientficos sobre o assunto se limita a um dos seus aspectos parciais, projetando uma viso unilateral do problema. So quase sempre trabalhos de fisilogos, de qumicos ou de economistas, especialistas em geral limitados por contingncia profissional ao quadro de suas especializaes. Foi diante desta situao que resolvemos encarar o problema sob uma nova
perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma viso panormica de conjunto, viso em que alguns pequenos detalhes certamente se apagaro, mas na qual se destacaro de maneira compreensiva as ligaes, as influncias e as conexes dos mltiplos fatores que interferem nas manifestaes do fenmeno. Para tal fim pretendemos lanar mo do mtodo geogrfico, no estudo do fenmeno da fome. nico mtodo que, a nossa ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe as razes que o ligam subterraneamente a inmeras outras manifestaes econmicas e sociais da vida dos povos. No o mtodo descritivo d antiga geografia, mas o mtodo interpretativo da moderna cincia geogrfica, que se corporificou dentro dos pensamentos fecundos de Ritter, Humboldt, Jean Brunhes, Vidal de La Blanche, Criffith Taylor e tantos outros. No queremos dizer com isto que o nosso trabalho seja estritamente uma monografia geogrfica da fome, em seu sentido mais restrito, deixando margem os aspectos biolgicos, mdicos e higinicos do problema: mas, que, encarando esses diferentes aspectos, sempre o faremos orientados pelos princpios fundamentais da cincia geogrfica, cujo objetivo bsico localizar com preciso, delimitar e correlacionar os fenmenos [pg. 34] naturais e culturais que ocorrem superfcie a terra. dentro desses princpios geogrficos, da localizao, da extenso, da causalidade, da correlao e da unidade terrestre, que pretendemos encarar o fenmeno da fome. Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecolgica, dentro deste conceito to fecundo de Ecologia, ou seja, do estudo das aes e reaes dos seres vivos diante das influncias do meio. Nenhum fenmeno se presta mais para ponto de referncia no estudo ecolgico destas correlaes entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles ocupam, do que o fenmeno da alimentao o estudo dos recursos naturais que o meio fornece para subsistncia das populaes locais e o estudo dos processos atravs dos quais essas populaes se organizam para satisfazer as suas necessidades fundamentais em alimentos. J Vidal de La Blanche havia afirmado h muito tempo que entre as foras que ligam o homem a um determinado meio, uma das mais tenazes a que transparece quando se realiza o estudo dos recursos alimentares regionais.6
Neste ensaio de natureza ecolgica tentaremos, pois, analisar os hbitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a determinadas reas geogrficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentao, com suas falhas e defeitos caractersticos, e, de outro lado, procurando verificar at onde esses defeitos influenciam a estrutura econmico-social dos diferentes grupos estudados. Assim fazendo, acreditamos poder trazer alguma luz explicativa a inmeros fenmenos de natureza social at hoje mal compreendidos por no terem sido levados na devida conta os seus fundamentos biolgicos. No se deduza da que, num exagero descabido de especialista obcecado pela importncia de seus problemas, iremos tentar a criao de qualquer nova teoria alimentar das civilizaes, num novo broto desta escola bissocial de inesgotvel fecundidade. Estamos longe desta maneira de ver, de tentativas como a do famoso escritor e jornalista mexicano Francisco Bulnes, que, no fim do sculo passado, um tanto influenciado pelas idias das hierarquias sociais, procurou explicar todas as diferenas entre os grupos culturais por seus tipos de alimentao: [pg. 35] A humanidade, de acordo com uma severa classificao econmica, deve ser dividida em trs grandes raas a raa do trigo, a raa do milho, e a raa do arroz. Qual delas indiscutivelmente superior? Com esta pergunta iniciava Bulnes o desenvolvimento do seu raciocnio para demonstrar que s a raa do trigo capaz de atingir as etapas da alta civilizao. No seu livro extraordinariamente interessante, se anotarmos a poca do seu aparecimento no sculo passado El Porvenir de las Naciones Hispano-Americanas ante las Conquistas de Europa y Estados Unidos (1889) Bulnes revela-se um paciente investigador e inteligente renovador do panorama mental americano, mas tambm um apaixonado de suas prprias idias, capaz de forar os argumentos para demonstrar a mais absurda das teses. No nosso ensaio no pretendemos provar nada de parecido. No queremos convencer ningum de que a fome seja a mola nica da evoluo social, nem que sejam os alimentos a nica matria-prima para fabricao das tintas com que so coloridos os diferentes quadros culturais do mundo, mas to-somente destacar desses quadros os traos negros da fome e da misria que tarjam quase todos eles com um friso mais ou menos acentuado.
3. Acreditamos que j tempo de precisar bem o nosso conceito demasiado extenso e, portanto, suscetvel de grandes confuses. No constitui objeto deste ensaio o estudo da fome individual, seja em seu mecanismo fisiolgico, j hoje bem conhecido graas aos magistrais trabalhos de Schiff, Lucciani, Turr, Cannon e outros fisilogos; seja em seu aspecto subjetivo de sensao interna, aspecto este que tem servido de material psicolgico para as magnficas criaes dos chamados romancistas da fome. Escritores corajosos que resolveram violar o tabu e nos legaram pginas geniais e hericas, como as de um Knut Hamsun, no seu romance Fome verdadeiro relatrio minucioso e exato das diferentes, contraditrias e confusar sensaes que a fome produziu no esprito do autor; como as de um Panait Istrati, vagando esfomeado nas luminosas plancies da Romnia; como as de um Felekhov e um Alexandre Neverov, narrando com dramtica intensidade a fome negra da Rssia em convulso social; como as de um George Fink, sofrendo fome nos subrbios cinzentos e srdidos de Berlim; e como as de um John Steinbeck, contando, em Vinhas da Ira, a epopia de fome da famlia Joad, atravs das mais ricas [pg. 36] regies do pas mais rico do mundo os Estados Unidos da Amrica. No esse tipo excepcional de fome, simples trao melodramtico no emaranhado desenho da fome universal, que interessa ao nosso estudo. 7 O nosso objetivo analisar o fenmeno da fome coletiva da fome atingindo endmica ou epidemicamente as grandes massas humanas. No s a fome total, a verdadeira inanio que os povos de lngua inglesa chamam de starvation, fenmeno, em geral, limitado a reas de extrema misria e a contingncias excepcionais, como o fenmeno muito mais freqente e mais grave, em suas conseqncias numricas, da fome parcial, da chamada fome oculta, na qual, pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populaes se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias. principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes especficas, em sua infinita variedade, que constitui o objetivo nuclear do nosso trabalho. Nos ltimos dez anos aps a publicao deste nosso livro, este conceito j ganhou foros internacionais. Por toda parte hoje se reconhece a existncia desses vrios tipos de fome, e se fala sem maior constrangimento na luta universal contra a fome, na batalha da fome etc. Deve-se, em grande parte, a implantao destes
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Sobre os aspectos fisiolgicos da fome. consulte-se a obra recente de Masseyeff. Ren. La Faim, 1956.
conceitos, at bem pouco considerados como revolucionrios e heterodoxos, prpria FAO, que, a princpio discreta e reticente em falar em fome, preferindo em seus relatrios referir-se subnutrio dos povos, acabou por aceitar a nomenclatura de fome, e a us-la largamente como conceitos ortodoxos, rigorosamente cientficos. Visamos com a publicao deste ensaio contribuir com uma parcela infinitesimal para a construo do plano de ressurgimento de nossa civilizao, atravs da revalorizao fisiolgica do homem. Poder, primeira vista, parecer uma desmedida pretenso que o autor de um estudo de categoria to modesta como este, lhe atribua qualquer interferncia por mnima que seja nos destinos universais da humanidade. Encontramos, porm, uma explicao e uma justificativa para nossa atitude, [pg. 37] na afirmativa recente do filsofo ingls Bertrand Russell de que nunca houve momento histrico no qual o concurso do pensamento e da conscincia individuais fosse to necessrio e importante para o mundo como em nossos dias. E mais ainda que todo homem, qualquer homem comum, poder contribuir para a melhoria do mundo.8 com esta mesma crena na obra de cooperao de cada um, de coparticipaco ativa na busca de um mundo melhor, que planejamos esta obra abordando o tema da fome em sua expresso universal, mostrando com que intensidade e em que extenso o fenmeno se manifesta nas diferentes coletividades humanas. 4. De fato, o conhecimento exato da situao alimentar dos povos, dos recursos de que podero dispor para satisfazer suas necessidades de nutrio, absolutamente indispensvel para que se leve a bom termo a revoluo social que se processa com incrvel velocidade nos dias em que vivemos. Revoluo que, segundo se vislumbra pelas transformaes j processadas, est criando universalmente um novo sistema de vida poltica, que poderemos chamar, como sugere Julian Huxley, 9 a era do homem social, em contraposio a essa outra era que terminou com a Segunda Guerra Mundial, a era do homem econmico. O que caracteriza fundamentalmente esta nova era uma focalizao muito mais intensa do homem biolgico como entidade concreta e a prioridade concedida aos problemas humanos sobre os problemas de categoria estritamente econmica no sentido da clssica economia do
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Russell, Bertrand, Essais Sceptiques, Paris. Huxley, Julian, On Living in a Revolution, 1944.
lucro. Realmente, enquanto at a ltima guerra a nossa civilizao ocidental, em seu exagero de economismo, quase esquecera o homem e seus problemas, preocupandose morbidamente em conquistar pela tcnica todas as foras naturais, pondo todo o seu interesse nos problemas de explorao econmica e de produo de riqueza, vislumbra-se hoje o estabelecimento de formas polticas dispostas a sacrificar os interesses do lucro pelos interesses reais das coletividades. a tentativa cada vez mais promissora de pr o dinheiro a servio do homem e no o homem escravo do dinheiro. De dirigir a produo de forma a satisfazer as necessidades dos grupos humanos [pg. 38] e no deixar o homem matando-se estupidamente para satisfazer os insaciveis lucros da produo. Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a tenebrosa noite do fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um documentrio cientfico desta tragdia biolgica, na qual inmeros grupos humanos morreram e continuam morrendo de fome, ao finalizar-se esta escabrosa era do homem econmico. Para que se compreenda bem e se possa perdoar o uso que faz o autor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras, bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentrio de uma era de calamidade, foi pensada e escrita sob a influncia psicolgica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos ltimos vinte anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e dos canhes, pela presso das censuras polticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos vencidos e aniquilados pela fome. Atmosfera que o socilogo Sorokin pinta com as seguintes palavras: vivemos e agimos numa era de grandes calamidades. A guerra, a revoluo, a fome e a peste cavalgam novamente em nosso planeta. Novamente elas cobram seu mortfero tributo humanidade sofredora. Novamente elas influenciam cada momento da nossa existncia: nossa mentalidade e nossa conduta, nossa vida social e nossos processos culturais.10 Devemos confessar honestamente que no nos foi possvel fugir na elaborao do nosso trabalho a to dominadora influncia. 5. Vrias foram as razes que nos levaram a planejar a realizao desta obra
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em mais de um volume. A primeira delas a desmedida extenso do seu campo de observao, abrangendo todos os continentes, investigando as condies de vida nos mais variados recantos da superfcie da terra. Por mais impressionista que seja o retrato que tentamos pintar de cada uma das regies estudadas, no possvel sintetizar os seus traos caractersticos atm de certos limites. A segunda razo se fundamenta na evidncia de que um estudo de tal envergadura, mesmo quando as condies so as mais favorveis sua execuo, leva vrios anos para ser completado e a paciente espera para publicar todo o trabalho em conjunto tornaria um tanto antiquadas [pg. 39] certas indicaes bibliogrficas e certos aspectos de atualidade do problema em suas manifestaes regionais. Considerando que o Brasil constituiu o nosso laboratrio natural de observao sobre o problema a cujo estudo nos dedicamos h mais de vinte e cinco anos, achamos de toda a convenincia concentrarmo-nos de incio na anlise do fenmeno da fome no nosso pas, de sua influncia como fator biolgico na formao e evoluo dos nossos grupos humanos. Estudando o fenmeno da fome no nosso meio, daremos um balano geral das influncias de categoria biolgica que tm interferido e pesado na modelagem de nossa cultura e de nossa civilizao. Buscando essa valorizao dos fatores de categoria biolgica, no quer dizer que desprezemos a importncia dos fatores de natureza cultural, fatores da categoria do latifundismo agrrio-feudal que tanto deformou o desenvolvimento da sociedade brasileira. Isto inegvel. O que tentaremos mostrar que, mesmo quando se trata da presso modeladora de foras econmicas ou culturais, elas se fazem sentir sobre homem e sobre o grupo humano, em ltima anlise, atravs de um mecanismo biolgico: atravs da deficincia alimentar que a monocultura impe, atravs da fome que o latifndio gera, e assim por diante. No defenderemos, pois, nenhuma primazia na interpretao da evoluo social brasileira. Nem o primado do biolgico sobre o cultural, nem o do cultural sobre o biolgico. O que pretendemos pr ao alcance da anlise sociolgica certos elementos do mecanismo biolgico de ajustamento do homem brasileiro aos quadros naturais e culturais do pas.11
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Sobre a participao do biolgico no mecanismo social consulte-se a srie de interessantes estudos reunidos pelo eminente antroplogo R. Redfield, no livro Leveis of Integracion in Biological and Social Systems (1942). De grande valia para uma orientao firme nesse campo cientifico tambm a obra de G. F. Gause The Struggle for Exis-tence (1934). Alexander Lipschtz, no seu interessante livro El Indo-americanismo y el Problema Racial en las Amricas, apresenta-nos um bom exemplo de aplicao bem orientada dos mais modernos
No temos a pretenso de investigar a fundo, numa sondagem definitiva, a influencia de todos os fatores dessa categoria: raa, clima, meio bitico, etc., que constituem a base orgnica da estrutura social dos nossos grupos humanos. Estudando, porm, [pg. 40] os recursos e os hbitos alimentares de vrias regies, teremos forosamente que levar em considerao todos esses fatores ecolgicos que participam ativamente na interao do elemento humano e dos quadros geogrficos brasileiros. Caracterizando o tipo de alimentao e os variados tipos de fome que tem sofrido a nossa gente, estamos certos de que faremos refletir nessas caractersticas biolgicas, com maior exatido do que atravs do estudo de quaisquer outras manifestaes de natureza ecolgica, o grau de adaptao e ajustamento dos diferentes grupos regionais de nossas populaes s variadas zonas geogrficas do pas. E so exatamente as expresses dessas variadas formas de adaptao que do relevo fisionomia cultural de uma nao. por isso que julgamos ser este volume, at certo ponto, uma tentativa de interpretao biolgica de determinados aspectos da formao e da evoluo histrico-sociais brasileiras. O nosso projeto inicial era escrever vrios volumes sobre o fenmeno da fome universal um volume sobre cada continente assolado por este flagelo social. A marcha dos trabalhos, a repercusso internacional que provocou o primeiro volume acerca do Brasil e a necessidade um tanto urgente de apresentar um panorama universal da matria nesta hora grave do mundo, em que a humanidade se confronta com dois trgicos problemas o da guerra e do medo da guerra e o da fome e do medo da fome todos estes fatores em conjunto alteraram o nosso plano inicial. Chegamos, pois, concluso de que, aps apreciar regionalmente o problema da fome no Brasil, seria til apresentar o panorama do mundo em conjunto, dentro do mesmo mtodo de estudo, embora sem a mesma riqueza de detalhes que um trabalho de categoria universal no poderia comportar. Assim, escrevemos e publicamos a nossa Geopoltica da Fome, que dentro do nosso esquema geral constituiu a segunda parte do nosso estudo do problema da fome em sua significao biolgica, econmica e social.
conceitos de sociologia, na anlise do biolgico e do social na organizao dos diferentes grupos de populao deste continente.
A generosa acolhida que recebeu a Geopoltica da Fome no mundo inteiro, sendo traduzida em dezenove lnguas e agraciada com o Prmio Roosevelt, concedido nos Estados Unidos ao melhor livro publicado durante o ano sobre
assuntos sociais e de bem-estar humano, e com o Prmio Internacional da Paz, pelo Conselho Mundial da Paz, d-nos a impresso de que fizemos [pg. 41] bem em tomar esta deciso de concentrar nossa ateno no estudo do problema em sua expresso universal correlacionando a crise biolgica da fome mundial com a crise poltica em que o mundo se debate atualmente. E procurando demonstrar que o caminho da paz e da felicidade humana est numa economia de abundncia, na luta contra a fome e a misria e na vitria integral contra o medo tanto da fome como da guerra. Medo que ameaa paralisar a capacidade criadora do homem e. portanto, provocar o desmoronamento de toda a civilizao.*
* Estes esclarecimentos, escritos para o prefcio 9. edio da Geografia da Fome, foram mantidos nesta edio para que o leitor possa situar-se dentro do nosso plano de estudo e colocar-se a par das razes que determinaram nossa conduta diante do problema em equao.
6. Acreditamos dever ainda ao leitor, principalmente ao leitor estrangeiro, uma explicao e uma ltima advertncia. A explicao visa a esclarecer as razes que levaram o autor a dedicar dois volumes de sua obra ao estudo de um s pas, o Brasil, concentrando em dois outros volumes o estudo do mundo inteiro. No foram razes de ordem sentimental, nem de supervalorizao patritica que nos ditaram essa conduta: foram razes de ordem didtica. O Brasil constituiu o nosso campo de observao e de experimentao diretas do problema. De comprovao de inmeros aspectos doutrinrios da questo e de ensaio e verificao de muitas hipteses que formulamos sob aspectos particulares nesse setor cientfico. O seu vasto territrio com diferentes categorias de climas tropicais, desde o equatorial supermido da Amaznia at o tropical seco e semi-rido do serto do Nordeste e o subtropical com seus variados tipos de organizao econmica, apresenta condies excepcionais para uma larga investigao do problema da alimentao nos trpicos. Nenhum pas do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para funcionar como um verdadeiro laboratrio de pesquisa social deste problema. Os resultados das observaes e investigaes que aqui procedemos durante vinte e tantos anos, e que so apresentados neste ensaio, podero permitir, pela aplicao do mtodo comparativo, generalizaes at certo ponto vlidas para inmeras outras regies tropicais do mundo. Acentuar, pois, certos detalhes do caso brasileiro, nesse estudo da geografia da fome, significa [pg. 42] procurar ilustrar
com exemplos concreto o estudo do fenmeno em diferentes reas geogrficas que apresentem condies naturais ou culturais mais ou menos semelhantes s deste pas. Ademais, desenvolvendo neste estudo certos aspectos doutrinrios da questo para sua melhor compreenso por parte dos no iniciados na matria, fomos poupados de voltar ao assunto na Geopoltica da Fome, em que apresentamos em forma mais densa traos e fatos objetivos que caracterizam as inmeras reas geogrficas analisadas. H, no entanto, um perigo em publicar separadamente esse estudo das reas de fome no Brasil, destacado das outras reas de fome do continente. Perigo de que, por desconhecimento ou por m f, possa algum julgar serem as condies de vida no nosso pas, na hora atual, mais graves e mais difceis do que no resto da Amrica. Afirmativa que est longe de ser verdadeira. Na maioria dos pases da Amrica Latina, conforme pudemos verificar em visitas locais e atravs de documentos estatsticos e informes cientficos obtidos, as condies de vida so ou idnticas ou ainda mais precrias do que as do Brasil. Temos uma confirmao destas palavras no resumo que, acerca das condies de vida na Amrica Latina, apresentaram George Soule, David Efron e Norman T. Ness, no seu livro Latin America in The Future World (1945). Como se trata de uma publicao que resume os resultados de minucioso inqurito levado a efeito atravs do continente por notveis investigadores e peritos, supervisionados pela National Planning Association, cuja idoneidade tcnica est acima de qualquer suspeita, parece-nos recomendvel transcrever na ntegra os 13 itens em que os autores registram os aspectos mais significativos da vida econmico-social desta larga poro do continente americano: A necessidade de encarar realisticamente os problemas da Amrica Latina tornou-se urgente depois da guerra. A participao desses povos, na reconstruo do novo mundo, imprescindvel e valiosa. Como, porm, tornar possvel essa participao? Quais so as condies existentes entre esses povos? O que se segue ajuda a compreender a situao desses pases:
1.) Dois teros, talvez mais, das populaes da Amrica Latina so de subnutridos, apresentando-se mesmo as populaes [pg. 43] de certas regies em
estado de fome absoluta. A maioria mal nutrida, mal vestida e mal alojada.
2.) Trs quartos da populao da maior parte dos pases da Amrica Latina so de analfabetos; nos pases restantes a proporo de analfabetos varia de 20 a 60%.
4.) Dois teros da populao da Amrica Latina no gozam dos benefcios da assistncia social.
5.) Cerca de um tero das populaes trabalhadoras (especialmente milhes de trabalhadores ndios) continua sem participao alguma na vida econmica, social e cultural da comunidade latino-americana. O poder aquisitivo do ndio , em muitas reas, igual a zero. Com exceo do Mxico, ele politicamente um cidado de segunda classe.
7.) Uma surpreendente maioria da populao rural no possui terra. Dois teros, se no mais, dos recursos agrcolas, florestais e o gado pertencem ou so controlados por uma minoria de senhores de terra nacionais e por organizaes estrangeiras.
8.) A maior parte das indstrias extrativas da Amrica Latina pertence ou controlada por organizaes estrangeiras, sendo considervel parte dos lucros desviada dos vrios pases. Da mesma forma muitas das instituies de produo e distribuio so controladas pelo capital estrangeiro ausente.
particularmente instveis, dependendo das flutuaes do mercado estrangeiro. A concentrao numa espcie de indstria extrativa ou a monocultura de produtos de sobremesa (caf, acar, cacau, banana, etc.) para o consumo externo mais que para o consumo interno, arrastaram vrias regies latino-americanas beira da runa econmica. [pg. 44]
10.) O comrcio interno e o intercmbio comercial dos pases latinoamericanos so essencialmente rudimentares. Existe grande desequilbrio econmico entre diferentes zonas de um mesmo pas, como tambm entre os vrios pases. As limitadas oportunidades de intercmbio comercial nos pases latino-americanos so semelhantes s do sculo XVI, quando a Espanha, por intermdio da Cmara de Contratos de Sevilha, proibia as colnias latino-americanas de negociar entre si. O intercmbio latino-americano representa apenas 7% do comrcio total da Amrica Latina.
11.) A estrutura semicolonial da economia latino-americana reflete-se nos meios de transporte: as estradas de ferro e a navegao martima destinam-se, na maior parte, ao transporte de matrias-primas do interior para os pontos de embarque para o estrangeiro e ocasionalmente para o desenvolvimento do mercado interno. Essa deficincia de transportes fator importante do limitado intercmbio latinoamericano.
12.) Com exceo da Colmbia, Argentina, Brasil e Uruguai, a percentagem de indivduos produtivos ou dos bem remunerados muito mais baixa do que nos Estados Unidos ou na Europa (cerca de 31% enquanto a dos Estados Unidos, no tempo do desemprego, era de 30,8%). Essa alta proporo de populao no aproveitada constitui um grande peso para a parte economicamente produtiva.
13.) A capacidade produtiva do trabalhador latino-americano muito inferior do americano ou do europeu, pelas razes acima expostas subnutrio, ignorncia e falta de aparelhagem adequada.
Pela leitura da Geopoltica da Fome, em que so apresentadas as manchas de fome da Amrica Espanhola, o assunto ficar bem compreendido e afastado o perigo das interpretaes errneas. No se pode, pois, tirar concluses de qualquer paralelo entre a situao do Brasil e a de outros pases da Amrica, seno tomando por base de comparao trabalhos que apresentem um retrato fiel da realidade social desses pases, destacando os seus traos mais significativos, com o mesmo realismo isento de preconceitos, com que estudamos a situao alimentar no Brasil. [pg. 45] Se no so muito abundantes os estudos sobre as condies alimentares na Amrica Latina, h, no entanto, alguns trabalhos que nos permitem ajuizar bem delas, podendo ser considerados documentos absolutamente idneos. Veja-se, assim, para uma viso de conjunto, o trabalho de Woodbury Food Consumption and Dietary Surveys in The Americas (1942); E o notvel livro de George Soule, David Efron e Norman T. Ness Latin America in the Future World (1945). Para estudo em separado dos diversos pases, consulte-se, entre outros, os seguintes trabalhos: Alfredo Ramos Espinosa La Alimentacin en Mxico, Mxico, 1939; Arturo Guevara El Poliedro de la Nutricin Aspectos econmico y Social del Problema de la Alimentacin en Venezuela, Caracas, 1944; E. Quintana El Problema Diettico del Caribe in Amrica Indgena Mxico, abril, 1942; Jorge Bejarano Alimentacin y Nutricin en Colombia Bogot. 1941; Pablo A. Suarez La Situacin Real del ndio en Equador in Amrica Indgena Mxico, janeiro, 1942; Salvador Allende La Realidad Mdico-Social Chilena Santiago, 1939; J. Maudones e R. Cox La Alimentacin en Chile, Estudios del Consejo Nacional de Alimentacin Santiago, 1942; e Francisco A. Montalto La Nutricin en el Paraguay 1956. Que a situao alimentar da Amrica Latina pouco mudou nos ltimos anos, apesar dos esforos empreendidos por governos e instituies internacionais, pode deduzir-se atravs dos relatrios das trs Conferncias Latino-Americanas de Nutrio, convocadas sob o patrocnio da FAO por proposta pessoal nossa, quando delegado do Brasil, em 1947, e que se reuniram, com a colaborao da Organizao Mundial de Sade, respectivamente em julho de 1948 em Montevidu, em junho de 1950 no Rio de Janeiro, em outubro de 1953 em Caracas. Essa situao se confirma ainda atravs do bem elaborado relatrio da CEPAL (Comisso econmica para a America Latina), publicado em agosto de 1955
sob o ttulo: A Expanso Seletiva da Produo Agropecuria na Amrica Latina e suas Relaes com o Desenvolvimento econmico. De uma simples referncia ali encontrada pode deduzir-se da falta de recursos alimentares para sanar o estado de fome reinante em nosso Continente: A produo agrcola entre o perodo de antes da guerra e 1954-1955 cresceu de 35% mas a mdia de produo per capita caiu de 8%, no mesmo lapso de tempo. [pg. 46] A verdade que a Amrica Latina uma das poucas regies do mundo onde a produo agrcola no tem acompanhado o aumento da populao, quando a produo total do mundo nos ltimos anos sobrepujou sensivelmente o aumento populacional.
7. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor esboar um retrato do Brasil de cerca de quinze anos atrs. Do Brasil que era ento um pas tipicamente subdesenvolvido, com sua caracterstica economia de tipo colonial, na exclusiva dependncia de uns poucos produtos primrios de exportao, entre os quais se destacava o caf. Ao retratarmos a fome no Brasil estvamos a evidenciar o seu subdesenvolvimento econmico, porque fome e
subdesenvolvimento so uma mesma coisa. Foi esta conjuntura econmico-social com todas suas trgicas conseqncias que inspirou este ensaio. Que nos levou a tentar o levantamento cientfico de uma geografia da fome. Em sucessivas edies que ocorreram desde ento, procuramos sempre reajustar o nosso trabalho realidade vigente, o que no constituiu tarefa difcil porque o pas no mudara muito nestes aspectos de sua estrutura social. Bastaram algumas atualizaes dos dados estatsticos e pequenos retoques para que o retrato permanecesse vlido e vlida, pois, a interpretao apresentada da realidade social brasileira. Nos ltimos anos vem entretanto o Brasil sofrendo uma profunda transformao em sua economia, a qual embora nem sempre traduza um autntico progresso social, capaz de melhorar as condies de vida do seu povo, tem de qualquer forma provocado substancial alterao no quadro da realidade social brasileira. O Brasil inicia com vigor a sua emancipao econmica e fugindo ao crculo de ferro do subdesenvolvimento se projeta na fase construtiva de seu desenvolvimento autnomo.
J no somos um pas simplesmente agrcola e de pura economia colonial. A industrializao se vem processando nos ltimos anos em ritmo acelerado, deslocando sensivelmente o eixo da nossa economia. Esta transformao substancial da vida econmica brasileira inspirou ao autor deste livro uma reviso mais acurada de alguns dos seus traos mais significativos, das principais tendncias de sua dinmica social para que este ensaio no viesse a perder o seu sentido de um documento interpretativo [pg. 47] desta realidade. E foi o que resolvemos fazer ao prepararmos esta 9.a edio da Geografia da Fome: trazer para o quadro de nossas investigaes as incgnitas que se levantam neste momento de transio por que atravessa o Brasil. Principalmente perplexidade que at certo ponto se cria diante da experincia indita do nosso desenvolvimento econmico, o qual foge, sob vrios aspectos, s regras tericas da economia clssica. Neste ponto o livro que ora apresentamos representa uma verdadeira inovao sobre as suas edies anteriores. um livro revitalizado por novas indagaes de semiologia econmica para reajustar o primitivo diagnstico formulado. quase que um novo livro, utilizando o mesmo mtodo de investigao, a mesma perspectiva de anlise dos problemas e muitos dos materiais de base j expostos, mas tudo completado por uma nova formulao da realidade do Brasil atual e da atual conjuntura econmica e social do mundo, bem diferentes das de 1946. Neste sentido nos detivemos principalmente em analisar os efeitos atuais e futuros deste tipo de desenvolvimento econmico que se processa no Brasil de hoje e na necessidade de reajust-lo em certos pontos para corrigir os desvios, os desequilbrios e as distores que podero criar que j esto criando srios impactos ao verdadeiro progresso e ao bem-estar social a que aspiram as populaes nacionais. A experincia brasileira por sua originalidade e por sua extenso constitui mesmo um exemplo significativo para orientao de outros pases que se esforam no momento por vencer o estgio de subdesenvolvimento. Os nossos erros e os nossos acertos merecem, pois, uma anlise mais profunda e se possvel algumas dedues genricas que possam conduzir formulao de uma nova teoria do desenvolvimento das regies subdesenvolvidas. Uma teoria mais emancipada das formulaes livrescas, de uma economia clssica de gabinete e das utopias de
exportao forjadas nos grandes centros de estudo dos pases ricos e bem desenvolvidos para serem impostas artificialmente aos pases de economia dependente. O drama atual do Brasil, que . promover o seu desenvolvimento, com suas escassas disponibilidades, em ritmo acelerado e sem sacrificar as aspiraes de melhoria social de seu povo, constitui a pedra de toque da acuidade poltica dos nossos dirigentes. A conscincia nacional despertada acompanha alerta [pg. 48] o desenrolar da odissia de nossa emancipao econmica, com os seus avanos e recuos, e dela participa de corpo e alma. Nenhum problema se sobrepe no equacionamento, planificao e na execuo de um programa desenvolvimentista, ao da prioridade dos investimentos, de forma a evitar os desequilbrios graves que depressa se constituem como fatores de estrangulamento de toda a economia. O dilema de apoiar-se mais a economia no setor agrcola ou no setor industrial o dilema do po ou do ao para atender s verdadeiras necessidades do pas, se apresenta como o fio da navalha que pode pr em perigo todos os sacrifcios e esforos despendidos pela coletividade. nesta contingncia que o nosso mtodo de estudo talvez possa trazer alguma luz a este angustiante problema, mostrando at que ponto o progresso econmico realizado tem sido favorvel e at que ponto tem ele fracassado no sentido de melhorar as condies de alimentao do nosso povo alargando as negras manchas de misria de nossa geografia da fome. E servindo desta forma este nosso ensaio como uma modesta contribuio na reformulao de nossa poltica econmica ainda bem incipiente em seus mtodos de ao. 8. Ao publicar esta. 9.a edio da Geografia da Fome, em forma que julgo de uma edio definitiva, atualizada e ampliada em dois volumes, desejo aproveitar a oportunidade para formular os meus agradecimentos a todos aqueles que prestaram na realizao deste projeto sua valiosa cooperao, sem a qual dificilmente seria possvel ao autor se aventurar a empreend-lo. Abrange este agradecimento a toda espcie de ajuda e colaborao, desde os servios prestados por um Tom Spies, quando atendendo a nosso pedido envia-nos com toda presteza uma srie de
interessantes subsdios sobre a situao alimentar no sul dos Estados Unidos, at a espontnea colaborao dum simples sertanejo de So Joo do Cariri, que nos manda amostras de mel de abelha e de farinha de macambira para verificao do seu valor nutritivo. Considerando no entanto que foram inmeras essas colaboraes, limitaremos as referncias nominais no momento queles que ajudaram a elaborao dos dois volumes sobre o Brasil. Sobre os outros, sobre o envio de valiosos materiais, informes e conselhos referentes ao problema em outras regies do mundo, [pg. 49] nos reservaremos para apresentar nossos agradecimentos com o aparecimento dos volumes que cuidem diretamente do estudo dessas reas. Fica aqui consignada a nossa gratido a todos os nossos colaboradores no extinto Servio Tcnico de Alimentao Nacional, e no atual Instituto de Nutrio da Universidade do Brasil, em cujos laboratrios foram realizadas algumas das pesquisas referidas neste trabalho. Desses colaboradores destacamos os nomes de Slvio de Azevedo e Pedro Borges pela coleta de dados estatsticos que levaram a efeito com o fim de fornecer ao autor uma documentao mais objetiva de certos aspectos do problema; de talo Mattoso, Emlia Pechnik, Isnard Teixeira e Jos Maria Chaves pelas anlises que realizaram acerca do valor nutritivo de vrios alimentos brasileiros e a cujos resultados nos reportamos neste ensaio; de Clementino Fraga Filho pela constante colaborao no esclarecer certos aspectos mdicos e higinicos das carncias alimentares em nosso pas, e de Firmina Santana pelas tbuas de composio de alimentos que organizou e que nos foram de grande ajuda neste trabalho. Agradecemos nossa assistente na cadeira de Geografia Humana na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, Professora Lucy de Abreu, pela dedicao e pelo interesse com que realizou buscas bibliogrficas de alta valia na execuo deste trabalho. Ao nosso prezado amigo, o ilustre antroplogo baiano Thales de Azevedo, e ao eminente nutrlogo Orlando Parahym, pelos valiosos informes que nos prestaram, respectivamente acerca das condies alimentares no recncavo baiano e nos sertes de Pernambuco, e a este ltimo ainda pelos envios de materiais alimentos sertanejos que nos fez vrias vezes para anlises no Instituto de Nutrio da Universidade do Brasil.
Ao saudoso Professor Jorge Zarur pela prestimosidade com que ajudou a seleo e a incluso nestes volumes do material ilustrativo retirado dos arquivos do Conselho Nacional de Geografia. Ao higienista Oswaldo Costa, nosso colaborador de h muito, pelas sugestes e dados fornecidos sobre aspectos epidemiolgicos do Brasil. Ao nosso estimado colega Dr. Cludio Arajo Lima por nos ter confiado os originais inditos de um estudo da autoria de seu saudoso pai, o mdico e socilogo Arajo Lima, acerca da Alimentao da Amaznia trabalho apresentado ao Congresso [pg. 50] Mdico Amaznico, reunido em 1939, em Belm, do qual tambm participamos, e no qual este grande estudioso de problemas brasileiros fixa interessantes aspectos da dieta do homem que habita esta extensa rea do pas. A Luiz da Cmara Cascudo pelas sugestes que dele recebemos em saborosas conversas ou atravs de cartas mandadas do Nordeste, tratando principalmente de um projeto que os acasos da vida no nos permitiram realizar, o de escrevermos em colaborao uma histria da cozinha brasileira. A Edson Carneiro, srio estudioso dos problemas negros no Brasil, pela amabilidade que teve de nos emprestar os originais do seu livro ainda indito sobre os Palmares, pondo ao nosso alcance informaes de primeira ordem sobre a agricultura dos negros fugidos dos engenhos do Nordeste e acantonados nos Quilombos. Ao meu saudoso amigo Joo Alberto Lins de Barros, conhecedor profundo dos problemas rurais do Brasil, atravs da experincia viva e direta de suas realidades singulares, pelos reparos que sugeriu a certos trechos deste livro e pelos relatos que nos fez de observaes pessoais de inestimvel valia. Ao amigo Queiroz Lima, pelo interesse quase que dirio no desenvolvimento deste trabalho, trazendo sempre estmulos e sugestes. Ao eminente socilogo norte-americano Lynn Smith no s por ter permitido a incluso, neste livro, de. um sugestivo mapa de sua autoria sobre a evoluo demogrfica do Brasil, como por conselhos valiosos e oportunos reparos que fez, na leitura de alguns captulos. Ainda um nome deve ser mencionado com gratido entre os dos que estimularam o autor na realizao deste ensaio: o do meu amigo J. Barboza Mello que se props inicialmente a editar este trabalho, pelos constantes apelos que nos fez para que terminssemos quanto antes este estudo, a seu ver no inteiramente
destitudo de significao social, neste momento que atravessa nosso pas, buscando atingir sua maioridade poltica. Somos tambm profundamente gratos magnfica contribuio que nos trouxe o nosso ilustre colega Prof. Tomaz Coelho, catedrtico de Geologia na Faculdade Nacional de Filosofia, dando-se ao trabalho de organizar e traar um mapa de tipos de solo no Brasil, especialmente para ilustrar este livro, servindo para demonstrar de maneira mais viva a ntima correlao existente entre solos regionais, tipos de alimentao e organizaes sociais dos diferentes grupos humanos. A Jos Honrio Rodrigues [pg. 51] por sua amvel cooperao facilitando enormemente as nossas consultas bibliogrficas na Biblioteca Nacional. A Joo Carlos Vital por ter permitido a incluso neste livro de um mapa da incidncia da tuberculose no pas, organizado sob sua orientao pelo Instituto de Servios Sociais do Brasil. Agradecimentos idnticos merecem o Dr. Gallotti, ex-diretor do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, por ter permitido a reproduo de mapas e de fotografias deste departamento na ilustrao de nosso trabalho. A Percy Lau e M. Medina somos gratos pelo interesse que puseram em ilustrar de maneira inteligente este livro, com desenhos e mapas que muito recomendam os seus mritos pessoais de desenhista e cartgrafo. nossa ento secretria, Diva Maria Guerra, e Senhorita Jacqueline Hermann pelo trabalho que tiveram em datilografar e rever cpias deste estudo. Sinceros agradecimentos so tambm devidos a Joo Farias da Silva pelo carinho com que se aplicou ao rduo trabalho de reviso das provas tipogrficas e de organizao dos ndices deste nosso ensaio em sua primeira edio. Deve ser associado a este livro o nome de minha esposa, Glauce de Castro, que entre todos os nossos colaboradores foi o que mais se esforou e mais ajudou na sua elaborao. Merece um agradecimento muito especial o editor Arquimedes de Mello Netto, da Casa do Estudante do Brasil, que se empenhou h algum tempo em lanar uma edio popular desta obra, tornando-a mais acessvel s classes trabalhadoras do pas. Iniciativa que me proporcionou satisfao maior do que as edies estrangeiras que este livro alcanou. que quando o escrevi sempre tinha em mente o fato de que s com a colaborao ativa das massas trabalhadoras, esclarecidas pelo
conhecimento exato de nossas realidades econmicas e sociais, seria possvel resolver-se, em nossa terra, problemas de to tremenda complexidade, como o nosso problema alimentar. E tendo a impresso de que no momento essas massas trabalhadoras esto realmente ansiosas por conhecer os nossos problemas de base, entre os quais se insere, com indiscutvel prioridade, o da alimentao. Ou melhor, o da subalimentao e o da fome no Brasil. Enquanto alguns apregoam que para salvar o pas se faz necessria a reeducao das elites, aparentemente to desviadas de seus deveres cvicos, de dirigir a vida pblica, eu sou [pg. 52] daqueles que acreditam que a nossa salvao est muito mais na educao adequada das massas, no seio das quais se encontram enormes reservas humanas at hoje deixadas margem da ao poltica e social pela falta de recursos educacionais adequados e melhor distribudos. Nenhuma outra misso me parece, pois, mais nobre do que a de integrar na conscincia cvica do pas estas populaes marginais que pressentem os perigos e as angstias da hora presente, mas se sentem incapazes de agir na busca de um caminho seguro, pela falta de uma viso clara de nossos problemas fundamentais. Nenhum convite poderia ser mais tentador para mim do que o de utilizar este livro como instrumento de captao do interesse do povo, para soluo de um dos mais graves e trgicos problemas do prprio povo: o problema da carestia da vida e das conseqncias funestas da subalimentao. O ltimo dos agradecimentos dirige-se ao nosso colaborador, o Engenheiro Agrnomo Alarico da Cunha Jnior, que se tem dedicado com excepcional desvelo ao trabalho de reviso geral de vrias edies deste livro, e minha secretria, D. Thaly Vsquez, que se ocupa da tarefa de datilograf-lo.
I. INTRODUO
1. Quando se l ou se ouve falar sobre fomes coletivas, sobre angustiadas massas humanas atacadas de epidemias de fome, definhando e morrendo falta de um pouco de comida, as primeiras imagens que assaltam a nossa conscincia de homens civilizados so imagens tpicas do Extremo Oriente. Imagens evocativas das superpovoadas terras asiticas com seus enxames humanos se agitando numa estril e perptua luta contra o ameaador espectro da fome. Massas pululantes de esqulidos coolies chineses. Manchas compactas de ascticos indianos envolvidos em suas longas tnicas, lembrando uma procisso de mmias. Desesperadas multides comprimidas nas sinuosas ruelas das cidades orientais, atoladas na lama imunda dos arrozais, asfixiadas de poeira nas estradas da China, estorricadas pelas secas peridicas. Multides famintas que revelam em seus rostos, em seus gestos e em suas atitudes fatigadas a marca sinistra da fome. Tais so os cenrios e os personagens a que nossa imaginao sempre recorreu para dar vida aos dramas da fome coletiva. Hoje, quelas clssicas imagens se vm juntar outras de maior atualidade. Imagens dos campos de concentrao e das cidades e dos campos europeus devastados pela tirania nazi durante a ltima guerra mundial. Imagens de homens, mulheres e crianas perambulando como fantasmas num mundo perdido, com os olhos esbugalhados flutuando fora das rbitas e com os molambos de vesturios balanando grotescamente sobre a armao dos esqueletos saltando flor da pele. [pg. 55] Para o leigo, para aqueles que tm conhecimento da fome apenas atravs do noticirio dos jornais, reduzem-se a estas duas grandes regies geogrficas o Oriente extico e a Europa devastada as reas de distribuio da fome, atuando
como calamidade social. Infelizmente esta uma impresso errada, resultante da observao superficial do fenmeno. Na realidade, a fome coletiva um fenmeno social bem mais generalizado. um fenmeno geograficamente universal, no havendo nenhum continente que escape sua ao nefasta. Toda a terra dos homens tem sido tambm at hoje terra da fome. Mesmo nosso continente, chamado o da abundncia simbolizado at hoje nas lendas do Eldorado, sofre intensamente o flagelo da fome. E, se os estragos desse flagelo na Amrica no so to dramticos como sempre foram no Extremo Oriente, nem to espetaculares como se apresentaram nos ltimos anos na Europa, nem por isso so menos trgicos, visto que, entre ns, esses estragos se fazem sentir mais sorrateiramente, minando a nossa riqueza humana numa persistente ao destruidora, gerao aps gerao. preciso que se confesse corajosamente que a terra da promisso, para a qual foram atrados, s no sculo passado, cem milhes de imigrantes europeus, que procuravam fugir s garras da pobreza, tambm uma terra onde se passa fome, onde se vive lutando contra a fome, onde milhes de indivduos morrem de fome. A pouca gente que habita continentes distantes poderia ocorrer a idia de que a Amrica, com suas enormes reservas naturais, na maior parte inexploradas, com tanta terra disposio de to pouca gente e com uma larga faixa do territrio ocupada pelo povo mais industrioso e ativo do mundo os americanos do norte no dispe do mnimo indispensvel de alimentos para satisfazer as necessidades de cada um dos seus 350 milhes de habitantes. No entanto, a verdade que estamos muito longe deste ideal. Os inquritos sociais e os levantamentos estatsticos levados a efeito em diferentes zonas do continente vieram mostrar que por toda parte as populaes americanas continuam expostas s conseqncias funestas da subnutrio e da fome. Se at quase aos nossos dias o fenmeno no produziu eco porque as populaes da Amrica no se conheciam. A Amrica vivia como ilustre desconhecida, muito mais preocupada pelas coisas dos outros continentes, principalmente da fascinante [pg. 56] Europa, do que pelos seus prprios
problemas. Cada pas do continente americano vivendo sua vida fechada, isolandose uns dos outros, econmica e culturalmente: ignorando-se cordialmente uns aos
outros como bons vizinhos discretos e presumidos. Que pas americano ousaria confessar que suas populaes andavam passando fome, quando seus vizinhos bancavam ares de abundncia e de riqueza? Nesta atitude de mascarados, os pases da Amrica continuaram escondendo suas misrias, enquanto puderam. Hoje, com a predominncia cada vez mais efetiva das idias universalistas, da poltica de portas abertas, estas misrias acabaram por transparecer. Por se apresentarem com inegvel evidncia, nos dados estatsticos das respectivas produes nacionais e nos diferentes ndices reveladores das condies de vida das populaes. Uma das mais graves misrias das terras da Amrica o estado de fome em que vegetam as populaes deste continente. E no s das que vivem na parte mais pobre, ainda no suficientemente explorada, na Amrica Latina: mas tambm na parte mais rica e civilizada, na Amrica Inglesa. Como veremos oportunamente, numa extensa rea dos Estados Unidos da Amrica, no seu velho Sul agrrio, continua muita gente a morrer de fome, continuam a manifestar-se entre as populaes locais graves doenas, causadas unicamente pela falta de uma alimentao adequada. Na parte do continente que corresponde Amrica Latina, o fenmeno ainda mais grave. Mais de dois teros da populao desta rea passam fome, sendo que em algumas zonas a fome alcana trs quartas partes da populao. Todas as carncias alimentares tm sido encontradas nas diferentes reas deste continente. Carncias proteicas, carncias minerais, carncias vitamnicas. Cerca de 120 milhes de latino-americanos sofrem de uma ou mais destas carncias alimentares que os inferiorizam e os predispem a outras muitas doenas intercorrentes. Tal se apresenta, em traos um tanto duros, mas realistas, o retrato do continente da abundncia. Das terras que pareciam, a princpio, o cenrio mais imprprio, para que nele se representassem os dramas vividos da fome. Mas este drama existe. Milhes de seres humanos o tm vivido durante sculos, silenciosamente, com uma resignao que aproxima, sob este aspecto, os povos americanos dos povos do Oriente. Ambos os continentes [pg. 57] a America nova e a sia milenar tm sofrido resignadamente as suas tragdias de fome. Pretendemos realizar o estudo das diferentes reas de fome do mundo, iniciando-o
2. A alimentao do brasileiro tem-se revelado, luz dos inquritos sociais realizados, com qualidades nutritivas bem precrias, apresentando, nas diferentes regies do pas, padres dietticos mais ou menos incompletos e desarmnicos. Numas regies, os erros e defeitos so mais graves e vive-se num estado de fome crnica; noutras, so mais discretos e tem-se a subnutrio. Procurando investigar as causas fundamentais dessa alimentao em regra to defeituosa e que tem pesado to duramente na evoluo econmico-social do povo, chega-se concluso de que elas so mais produto de fatores scioculturais do que de fatores de natureza geogrfica. De fato, com a extenso territorial de que o pas dispe, e com sua infinita variedade de quadros climato-botnicos, seria possvel produzir alimentos suficientes para nutrir racionalmente uma populao vrias vezes igual ao seu atual efetivo humano; e se nossos recursos alimentares so at certo ponto deficitrios e nossos hbitos alimentares defeituosos, que nossa estrutura econmico-social tem agido sempre num sentido desfavorvel ao aproveitamento racional de nossas possibilidades geogrficas. A enorme extenso territorial, com seus diferentes tipos de solo e de clima, com seus mltiplos quadros paisagsticos, nos quais vm trabalhando, h sculos, grupos humanos de distintas linhagens tnicas e de diferentes tintas culturais, no poderia permitir que se constitusse, em todo o territrio nacional, um tipo uniforme de alimentao. O pas est longe de constituir uma s rea geogrfica alimentar. As variadas categorias de recursos naturais e a predominncia cultural de determinados grupos que entraram na formao de nossa etnia nas diferentes zonas tinham que condicionar forosamente uma diferenciao regional dos tipos de dieta. O pas abrange pelo menos cinco diferentes reas alimentares, cada uma delas dispondo de recursos tpicos, com sua dieta habitual apoiada em determinados produtos regionais e com seus efetivos humanos refletindo, em muitas de suas caractersticas, [pg. 58] tanto somticas como psquicas, tanto biolgicas como culturais, a influncia marcante dos seus tipos de dieta. Cinco reas bem caracterizadas e assim distribudas: 1) rea da Amaznia; 2) rea da Mata do Nordeste; 3) rea do Serto do Nordeste; 4) rea do Centro-Oeste; 5) rea do
Extremo Sul.1 Felizmente, destas cinco reas nem todas so a rigor reas de fome, dentro do conceito que serve de roteiro a nosso trabalho. Consideramos reas de fome aquelas em que pelo menos a metade da populao apresenta ntidas manifestaes carenciais no seu estado de nutrio, sejam estas manifestaes permanentes (reas de fome endmica), sejam transitrias (reas de epidemia de fome). 2 No o grau de especificidade carencial que assinala e marca a rea, mas a extenso numrica em que o fenmeno incide na populao. As reas culturais, sob quaisquer aspectos em que sejam encaradas, s podero ser classificadas base da verificao dos traos predominantes que lhes do expresso tpica, e no de seus traos excepcionais, por mais gritantes que eles se apresentem em sua categoria de exceo. Para que uma determinada regio possa ser considerada rea de fome, dentro do nosso conceito geogrfico, necessrio que as deficincias alimentares que a se manifestam incidam sobre a maioria dos indivduos que compem seu efetivo demogrfico. Das cinco diferentes reas que formam o mosaico alimentar brasileiro, trs so nitidamente reas de fome: a rea Amaznica, a da Mata e a do Serto Nordestino. Nelas vivem populaes [pg. 59] que em grande maioria quase diria na sua totalidade exibem permanente ou ciclicamente as marcas inconfundveis da fome coletiva. Nas outras duas regies, a do Centro-Oeste e a do Extremo Sul, embora os hbitos alimentares estejam longe de ser perfeitos, no se apresentam, contudo, deficincias alimentares to pronunciadas, a ponto de arrastarem a maioria da coletividade aos estados de fome. verdade que tambm se manifestam nestas reas os desequilbrios e as carncias alimentares, sejam em suas formas discretas, subclnicas, sejam mesmo em suas exteriorizaes completas, mas sempre como quadros de exceo, atingindo grupos reduzidos, representantes de determinadas
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Os limites e a caracterizao destas diferentes reas j foram por ns estabelecidos e publicados em trabalhos anteriores: As reas Alimentares do Brasil Resenha ClnicoCientfica. S. Paulo, abril 1945. e republicada pela Amrica Indgena, volume 5 n. 3. Mxico, junho de 1943. Veja-se tambm Josu de Castro The Food Problems in Brazil Nutrition Reviews, volume 2, n. 2. maro de 1944. Ainda sobre a caracterizao das reas alimentares brasileira, consulte-se o mapa de Economia Alimentar no Brasil, organizado por Slvio Mendona e includo no seu livro Noes Prticas de Alimentao, 1938. 2 Os termos endmica e epidmica so aqui empregados em seu senti do mais lato, dentro do moderno conceito de epidemiologia admitida por W. H. Frost. Posta assim de lado a definio clssica de C. O. Stallybrass. podemos falar de epidemiologia de fome. do mesmo modo que da do diabetes ou do cncer, defendidas por Wilson G. Smillie em Preventive Medicine and Public Health, Nova Iorque. The Macmillan Company, 1946.
classes, e no massas inteiras de populaes, quase sua totalidade, como ocorre nas trs outras reas alimentares do pas. Num rigorismo tecnolgico, que se faz necessrio, so estas reas do Centro e do Sul reas de subnutrio e no propriamente reas de fome. Dentro do plano geral de nossa obra, que visa anlise das reas de fome do mundo, s cabe, pois, o estudo circunstanciado das trs primeiras reas brasileiras, daquelas em que o fenmeno da fome se manifesta numa categoria de calamidade coletiva. Como no estudo da Argentina limitamo-nos anlise da regio de fome do nordeste andino e subandino, e nos Estados Unidos, ao da rea do Sul, da monocultura do algodo, tambm no caso brasileiro concentraremos maior interesse na caracterizao dessas zonas, onde o fenmeno da fome vem exercendo uma ao desptica, quase determinante, na ronceira evoluo social dos grupos humanos que ali vivem. [pg. 60]
1. A regio da Amaznia representa, sob o ponto de vista ecolgico, um tipo unitrio de rea alimentar muito bem caracterizado, tendo como alimento bsico a farinha de mandioca. Os limites geogrficos desta rea so bem ntidos. Com as suas terras atravessadas de lado a lado pela linha equatorial, estende-se para o norte at o sistema montanhoso das Guianas e para o sul at alcanar a regio semi-rida do Nordeste brasileiro, onde seu revestimento florestal se transforma em vegetao de campo aberto do tipo xerfita. Os contrafortes orientais da cadeia dos Andes constituem-lhe os limites a oeste. Suas terras, banhadas pelo gigantesco sistema fluvial do Amazonas e recobertas na quase totalidade por um espesso manto de floresta, abrangem uma extenso territorial de cerca de 5 milhes de quilmetros quadrados. Nesta regio florestal vivem disseminados seis milhes de pessoas.1 Geograficamente esta paisagem natural a [pg. 61] mais vasta rea de floresta equatorial do mundo. Demogrfica-mente, representa um dos mais extensos desertos
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A Lei n. 1.806, de 6 de janeiro de 1953, estabelece nova conceituao da Amaznia brasileira, para fim de valorizao econmica, e criou, para tal objetivo, a Superintendncia do Plano de Valorizao econmica da Amaznia. Consoante o novo diploma legal, considera-se como Regio Amaznica no s a Amaznia clssica, como tambm a ela foram acrescentadas outras zonas adjacentes. Abrange, assim, a Amaznia legal, no apenas a bacia do Rio Amazonas, em territrio nacional, mas ainda um pequeno trecho da bacia do Rio Paraguai, no norte do paralelo de 16 de latitude sul, no Estado de Mato Grosso, a bacia dos Rios Tocantins e Araguaia, ao norte do paralelo 13 sul, e mais as bacias dos rios que desaguam no Oceano Atlntico, ao norte da embocadura do Rio Amazonas, at fronteira com a Guiana Francesa, ao sul da mesma embocadura at o meridiano 44 oeste, no Estado do Maranho. Inclui, por isso, a floresta hileana tpica, uma grande parte da regio dos Cocais do Maranho e Gois, e extensas zonas de cerrados e campos cobertos e abertos ao norte de Mato Grosso, Gois, Par e Territrios do Amap e Rio Branco. A rea total da regio passou a ser de 5.057.490 km 2, o que equivale a 59,38% da rea do Brasil. Em 1950, sua populao era de 3.549.589 habitantes, correspondendo a apenas 6,80% do efetivo demogrfico nacional. Consoante a estimativa apresentada no Primeiro Plano Quinquenal, editado em 1955 pela SPVEA, e de onde foram ex-certadas estas notas, a regio teria, nesse ano, 5.958.209 habitantes, base dos coeficientes verificados nos ltimos recenseamentos.
do planeta, com uma raleza de populao s comparvel dos desertos tropicais da frica e da Austrlia ou dos desertos gelados da Groenlndia e de outras terras rticas. Na alarmante desproporo entre a desmedida extenso das terras amaznicas e a exigidade de gente, reside a primeira tragdia geogrfica da regio. Regio com uma populao de tipo homeoptico, formada de gotas de gente salpicadas a esmo na imensidade da floresta, numa proporo que atinge em certas zonas concentrao ridcula de um habitante para cada quilmetro quadrado de superfcie. Dentro da grandeza impenetrvel do meio geogrfico, vive este punhado de gente esmagado pelas foras da natureza, sem que possa reagir contra os obstculos opressores do meio, por falta de recursos tcnicos, s alcanveis com a formao de ncleos demogrficos de bem mais acentuada densidade. Ncleos que pudessem realmente atuar por sua fora colonizadora, como verdadeiros fatores geogrficos, alterando a paisagem natural, modelando e polindo as suas mais duras arestas, amaciando os seus rigores excessivos a servio das necessidades biolgicas e sociais do elemento humano. Sem foras suficientes para dominar o meio ambiente, para utilizar as possibilidades da terra, organizando um sistema de economia produtiva, as populaes regionais tm vivido at hoje, no Amazonas, quase que exclusivamente num regime de economia destrutiva. Da simples coleta dos produtos nativos, da caa e da pesca. Da colheita de sementes silvestres, de frutos, de razes e de cascas de rvores. Do ltex, dos leos e das resinas vegetais. [pg. 62] Desde os primeiros tempos de ocupao do vale amaznico que o reino de Portugal comeou a incentivar nesta regio da colnia a colheita da droga para compensar o seu desapontamento comercial com a colheita da especiaria do Oriente, dificultada em extremo pela concorrncia de outros povos tambm navegadores e traficantes; a coleta de plantas de temperos medicinais e de vcios que abundavam na floresta amaznica. No sem razo que um grande conhecedor da histria da Amaznia, Artur Ferreira Reis, afirma que, amparada assim to carinhosamente a colheita de drogas, o colono fez de sua explorao um dos seus fundamentos de vida no vale. O maior de todos. Quase que o nico.2 E da em diante nunca a Amaznia conseguiu sair de sua economia de colheita de produtos de floresta, dessa enganosa
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seduo da riqueza do verde. Riqueza que fez a misria do Amazonas, como o verde da cana a do Nordeste, e como o amarelo do ouro das minas, a do pas inteiro. J nos fins do sculo XVII, Jos de Sousa Ferreira clamara contra a falta de agricultores na regio, apontando que eram as drogas do Estado as que lhe do estimao mas que so a runa dele. Apenas em zonas limitadas e utilizando processos rudimentares se estabeleceu uma cultura primitiva de certos produtos de alimentao, como a da mandioca, do milho, do arroz e do feijo. Culturas insignificantes, em pequenas reas conquistadas floresta pelo processo das queimadas, de uso pr-colombiano, sendo as sementes lanadas ao solo mal preparado, ainda entulhado de troncos, de galhos e de garranchos meio carbonizados. Herdamos do ndio o sistema vamprico das derrubadas e das queimadas inclementes, sem as quais o lavrador no acredita que o milho possa deitar espigas bem granadas, afirmou Daniel de Carvalho. 3 Somente nos ltimos anos, e nas proximidades dos centros mais populosos, como Belm, esto sendo realizados outros trabalhos agrcolas objetivando a horticultura e a avicultura em bases mais ou menos racionais. Um exemplo dessas iniciativas a Cooperativa de Tom Au, cujos associados, na sua quase totalidade de origem nipnica, dedicam-se ao cultivo de plantas hortcolas, alm de cobrirem grandes extenses de [pg. 63] terras com o plantio de pimenta-do-reino e juta. Na regio do baixo Guam, e no aproveitamento das vrzeas que ali se formam, foi instalado, em 1954, um Ncleo Colonial do Instituto Nacional de Imigrao e Colonizao, cujo objetivo primordial o abastecimento de Belm em gneros de primeira necessidade, inclusive produtos hortigranjeiros.
2. Com estes parcos recursos constitui-se o tipo de alimentao do homem da Amaznia. Alimentao pouco trabalhada e pouco atraente, apresentando at hoje em suas caractersticas uma predominncia manifesta da influncia cultural indgena sobre a das outras culturas, a portuguesa e a negra, que tambm participaram de sua formao. A participao negra na formao amaznica foi em verdade bem insignificante. Em seu povoamento inicial, o elemento negro era rarssimo e a
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poltica de colonizao que a se exerceu durante largo tempo sob a influncia do Marqus de Pombal determinou enrgicas medidas para preservar o caldeamento amaznico do sangue africano. Na recente onda povoadora que, a partir dos fins do sculo passado, se abateu sobre a Amaznia, atrada pelo rush da borracha, tambm o negro esteve quase ausente, desde que seu elemento predominante fora o sertanejo nordestino, tipo tnico tambm quase isento de contatos sanguneos recentes com os povos africanos. Bertino Miranda, em seu estudo A Cidade de Manaus Sua Histria e Seus Motins Polticos faz referncias a decretos rgios declarando infames todos aqueles, brancos ou ndios, nesta rea, que se casassem ou se juntassem com negro ou negra. J vimos que o alimento bsico da dieta a farinha de mandioca, produto da mandioca amarga (Manihot utilssima), preparada nesta zona por processos especiais que proporcionaram ao produto maior riqueza em polvilho e, portanto, maior valor calrico do que o da farinha produzida em outras reas mais para o Sul. Tal tipo de farinha, regionalmente chamado de farinha dgua, constitui um complemento obrigatrio de quase tudo que se come na regio e foi por isso que Teodoro Peckolt o chamou de Po dos Trpicos.4 O seu uso mais abundante se fazia sob a forma de farofas, mingaus, beijus e [pg. 64] bebidas fermentadas (como o caium). Tipo de mingau muito caracterstico da regio o chib, preparado com farinha de mandioca e s vezes adoado com rapadura, o qual constitui alimento predominante do trabalhador de uma extensa rea amaznica, sendo dado tanto aos adultos como s crianas. O seu preparo de tcnica indgena e se assemelha muito ao preparo do atol de milho, da rea do Mxico, mingau feito de milho com que a populao indgena do planalto mexicano alimenta as crianas logo que lhes cortada a amamentao materna. Segundo Arajo Lima, 5 em certa regio do baixo Amazonas regio do Lago Andir os trabalhadores se alimentam dias seguidos exclusivamente com mingau de mandioca. Com a massa da mandioca bem amassada, preparam uma infinita variedade de pastas, conhecidas pelo nome de beijus, variando em sua forma, tamanho, consistncia, tempero e gosto, tomando em cada caso um nome diferente de beiju-
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Peckolt, Theodoro, Chcaras e Quintais, setembro de 1939. 64 Lima, Arajo, Amaznia, a Terra e o Homem, 2. edio, 1937.
au, beiju-cica, beiju-membeca, beiju-peteca, beiju-toteca e muitos outros, conforme se encontra documentado em trabalho de Nunes Pereira6 sobre a alimentao amaznica. Tambm os beijus apresentam em seu preparo fortes analogias com certos mtodos culinrios indgenas da rea do milho da Amrica Central e do Mxico. As tortillas, ou bolos de milho, achatadas e torradas ao fogo, no so mais do que tipos de beijus, na qual o milho substitui a pasta de mandioca. Apenas variam as matrias-primas, sendo, no entanto, semelhantes os processos de manipulao. Se bem que a farinha de mandioca constitua o alimento bsico do regime, ela no consumida pura, num exclusivismo que seria funesto e que tornaria o regime local, por sua deficincia, idntico ao de certas reas de fome da China 7 e da Indochina,8 onde a alimentao consiste quase que exclusivamente de arroz, sem misturas nem variaes terrvel monotonia alimentar que rebaixa em extremo o ndice de nutrio dessas populaes do Oriente. Na Amaznia mistura-se a farinha [pg. 65] a outros produtos: sejam da incipiente agricultura regional, sejam produtos silvestres, frutos ou sementes da floresta equatorial, sejam elementos da fauna regional, principalmente da fauna aqutica, visto como a terrestre muito limitada em animais que possam servir como recursos alimentares. A terra quase que inteiramente aambarcada pelas plantas, restringindo-se a vida animal sobre o solo s formigas e outros insetos, s cobras e aos macacos e a variadas espcies de pssaros. So, pois, limitadas as possibilidades da caa para abastecimento alimentar. A pesca rende muito mais e contribui para a dieta local com elementos mais ricos e variados. Sejam peixes de gua doce, dos quais o Amazonas possui infinita variedade, 9 sendo os mais comuns o piracu e o peixe-boi, sejam crustceos ou moluscos, camares, siris, avis, caranguejos e ostras. Do que tambm fazem abundante uso os nativos para sua alimentao das tartarugas, das quais consomem tanto a carne como os ovos.
Pereira, Nunes, Panorama da Alimentao Indgena, in Espelho, nmero de junho de 1945, Rio. 7 Thomson, James Claude, The Food Problems of Free China, Nutrition Reviews, vol. 1, n. 9, julho de 1943. 8 Lecoq, Raoul, Avitaminoses et Dsquilibres, Paris, 1939. 9 Agassiz avaliou em cerca de dois mil o nmero de espcies ictiolgicas existentes nas guas amaznicas nmero duas vezes superior ao das espcies da bacia do Mediterrneo e mais alto que os das espcies existentes no Atlntico. S num pequeno lago nas proximidades de Manaus, o lago Januari, com uma superfcie de 500 metros quadrados, encontrou o naturalista mais de 200 espcies diferentes (A Journey in Brazil. 1868).
A enorme riqueza em quelnios do Amazonas vem infelizmente decrescendo muito pela devastao que a espcie tem sofrido. Conta Bates que a sua abundncia era impressionante. Em certas pocas, os bancos de areia das margens do rio ficavam pejados de seus ovos. Cada fmea pe de 100 a 150 deles e vrias delas fazem a postura na mesma cova, acumulando-se assim massas compactas de 400 a 500 ovos. A colheita intempestiva dessas posturas e a mortandade dos adultos pegados na virao esto acabando com esses teis representantes da fauna amaznica. Idntica conduta destrutiva tem sido mantida para com vrias espcies de peixes da regio. A destruio inconseqente dos filhotes vem diminuindo de maneira alarmante a riqueza pisccola da regio amaznica. 10 So de um grande conhecedor da Amaznia, Raimundo de Morais, as seguintes palavras: ...Por esses documentos militares, fradescos, cientficos, literrios e civis, verificou-se tambm quanto a falta de disciplina [pg. 66] e de critrio na pescaria vem despovoando dos melhores e mais fecundos exemplares a vasta bacia hidrogrfica. A tainha, muito diminuda agora, j foi to numerosa que o governo da metrpole pagava com ela, depois de salgada e empacotada, nos pesqueiros oficiais, a tropa, o clero e o funcionalismo pblico do Par.11 Nestes produtos da fauna aqutica resume-se toda a fonte de que dispem para abastecimento de protenas animais desde que a criao domstica muito exgua na regio. A floresta um obstculo criao de gado. As rvores frondosas, com as copas cerradas impedindo completamente a penetrao da luz, no permitem o crescimento da vegetao rasteira que forma as pastagens. Por outro lado, o clima local, com seu excesso de umidade, predispe o gado ao malfica dos insetos transmissores de doenas que o afetam duramente. Georges Hardy, falando da colonizao da floresta equatorial escreve: ...os homens espalhados nesta regio levam uma vida singularmente miservel. No podem criar gado porque a umidade da floresta anemiza e faz morrer os bois, os carneiros e os cavalos.12 A pecuria est praticamente limitada a essas pequenas reas de campos abertos, uma situada na Ilha de Maraj, na foz do rio, outra no alto Amazonas, na regio do Rio Branco, alm das de Mato Grosso e Gois. O gado da Ilha de Maraj
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Nash, Roy, A Conquista do Brasil, 1939. Morais, Raymundo de. Na Plancie Amaznica. 1936. 12 Hardy, Georges, Gographie et Colonisation, 1933.
vive nos pantanais, terras inundveis quase que periodicamente pelas enchentes que dizimam muitas vezes a maior parte dos rebanhos e obrigam os criadores a longas caminhadas com suas boiadas em busca dos campos mais altos ou imobilizao do gado em grandes jiraus as marombas que ficam flutuando como verdadeiras arcas de No, com bois, carneiros, porcos e galinhas, nos extensos alagados em que a ilha se transforma. Como reflexo da maneira como levada a pecuria nesse ponto, basta dizer que o desfrute dos rebanhos de cerca de 6%, enquanto que o peso morto do gado abatido no ultrapassa 140 quilos, ou seja, 100 quilos menos do que aquele encontrado como mdia para o Brasil. Segundo clculos dos tcnicos da SPVEA, a Amaznia dispe, hoje, de apenas dois quintos do rebanho ideal capaz de [pg. 67] fazer alimentar convenientemente suas populaes. Esse rebanho, no entanto, como j se viu, encontra-se estrategicamente concentrado em pontos de difcil acesso para o abastecimento dos maiores centros populacionais da Amaznia, e cerca de metade da populao bovina est localizada em Gois e Mato Grosso. Apenas recentemente, atravs do Instituto Agronmico do Norte, foi introduzido em Maraj o bfalo africano, animal rstico e de relativas possibilidades de adaptao econmica nesse meio hostil a raas selecionadas e de alta produo, seja de carne, seja de leite. Ainda assim, e contrariando o esforo de racionalizao da pecuria, essa rusticidade do bfalo est sendo explorada no sentido de no lhe ser prestada qualquer espcie de assistncia zootcnica, e as adaptaes a que o meio o obriga nem sempre so favorveis aos interesses econmicos e aos fins sociais. No seria exagero dizer-se que no existe na Amaznia qualquer tipo zootcnico definido de gado, e o exame das aptides que possuem no fornece indicaes de que tais tipos possam estabilizar-se em curto prazo, malgrado os servios que hoje, com a colaborao da SPVEA, o Instituto de Zootecnia realiza em Maraj, objetivando o melhoramento do gado atravs de prticas de inseminao artificial e controle de epizootias. O grande obstculo, no entanto, continuar sendo a precariedade dos pastos e o regime das guas, aliados forma de explorao extensiva em grandes latifndios. A distribuio da populao bovina na Amaznia, assim concentrada, como
no o a populao humana, cria o srio problema do transporte, que, na regio, um dos obstculos srios a serem contornados. Enquanto a parte amaznica de Gois dispe de 5 cabeas de gado bovino por habitante, o Estado do Amazonas apenas pode contar em seus limites com um quarto de boi. Se, no Territrio do Rio Branco h, estatisticamente, 9 bois para cada habitante, no Par s possvel conseguir-se 2/3 por pessoa. E o que acontece que tais rebanhos esto concentrados em poucas mos. J em Rio Branco a zona menos mida, formada de savanas que escapam s inundaes. Estas limitaes que a natureza impe pecuria, a falta de transporte entre zonas de criao e o resto da regio amaznica, no facilitam o seu [pg. 68] abastecimento nem de carne nem de leite. Estes so produtos que no entram praticamente na alimentao habitual desta zona. Carne, s seca e salgada. O charque importado de outras regies e isto mesmo em pequenas quantidades. O leite existe apenas em algumas poucas cidades importantes, que contam com abastecimento embora reduzido e sem controle sanitrio. Assim, em Belm, que a mais importante cidade da Amaznia, o consumo dirio de leite era em 1950 de cerca de 20 gramas por pessoa. Trinta vezes menos que o consumo mdio dos Estados Unidos da Amrica. Os derivados do leite, tais como a manteiga e o queijo, quase nunca so vistos nesta zona. As dificuldades da criao de galinhas, nestes terrenos alagveis, fazem tambm dos ovos alimentos de luxo. De carne fresca resta somente o recurso da caa carne de anta, de pato bravo, de macaco , ou a do peixe, cujo consumo est limitado s populaes que vivem nas margens dos rios, dos igaraps e das lagoas que as enchentes formam e as chuvas mantm. verdade que a vivem quase todos os habitantes da Amaznia, pouca gente se aventurando a afastar-se da beira da gua, desde que no h, afora os rios, outro meio de penetrao na floresta, e ainda porque na gua dos rios que se concentram as maiores riquezas econmicas para sua subsistncia. Cerca de 60.000 quilmetros quadrados da Amaznia so constitudos por terras baixas e inundveis e nesta rea de plancie aluvional que se concentram 80% das populaes e a maioria dos campos de agricultura. que s a a terra realmente frtil. Se a inundao destri muitas vezes o duro trabalho agrcola, tambm traz dissolvida nas guas das cheias o sedimento rico em elementos minerais e orgnicos que ficaro depositados sobre o
solo quando as guas baixarem.13 As inundaes peridicas dos rios, quando vo alm de certos limites, as enchentes grandes, como so chamadas, representam um dos mais graves fatores de desequilbrio social da regio. H quem compare seus flagelos com os da seca dos [pg. 69] sertes nordestinos. Flagelados por falta dgua. Flagelados por excesso dgua. O Nordeste durante as secas e a Amaznia durante as inundaes constituem desgraadamente modelos incontrastveis no catlogo das grandes tragdias coletivas.14 As populaes da Amaznia sempre classificaram os rios da regio em dois grupos: os rios negros e os rios brancos. 15 Os negros tendo as guas translcidas, carregadas apenas dos reflexos profundos das sombras escuras da floresta, e os brancos com as suas guas turvas, barrentas, ricas de materiais de aluvio. So as guas dos rios brancos as que fertilizam o solo equatorial do Amazonas. 16 Solo que, fora desta faixa inundvel, est longe de ser frtil, apesar de sustentar o mais espesso revestimento florestal do mundo. A verdade que o excesso de chuvas lavando permanentemente este solo, aliado a outros fatores de intemperismo regional, o empobrece de maneira alarmante, e a agricultura sem a adubao das enchentes esgota as suas reservas numa rapidez assustadora. Esta uma das razes que sempre obrigaram as populaes indgenas a viver nesta regio num regime de agricultura seminmade, derrubando a floresta num ponto, 17 semeando um pouco de milho, de arroz e de mandioca, colhendo a seguir o produto e abandonando a roa para abrir outra clareira mais adiante. que o rendimento de uma segunda plantao j no compensaria o trabalho nem permitiria o abastecimento suficiente do grupo, expondo-o aos perigos da fome aguda. A farinha de mandioca e um pouco de feijo e de arroz produzidos nessas reas inundveis ou importados de outras regies do pas, peixes, crustceos, carne e
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Em muitos trechos a plancie est coberta por aluvies modernos, que as enchentes depositam em grandes reas e que vo formando camadas sucessivas de um solo mais rico em hmus, pouco consistente e ainda sujeito s transformaes microbianas, resultantes da transformao da matria orgnica que nele entra em grande proporo. (Sylvio Fris Abreu. O Solo da Amaznia, in Amaznia Brasileira, 1944.) 14 Viana Moog, O Ciclo do Ouro Negro, 1936. 15 Denis, Pierre, Amrique du Sud, in Gographie Universelle. 1927. 16 Sioli, Haroldo, Alguns Problemas da Limnologia Amaznica. Bol. do Instituto Agronmico do Norte, Belm, 1954. 17 Sobre a derrubada da floresta, seus mtodos e processos de brocar e de roar o mato, consulte-se o Dicionrio da Terra e da Gente do Brasil, de Jos Bernardino de Souza.
ovos de tartaruga e tracaj, alm de algum jabuti morto por ocasio das queimadas, compem a dieta local. A castanha-do-par, por outro lado, s faz parte da dieta amaznica por ocasio da colheita, empreitada temerria onde o homem se embrenha floresta adentro, durante meses, e onde tudo lhe falta. [pg. 70] preciso no esquecer que na elaborao destas comidas entram certos molhos preparados com sucos de ervas locais e de pimentas, das quais as populaes nativas fazem um largo consumo. Os indgenas sempre foram grandes comedores de pimenta no s o consumo da pimenta ralada dando sabor picante aos molhos, s pastas e s carnes, como as pimentas inteiras comidas como fruta, aos punhados. O consumo de verdura e de legumes verdes sempre foi muito baixo nesta regio. O complicado cultivo da horta est muito acima da tcnica agrcola local e a possvel importao de seus produtos, bem acima dos recursos, tanto econmicos como tcnicos, de transporte desta zona. As frutas tambm, com exceo do aa, entram em muito pouca quantidade no regime alimentar habitual. A banana, que um produto tpico da zona equatrio-tropical, e largamente consumida na rea da floresta do Congo, contribui em regular proporo para a alimentao amazonense. A riqueza natural em outras frutas muito escassa, sendo mais lenda que realidade a abundncia frutfera da floresta equatorial. O excesso dgua dificulta a concentrao do suco das frutas e seu amadurecimento, sendo as frutas locais raras e pouco saborosas. A falta de penetrao da luz solar na espessura da floresta torna tambm o teor vitamnico dessas frutas mais baixo que o de outras regies geogrficas. Como exceo temos apenas a considerar o caso de certas frutas oleaginosas, de variadas espcies de palmceas, que concentram espantosa riqueza em betacaroteno, ou seja, em pr-vitaminas A, nos seus leos. Como exemplo destes leos vegetais citamos o do buriti, produto da palmcea Mauritia flexuosa, que contm cerca de 5.000 unidades de vitamina A para cada centmetro cbico. Tambm o leo de aa extremamente rico em vitamina A. 18 [pg. 71] .
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Sobre a riqueza em vitamina A desses leos, consultem-se os se-guintes trabalhos da autoria dos nossos colaboradores no Instituto de Nutrio da Universidade do Brasil, Emlia Pechnik e Jos Maria Chaves: Composio Qumica e Valor Alimentcio do Buriti. in Rev. Quint. Ind.. n. 4. 1946: O Aa. um dos Alimentos Bsicos da Amaznia, in Anais da Ass. Quim. Bras., 169, IV. 1945. Consulte-se. tambm, o trabalho de Paula Souza e A. Wancolle. Sobre o Teor em Pr-vita-mina A de Alguns leos Brasileiros, in Rev. da Ass. Paul. de Medicina, vol. IV. n. 3. 1939
Fruto da regio que merece tambm um destaque especial por seu extraordinrio valor nutritivo a castanha-do-par, produto da Bertholletia excelsa, fruto oleaginoso, contendo uma protena com uma riqueza em cidos animados idntica da carne; donde o epteto, que deu Bolazzi a este fruto, de carne vegetal. Infelizmente, essa protena completa, a nica de origem vegetal at hoje conhecida, encontra-se associada a uma proporo demasiado alta de gordura.(68 % de gordura e 17% de protena), o que torna o fruto indigesto, com baixo coeficiente de digestibilidade, portanto de uso pouco aconselhvel numa zona de clima quente e mido como o da Amaznia. A a razo pela qual a castanha-do-par, constituindo uma das riquezas desta regio, no absolutamente um produto de sustentao regional, mas de simples exportao para as zonas frias e temperadas.19 Sem esquecer os caracteres de ordem gentica, encontra-se uma explicao para o fato de que nessa regio de frutas pobres, apresentem-se as palmceas e a castanheira com tal riqueza nutritiva: por frutificarem essas plantas sob a influncia da insolao direta; as palmeiras, vegetando em certas vrzeas pantanosas ou dominando as mais ciliares; a castanheira conseguindo, por seu gigantesco porte, furar a cpula de vegetao da floresta e receber no alto a incidncia direta dos raios solares. Deve-se, portanto, aos milagres da fotossntese a magnfica concentrao nutritiva desses frutos de existncia excepcional numa regio tpica equatorial. A anlise biolgica e qumica da dieta amaznica revela um regime alimentar com inmeras deficincias nutritivas. Tem-se logo a impresso da sua impropriedade na extrema pobreza, ou mesmo ausncia, de alguns dos alimentos protetores, da carne, do leite, do queijo, da manteiga, dos ovos, das verduras e das frutas. Tem-se outra imagem da insuficincia na sua exigidade quantitativa. uma alimentao parca, escassa, de uma sobriedade impressionante. O que um homem come durante um dia inteiro no daria para uma s refeio dos habitantes de outras reas climticas, condicionadoras de hbitos diferentes. No entanto, este homem parece satisfeito da sorte, conseguindo [pg. 72] com um pouco de farinha e de caf e com um gole de cachaa matar a gosto a sua fome. Mas a verdade que se trata de populaes de apetite embotado, em estado de anorexia crnica, conseqncia natural da falta de vitaminas e de determinados aminocidos no seu regime
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Castro, Josu de, e outros, Protenas para a Amrica Latina. Publicao da ASCOFAM,
alimentar.20 Arajo Lima, em seu magnfico estudo sobre a Amaznia livro que abriu novos horizontes geografia humana no Brasil , fala-nos em anorexia habitual e escreve sobre o assunto as seguintes palavras: A parcimnia alimentar dos nossos caboclos reduz, num paralelo que se impe, o mrito da sobriedade japonesa: o nipnico come pouco, mas f-lo regularmente; o nosso caboclo, que capaz de comer despropositadamente, em geral come pouco e irregularmente, jejuando por dias e semanas.21 No este o nico caso de grupos humanos que acabam por perder a fora do seu instinto alimentar, por ter o seu apetite quase que apagado. Para comer qualquer coisa preciso mesmo que o nativo incite esse apetite esquivo com aperitivos, com pimenta, com estimulantes de toda ordem. Alfredo Ramos Espinosa notou fenmeno idntico entre as populaes subnutridas do Mxico, as quais, para comer alguma coisa, tm que vencer sua inapetncia, cauterizando a boca e o estmago com pimenta [pg. 73] para produzir uma secreo reflexa de saliva, que possa simular a provocada pelo bom apetite.22 Tambm o hbito de mascar betel de certas populaes da ndia, hbito que acarreta uma abundante secreo de saliva e de outros sucos digestivos, tem, entre outras finalidades, esta de estimular o apetite tambm embotado desses prias do Oriente.23 Para bem compreendermos quais os principais defeitos deste tipo de alimentao da Amaznia, precisamos analis-la de acordo com os modernos
1960. 20 possvel que tenha cooperado neste embotamento do apetite, o hbito de certos grupos nativos mastigarem folhas de coca. Reduzindo-as a p e misturando-as com polvilho de mandioca e a casca ralada da prpria planta, fabricam uma pasta conhecida pelo nome de ipadu. (Renato Sousa Lopes, A Cincia de Comer e de Beber.) O ipadu. consumido durante as viagens, serve para abolir as sensaes de fome e de sede, mas acaba como vcio, extinguindo o apetite individual. Sobre a correlao entre vitaminas e apetite, consulte-se o trabalho de F. de Moura Campos Vitaminas do Apetite, Rev. Teraputica, n. 2, junho de 1942. Realizamos h alguns anos, no Instituto de Nutrio, experincias demonstrativas de que ratos alimentados com uma dieta base de uma protena incompleta, desfalcada em certos aminocidos. perdiam por completo o apetite, e que bastava acrescentar-se mesma dieta uma dose milesimal de metionina para que o apetite voltasse com rapidez. (Veja-se Castro, Josu; Luz, Hlio de Sousa; e Pechnik, Emlia; Novas Pesquisas sobre a Mucun, separata de Trabalhos e Pesquisas, vol. II, Instituto de Nutrio da Universidade do Brasil, 1949.) Hoje se sabe que tanto os aminocidos como a vitamina B-12 tm uma extraordinria influncia na regulao do apetite. 21 Arajo Lima, Amaznia, a Terra e o Homem, 1937. 22 Espinosa. Alfredo Ramos. La Alimentacin en Mxico. 1939.
conhecimentos de nutrio e de acordo principalmente com as variantes fisiolgicas que o clima impe ao metabolismo nas condies de vida tropical. Variantes que do ao metabolismo do homem dos trpicos um ritmo especial e alteram inteiramente os limites quantitativos de suas necessidades nos diferentes princpios alimentares.
3. Qualquer tipo de regime alimentar, para ser considerado racional, quaisquer que sejam as substncias alimentares que entrem em sua formao, deve ser suficiente, completo e harmnico. Deve conter um total de energia correspondente s despesas do organismo, a fim de ser julgado suficiente. Deve encerrar os diferentes elementos de que o organismo necessita para seu crescimento e equilbrio funcional, para ser completo. S ser harmnico se estes diferentes elementos entrarem em sua composio em determinadas propores. Vejamos como se apresenta, dentro destas exigncias fisiolgicas, o regime alimentar da rea amaznica. A falta de variedade de seus componentes, a sua visvel exigidade do logo a idia de que se trata de um regime insuficiente, com um total calrico muito abaixo das necessidades do metabolismo bsico e do metabolismo de trabalho. Em clculos que realizamos h alguns anos sobre o regime das classes pobres da cidade de Belm, encontramos um total energtico oscilando entre 1.800 a 2.000 calorias dirias. A leitura universal sobre nutrio afirma serem necessrias 3.000 calorias dirias para grupos humanos ocupados em trabalhos de intensidade mdia. Encarando o problema sob este aspecto unilateral, conclui-se haver um tremendo [pg. 74] dficit calrico, de quase 50% em relao ao total, nesta dieta do homem amaznico. Mas a situao no assim to extrema. preciso levar em considerao, na anlise do problema regional, certas condies geogrficas locais: a influncia do clima sobre o metabolismo, sobre o ritmo das trocas energticas e, consequentemente, sobre as necessidades calricas do homem, habitante dos climas trpico-equatoriais. Enquanto a vida vegetal se acelera sob a ao desses climas, vivendo as plantas uma orgia de vitalidade, a vida animal se retarda, havendo uma diminuio ntida de suas combustes orgnicas. H cerca de vinte e cinco anos que inmeros fisiologistas vm demonstrando uma baixa
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constante do metabolismo basal, nos habitantes das regies tropicais. Os estudos que realizamos no Brasil nos levaram concluso,
experimentalmente comprovada, de que esta baixa do metabolismo conseqncia direta do clima atuando atravs da ao conjunta dos fatores temperatura e umidade relativa do ar, e no s da temperatura como at ento julgavam os fisiologistas. Com esta verificao podemos explicar o fato de que nos climas quentes e midos o metabolismo se apresente muito mais baixo do que nos climas quentes e secos, podendo mesmo em certos climas quentes, porm muito secos tais como os climas dos desertos tropicais apresentar-se o metabolismo idntico ou mesmo mais elevado do que nos climas temperados. 24 O clima amaznico de tipo quente e supermido, com uma umidade relativa do ar que anda quase sempre pela casa dos 90%, alcanando a todo momento o ponto de saturao do ar em umidade, condiciona forosamente o organismo humano a uma sensvel baixa do seu metabolismo. Quem conhece o mecanismo da formao e da perda de calor nos seres vivos compreende logo que esta diminuio do organismo em suas combustes internas representa um processo de adaptao funcional, um processo prtico de evitar a sua destruio por superaquecimento, [pg. 75] diante das dificuldades que o meio ambiente ope s perdas do calor animal. No excesso de temperatura e de umidade reinantes, o organismo no dispe de outros meios para se desfazer do seu calor interno seno o de diminuir a sua formao, isto , baixar o seu metabolismo. Esta baixa do metabolismo na regio amaznica representada por cerca de 20% do total calrico das cifras do stand-ard universal. Sob a ao moderadora do clima, baixam no s as despesas fundamentais, o chamado metabolismo basal, mas tambm as despesas de trabalho. Tanto o ritmo da vida vegetativa, como o ritmo da vida neuromuscular diminuem de intensidade, acomodando-se num torpor funcional compatvel com as contingncias do meio ambiente. Um total de 2.400 calorias , pois, suficiente para as necessidades fisiolgicas de quem obrigado a viver neste ritmo ronceiro da vida animal nos trpicos. Ora, esta baixa do metabolismo e,
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Voltaremos ao assunto para referir, com mais mincia, as nossas experincias, realizadas em sua maior parte na regio do Nordeste brasileiro, ao estudarmos esta rea geogrfica, quando dispusermos de maiores elementos para o estudo comparativo entre uma rea quente e mida e uma rea quente e seca. Antecipamos que estas experincias se acham resumidas em nosso trabalho anterior La Alimentacin en los Trpicos. Fondo de Cultura econmica,
consequentemente, das necessidades energticas em alimentos, representa no s uma adaptao vantajosa na luta contra o rigor climtico como tambm uma salvao contra os perigos da fome de energia a que o organismo ficaria exposto pela falta de uma alimentao suficiente. Este tipo regional de alimentao, que em sua manifesta insuficincia seria mortal em pouco tempo, conduzindo o organismo morte num clima frio ou temperado, permite a sobrevivncia do indivduo, embora em condies precrias, nas contingncias do clima tropical. Com as duas mil calorias que cada indivduo ingere diariamente, consegue cobrir as suas despesas bsicas e realizar um pouco de trabalho. bem verdade que em ritmo um tanto descansado e com produtividade um tanto limitada. Ritmo e produtividade retardados, que representam, no entanto, recursos salvadores para que os nativos no morram de fome logo de uma vez. Na insuficincia alimentar quantitativa e na forada adaptao orgnica a esta situao permanente, residem as explicaes da apregoada preguia dos povos equatoriais. A preguia no caso providencial: um meio de defesa de que a espcie dispe para sobreviver, e funciona como o sinal de alarma numa caldeira que diminui a intensidade de suas combustes ou pra mesmo automaticamente, quando lhe falta o combustvel.
4. Os defeitos qualitativos deste tipo de alimentao so ainda mais graves. Trata-se de uma alimentao incompleta, [pg. 74] com deficincias de elementos nutritivos das mais variadas categorias. Deficincias em protenas, em sais minerais e em vitaminas. O dficit protico resulta da quase que ausncia absoluta, no regime alimentar desta gente, das fontes de protenas animais: carne, leite, queijo e ovos. Protenas completas capazes de fornecer ao organismo os diferentes cidos aminados de que ele necessita para a formao de seu prprio protoplasma vivo. 25 J vimos que destas fontes de protenas completas as populaes locais apenas dispem da carne de peixe, e isto mesmo de maneira irregular e em quantidade insuficiente. H uma
Mxico, 1946. 25 Dos diferentes cidos aminados so considerados absolutamente indispensveis para o equilbrio orgnico os seguintes: a lisina, a argi-nina, a histidina, a metionina, a cistena e a prolina, necessrios ao crescimento do indivduo; e a tirosina, a fenilamina, o triptfano, os cidos asprtico e glutmico essenciais para a renovao dos tecidos. Ver sobre o assunto:
grande riqueza de peixes nos rios, nos igaraps, nas lagoas do Amazonas, mas no existe a pesca organizada que aproveite racionalmente tal riqueza natural. Seria necessrio no s pescar em quantidade bem maior do que se faz atualmente, como industrializar o produto da pesca sob a forma de peixe seco, salgado ou desidratado para contar com essa alimentao o ano inteiro e no somente nas ocasies propcias pesca, como acontece por enquanto. bem verdade que o indgena j utilizava seus mtodos de conservao do pescado, tais como o preparo da mixira, ou seja, da conserva do peixe em azeite de tartaruga ou de peixe-boi, produto louvado por Couto de Magalhes como alimento notvel, e da piracu, de alto valor nutritivo, representada pela farinha de peixe ralado.26 Quase que s dispondo de fontes de protenas vegetais, o regime local deficiente em certos cidos aminados. Deficincia que se revela de logo pelo crescimento insuficiente, pela estatura abaixo do normal que apresentam os componentes da populao amaznica estatura das mais baixas do continente sulamericano, segundo as medidas antropolgicas levadas a [pg. 77] efeito por Steggaerda.27 Muitas outras conseqncias decorrem desses dficits proticos, as quais no chegam, contudo, a se exteriorizar to abertamente como ocorre na Indochina ou mesmo em outras reas do continente americano no Mxico ou no Salvador, por exemplo zonas onde a carncia de protena completa. Surgem, nestes casos, os edemas de fome com sua marca tpica, os indivduos inchando nuns lugares e murchando noutros; grotescas figuras, de pernas inchadas como mos-depilo, arrastando corpos mirrados, lembrando bonecos de pano mal costurados. No se observam comumente casos de edemas ou anasarcas de fome na regio amaznica. verdade que o beribri se apresenta muita vezes na regio acompanhado de edemas em sua forma chamada mida, 28 e provvel que no mecanismo dos edemas julgados de carncia vitamnica haja tambm a participao da deficincia protica. A freqncia destes casos pequena, contudo, e est longe
Josu de Castro, O Problema da Alimentao no Brasil, 1939. 26 Pinheiro, Aurlio, Margem do Amazonas, 1937. 27 Steggaerda, Morris, Statures on South American lndians, in Amer. Jour. of Physical Anthropology (New Series), vol. 1, n. I, maro, 1943. 28 Fortes, A. Borges, Doenas por Falta de Vitamina B1, in A Folha Mdica, n. 11, 15 de abril de 1939.
de alcanar as cifras impressionantes que observamos no Mxico,29 principalmente entre as crianas alimentadas exclusivamente com milho. que a protena do milho muito incompleta, faltando-lhe diversos cidos aminados indispensveis ao crescimento e ao equilbrio orgnico. Mas tambm a mandioca muito pobre em protenas, mais pobre mesmo do que o milho, e qualitativamente inferior. O que salva o amazonense que ele no come farinha pura, como o mexicano se alimenta, dias e dias, exclusivamente de milho. Um pouco de feijo, de arroz ou de batata e vez por outra o seu peixe, ou seu tracaj ou jabuti, sempre o homem da Amaznia obtm para variar o seu regime, diminuindo desta forma a deficincia protica da farinha. So tambm raras as diarrias de fome, que resultam das grandes carncias proticas e que tm sido observadas com freqncia nas grandes epidemias de fome, como a da Espanha [pg. 78] durante os anos da guerra civil,30 ou como as de certas pocas de seca no Nordeste do Brasil. 5. Ao lado das deficincias proticas ocorrem certas deficincias em sais minerais de efeitos bem graves para as populaes amaznicas. O primeiro fator dessas carncias minerais a pobreza do solo regional nesses elementos, qual j tivemos ocasio de aludir. As chuvas contnuas, to freqentes nessa zona, agindo paralelamente temperatura elevada, estimulam a ao de microorganismos do solo, decompondo com extrema velocidade a matria orgnica e o humo ali existentes, e finalmente trazendo para as camadas mais profundas grande parte da riqueza mineral existente antes do reflorestamento. Se, por outro lado, nos lembrarmos de que em regies onde a precipitao, temperatura, umidade, e outros fatores do intemperismo, atuaram incessante e abusivamente sobre as formaes geolgicas, dando em resultado solos que dentro da classificao zonal, podem ser considerados como laterticos, compreenderemos a pouca tendncia de suas argilas a manterem absorvidos seus elementos minerais, de que tanto necessitam as plantas para cumprirem seu ciclo vital. A um observador avisado no passaro despercebidas formaes laterticas denunciando um tipo de solo onde predominam o ferro e o
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Angulo, Alfredo Diaz, Formas Edematosas en los Nios Someti-dos a Regimenes Insuficientes, Mxico, 1936. 30 Pedro-Pons, que observou inmeras carncias alimentares durante a guerra civil espanhola, em Barcelona, refere que a diarria acompanhava com extrema frequncia os casos de edema e de anasarca, vindo a piorar de muito as condies de higiene das populaes esfomeadas.
alumnio, em suas formas insolveis, quando no afloram superfcie, em blocos de hematia compacta ou pequenas concrees ferruginosas tpicas. E desse tipo de solo, cido e espoliado ao extremo em seus elementos minerais mobilizveis e apresentando, a profundidades variveis, zonas impermeveis de floculao de argilas de sesquixidos de ferro e alumnio, que formada grande parte da plancie amaznica. Apenas algumas faixas j conhecidas, como na regio de Santarm, Alenquer e Monte Alegre, no Par, apresentam constituio, textura e estrutura diferenciadas. So as decantadas terras pretas do Tapajs, e as terras roxas de Alencar e Monte Alegre. Como explicar que este solo, com caractersticas qumicas que esto longe da fertilidade, possa apresentar-se recoberto [pg. 79] por uma vegetao to luxuriante como a da floresta amaznica? Com uma to espantosa massa vegetal formada de uma infinidade de plantas, todas com as suas exigncias especficas de inmeros elementos minerais? Pelo menos de quatorze deles que so hoje considerados como absolutamente indispensveis vida de qualquer vegetal superior. 31 que as condies climticas, maravilhosamente propcias na regio vida vegetal, por seu excesso constante de temperatura e de umidade, contrabalanam a precariedade das condies desfavorveis do solo. Em ecologia, o equilbrio resultante para a vida da planta sempre produto de um jogo complicado de compensaes. De dependncias mtuas entre os fatores climticos, do solo e do meio bitico. O clima equatorial, de um lado acelerando a vida vegetal, intensificando ao extremo o seu crescimento e o seu ciclo vegetativo, e de outro lado condicionando a decomposio rpida da
(Enfermidades por Insuficincia Alimentcia, 1940.) 31 O problema da correlao entre a riqueza mineral do solo e a vida, tanto animal como vegetal, de uma regio, da mais extraordinria importncia, merecendo uma ateno especial em qualquer estudo dos problemas de nutrio. Consultem-se, pois, sobre o assunto os seguintes trabalhos: Beeson, Kennett C., The Mineral Composition of Crops with Particular References to the Solls in which They Were Grown, 1941. Winifred E., Brenchley, The Essential Nature of Certain Minor Elements for Plant Nutrition, Botanic Rev., 2-173, 1936. Winifred E. Brenchlek, Some Deficiency Diseases of Crop Plants, in Min. Agr. and Fisheries Jour., 44, 1932. Orr, J. B., Elliot, Walter, and T. B., Wood, Investigations on the Mineral Content of Pasture Grass and its Effect on Herbivora, Jour. Agr. Frc 16, 1936. Homs, M. V. LAlimentation Minrale des Plantes et le Problme des Engrais Chimiques, Masson & Cie., Editeurs, Paris, 1953. Balfour, H., The Living Soil, Faber and Faber Ltd. 7.a edio, Londres, 1947. Nutrition of Plants, Animais, Man, Centennial Symposium, Fevereiro, 14-16, Michigan State University, East Lansing, 1955.
vegetao morta, pela ao desagregadora dos microrganismos, reintegrando os elementos minerais ao solo, acaba por equilibrar a economia nutritiva da regio. Equilbrio que produto desta vida furiosamente devastadora da floresta, com plantas nascendo e morrendo ao mesmo tempo, matando-se umas s outras, numa terrvel concorrncia vital, numa nsia de se apoderarem de sua herana de sais minerais. [pg. 80] Um estudioso destes problemas do solo explica a desproporo entre a pobreza da terra e a riqueza da vegetaro com as seguintes palavras: Nestas regies equatoriais o capital do solo pequeno, mas sua circulao rpida. 32 Na verdade, atravs deste ritmo desadorado que a floresta mantm a sua vida vegetal espantosamente rica base de um capital de minerais bem limitado. A espetacular variedade de espcies existentes na floresta equatorial representa, por sua associao, tambm um fator de economia do solo que se esgotaria muito mais depressa se fosse recoberto por uma ou por umas poucas espcies vegetais.33 O que acontece, porm, como resultado destas condies locais, que os vegetais nativos ou plantados neste solo possuem quase sempre um teor mineral mais baixo do que o teor mdio das espcies congneres que vegetam em outros tipos de solos mais ricos, e a reside o primeiro fator condicionante da pobreza em sais minerais da alimentao regional. Poderia parecer paradoxal que, existindo no solo to abundantes quantidades de ferro, no contivessem os alimentos ali produzidos, um teor relativamente alto desse mineral. Tal fato, no entanto, se explica facilmente se nos lembrarmos da maneira em que se apresentam aqueles compostos, quase sempre sob forma de xidos insolveis principalmente em pH baixos (solos cidos), dificultando tremendamente a sua assimilao pelas plantas e a sntese de compostos de que o ferro participe. Quando a este fator a pobreza mineral dos alimentos se juntam erros de diettica, como o caso da regio amaznica, aumentam as probabilidades de incidncia das carncias minerais no homem. Destas carncias, as mais acentuadas
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Kellog, Charles E., The Solte that Support Us, Nova Iorque, 1943 Ellworth Huntington, Principies of Economic Geography, Nova Iorque, 1940.
nesta zona so as de clcio, ferro e cloreto de sdio. O solo pobre em clcio. As guas e os alimentos a produzidos so tambm pobres em clcio. As fontes alimentares mais abundantes neste elemento mineral, tais como o leite e o queijo, quase que no entram nos hbitos alimentares desta gente. No h, portanto, por onde escapar ao dficit deste elemento na nutrio do amazonense. A sua alimentao est longe de possuir a taxa de 1 grama diria de clcio preconizado pelos [pg. 81] nutricionistas como uma boa dose de sustentao.34 Talvez no alcance mesmo um tero desta dose. O que de admirar, primeira vista, que com tal exigidade de clcio em sua alimentao, no sofram de raquitismo endmico os habitantes desta rea, com crianas de pernas tortas e de trax de pombo, de cabeas deformadas com seus ossos amolecidos falta de clcio que lhes d consistncia. Nada disso existe na regio do Amazonas. O raquitismo tpico constitui uma raridade. Se a estatura das populaes , como afirmamos, baixa, e o crescimento relativamente lento, os ossos se apresentam, no entanto, com seu aspecto e estrutura normais. A explicao do fato encontra-se na extraordinria riqueza de insolao regional, que fonte de vitamina D, em cuja presena se torna difcil o aparecimento do raquitismo. Esta carncia quase que inexistente nas reas trpico-equatoriais, como vem sendo demonstrado por inmeros investigadores. Em zonas tropicais de extrema pobreza, da mais avanada misria alimentar, com manifestaes de carncias de toda ordem, falta quase sempre o raquitismo. Foi o que observou a Dra. Lydia Roberts, 35 em Porto Rico, que uma das zonas de mais fome do continente americano. A se encontram todas as carncias minerais e vitamnicas: das anemias alimentares ao beribri, da pelagra ao escorbuto, da arriboflavinose xeroftalmia; e, no entanto, no existe raquitismo comprovado. Um grande pediatra, entusiasmado pelos problemas de nutrio de outra rea tropical, no Mxico, o Dr. Rigoberto Aguillar, 36 encontrou
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Na verdade, a taxa de clcio a fazer parte de um regime no pode ser fixada de maneira absoluta, mas depende da proporo em que nele entrem outros elementos, principalmente a de fsforo, a cujo metabolismo est to preso o do clcio. Variam tambm as necessidades de clcio em funo do abastecimento em vitamina D, elemento regulador do metabolismo deste mineral. 35 Roberts, Lydia J., Nutrition in Puerto Rico, in Jour. Amer. Diet. Ass., vol. 20, n. 5, maio de 1944. 36 Os resultados das pesquisas do Dr. Rigoberto Aguillar encontram-se concentrados em Estudios sobre las Avitaminosis y las Perturbaciones del Crescimiento en los Nios Avitaminsicos, Mxico, 1944.
em 10.000 crianas examinadas cinco mil casos de carncias das mais variadas naturezas e nem um s caso de raquitismo. Contra este ponto de vista da raridade do raquitismo nas regies equatriotropicais, apresentam-se os estudos do Dr. [pg. 82] Aguillar Nietto, da Venezuela, cujas observaes compendiadas na sua tese El Raquitismo en Venezuela. 1940, demonstram, conforme palavras do prprio autor, quanto falsa a opinio de grande parte dos nossos mdicos, de que o raquitismo no existe em nosso meio. Na verdade, em mil crianas observadas encontrou o Dr. Aguillar Nietto 91 com manifestaes raquticas. Devemos acrescentar que estes resultados se contrapem aos de outros pediatras do mesmo pas, que estudaram anteriormente o problema, como os Drs. Manoel de los Rios e Emlio Uchoa, os quais so partidrios da raridade desta carncia em suas formas tpicas. Assim, afirmava o Dr. de los Rios: apesar da multiplicidade de causas debilitantes que atuam em nosso pas, especialmente na classe pobre, submetida a ms condies de habitao, de alimentao e de vesturio, o raquitismo aqui relativamente raro. Pouqussimos casos se tm apresentado nesta clnica, no obstante o nmero de anos de sua instalao e do crescido nmero de enfermos que a tm freqentado (Lecciones Orales sobre Enfermedades de la Infancia), Caracas, 1900. Verifica-se, assim, que o problema em Venezuela se apresenta ainda obscuro e necessita estudos mais detalhados, que mostrem onde se encontra a razo. Se na Amaznia no h o raquitismo tpico, exteriorizando a carncia em clcio, h, no entanto, uma grande incidncia de cries dentrias (principalmente nas reas urbanas de populaes mestiadas de ndios com brancos, sendo bem menor a incidncia nas populaes rurais mais puras e de alimentao mais natural e at certo ponto mais variada), assim como outras manifestaes pouco estudadas que devem correr por conta do dficit em clcio. Por conta do dficit em ferro apresenta-se na regio um tipo caracterstico de anemia, que durante muito tempo foi atribudo ao direta do clima. Os tropicalistas do comeo do sculo chamavam a esse distrbio hematolgico hipoemia intertropical e o consideravam uma fatalidade climtica. Uma condio inerente vida humana em tais climas. Hoje se sabe que essa anemia apenas uma conseqncia da fome especfica em ferro, necessrio para fabricao dos glbulos
vermelhos. Os trpicos no exigem mais ferro nem destroem maior nmero de glbulos que os climas de tipo temperado ou frio. A alimentao nas vrias reas tropicais que no subscreve, em geral, uma taxa [pg. 83] de ferro adequada s necessidades normais do organismo. Sem carne, sem ovos, sem certos vegetais como espinafre, boa fonte do mesmo mineral, a alimentao desta rea est longe de possuir os 15 miligramas de ferro que so exigidos diariamente para formao da hemoglobina que o organismo requer para seus gastos. Alm disto, so os trpicos infestados de vermes que espoliam o organismo humano do pouco ferro de que ele dispe. Vermes que vo sangr-lo ao nvel do intestino, que vo atrapalhar a absoro do ferro ao nvel deste rgo e que vo agravar, portanto, por todos os meios, a sua anemia alimentar em ferro. Como o dficit mineral no se limita rea amaznica, ns voltaremos a seu estudo na anlise de outras reas, no s para aprofundar o estudo do seu mecanismo, como para correlacionar este tipo de carncia com um fenmeno de causa bastante discutida: o fenmeno da geofagia ou geomania, o hbito ou mania de comer terra. Hbito que a nosso ver traduz quase sempre um tipo de fome especfica, no sendo mais que a reao do organismo, buscando no barro do solo os elementos minerais de que se sente desfalcado. Principalmente o ferro que existe, sob a forma de hidrxido de ferro, no barro vermelho das terras tropicais, 37 nos cacos de moringas e nos pedacinhos de tijolos com que se empanturram a gosto os comedores de terra das vrias regies do mundo. Regies todas elas de fome crnica em elementos minerais. A anemia tropical no , portanto, uma fatalidade climtica; no um produto direto do clima agindo sobre o organismo humano num determinismo inexorvel, , quando muito, um produto de sua ao indireta sobre o meio vivo o clima agindo sobre a vida vegetal, limitando a produo de plantas que sejam fontes de ferro e sobre a vida animal, restringindo a criao do gado cuja carne seria fonte animal de ferro, e finalmente oferecendo condies propcias ao desenvolvimento dos vermes ou dos hematozorios que trabalham para intensificar a sintomatologia anmica. Anemia de fundo alimentar, mas intensificada desta forma pela verminose
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Considerveis extenses de Cuba, do Brasil e do Nordeste da Austrlia possuem solos vermelhos, alguns deles contendo tanto ferro que podem ser usados como minrio. (E. Huntington, Principies of Economic Geography. Nova Iorque, 1940.
parasitria, ou pelo paludismo crnico. [pg. 84] Sobre esta associao de fatores nutritivos e parasitrios, inferiorizando o homem amaznico pela degradao ou espoliao do seu sangue, escreveu Arajo Lima: Na Amaznia, a condio habitual do homem aberra da fisiologia e da normalidade. O homem um enfermo, cujo metabolismo incide naquela sndrome hemtica de inaptido regeneradora: vermintico ou impaludado, seguramente, vermintico e impaludado muitas vezes, no homem amaznico debate-se o organismo na angstia de ser empobrecido pela alimentao e agredido pelas enfermidades espoliadoras, invalidando-se o seu ser na impotncia para reagir contra as contingncias mesolgicas, do meio interior e do meio ambiente.38 O dficit em cloreto de sdio bastante acentuado e resulta tanto de fatores naturais como culturais. O fator natural que entra em jogo neste caso o prprio clima. Clima equatorial que, acarretando uma transpirao excessiva, espolia o organismo em extremo das suas reservas de cloreto de sdio. Basta lembrar que cada litro de suor contm 2 a 3 gramas de sal e que nos dias quentes e abafados um indivduo chega a suar 8 a 10 litros, perdendo, portanto, atravs da pele, cerca de 20 gramas deste elemento mineral. Para compensar tamanha perda de cloreto de sdio seria necessrio ingerir alimentos excessivamente salgados ou contendo em sua composio qumica altas doses deste princpio nutritivo. E a que os fatores culturais se vm associar aos fatores naturais para agravar a situao, para intensificar as probabilidades de carncia em sal. Fatores culturais que atuam atravs dos hbitos alimentares estratificados nesta regio. A alimentao amaznica, na qual ainda hoje predominam intensamente os hbitos e tradies indgenas, uma alimentao com pouco ou nenhum sal. O tempero que o ndio sempre admirou foi a pimenta, no ligando muita importncia ao sal, comendo carne ou peixe insosso mas sempre embebidos num bom molho de pimenta. O ndio em geral se acostuma falta de sal, mas nunca de pimenta, diz Nunes Pereira, com a convico de quem conviveu com vrias tribos amaznicas e partilhou muitas vezes de seu menu extico. [pg. 85] O mesmo informa-nos Von Martius: Muitos ndios desconhecem por completo o sal de cozinha. S as tribos j algum tanto civilizadas do Jauru, em Mato
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Grosso, onde o sal sai em eflorescncias da terra, usam dele h muito tempo... A nica especiaria vegetal que os brasis conhecem so as pimentas espanholas.39 este um dos poucos casos em que um grupo primitivo se mostra inbil para defender o organismo contra os perigos de uma carncia especfica, at certo ponto sanvel com os recursos do meio. O que se v em regra, por toda parte, o grupo lanar mo instintivamente de recursos singulares para escapar s carncias a que a alimentao habitual o expe.40 o caso dos esquims roendo os ossos das caas e comendo as suas cartilagens para escaparem fome de clcio a que o seu regime estritamente carnvoro lhes pode conduzir, ou comendo mesmo as fezes da rena para conseguir produtos vegetais que sirvam de correo ao exclusivismo de sua alimentao carnvora. o caso dos ndios mexicanos comendo pimenta em quantidade impressionante para escapar desta forma aos perigos do escorbuto, ou seja, da carncia de vitamina C. Mesmo os animais so instintivamente atrados pelos alimentos que contm as substncias nutritivas que mais escasseiam no seu regime habitual. So galinhas que picam a cal das paredes para arranjar clcio suficiente fabricao das cascas dos ovos. So cachorros atacados de avitaminoses por falta de alimentos frescos e que se fazem herbvoros, dando para comer grama. So gatos de casas ricas que abandonam o regime excessivo e artificial com que os empanturram as suas donas, para comerem bichos crus lagartixas, calangos e insetos reequilibrando, com esta selvageria instintiva, a sua nutrio domstica e defeituosa. So os bois dos campos de Rio Branco, nesta mesma Amaznia, que tanto sofrem da falta de sal e que vo procurar nos barreiros este elemento, devorando boles de terra salgada, espcie de sal negro, encontrado em certos pontos da regio. exceo do homem, todos os outros animais da Amaznia so instintivamente orientados para lutar contra a fome [pg. 86] especfica de sal e procuram este elemento no solo. Abrem enormes covas na superfcie da terra, escavada a garras, a bicos, a patas, a unhas, a focinhos e abarrotam-se da matria cristalizada e apetecida.41 Assim se constituem os barreiros ou lambedouros, onde
Mdico Amaznico em 1939. 39 Von Martius, Natureza. Doenas, Medicina e Remdios dos ndios Brasileiros, 1939. 40 Sobre o mecanismo fisiolgico destas fomes especficas consulte-se a interessante obra de R. Turr: La Base Trfica de la Inteligencia, 1918. 41 Nash. Roy. A Conquista do Brasil. 1939.
os bichos todos, desde os volteis aos quadrpedes, vo comer cantando, grasnando, uivando, fungando, chiando, numa confraternizao que reflete a abundncia daquele elemento mineral. A ferida aberta no cho pardo-vermelho, granulado de tanto bico e de tanta garra que o revolvem, recorda a unhada do gigante donde se encontrassem aves e pssaros de penas verdes, amarelas, azuis, cinzentas, pretas, a contrastarem com o fulgor malhado da ona, com o glauco-ao do tapir, com o mel tabaco do veado, com o negro dourado do cgado.42 S o ndio amaznico, com seu instinto de nutrio embotado, no lana mo de nenhum recurso para escapar fome de sal. Quase no o come, ou quando o faz de um tipo obtido com a cinza de certas plantas queimadas, sal que por sua composio qumica est longe de melhorar a sua deficincia em sdio, porque muito mais rico em potssio, que tem funes fisiolgicas antagnicas s do sdio, como em seguida veremos. Assim procediam os Tupinambs, na observao de Hans Staden, temperando suas comidas com as cinzas alcalino-terrosas de certas madeiras. Noutras zonas tropicais observa-se o mesmo fato. Assim, na zona de Ogu do Congo Francs, os Pauins usam, em lugar do sal, as cinzas das cascas das palmeiras e da banana torrada, e na regio de Bambueolo, no Congo Belga, as cinzas de certas plantas chamadas rvores do sal.43 O dficit em sdio se traduz por uma baixa permanente deste mineral no sangue e nos humores, baixa que Sundstroem. 44 j havia observado nos climas tropicais da Austrlia e de que nossos estudos confirmaram a existncia em vrias regies do Brasil. Enquanto os livros europeus e norte-americanos falam em taxas mdias de 340 a 380 miligramas de sdio por litro de [pg. 87] sangue, nos climas tropicais temos encontrado taxas de 260 a 320 miligramas apenas. 45 Acontece que o organismo, para manter a tenso osmtica de seus humores, havendo falta de sdio, lana mo do potssio, cujas taxas se apresentam sempre altas. Esta baixa de sdio e esta subida vicariante do potssio representam um grave desequilbrio inico, sendo uma das causas do esgotamento neuromuscular e da fadiga rpida nos climas tropicais.
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Morais, Raimundo. Na Plancie Amaznica, 1936. Pierre Deffontaines. LHomme et la Fort. Paris. 1933. 44 Sundstroem. V.. S., A Summary of Some Studies in Tropical Accli-matization, 1926. 45 Sobre este problema da baixa do sdio no sangue dos habitantes dos trpicos, apresentamos os resultados de nossos estudos sob a forma de nota prvia em sesso da
J os clnicos e os patologistas europeus tinham notado que, em casos de uma doena que provoca uma fadiga aniquilante a insuficincia supra-renal sempre se apresenta um desequilbrio sdio-potssio neste mesmo sentido. por isto que ns afirmamos ocorrer nos trpicos uma espcie de insuficincia supra-renal climtica, pelo menos em sua sndrome humoral, que s pode ser combatida com uma alimentao muito rica em sal. Vemos assim que, se nos casos do dficit em ferro, a ao do clima remota, fazendo-se sentir indiretamente, no caso do sdio imediata, direta. Estes dois exemplos mostram como complexo o fenmeno da aclimao. Como ingnuo afirmar-se ou negar-se em bloco, sem maiores discriminaes, a ao dos climas sobre o homem, em obedincia a escolas sociolgicas, limitadas a pontos de vistas unilaterais. Para bem compreender o complicado mecanismo da aclimao, ou seja, do ajustamento biolgico dos grupos humanos sob a ao dos variados tipos de clima, tem-se que analisar um mundo de detalhes. Alguns que primeira vista parecendo insignificantes so, no entanto, capazes de esclarecer definitivamente pontos obscuros quando bem interpretados em seus fundamentos cientficos. o caso destas variaes do metabolismo do sdio e do potssio nos climas tropicais. Estudando o seu mecanismo, chegamos a uma interpretao mais racional da apregoada superioridade biolgica das raas pigmentadas sobre as de pele branca nos climas tropicais. Superioridade que se evidenciaria na colonizao de regies deste tipo de clima. Todos sabemos que as populaes brancas sempre tiveram grande dificuldade em realizar um trabalho intensivo nas reas [pg. 88] tropicais. A maior parte dos colonos europeus, principalmente os dos pases nrdicos, sempre viveram nos trpicos uma vida sedentria, de simples administrao burocrtica, baseando os seus lucros na explorao do trabalho do nativo, do negro ou do ndio, que so capazes de um duro esforo nestes climas excessivos. 46
Sociedade Brasileira de Alimentao 1945. 46 Price, Grenfell, White Settlers in the Trpico. Nova Iorque. 1939.
J vimos que um dos fatores desta fadiga rpida a que o organismo est exposto nas regies tropicais a espoliao em sdio pelo suor, cuja secreo se intensifica durante a realizao do trabalho. Qual a razo pela qual o branco se fadiga mais depressa do que o negro ou o ndio? Pode haver vrias razes explicativas, mas o que no resta dvida que um dos fatores desta diferena fundamental reside no fato de que o ndio e, principalmente, o negro perdem muito menor quantidade de cloreto de sdio atravs
da sudao do que o branco. E perdendo menos sdio as populaes nativas se fadigam muito menos com a realizao de um mesmo tipo de esforo muscular. Qual o mecanismo que explica esta diferena? Trata-se realmente de uma superioridade biolgica? No. Primeiro, que no existem superioridades ou inferioridades raciais, luz dos modernos conhecimentos antropolgicos e genticos. O que existe so diferenciaes biolgicas, condicionadas por diferenas do meio. O que superioridade nas regies polares pode constituir uma inferioridade nos trpicos e vice-versa. Segundo, que no caso em apreo no se trata nem mesmo de diferenciaes, mas de simples processos tcnicos de aclimatao, de diferentes hbitos de vida destes grupos humanos. Os negros e os ndios perdem menor quantidade de sal pela sudao por conservarem a sua pele nua, no recoberta pelo vesturio. Talberg 47 mostrou que o suor produzido por ao do trabalho muscular muito mais rico em sdio do que o suor resultante da ao exclusiva do calor ambiente e mostrou tambm que o suor secretado pela pele vestida quase duas vezes mais rico em sal do que o da pele nua. este um argumento decisivo contra o uso do vesturio nos trpicos, afirmou Graham Lusk.48 Aquelas observaes de Talberg nos [pg. 89] trazem a explicao de complexos fenmenos ligados aclimatao e colonizao das regies tropicais. O primeiro ponto esclarecido o da maior resistncia do negro ao trabalho nos trpicos. que o negro sempre trabalhou quase despido. Seja nas plantaes de cana das Antilhas, seja nos algodoais norte-americanos, seja na rea do acar do Nordeste brasileiro, sempre o encontramos com o menos de roupas possvel, s vezes com uma simples tanga, evitando deste modo a desmineralizao pela sudao excessiva e concentrada em sais minerais. Ainda em 1818, Koster encontrava os negros dos engenhos trabalhando com uma simples tanga, com o torso e as pernas nuas, conforme gravura que incluiu em seu livro Travels in Brazil. Alfred Russel Wallace escrevia, em 1853, sobre o vesturio no Par, o seguinte: Os brancos vestem geralmente roupas de linho muito limpas, sem mancha. O traje do negro ou do ndio se reduz a calas de algodo branco ou listrado, a que juntam, s vezes, uma
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Talberg. G. A., in American Jour. Physiology. 25-350, 1922. Lusk, G., The Elements of Science of Nutrition, 1928.
camisa da mesma fazenda... Os meninos andam nus at oito ou dez anos. 49 Este hbito de manterem as crianas despidas at ficarem j bem grandinhas, tendo sua base na pobreza local, era extremamente favorvel sua sade, no s facilitando a aclimatao e diminuindo a perda de sal, mas tambm evitando o raquitismo nesta quadra da vida em que as suas conseqncias so as mais graves. E por que os brancos no tentaram esta mesma tcnica? Primeiro, por ignorarem suas vantagens; segundo, porque seria perigosa a exposio direta de suas peles ao sol. Peles pouco pigmentadas, sem nenhuma defesa, deixando-se, portanto, penetrar facilmente por todos os tipos de raios solares, tanto os benficos como os nocivos, os ultravioleta e os infravermelhos. J o negro, com a sua pigmentao acentuada, se sentia bem defendido. Na verdade, mesmo despido de qualquer espcie de vesturio, o negro nunca se expunha diretamente aos perigos da insolao, porque ficava sempre abrigado, protegido sombra da sua prpria pele... Os ndios, usando pouco vesturio, levavam tambm sobre o branco uma grande vantagem. Para defesa contra o excesso de insolao usavam eles o processo da urucuizao ou embixamento, que consistia em untar o corpo com uma mistura de corante das sementes de urucu (Bixa [pg. 90] orelana), com gordura de jacar, de capivara, de peixe ou com resinas vegetais.50 Ramn Pardal demonstrou que este processo era usado fora do Brasil numa larga rea equatrio-tropical tanto da Amrica do Sul como do Centro e do Norte, visando, alm da defesa contra o sol, a outras muitas supostas vantagens. Os nicos colonos europeus que se aclimataram realmente nos trpicos, podendo concorrer nos trabalhos musculares com os nativos, foram os portugueses. E a primeira coisa que fizeram foi desvencilhar-se das roupas, ficando nus da cintura para cima, como os negros dos engenhos com os quais se misturaram. Os colonos de outras raas, franceses, ingleses ou holandeses, querendo no s manter nos trpicos os seus vesturios, mas impor seu uso aos nativos, procediam de maneira a mais errada possvel. E com este lamentvel erro, no s dificultavam a sua aclimatao nestas terras mas tambm provocavam ou apressavam a decadncia e, em certos casos, o extermnio dos nativos, atacados de inmeros mates, logo que mantinham
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Wallace, A. R., Travels in the Amazon and Rio Negro. Londres. 1853. Azevedo, Thales de, O Vegetal como Alimento e Medicina do ndio, separata da Revista do Arquivo de So Paulo, n. 76, 1941.
suas peles recobertas maneira europia.51 Assim desapareceram grupos inteiros de polinesianos, habitantes das Ilhas Marianas, Taiti, Guam e outras, os quais, antes da chegada dos europeus, se apresentavam fortes e vigorosos, e comearam a definhar logo que os missionrios recobriam pudicamente com roupas exticas seus magnficos corpos nus. O problema da fome de sdio , portanto, um problema da mais alta importncia na vida tanto econmica como social dos grupos humanos que habitam as regies equatoriais e tropicais. Atravs dele se fazem sentir influncias decisivas do tipo de alimentao, do vesturio, 52 e do regime de trabalho. Problema de raa, de clima e de hbitos culturais. [pg. 91]
6. Como faltam a esse regime regional quantidades adequadas de sais minerais, tambm faltam, as mais das vezes, doses apropriadas de vitaminas. verdade que se trata raramente de carncias totais, de absoluta ausncia desses princpios, acarretando o que se chama de avitaminoses tpicas. So muito mais freqentes os estados de deficincia parcial, chamados de hipoavitaminoses ou de avitaminoses latentes e frustas. S em certos perodos e em contingncias excepcionais tm surgido na Amaznica os dramas das avitaminoses em carter epidmico e alarmante. Das carncias vitamnicas as mais generalizadas so as dos elementos componentes do complexo B. A ausncia de cereais integrais que representem boas fontes destas vitaminas na alimentao regional dificulta o seu abastecimento adequado. O teor em vitaminas do complexo B na mandioca, que constitui o alimento bsico do regime, muito inferior ao dos cereais, do arroz e do trigo, cujos envoltrios esto impregnados destes elementos. Ademais, no preparo da farinha, as pequenas quantidades existentes so praticamente destrudas. Isto explica que em vrios continentes as reas de mandioca sejam reas de beribri doena causada
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Interessantes sobre este assunto so as observaes de Alain Ger-bault apresentadas nos seus livros: la Poursuile du Soleil, 1929; Sur la Route du Retour, 1932, e LEvang le du Soleil. 1932. Consulte-se, tambm, o livro de Andr Missenard, LHomme et le Climat, 1937, no qual ele demonstra que a proteo excessiva da pele dos nativos pelo vesturio faz gerar um enfraquecimento de todos os sistemas orgnicos preparando a cama para a mortfera tuberculose, destruidora de populaes inteiras. 52 Tem sido notado com frequncia assim se manifesta tienne Dennery que, entre os povos acostumados a trabalhar seminus, o uso regular do vesturio tem causado mais vtimas do que as epidemias e a fome (Foules dAsie, Paris, 1930).
pela carncia de vitamina B1, tambm chamada tiamina: a rea amaznica, na Amrica, a rea da bacia do Congo, na frica. Na ndia, embora o beribri se estenda por quase todo o territrio nacional, a sua zona de maior incidncia a provncia de Travancore, onde a demasiada presso demogrfica regional conduziu os grupos humanos que a vivem a cultivar a mandioca, de maior rendimento que o arroz, e a basear sua alimentao na farinha. 53 Na Amaznia tm sido notadas manifestaes de deficincia de vrios elementos do complexo B, sendo a mais comum a da vitamina B1. Decorre de sua deficincia uma srie de fenmenos gastrointestinais e nervosos: anorexias, palpitaes, cibras, irritabilidade, perda de memria, insnia, etc. A anorexia, ou falta de apetite, a que j fizemos aluso anteriormente, uma das conseqncias obrigatrias da carncia de vitamina B1. A ausncia desse elemento estimulante do apetite, na alimentao habitual, leva a um estado de embotamento desta sensao [pg. 92] interna. Vrias das formas de gastroenterites rotuladas, de maneira genrica, de colites tropicais, tm sua etiologia ligada deficincia desse princpio vitamnico. No mecanismo de certas anemias no estranha a deficincia de tiamina. Contudo, as manifestaes predominantes desta carncia se assentam sobre o sistema nervoso. So as paresias e paralisias que constituem o eixo sintomtico dessa doena conhecida no Oriente desde a mais remota antiguidade e denominada beribri. O beribri uma tpica doena de carncia, e foram mesmo os estudos experimentais visando a esclarecer sua etiologia que marcaram o ponto de partida das grandes descobertas no campo da vitaminologia. O beribri tpico, tanto em sua forma hidrpica, acompanhado de edemas e de graves fenmenos circulatrios, como em sua forma seca. predominantemente paraltica, hoje uma raridade na Amaznia. Tendo assolado a regio com grande intensidade h anos, o mal se extinguiu quase que totalmente com as mudanas de natureza econmico-social que ali se processaram a partir do comeo do sculo atual. At ento, a rea amaznica constitua uma das zonas de mais devastadora atuao desta doena. Nos mapas nosogrficos da famosa obra de Young J. Pettlang sobre doenas tropicais, publicada em 1889. figura a Amaznia, juntamente com a ndia, a China e o Japo, como uma
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das grandes reas de beribri no mundo. De fato, durante o chamado ciclo da borracha amaznica, que durou de 1870 a 1910, com esta regio brasileira mantendo o monoplio mundial do produto, foi a zona assolada por tremenda epidemia de beribri. Durante essa fase econmica, na qual a borracha chegou em certo perodo a representar 28% do valor da exportao total de todo o pas, 54 foi atrada para a Amaznia uma corrente de imigrantes. Levas de aventureiros seduzidos pela miragem de enriquecerem da noite para o dia, com a explorao do ouro branco, do ltex valioso que jorrava como sangue das seringueiras feridas em todo o vale amaznico. A floresta virgem cobrou caro a ousadia desses pioneiros que tentavam arrancar a riqueza maldita do seio da selva tropical. E a sua vingana predileta fora exatamente o beribri. [pg. 93] A maior parte dos desbravadores da borracha que ali chegavam, atrados pelo rush do produto, foi derrubada pela terrvel doena. Chegavam dispostos e cheios de entusiasmo, vindos a maior parte deles das terras secas do Nordeste e deslumbrados com a abundncia de gua da regio. Metiam-se mato adentro pelas estradas dos seringais. Sangravam as seringueiras e recolhiam o seu precioso leite. Defumavam a borracha. Vendiam o produto por preo fabuloso. E quando estavam se sentindo donos do mundo, comeavam a sentir o cho fugindo debaixo dos ps, a sentir as pernas moles e bambas, a dormncia subindo dos ps at barriga. Uma cinta apertando-lhes o peito como uma garra. Era o beribri chegando, tornando-lhes conta do corpo, roendo-lhes os nervos, acabando com a vitalidade do aventureiro nordestino. O nmade que tinha atravessado lguas e lguas a p, distncias interminveis por picadas, rios, igaraps e parans, vencendo como um bravo todos os obstculos, tinha que se entregar sem resistncia ao golpe terrvel do beribri. Da em diante ou vinham as inchaes, as terrveis hidropisias, ficando os membros com a pele esticada e brilhante, porejando linfa pernas de cristal ou murchava tudo, dessecando-se as massas musculares, fundindo-se a carne por encanto como se estivesse sendo comida com violncia pela prpria doena. No existem estatsticas que nos dem, com preciso, o nmero de vtimas do terrvel mal o nmero exato dos que deixaram sua pobre carcaa enterrada nos pantanais amaznicos, nem dos que voltaram incapacitados, carregados em
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Dutra. Firmo. Borracha, in Brasil, 1939-1940. Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil.
cadeirinhas pelo rio abaixo, at atingirem terras mais brandas, climas mais doces onde curassem o seu beribri e esquecessem melancolicamente os seus malfadados sonhos de riqueza. Mas, das crnicas da histria da borracha se pode concluir que pelo menos 50% da populao flutuante da Amaznia foram atingidos por esse tipo de carncia alimentar. Essa epidemia que custou tantas vidas, que foi um dos fatores da falta de consolidao da economia amaznica durante o ciclo do outro branco, teve origem em fenmenos econmico-sociais bem caracterizados. Como a borracha, a partir da descoberta dos processos de vulcanizao, alcanara preos fabulosos nos mercados mundiais, elevando-se cada dia a sua cotao, as populaes amaznicas as nativas e as aliengenas ali chegadas no cuidaram mais de outra coisa, concentrando toda a sua atividade na colheita do ltex precioso. [pg. 94] Arajo Lima, num interessante estudo sobre O Problema Alimentar na Amaznia, apresentado ao 1. Congresso Medico Amaznico, em 1939, escreveu: ndice de uma manifestao de nomadismo, nos seringais dos altos rios. o homem do interior amaznico no tem o hbito de plantar uma rvore: arma o seu desconfortvel lupiri e apresenta-se, aguerrido, para assaltar os paus de leite (seringueiras): provido do rifle, do querosene, da farinha, do sal para alguma caa e de conservas para alimentao. Da verdura, do legume fresco, do leite, da manteiga, da fruta, no se apercebe. Ali falta o pequeno pomar, que deveria dar sombra, alegria e perfume ao lar. No Baixo-Amazonas, tambm no se percebe a preocupao de cultivar frutos e legumes. O homem amaznico no tem esse hbito, salvo em zonas raras, limitadas e excepcionais. Com a paralisao da pesca e com os rebanhos abandonados, afogando-se mngua nas enchentes, com a agricultura parada por falta de braos, enfim, com todas as fontes de riqueza local se desmoronando, a alimentao regional sofreu tremenda crise. Passou a ser constituda quase que exclusivamente de alimentos secos, de conservas importadas de terras distantes. O regime alimentar do seringueiro era composto de carne-seca ou charque, corned-beef, feijo empedrado ou bichado, farinha dgua, arroz sem casca, conservas em latas, doce, chocolate e bebidas alcolicas, importadas diretamente da Europa. Regime imprprio, carente de
1940.
alimentos frescos e muito semelhante ao dos antigos barcos veleiros, onde o beribri grassou solta, no de admirar que desse lugar ao surto do mal que deu. Surto que depois de fazer horrores, parecendo indiferente a todos os recursos mdicos e higinicos de que se lanou mo, se extinguiu a partir de determinado momento, sem motivos aparentes que pudessem explicar sua desapario, principalmente diante das idias de ento, de que se tratava de uma molstia infectuosa e transmissvel. A partir do momento em que se acabou o monoplio da borracha, em que o produto da planta cultivada no Extremo Oriente concorreu e sobrepujou o da planta nativa do Vale Amaznico, com a crise econmica que ento surgiu, com os preos da borracha caindo assustadoramente, os negociantes do produto abrindo falncia, a economia da regio em colapso, o beribri, como se fosse alimentado por esta prpria economia, tambm comeou a declinar. E quando o ciclo da borracha [pg. 95] se encerrou, o produto vindo a representar menos de 1% do volume da exportao brasileira, o beribri desapareceu da regio da borracha. que, sem o excesso de dinheiro para queimar toa, para comprar bebidas finas e corned-beef ingls, o homem da Amaznia teve que voltar a seus antigos misteres da era de antes da borracha. A sua caa, sua pesca, sua colheita de razes e frutos silvestres, sua agricultura incipiente. Agricultura rudimentar, mas capaz de fornecer alguns produtos frescos: milho, feijo verde, favas e legumes que, com os produtos da colheita nativa, melhoram muito seu padro de dieta, anulando a carncia e exterminando, deste modo, o beribri. Assim se fechou o ciclo da terrvel doena, ciclo que tem suas analogias com o do escorbuto no Alasca durante a febre do ouro. O escorbuto fazendo parte da sintomatologia desta febre do ouro enterrado nas terras geladas do Alasca. O beribri fora tambm um dos sintomas da febre do ouro negro do ltex coagulado nas terras do Amazonas. Passada a febre desta riqueza que tinha desorganizado to profunda-mente toda a economia agrria nascente da regio, o beribri tambm desaparece. E hoje um fato histrico de triste recordao da poca de valorizao da borracha e de desvalorizao do homem da Amaznia. Ou melhor, de desvalorizao e degradao do homem brasileiro. O regime alimentar magro, quase sem gorduras animais, sem leite, sem manteiga e com poucas folhas verdes , sem nenhuma dvida, pouco abundante em
vitamina A. verdade que alguns leos de peixe constituem fontes apreciveis deste princpio nutritivo, mas preciso no esquecer que o peixe um alimento incerto. Incerto fica, portanto, o abastecimento regional desta vitamina. Contudo, no comum se observarem casos de carncias completas, com seu cortejo clssico de fenmenos oculares e cutneos. Com a sua , cegueira noturna, com a xeroftalmia e a querotomalcea. Com as conjuntivites e as blefarites, as crneas opacas levando cegueira incurvel. Tais avitaminoses to comuns em outras reas de fome. como na ndia, por exemplo, onde vive o maior nmero de cegos do mundo, que cegaram por falta de vitamina A,55 como no Mxico, onde nmero de crianas com [pg. 96] xeroftalmia enorme, no se apresentam no Amazonas, seno em casos espordicos. O que comum nessa rea a hipovitaminose relativa, denunciada pela falta de crescimento, pela viso at certo ponto deficiente e, principalmente, pelas perturbaes cutneas. Pelas manchas escuras da pele, pelo aumento de suas rugosidades que a transformam num couro grosso e spero com espculos em torno dos folculos pilosos. So grupos humanos com a pele lembrando o couro do jacar, seu companheiro da fauna amaznica. Foram Frazier e Wu os que primeiro observaram estes fenmenos cutneos em certas populaes da China e deduziram a sua causa nutritiva, mostrando como esta pele grossa e spera fica fina e macia, transformando-se da noite para o dia, quando seus portadores so alimentados com boas doses de vitamina A. O consumo habitual dos molhos apimentados, dos sucos de ervas fermentadas e misturadas com pimenta, como o tucupi, o tacac e o arub, molhos que constituem o sal e o tempero comum do peixe, da caa e dos bolos de mandioca da Amaznia, afasta estas populaes dos perigos das carncias completas em vitamina C. Da doena que dela resulta o feio escorbuto que faz apodrecer as gengivas e sangrar as mucosas de suas vtimas, de maneira impressionante. Sob esse aspecto, a rea amaznica confirma a regra da quase inexistncia do escorbuto epidmico nos climas equatrio-tropicais. uma doena dos climas temperados ou frios, com
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Esta assustadora incidncia da carncia por avitaminose A, na ndia, foi denunciada na publicao feita em 1935 pelo notvel mdico R. E. Wright que, na qualidade de superintendente do hospital oftalmolgico de Madras, teve oportunidade, como acentua Aykroyd, de lidar com maior nmero de casos graves de avitaminoses A. do que qualquer outro medico no mundo. (W. R. Aykroyd. Human Nutrition and Diet. 1937.)
invernos gelados crestando toda a vegetao e deixando, durante uma parte mais ou menos longa do ano, as populaes sem alimentos frescos, sem verdes em suas paisagens, em seus pratos e em suas cozinhas. Nas reas tropicais surgem, s vezes, as formas larvadas, principalmente nas crianas, por seu regime montono e escasso. Os adultos encontram sempre uma maneira de se suprir deste princpio nutritivo com os recursos da natureza, em regra ricos em cido ascrbico, nas reas equatriotropicais, A vida primitiva nas florestas conduz mesmo cura do escorbuto avanado, parando a marcha mortfera da doena. [pg. 97] Contam os historiadores do sculo XVI que durante as grandes viagens transatlnticas o escorbuto matava larga. Cames56 refere a sua sanha destruidora nas viagens de Vasco da Cama: E foi, que de doena, crua e feia, A mais que eu nunca vi, desampararo Muitos a vida e em terra estranha e alheia Os ossos para sempre sepultaro.
Quem haver que sem o ver o creia? Que to disformemente ali lhe incharo As gengivas na boca, que crescia A carne e juntamente apodrecia. Apodrecia cum ftido e bruto Cheiro que o ar vizinho infecionava. No tnhamos ali mdico astuto, Cirurgio sutil menos se achava;
Mas qualquer neste ofcio pouco instructo Pela carne j podre assim cortava Como se fora morta; e bem convinha Pois que morto ficava quem a tinha.
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Pois bem, conta-se igualmente que vrios marinheiros da frota de Colombo, atacados certa vez durante a travessia pelo mal terrvel e condenados irremediavelmente morte, solicitaram ao comandante que os deixassem numa ilha deserta que se mostrava vista do navio para que a morressem tranquilamente e no fossem deste modo os seus corpos jogados ao mar e devorados pelos peixes. Tendo o comandante acedido ao pedido, foram a abandonados sorte e enquanto esperavam a morte se foram alimentando de folhas, frutos e brotos silvestres encontrados na ilha. Anos depois, regressando o barco pela mesma rota. viram-se sinais de vida na ilha deserta. Abordada a costa, verificou-se que l estavam todos os moribundos ali deixados, [pg. 98] mas agora em estado de perfeita sade. A ilha onde se processou o milagre dessa ressurreio era uma terra tropical situada a 12 de latitude norte e que hoje conhecida pelo nome de Curaau, deturpao do nome inicial dado pelos portugueses em memria deste episdio, de Ilha da Curao, ou seja, da cura do terrvel mal do escorbuto. Verifica-se, assim, que os climas equatrio-tropicais, seja por qualquer ao direta ainda pouco conhecida, seja agindo indiretamente pelos recursos vegetais que fornecem, esto longe de constituir um fator de aparecimento do escorbuto, mas, muito ao contrrio, de cura deste mal. Estudando a vitamina C e as suas carncias na Venezuela, o Dr. Guillermo Tovar Escobar57 chegou evidncia da extrema rareza da sndrome escorbstica, entre as crianas do pas, apesar da sua alimentao inadequada e supostamente pobre em vitamina C. Uma das concluses do estudo desse especialista que no possvel determinar a causa exata que impede o aparecimento dos sintomas clnicos do escorbuto nestas crianas. J vimos que o raquitismo tambm raro na regio amaznica. No quer isto dizer que no apaream uma vez ou outra alguns casos espordicos, mas estamos muito longe do raquitismo em massa, com as crianas todas exibindo os seus rosrios raquticos e as suas pernas arqueadas, como ocorre em certas reas da Inglaterra, fato que levou essa doena a ser conhecida no mundo pelo nome de doena dos ingleses. Na floresta equatorial, a insolao relativamente abundante o ano inteiro, embora menos rica em raios ultravioleta do que nas regies tropicais
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secas, evita o raquitismo pela produo de vitamina D ao nvel da pele, suprindo deste modo a sua deficincia na alimentao habitual. O sol a grande fonte de vitamina D nos trpicos, sol que um luxo em certos climas temperados ou frios, como os da Inglaterra, da Dinamarca e da Islndia, onde o raquitismo grassa solta, como uma carncia de sol. J no hoje considerada apenas uma expresso leiga, esta de se falar em carncia de sol, mas de absoluto rigorismo tcnico. Estes pases sofrem de carncia de sol, como outros de carncia de clcio ou carncia de vitamina C. Missenard fala em carncia e em imunidade solares, num sentido fisiolgico integral.58 [pg. 99]
7. Com estes defeitos mais graves, com suas reservas umas bem, outras mal aproveitadas, a regio amaznica fornece subsistncia s suas populaes ralas e qualitativamente inferiorizadas, com suas deficincias alimentares j apontadas e com suas caractersticas antropofisiolgicas um tanto precrias. Por conta da subnutrio, ou seja, da fome especfica de numerosos princpios essenciais, correm, em grande parte, os altos coeficientes de mortalidade da regio. Principalmente da mortalidade infantil. Em Manaus, capital do Amazonas, essa mortalidade atinge a cifra impressionante de 239 por mil. verdade que h coeficientes piores na Amrica Latina. Na Bolvia esta mortalidade alcana 267 por mil e nas provncias de Salta e Jujuy no Norte da Argentina atinge a cifra de 335 por mil, ou seja, de uma criana que morre sempre antes do primeiro ano de idade para cada trs que nascem. Isto ocorre, no entanto, em reas de fome ainda mais intensas do que a Amaznia, muito mais pobres em recursos naturais. Compare-se, porm, estas cifras com as da mortalidade infantil mdia nos Estados Unidos, de 46 por mil, ou com as da Noruega, de 36 por mil, ou com as da Nova Zelndia, de 32 por mil, e a sua expresso de tragdia ressalta violentamente. Tambm a mortalidade por certas doenas infectuosas como a tuberculose tem sido um fator de alta importncia na deficincia alimentar. O coeficiente bastante alto nos pontos em que se encontram populaes concentradas, como em Belm, onde atinge a cifra de 250 por 100.000. Ou seja, cinco vezes mais alta do que a de Nova Iorque. Nas zonas da hinterlndia
amaznica a incidncia da tuberculose menor por falta de contgios, mas pelos estudos realizados nos ltimos tempos verifica-se que o mal se vai alastrando vertiginosamente, aumentando dia a dia a sua expresso nosogrfica em toda a regio. Das concluses de um inqurito realizado pelo Dr. Ary Lage sobre a tuberculose na Amaznia destacamos as duas seguintes: a) a tuberculose est em fase epidmica na capital paraense; b) realizando o primeiro cadastro tuberculino torcico por via fluvial, verificamos que a cidade de Belm est disseminando a tuberculose pelas zonas rurais da Amaznia.59 No mapa de incidncia da tuberculose no pas, organizado pelo Instituto de Servios Sociais do Brasil, verifica-se este fato: [pg. 100] no s Belm constitui um dos focos de alta incidncia do mal, como este foco se estende uniformemente por toda a zona rural atravessada pela estrada de ferro de Bragana, tendo a peste branca penetrado e sido disseminada no campo pelo trem de ferro e tendo infestado em massa estas populaes nativas sem nenhuma defesa imunolgica. Tem havido entre ns inmeros desses dramas coletivos, de violentas epidemias de tuberculose varrendo populaes inteiras da hinterlndia. Observao demonstrativa deste fato nos foi dada pelo Dr. Edmundo Blundi, mdico da Fundao Brasil-Central, sobre o ocorrido com os ndios Borors do ncleo de Meruri, em Mato Grosso. Viviam nesta zona saudavelmente seis mil Borors, at o dia em que a apareceu um civilizado atacado de tuberculose. Em pouco tempo, quase toda a tribo fora dizimada por esta infeco.60 Todos estes handicaps desfavorveis ao homem, condicionados pela subnutrio e pela fome, muito tm contribudo para o relativo marasmo demogrfico em que permanece a regio. Para a estagnao na marcha de suas populaes. O abandono da regio que se seguiu crise da borracha, o centrifugismo pela atrao das zonas industrializadas do Sul com maiores horizontes de trabalho, associados aos alarmantes ndices de mortalidade, do-nos a explicao completa deste fenmeno, um tanto chocante, de uma populao jovem entrando em decadncia demogrfica muito antes de ter alcanado a maturidade de seu ciclo
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Lage, Ary, O primeiro recenseamento tuberculino-torcico por via fluvial, trabalho do Servio Nacional de Tuberculose, 1940. 60 Blundi. Edmundo. Uma Cidadela de Cincia no Brasil Central.
evolutivo, abortada em suas potencialidades biolgicas por fatores econmicosociais que lhe amesquinharam e lhe destruram o lan de vida. Porque a verdade que se as riquezas da regio amaznica no so to fabulosas como suas lendas, nem o seu clima dos mais acolhedores do mundo, seria no entanto possvel vencer tais dificuldades e desenvolver o povoamento da regio desde que sua colonizao fosse realizada dentro de um plano de aproveitamento racional e no de intempestiva destruio. Destruio da riqueza vegetal com as seringueiras sangradas at a ltima gota do seu ltex, com os peixes e as tartarugas destrudos sem discernimento, quase at o extermnio das espcies. Sem nenhuma preocupao de melhorar os processos de agricultura primitiva nem de ampliar a sua rea de cultivo. [pg. 101]
8. Para melhorar as condies alimentares da rea amaznica faz-se necessrio todo um programa de transformaes econmico-sociais na regio. As solues dos aspectos parciais do problema esto todas ligadas soluo geral de um mtodo de colonizao adequada regio. Sem alimentao suficiente e correta a Amaznia ser sempre um deserto demogrfico. Sem um plano de povoamento racional e de fixao colonizadora do elemento humano terra nunca se poder melhorar os recursos da alimentao regional. O Instituto Nacional de Imigrao e Colonizao, autarquia criada em 1953 para gerir os destinos da poltica imigratria e colonizadora do pas, iniciou, sob financiamento da Superintendncia do Plano de Valorizao econmica da Amaznia, e atravs de equipes tcnicas, os primeiros estudos racionalizados sobre a colonizao daquela regio, sendo de esperar uma estruturao compatvel com a magnitude do problema colonizador da Amaznia. So estudos que visam escolha de novas glebas para o estabelecimento de ncleos coloniais, a anlise da situao dos que j existem, o levantamento das potencialidades geoeconmicas dessas reas, alm de uma anlise scio-econmica das comunidades implicadas. Mas at agora os resultados obtidos tm sido bem minguados. A conquista de qualquer tipo de terra pela colonizao sempre o resultado de uma luta lenta e tenaz entre o homem e os obstculos do meio geogrfico. Entre a fora criadora do elemento humano e as resistncias dos fatores naturais. Na paisagem virgem, o homem sempre um intruso que s se pode manter pela fora.
O gegrafo francs Pierre Dffontaines, 61 tratando da dinmica da colonizao, dos ajustamentos dos grupos humanos aos diferentes quadros naturais, fala-nos sempre em lutas. Em luta do homem contra a montanha. Em luta do homem contra a gua. Em luta do homem contra a floresta. Assim se apresenta o caso da conquista econmica da Amaznia: luta tenaz do homem contra a floresta e contra a gua. Contra o excesso de vitalidade da floresta e contra a desordenada abundncia da gua dos seus rios. gua e floresta que parecem ter feito um pacto de natureza ecolgica, para se apoderarem [pg. 102] de todos os domnios da regio. O homem tem que lutar de maneira constante contra esta floresta que superocupou todo o solo descoberto e que oprime e asfixia toda a fauna terrestre, inclusive o homem, sob o peso opressor de suas sombras densas, das densas copas verdes dos seus milhares de espcimes vegetais, do denso bafo de sua transpirao. Luta contra a gua dos rios que transbordam com violncia, contra a gua das chuvas interminveis, contra o vapor dgua da atmosfera, que d mofo e que corrompe os vveres. Contra a gua redonda das lagoas paradas, dos igaps e dos igaraps. Contra a correnteza. Contra a pororoca. Enfim, contra todos os exageros e desmandos da gua fazendo e desfazendo a terra. Fertilizando-a e despojando-a de seus elementos de vida. Criando ilhas e mars interiores numa geografia de perptua improvisao, ao sabor de suas violncias. Para vencer a fora desadorada da natureza ainda em formao, para abrir algumas brechas nesses cerrados batalhes de rvores inexpugnveis, seria necessria uma sbia estratgia do elemento humano.62 Seria preciso, antes de tudo, que ele concentrasse as suas foras. Que se agrupasse em zonas limitadas e desencadeasse nesses pontos estratgicos a luta contra a floresta.63 Infelizmente isto no se fez. O povoamento amaznico foi conduzido de maneira dispersiva, sem nenhuma ttica para a luta a ferir-se e, portanto, previamente condenado ao fracasso. Numa regio em que a natureza se concentrou para resistir, o homem se dispersou
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Dffontaines, Pierre, Quest-ce que la Gographie Humaine? prefcio de Gographie et Colonisation, de Georges Hardy, 1933. 62 Gourou, Les Pays tropicaux, 1947. 63 Sobre a tcnica de colonizao das regies de floresta tanto tropical como temperada, sobre essa necessidade de concentrao humana para que se processe o desflorestamento produtivo, consultem-se as seguintes obras: Pierre Dffontaines, LHomme et la Fort. 1933; C. Hardy, Gographie et Colonisation, 1933, e Gordon East, A Historcal Geography of Europe, 1948.
para agredi-la, diz Viana Moog com muita penetrao. De fato, o homem amaznico, longe de formar grupos, tentou penetrar na floresta como indivduo, isolado, num herosmo individual sem precedente na histria das colonizaes. Numa louca aventura solitria, vivida no silncio da floresta. 64 [pg. 103] Deve ser posto em destaque que o ocorrido na Amaznia no foi mais que uma exaltao desse esprito de iniciativa privada que caracterizou toda a colonizao portuguesa no Brasil, neste aspecto semelhante espanhola no resto da Amrica. Colonizao, em sua dinmica desordenada, to diferente da de Roma, planejada, dirigida e realizada pelo Estado, em contraste com a aventura da Amrica, que os povos ibricos levaram a efeito atravs da ao dispersa e desconcertada do povo, sempre desprovido da orientao eficaz de suas minorias dirigentes e quase abandonado pelo Estado, aluando de uma maneira pletrica de individualismo , como destaca Claudio Sanchez Albornoz, em seu estudo La Edad Media y la Empresa de Amrica (La Plata, 1934). Com este tipo de colonizao, de to acentuada marca medieval, formou-se a nossa estrutura social com esse carter ganglionar e dispersivo, de extrema rarefao, de que nos fala Oliveira Viana, esparramando-se o organismo social, ralo e superficial, por extenses que no podiam ser alcanadas pelo organismo poltico, sem capacidade de irradiao. Ficavam, assim, os colonos sustentados quase que exclusivamente por sua fora e iniciativas prprias, com as suas conquistas defendidas muito menos pela ao oficial do que pelo brao e pela espada dos particulares. Se por toda a Amrica Ibrica o privatismo campeou, no caso da conquista da Amaznia, por seu excessivo isolamento territorial, ele se extremou at os limites mximos do individualismo. Enquanto na explorao agrria do Nordeste aucareiro e no latifndio pastoril das zonas de criao, a unidade colonizadora fora a famlia, segregada em seus ncleos territoriais, na Amaznia esta unidade ainda minguou mais, ficando reduzida ao indivduo. Ao indivduo perdido na floresta e quase sempre esmagado pela spera hostilidade do meio. Atrado pelo mistrio do desconhecido e penetrando pelo largo caminho natural aberto no seio da floresta o Rio Amazonas, seus afluentes e caudatrios
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Veja-se sobre o problema das correlaes entre o espao geogrfico e o espao social, na formao da sociedade brasileira, o trabalho de J. F. Normando, Evoluo econmica do Brasil, e de Max Fleiuss, Histria Administrativa do Brasil, contendo este ltimo uma carta de Castro
os colonos se foram espalhando pelas margens numa extenso de vrios milhares de milhas. Com o advento da valorizao da borracha, o fenmeno da disperso se acentuou ainda mais, penetrando o homem mais longe, avanando pelos afluentes do grande rio at as cabeceiras e se infiltrando pelas estradas dos seringais de mato adentro. Cerca de 90.000 aventureiros assim se espalharam pelo alto serto do Acre. Sempre dispersos, sempre numa raleza demogrfica impressionante. A exceo de Manaus, que concentra [pg. 104] uma populao urbana aprecivel, em todo o alto Amazonas o homem se apresenta como um trao quase apagado, perdido na paisagem natural. Depois do fracasso da chamada civilizao da borracha com o crack da economia local e o xodo da maior parte das populaes adventcias, o panorama do deserto humano se acentuou ainda mais. Hoje. para recomear a explorao econmica da regio, qualquer programa s poderia ter possibilidades de sucesso se baseado na utilizao de massas humanas apreciveis. J o General Kundt, que sonhara com a colonizao da Amaznia e sua transformao num celeiro para o mundo, atravs de gigantesco plano de povoamento, salientava no se tratar de uma regio a ser confiada ao povoador individual mas organizao colonizadora sistemtica. O homem perdido na Amaznia engolido irremediavelmente pela floresta. No entanto, para que se proceda implantao de densas massas humanas nessa regio fazem-se necessrias vrias medidas preliminares. Que se disponham de reservas alimentares para sua subsistncia e de recursos higinicos para defend-las das endemias locais, principalmente do impaludismo e da verminose. J no resta dvida de que sempre possvel conseguir-se o saneamento de zonas deste tipo. Na luta contra os insetos transmissores de febres, o homem dispe hoje de armas admirveis, de inseticidas, de repelentes e de medicamentos imunizantes de efeito seguro, e j no uma utopia pensar na completa higienizao de todo o Vale Amaznico. Preston James65 insiste no fato de que se as plantaes de Belterra e Fordlndia no constituram um argumento demonstrativo do valor econmico de iniciativas
Reblo com preciosos e originais conceitos sobre o assunto. 65 James, Preston, E., Latin America, 1959.
desse gnero, representaram, no entanto, uma demonstrao eloqente das possibilidades biolgicas de aclimao humana em tais regies. Realmente, ultrapassado o perodo da ltima guerra mundial, e com o advento e incremento da indstria da borracha sinttica, houve o desinteresse dos concessionrios de Belterra e Fordlndia, tendo revertido, mediante vultosa indenizao, o patrimnio da Companhia Ford ao Governo Federal. Verificou-se, depois, que houve vrios vcios de origem na planificao dos seringais, inclusive a escolha de tipo de solo e o descuido [pg. 105] relativo nos processos tcnicos de seleo de linhagens e suas respectivas enxertias, para lograr-se um rendimento econmico indiscutvel. Passaram, assim, Fordlndia e Belterra rbita dos empreendimentos deficitrios, com os quais o Estado anualmente despende considerveis somas. A par dos problemas de ordem tcnica, e a partir da encampao pelo Governo da Unio, iniciou-se naqueles locais o desenvolvimento doentio de uma mentalidade paternalista defeituosa, onde tudo deve ser resolvido pelo Estado, e a populao, principalmente composta de operrios agrcolas pagos pelos cofres pblicos, burocraticamente, no se organizou em uma verdadeira comunidade rural. As frmulas clssicas de associativismo e at mesmo de agricultura regional foram desprezadas, pois a prpria farinha de mandioca era trazida de Santarm pela Administrao. No havia, como ainda hoje no h, produo significativa de gneros alimentcios, e a monocultura da borracha, como toda monocultura, o maior obstculo anteposto organizao racional de uma comunidade agrcola progressista. Esse fato se reflete inclusive na pequena produo hortcola caseira, pois muito raros so os trabalhadores rurais que tm ou podem dedicar-se queles trabalhos, ainda que em Belterra ocorra com freqncia a presena de manchas da to decantada terra preta do Tapajs, de qualidades extremamente favorveis agricultura, no s pelo seu teor de matria orgnica como tambm de nitrognio e clcio, elementos de que tanto carecem os solos amaznicos. O grande mrito, porm, desse empreendimento, se no foi a demonstrao da capacidade econmica de Ford, ou mesmo da administrao pblica, foi o de representar uma corajosa experincia nos trpicos, em escada ampla e com recursos
financeiros considerveis. Antes desta experincia, j Earl Parker Hanson 66 tinha observado o timo estado sanitrio dos padres salesianos da zona de S. Gabriel e de Barcelos, assim como o das populaes brancas dos criadores da Ilha de Maraj. Os padres salesianos escapavam epidemia de beribri e mantinham-se hgidos, executando esforos fsicos que pareciam imprprios vida numa zona tropical. Hanson explicava o fato dizendo que estes padres, em sua maioria espanhis das Astrias, praticavam [pg. 106] o cultivo da horta e do pomar, dispondo o ano inteiro, em sua alimentao, de abundncia de frutas, verduras e legumes verdes que lhes tornavam a dieta saudvel e a sade magnfica. A superioridade dos brancos de Maraj sobre os de outras zonas da Amaznia, tambm Hanson atribui a seus hbitos de criadores e a sua alimentao mais rica em produtos animais, em leite, queijo e carne. Vejamos diante deste quadro se seria possvel obter na regio amaznica recursos alimentares para o abastecimento de ncleos demogrficos que viessem multiplicar muitas vezes a sua atual populao. O problema est preso a alguns pontos fundamentais, dentre os quais se destacam: produo insuficiente (decorrncia natural de uma intrincada gama de fatores negativos), dificuldades na conservao dos alimentos em condies climticas desfavorveis, absoluta falta de transportes regulares e baixa capacidade aquisitiva das populaes. Todos esses aspectos se ligam uns aos outros de forma indissolvel, no sendo possvel resolver o problema sem atac-lo em todos esses pontos. O aumento da produo local um objetivo inteiramente ao alcance da realidade. Com a organizao de ncleos coloniais estabelecidos, consoante planos econmicos e tcnicos bem elaborados, pela explorao racional da pesca em grande escala, pelo melhoramento das raas existentes na pecuria local, pela introduo de modernos e adaptados mtodos agronmicos de uso e conservao do solo, pela introduo da avicultura em bases de explorao domstica, pelo aproveitamento dos frutos silvestres e industrializao caseira ou rural de frutas e hortalias cultivadas, os recursos alimentares da Amaznia dariam de sobra tanto para suas atuais populaes como para manter boas levas de imigrantes. O eixo do programa a utilizao racional das terras da regio. verdade que como j vimos, no se trata de solos muito frteis, mas, tampouco, de solos estreis.
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Hanson, Earl. Social Regressions in the Orinoco and Amazon Basins. in Georg. Rev., vol.
C. F. Marbut,67 grande especialista no assunto, que fez parte da misso oficial norteamericana de estudos do Vale Amaznico, em 1923 e 1924, afirma que 70% dos solos da Amaznia permitem alguma espcie de cultivo agrcola. [pg. 107] Estudos mais recentes procedidos pelo Instituto Agronmico do Norte e por especialistas em problemas ligados edafologia parecem vir confirmando, de certa forma, esse conceito. O principal problema tcnico da agricultura das zonas equatrio-tropicais est na justa medida de aplicao dos mtodos especficos, em consonncia com as exigncias locais. Fracassos estrondosos j foram anotados na frica Equatorial, pela utilizao de tcnicas agrcolas europias naqueles tipos de solo e sob as condies de clima reinantes. A Estao Experimental de Yangambi, por exemplo, nos d conta de que aps a derrubada da mata, com a erradicao dos tocos, cobertura e plantio de leguminosas, alm de outros cuidados comuns agricultura europia, o arroz, que no primeiro ano produziu uma mdia de 2.341 quilos, passou para 365 quilos por hectare, no terceiro ano de cultura. Ampliando as culturas de milho, feijo, arroz e mandioca estaro afastadas as crises de alimentos bsicos. Pelo maior consumo de feijo, diminui-se a deficincia em ferro. Com o arroz sem ser polido, as deficincias em vitaminas do complexo B, e com o milho do tipo amarelo, o dficit em vitamina A. Dficit esse que tambm pode ser combatido pelo uso de certos leos vegetais como o de buriti ou dend, enriquecendo as gorduras que fazem parte da alimentao habitual. Cultivando ao lado da mandioca amarga os tipos de mandioca doce, e consumindo-os como verduras ou saladas, na forma como o fazem os habitantes do Congo Belga e faziam antigamente os nossos indgenas e negros escravos, sero reforadas as taxas de vitamina B1 do regime local. O consumo no s d raiz mas tambm dos brotos das folhas das diferentes variedades de mandioca constitua um hbito salutar que servia para melhorar a riqueza vegetal do regime, aumentando o seu teor em minerais e vitaminas. Era hbito dos grupos primitivos negros e ndios, que os portugueses imitaram e at os holandeses, to pouco plsticos, sempre desconfiados dos costumes da terra, tambm seguiram com entusiasmo. No livro de Joan Nieuhof, um dos agentes da Cia. das ndias Ocidentais, que viveu no Brasil durante vrios anos de ocupao holandesa,
23. 1933. e Are lhe Tropics Unhealthy?. in Harpers Mag., vol. 187. 1933. 67 Marbut, C. F. The Soils of the Amazon Basin in Relation to Agricultural Possibilities, in Geog. Rev., vol. 16, 1926.
no Nordeste, encontra-se a seguinte referncia a esses hbitos, infelizmente hoje esquecidos: Os negros e os brasileiros trituram as folhas em um pilo e depois de coz-las adicionam-lhe gordura ou manteiga e delas se servem como ns do espinafre. Os portugueses e at os holandeses [pg. 108] s vezes usam este prato: preparam tambm uma espcie de salada com essas folhas.68 Industrializada a castanha-do-par e retirado do produto o seu excesso de leo muito bom para exportao poderia ser obtida uma pasta notavelmente rica em protenas e, portanto, de uso bem indicado na alimentao (de teor protico to baixo) desta gente. Frutas como a banana, to tipicamente equatorial, cultivada em maior escala, muito contribuiria para o levantamento do padro diettico da regio. As zonas circunvizinhas aos ncleos urbanos deveriam ser destinadas ao cultivo de verduras e legumes verdes para o abastecimento das cidades, conforme experincia j feita, com relativo sucesso, pelos habitantes das reas de Cachoeira Esperana e Riberalta, nas cabeceiras do Rio Beni no alto Amazonas. E mais recentemente em Tom-Au, relativamente perto de Belm, onde vivem imigrantes de nacionalidade japonesa que se dedicam produo de hortalias, aves e ovos, alm de pimenta-do-reino, juta e outros produtos. Os SUOS e bolivianos que ali vivem s abastecem largamente de verduras e legumes plantados nas terras circunvizinhas pelos colonos japoneses, que se dedicam intensivamente a este tipo de agricultura, obtendo timo rendimento de suas plantaes. claro que, para se processar esta reforma estrutural, seria necessrio muito maior nmero de braos do que dispe atualmente a agricultura regional. Mas tambm haveria comida para muito maior nmero de bocas e se restabeleceria, deste modo, o equilbrio econmico da regio. Certas culturas s poderiam mesmo desenvolver-se com populaes rurais mais densas.69 o caso do arroz. O clima [pg. 109] amaznico poderia permitir uma
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Nieuhof, Joan, Memorvel Viagem Martima e Terrestre ao Brasil, traduo de Moacyr N. Vasconcellos, com introduo e notas de Jos Honrio Rodrigues, So Paulo, 1942. 69 Em qualquer empresa agrcola de envergadura da regio, o primeiro obstculo que se apresenta o da falta de braos. Num depoimento de Gasto Cruls, visitando a concesso Ford no Estado do Par, l-se o seguinte: O maior bice com que vem lutando a empresa a falta de braos. Desde o incio dos seus trabalhos, o mximo de homens que a concesso j pde ter a seu servio foi, na Fordlndia. em 1931, de 3.100. Esse nmero, entretanto, que mesmo agora precisaria ser mantido e at aumentado, caiu logo, e hoje no vai alm de uns 1.700 trabalhadores rurais, assim distribudos pelas duas plantaes: 1.200 em Belterra e 500 na Fordlndia.
alta produo deste cereal, desde que se dispusesse de elemento humano suficientemente habilitado para seu laborioso cultivo. Para construo das bacias rizcolas, dos canais de irrigao, dos diques de proteo, enfim, de todas estas obras hidrulicas que os povos cultivadores de arroz se engenharam em criar para satisfazer as exigncias biolgicas da planta. Assim trabalhadas, as vrzeas amaznicas poderiam produzir arroz numa escala semelhante ao delta do Tonquim na Indochina, que das reas rizcolas mais produtivas do mundo. Na realidade, nas vrzeas do Guam, na rea experimental no Instituto Agronmico do Norte, j foi conseguido maior rendimento do que o de vrias regies do sul do pas, onde aquele ndice raramente atingido. E no seria necessrio dispor da alta densidade demogrfica daquele delta do Oriente, com cerca de 380 habitantes por quilmetro quadrado, mas pelo menos com 10% deste nmero, o que est ainda muito acima da atual densidade amaznica. Alm de braos, indispensvel equipamento mquinas agrcolas adequadas quela espcie de servio, inclusive escavadeiras e valetadeiras tipo Buldozzers para permitir o controle do regime de guas ou a drenagem do excedente desta, desde quando se fizer necessrio. Um dos processos atualmente experimentados pelo Servio Nacional de Pesquisas Agronmicas, atravs de seu Instituto especializado do Norte o da colmatagem de igaps, atravs de uma rede de canais dispostos de tal maneira que a gua do rio que vem ter ao igap, enriquecida em sedimentos, dali se escoa aps deixar depositado boa parte daquelas substncias sedimentveis. A colmatagem experimental do Maicuru, no entanto, parece processar-se muito lentamente, mas ainda assim provvel que chegue a resultados satisfatrios. Foi com alguns desses recursos tcnicos que os colonos franceses conseguiram abrir enormes clareiras em florestas de tipo idntico, a floresta da Costa do Marfim, e desenvolver nessa rea grandes culturas, no s de cacau e de acar, mas tambm de mandioca, milho, batata-doce e outros produtos alimentcios. No caso da Amaznia, a SPVEA traou um Plano Quinquenal para recuperao da regio atravs da aplicao racional de recursos tcnicos e humanos capazes de mudar a paisagem econmica da regio. Infelizmente os resultados prticos obtidos esto longe de falar em sucesso, notadamente quanto melhoria dos nveis de vida e de alimentao das populaes locais. [pg. 110]
Apesar dos investimentos feitos e dos esforos despendidos, continua a Amaznia a ser uma regio marginal no conjunto da economia nacional, apresentando nveis de renda proporcionalmente to baixos em relao aos nveis nacionais quanto no inicio da execuo do Plano, o que s pode se explicar pela falta de capacidade e de idoneidade dos dirigente. deste plano de recuperao regional. [pg. 111]
1. Poucas regies do mundo se prestam to bem para um ensaio de natureza ecolgica como a do Nordeste aucareiro, com sua tpica paisagem natural, to profundamente alterada, em seus traos geogrficos fundamentais, pela ao do elemento humano. Com seu revestimento vivo quase que completamente arrasado e substitudo por um outro inteiramente diferente: regio de floresta tropical, transformada pelo homem em regio de campos abertos, teve o Nordeste a vida do seu solo, de suas guas, de suas plantas e do seu prprio clima, tudo mudado pela ao desequilibrante e intempestiva do colonizador, quase cego s conseqncias de seu atos, pela paixo desvairada que dele se apoderou, de plantar sempre mais cana e de produzir sempre mais acar. Quatro sculos de ao to extremada, a servio de um s objetivo, deram ao processo de transformao econmico-social do Nordeste o sentido de uma dramtica experincia sociolgica, servindo s mil maravilhas para demonstrao viva de uma infinidade de pontos de vista fundamentais em ecologia. Na paisagem nordestina a expresso geogrfica to rica de significao e to impregnada de histria que os seus traos componentes se destacam sempre bem ordenados, em funo do elemento criador de sua vida econmica a cana-de-acar. Da cultura desta planta. Da indstria aucareira e do comrcio. E esta zona geogrfica, com cor local to caracterstica e com to definida unidade cconmico-social, que constitui a segunda rea alimentar a ser estudada em nosso ensaio. Geograficamente, [pg. 113] abrange uma estreita faixa de terrenos de decomposio e de sedimentao, estendendo-se ao longo de todo o litoral do Nordeste brasileiro, do Estado da Bahia at o Cear. Faixa com a largura mdia de 80 quilmetros, ora se estreitando entre o mar e os tabuleiros da zona agreste, ora se alargando em vrzeas, brejos e colinas
ondulantes, sem nunca ultrapassar, no entanto, a largura mxima de 30 quilmetros. Zona de solo rico e profundo e com uma relativa abundncia de chuvas, era primitivamente recoberta por um revestimento de floresta do tipo tropical, no to luxuriante e cerrada como a floresta mida amaznica, mas por isto mesmo muito mais fcil de se deixar penetrar e conquistar pelo homem. Quando se estudam as condies de alimentao dessa rea, o que logo surpreende o investigador o contraste marcante entre as aparentes possibilidades geogrficas e a extrema exigidade dos recursos alimentares da regio. Que a regio amaznica seja uma regio de fome justifica-se at certo ponto, pela luta desigual entre o homem desarmado e as foras extremamente agressivas do meio geogrfico pobre em recursos alimentares. A fome na Amaznia decorre principalmente da pobreza natural da floresta equatorial em alimentos. J no Nordeste o fenmeno chocante porque no se pode explic-lo base de razes naturais. As condies tanto do solo quanto do clima regionais, sempre foram as mais propcias ao cultivo certo e rendoso de uma infinidade de produtos alimentares. O solo da regio, em sua maior parte do tipo massap terra escura, gorda e pegajosa, que recobre em espessa camada porosa os xistos argilosos e os calcrios do Cretceo de uma magnfica fertilidade. Solo originariamente de qualidades fsico-qumicas privilegiadas, com uma grande riqueza de humo e de sais minerais. O clima tropical, sem o excesso de gua da regio amaznica, com um regime de chuvas, de estaes bem definidas, tambm contribui favoravelmente para o cultivo fcil e seguro de cereais, frutas, verduras e leguminosas de uma grande variedade. A prpria floresta nativa tinha uma excepcional abundncia de rvores frutferas, e outras, trazidas e transplantadas de continentes distantes, se aclimataram muito bem, inteiramente a gosto do novo quadro ecolgico, e a continuaram produzindo, como em suas reas naturais. [pg. 114] o caso da fruta-po, trazida das distantes ilhas da Oceania; do coco, da manga e da jaca, transplantados do Oriente longnquo e integrados na paisagem nordestina, como se fossem plantas nativas, produzindo frutos excepcionalmente valiosos para a alimentao humana. Tudo brotava com tamanho mpeto e produzia com tanta exuberncia nessas manchas de terra gorda do Nordeste que no se pode acusar de descabido exagero a famosa frase do verboso escritor Pero Vaz de Caminha de que a terra em tal
maneira dadivosa que em se querendo aproveitar dar-se- nela tudo. Infelizmente no se quis... no o quis o coloniza-dor portugus. De nada valeram as grandes possibilidades naturais que foram malbaratadas e inteiramente desaproveitadas em sua capacidade de fornecer alimentos s populaes regionais. O gegrafo Preston James, analisando a ao do homem como fator geogrfico, faz uma afirmao que representa, at certo ponto, grave restrio inteligncia humana. Afirma este cientista que o homem, em sua ao modificadora do meio ambiente, atua s vezes com inteligncia, mas na maioria dos casos de maneira cega, sem nenhuma premeditao, satisfazendo apenas os seus interesses imediatos1 Parece primeira vista ser deste tipo de imediatismo cego a conduta colonizadora dos portugueses no Nordeste.
2. Descobrindo cedo que as terras do Nordeste se prestavam maravilhosamente ao cultivo da cana-de-acar, os colonizadores sacrificaram todas as outras possibilidades ao plantio exclusivo da cana. Aos interesses da sua monocultura intempestiva, destruindo quase que inteiramente o revestimento vivo, vegetal e animal da regio, subvertendo por completo o equilbrio ecolgico da paisagem e entravando todas as tentativas de cultivo de outras plantas alimentares no lugar, degradando ao mximo, deste modo, os recursos alimentares da regio. Mas, se em verdade essa conduta colonizadora acarretou, como veremos mais adiante, graves prejuzos para a estrutura biolgica dos grupos humanos que a se fixaram e se desenvolveram, por outro lado deu estabilidade econmica nova sociedade em [pg. 115] formao e permitiu a sua estruturao num regime agrrio bem fixado e enraizado na nova terra.2 Aparentemente a cana constitui at um elemento de proteo da terra contra os perigos da eroso. Recobrindo o solo com o revestimento vegetal de sua abundante
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James. Preston. no Prefcio ao livro de Josu de Castro, Geografia Humana, Editora Globo. 1939. 2 A agricultura, iniciada regularmente na Amrica portuguesa ao tempo das capitanias, marca a fixao definitiva do colono terra. A economia agrcola. atividade sedentria por excelncia, aqui tambm foi o esteio da conquista e da colonizao. Mais tarde, quando se vai cruzar o pas em todos os sentidos nos arrancos das bandeiras, na cata do ouro, na. caa ao ndio, na busca de terras para a criao isto se faz sempre partindo daquele ponto de apoio que eram os latifndios agrcolas, ncleos da sociedade colonial, pontos de irradiao dos movimentos todos que. no tempo, traaram os lineamentos sobre os quais ia se erguer a nao. L. A. Costa Pinto. Lutas de Famlia no Brasil. in Revista do Arquivo Municipal de So Paulo. n. 88. 1943.
folhagem e consolidando sua estrutura com suas razes intrincadas, a cana tem sido mesmo apontada por alguns como uma planta indicada na luta contra a eroso dos solos tropicais. Indicao pouco feliz porque hoje se sabe que a perda da fertilidade um fator importante no mecanismo da eroso e a cana esgota rapidamente a fertilidade dos solos, alterando sua estrutura e diminuindo sua resistncia s foras de desagregao. Contudo, mais destrutiva do que esta ao direta da cana sobre o solo a sua ao indireta, atravs do sistema de explorao da terra que a economia aucareira impe: explorao monocultora e latifundiria. 3 Deve-se, sem nenhuma dvida, ao desenvolvimento da cana-de-acar, com todos os seus nocivos exageros de planta individualista, com sua hostilidade quase mrbida por outras espcies vegetais, grande parte do trabalho de enraizamento e consolidao da colonizao portuguesa nos trpicos, a qual j h cerca de um sculo vinha ensaiando outros processos menos frutferos, sem conseguir, no entanto, estabelecer nada de mais firme do que simples feitorias comerciais nas costas da frica, da Amrica e do Oriente. [pg. 116] Trazendo a cana-de-acar para as terras do Brasil, j o portugus, conhecia bem essa planta, com as suas exigncias especficas, desde que havia utilizado as ilhas atlnticas da Madeira e do Cabo Verde como verdadeiras estaes experimentais. E conhecia tambm os segredos do comrcio aucareiro, que se apresentava, no momento, o mais promissor do mundo. Com esta experincia da agricultura e do comrcio do acar, o portugus sabia que este produto s poderia constituir uma atividade econmica compensadora se produzido em grande escala, com terra suficiente para o cultivo extensivo da planta, com mo-de-obra abundante e barata para o trabalho agrrio e com dinheiro bastante para o estabelecimento da sua indstria em bases de um verdadeiro monoplio do produto. Por isto organizou ele capitais os mais abundantes dos at ento trazidos para estas bandas, impulsionou a vinda dos escravos da costa dfrica e se assenhoreou de terra boa e
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Sobre a intima correlao entre eroso e fertilidade do solo consulte-se o notvel trabalho de G. V. Jacks Soil 1954, e sobre a experincia portuguesa do cultivo da cana nas ilhas atlnticas, o livro de Victor Viana Formao Econmica do Brasil. Sobre a eroso no Nordeste Brasileiro veja-se Soil Erosion Survey The Conservation Foundation and F.A.O. 1954.
suficiente ao empreendimento ousado. Lanado na aventura aucareira, o colonizador sabia que se tinha de entregar de corpo e alma cana-de-acar, sob pena de fracassar em sua empresa. E a cana se mostrou mais uma vez, como j se tinha mostrado antes, capaz de dar muito lucro, mas de exigir sempre muita coisa em compensao. De exigir uma escravido tremendamente dura, no s do homem mas tambm da terra a seu servio. Homem e terra que se tiveram de despojar de inmeras prerrogativas para satisfazer o apetite desadorado da cana. Apetite insacivel de terras bem preparadas e bem drenadas para o crescimento da planta. J afirmou algum, com razo, que a explorao da cana-de-acar se processa num regime de autofagia: a cana devorando tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, consumindo o humo do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o prprio capital humano, do qual sua cultura tira toda a vida. E a pura verdade. A histria da economia canavieira no Nordeste, como em outras zonas de monocultura da cana, tem sido sempre uma demonstrao categrica desta capacidade que tem a cana de dar muito no princpio para devorar depois quase tudo, autofagicamente. Donde a caracterizao inconfundvel das diferentes reas geogrficas aucareiras, com seu ciclo econmico do acar, com as fases de rpida ascenso, de esplendor transitrio e de irremedivel decadncia. Ciclo este que se processa tanto mais rapidamente [pg. 117] quanto menores os recursos de terra disponveis. Da a semelhana de aspectos entre reas geogrficas diferentes como o Haiti, Cuba, Porto Rico, Java e o Nordeste brasileiro. Numa dessas reas de monocultura aucareira. por seu carter de pequena ilha, este processo de transformao econmico-social se processou com tal rapidez e com tamanha nitidez em suas diferentes fases, que pode servir como ilustrao viva para caracterizao sociolgica das reas aucareiras do mundo: o caso da pequena ilha de Barbados, nas Antilhas. Ramiro Guerra y Sanchez,4 em estudo sobre a influncia do acar no povoamento do mar das Carabas, pe em destaque, logo no comeo do seu trabalho, o caso de Barbados, com suas 160 milhas quadradas de extenso e seus 195.000 habitantes, como uma espcie de laboratrio experimental de sociologia onde a introduo da cana provocou uma srie de intempestivas
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Guerra y Sanchez, Ramiro, Azcar y Poblacion en las Antillas. terceira edio. Havana. 1944.
reaes econmicas e sociais facilmente identificveis pelo investigador. Gilberto Freyre,5 quando estudou o Nordeste aucareiro, invocou tambm o paralelo entre Barbados e Pernambuco desde que a economia dessa ilha foi como um broto derivado da nossa. influenciada que foi pelos processos tcnicos usados esto no Nordeste do Brasil. De fato, referem os historiadores que foram marinheiros ingleses voltando de Pernambuco para a Europa, que, de passagem em 1625 por Barbados, verificaram as condies extremamente favorveis da ilha ao cultivo da cana e ai introduziram o seu plantio. A pobreza da tcnica por eles utilizada no permitiu, no entanto, uma produo em base econmica e foi s a partir de 1655 que os holandeses e portugueses expulsos do Brasil introduziram melhor tcnica e deram grande impulso indstria aucareira de Barbados, segundo nos informa Von Lippman.6 Onde se encontra maior riqueza de detalhes sobre a evoluo histrica da economia do acar nessa ilha na obra magistral de Vincent T. Harlow.7 publicada em Oxford, em [pg. 118] 1926. Atravs dos dados e da documentao que Harlow apresenta, verifica-se que a princpio a colnia de Barbados se fizera base da policultura, divididas as suas terras em pequenas propriedades produtoras de algodo, tabaco, frutas ctricas, gado vacum e suno e outros produtos de sustentao. Nesta primeira fase de sua histria, compreendida entre 1625 e 1645. a populao de raa inglesa cresceu bastante, subindo nas seguintes propores: 1.400 habitantes em 1628, 6.000 em 1656, e 37.000 em 1643. Com o desenvolvimento da cana-de-acar. que se processou nos meados do sculo XVII, a policultura foi sendo asfixiada, as pequenas propriedades agrcolas engolidas pelo latifndio, as reservas alimentares da ilha ficando cada vez mais difceis. Esta revoluo econmica to desfavorvel deu lugar ao xodo em massa, para outras terras, dos habitantes de raa branca. Comeou ento a descida da curva demogrfica: em 1667 s havia 20.000 brancos na ilha, em 1788, 16.000. em 1807. 15.500 e atualmente cerca de 15.000. O brao escravo veio substituir o do branco, constituindo a base do trabalho agrrio. Assim se desenvolveu essa economia latifundiria e escravocrata, com um esplendor transitrio que durou de 1650 a 1685.
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Freyre. Gilberto. Nordeste. 1937. Lippman. Edmund O. Von. Histria do Acar. Rio. 1941-42. 7 Harlow. V.. A History of Barbados. Oxford. 1926.
entrando a seguir em decadncia. J nesta poca estava a ilha esgotada. Suas florestas, que a princpio eram to densas que fora difcil achar espao para a fundao da colnia,8 estavam inteiramente devastadas, todas as culturas de sustentao estagnadas e o acar economicamente arruinado por no ser mais possvel produzi-lo a preos capazes de agentar a terrvel concorrncia internacional. Esta a histria fugaz do acar em Barbados, contada por Harlow e confirmada em seus traos mais caractersticos por outros historiadores idneos. Em Jamaica, em Trinidad, em Cuba e noutras Antilhas aucareiras, o processo seguiu as mesmas diretrizes, apenas num ritmo menos acelerado, como se pode verificar atravs dos estudos de um Law Mathieson, 9 de um Ragatz,10 de um Cundall,11 [pg. 119] e de outros historiadores da colonizao inglesa no mar das Carabas. A digresso que fizemos para o processo evolutivo da economia aucareira em outras zonas teve por fim evidenciar que a fraqueza do colono portugus diante do mpeto avassalador da cana no foi especfica deste colonizador.12 Nenhum outro colono, nem o ingls de Barbados, nem o francs do Haiti, nem o espanhol de Cuba pde escapar sua esmagadora influncia. Ao contrrio, deixaram-se dominar at certo ponto ainda mais do que o portugus. Porque, como teremos ocasio de ver mais adiante, se na luta para adaptar-se ao meio tropical, o portugus cedeu com bastante plasticidade s contingncias de certas foras naturais, soube tambm, por outro lado, escapar tecnicamente a muitas delas, atravs do uso inteligente de certos fatores de aclimatao que os colonos de outras raas e de outras culturas no souberam manejar com tanta preciso, fracassando por isso em suas tentativas de levar a efeito uma colonizao de enraizamento em terras tropicais. Enquanto os trabalhadores enfrentam condies de vida e de trabalho que levam as mais das vezes ao fracasso, as classes altas tm mostrado uma calamitosa
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Lippman. Edmund O. von. op. cit., 1932. Mathieson, Law. British Slavery and its Abolition. Londres, 1926. 10 Ragatz. L. J., The Fall of the Planter Class in the British Caribbean, Nova Iorque, 1938. 11 Cundall, F., Historie Jamaica, Londres, 1915. 12 Dentro do mtodo geogrfico que norteia o nosso trabalho, teremos que lanar mo vrias vezes desses estudos comparativos de regies com traos naturais ou culturais semelhantes em obedincia ao princpio da geografia geral entrevisto por Ritter e expresso mais claramente por Vidal de La Blanche nos seguintes termos: O estudo geogrfico de um fenmeno pressupe a preocupao constante de fenmenos anlogos que se apresentem em outras partes do globo. Este princpio to fecundo nos estudos de geografia social nos levar a lanar mo de inmeras comparaes entre diferentes reas de cultura.
incapacidade para se adaptarem ao meio tropical, atravs dos recursos vitais da habitao, vesturio e regime alimentar; assim fala sobre os colonizadores ingleses nos trpicos um dos mais profundos e bem informados estudiosos dos problemas coloniais, A. Grenfell Price, em White Settlers in the Trpico (American Geog. Society, special publication n. 23, Nova Iorque, 1939). No estudo da fracassada tentativa de colonizao holandesa no Nordeste, numa serena interpretao histrica da guerra que a se travou entre o invasor batavo e os portugueses j senhores da terra, terminada pela derrota e expulso do holands, devemos levar em alta conta este importante fator a inabilidade do colono nrdico para [pg. 120] dominar os speros rigores do clima tropical, para se ajustar s suas exigncias, para tolerar as suas injunes. O fator aclimatao foi decisivo nestas batalhas travadas no Nordeste pela posse das terras do acar, funcionando o General Calor, nesta guerra, com a mesma decantada eficincia com que atuou o General Inverno na invaso da Rssia pelos malogrados exrcitos de Napoleo e pelas hordas nazistas de Hitler. Vimos h pouco como, fora das contingncias do meio natural e cultural, os ingleses foram expulsos de Barbados, ficando reduzidos a um punhado de administradores, de exploradores do trabalho nativo num tipo de colonizao de simples explorao administrativa, enquanto que o portugus do Nordeste brasileiro, ao plantar a cana no solo de massap, tambm se plantou definitivamente na regio, num tipo de colonizao de enraizamento tropical da raa, sem paralelo em nenhuma outra zona do mundo, exceo talvez, e em escala bem menor, de algumas Antilhas colonizadas pelos espanhis.
3. O processo de transformao e de desvalorizao que a cana realizou no Nordeste comeou pela destruio da floresta, abrindo com as queimadas as clareiras para seu cultivo, alargando depois estes claros para extenso de seus canaviais por terras sem fim. No Nordeste, se at os meados do sculo passado o relativo atraso dos processos fabris do acar, com sua produo por unidade, limitada por seus mecanismos rotineiros, no levou a extenso das culturas a ocupar inteiramente toda a rea da mata, deixando algumas reservas, embora escassas, de terra, a partir de 1870, com o estabelecimento dos chamados engenhos centrais,
precursores das grandes usinas atuais, a absoro das terras pelo latifundiarismo progrediu assustadoramente, acentuando a misria alimentar nesta zona. Nestes ltimos cinqenta anos as condies de alimentao da zona aucareira chegaram ao grau mais acentuado de pobreza, e as medidas tomadas at hoje para remediar a situao quase nada tm conseguido. Sobre o papel ainda mais absorvente desta nova etapa da indstria aucareira, assim nos fala Caio Prado Jnior: A remodelao dos velhos engenhos se fazia difcil, no s porque na crise em que se debatiam no lhes sobravam recursos suficientes para isto, como porque as reas que ocupavam eram insuficientes para manter uma unidade fabril do vulto exigido [pg. 121] pelas novas necessidades tcnicas. Recorreu-se ento aos chamados engenhos centrais, grandes unidades destinadas a moer a cana de um conjunto de propriedades... A maior parte dos engenhos se instalou com todos os aperfeioamentos da poca. Apesar disto, no foi grande seu sucesso. Atribuiu-se isto, e provavelmente com razo, irregularidade do fornecimento da cana. As antiquadas e rotineiras lavouras no mantinham um ritmo de produo compatvel com as necessidades do processo industrial. Isto tanto na quantidade como na qualidade da cana fornecida. No tardou, portanto, que os engenhos centrais comeassem a suprir as falhas do fornecimento com a produo prpria... Iniciava-se assim o processo de concentrao que liquidaria com o tempo os antigos engenhos.13 A destruio da floresta alcanou tal intensidade e se processou em tal extenso que, nesta regio chamada da mata do Nordeste, por seu revestimento de rvores quase compacto, restam hoje apenas pequenos retalhos esfarrapados deste primitivo manto florestal. No Estado de Pernambuco, onde a devastao alcanou o mximo, a rea atualmente recoberta pelas florestas no atinge, conforme avaliao de um estudioso do assunto, o agrnomo Vasconcelos Sobrinho, 14 a 10% da superfcie total do estado. Resta apenas um resduo da mata primitiva j sem nenhuma expresso econmica.15 Com a destruio da floresta contribuiu tambm a monocultura para o empobrecimento rpido, o esgotamento violento do solo,
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Prado Jnior, Caio, Histria econmica do Brasil. 1945. Vasconcelos Sobrinho, Ensaio de Fotogeografia de Pernambuco, Recife, 1936. 15 Gileno De Carli calcula que para a produo de acar de Pernambuco se faz necessrio um consumo anual de lenha de cerca de 1 milho de toneladas. Lenha obtida pela devastao das matas do Estado.. (Aspectos Aucareiros de Pernambuco, 1940).
diminuindo de um lado a renovao do seu hmus formado pela decomposio da matria orgnica vegetal e, de outro lado, facilitando ao extremo seus processos de lavagens exageradas do solo e sua conseqente eroso. Eroso que constitui um perigo tremendo, uma verdadeira ameaa de fome progressiva na regio, representando um fenmeno de propores mais alarmantes do que possam pensar os menos avisados. Alarmantes principalmente por seu carter de processo irreversvel, [pg. 122] no dispondo o homem de nenhum recurso para refazer a riqueza do solo que a gua arrasta para o mar, nem mesmo lanando mo dos dispendiosos processos de fertilizao. A verdade que o fertilizante representa para a vida da planta apenas um complemento de sua nutrio. Como no possvel alimentar o ser humano apenas com preparados de vitaminas e sais minerais, que constituem complementos alimentares, tambm o adubo no pode refazer inteiramente o solo que foi dissolvido e arrastado pelas guas. Pode apenas corrigir algumas deficincias desse solo. Em sntese, para que o fertilizante seja eficiente, preciso haver solo para ser fertilizado e a conseqncia final irremedivel da eroso a extino de todo o solo arvel, do top-soil, ficando apenas no local a rocha estril. Um grande especialista nestes assuntos de solo, Ward Shepard, do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, querendo chamar a ateno dos norte-americanos para essa calamidade, cujos efeitos nocivos ele compara aos das guerras,16 afirma que s nas zonas agrcolas do seu pas arrastada pela eroso, para os rios e para o mar, a tremenda massa de trs milhes de toneladas de solo por ano. Dez anos de cultivo intempestivo do continente americano tornaram estreis 40 milhes de hectares outrora cultivados, uma rea correspondente da Frana. esse mesmo especialista, sempre to preocupado pelos estragos da eroso, que afirma terem sido intensificados de maneira alarmante os seus efeitos no continente
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Comparando os efeitos da eroso aos da guerra, Shepard escrev eu: O homem moderno aperfeioou dois inventos capazes de aniquilar por completo a civilizao. Um deles a guerra total, o outro a eroso mundial do solo. Dos dois, o mais insidioso e fatalmente destrutivo . sem nenhuma dvida, a eroso. A guerra desequilibra ou destri o meio social que matriz da civilizao; a eroso do solo destri o meio natural que constitui o seu fundamento. A guerra mais espetacular porque faz ruir cidades, tronos e potncias. Mas estas coisas podem ser refeitas. A eroso do solo que, virtualmente, vai destruindo ou arrasando as terras, das quais dois bilhes de indivduos dependem para seu po de cada dia. alcana uma etapa irreversvel na qual o homem e as suas obras sero enterrados sob as areias amontoadas do esquecimento. (Food or Famine The Challenge of Erosion, 1945).
americano pela introduo dos tipos de agricultura comercial, desenvolvidos pelos colonos europeus: agricultura do algodo, do fumo e do acar. E refere-se s terras do Nordeste do Brasil como das [pg. 123] mais sacrificadas e de mais crtica situao em face do fenmeno erosivo. De fato, os pequenos rios que atravessam a regio nordestina e que a princpio se haviam mostrado to dceis e serviais, ajudando sobremodo o colono a conquistar a terra, a desenvolver a a economia agrria da cana. como acentua Gilberto Freyre,17 logo que sentiram as suas margens desprotegidas de rvores, pelo desflorestamento abusivo, e despidos de vegetao os seus vales, transformaram-se, da noite para o dia, em rios devastadores, rios ladres de terra, arrancando o solo tmido das plancies e levando, com as guas das enxurradas, os elementos minerais dissolvidos, transformando-se, enfim, num brbaro fator de empobrecimento do solo. E no s no Nordeste que a eroso degrada o solo brasileiro. Tambm nos cafezais paulistas, considerados como a cultura que tem as maiores possibilidades de empregar boas tcnicas agrcolas, a eroso ameaa aniquilar em poucos anos extensas reas hoje cobertas de caf. Avelar Marques, no seu trabalho Conservao do Solo em Cafezal, assevera mesmo que os prejuzos causados pela eroso acelerada do solo nos cafezais brasileiros indevidamente protegidos so de tal extenso que afetam diretamente o patrimnio e a segurana da coletividade, refletindo-se nefastamente na estabilidade econmica e social do pas. Outras culturas, como a. do algodo, proporcionam, segundo dados da Seo de Conservao do Solo do Instituto Agronmico de Campinas, uma perda anual de solo da ordem de 34 toneladas por hectare cultivado. Weston Price18 considera este tipo de empobrecimento regional dos solos um srio problema para o mundo futuro quando afirma: O mais srio problema a enfrentar pelas geraes futuras o irremedivel handicap da pobreza qualitativa dos alimentos causada pela pobreza de minerais do solo. O antroplogo baseia tal afirmao numa srie de estudos e observaes que demonstram a ntima correlao
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Muito deve o Brasil agrrio aos rios menores, porm mais regulares: onde eles docemente se prestaram a moer as canas, alagar as vrzeas, a enverdecer es canaviais, a transportar o acar (Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala. 1933). 18 Price, Weston A., Nutrition and Physical Degeneration, 1939.
entre a composio qumica dos produtos agrcolas e a riqueza mineral [pg. 124] do solo, assim como em estudos antropolgicos que revelam a decadncia progressiva de inmeros grupos humanos submetidos a esta tambm progressiva degradao de seus recursos alimentares.19 Dessas observaes, a mais expressiva a que resulta dos importantes achados antropolgicos do Professor Hooton, da Universidade de Harvard, o qual, estudando esqueletos de um grupo o grupo dos Pecos que habitou as plancies ocidentais americanas, verificou que atravs de centenas de anos se foram intensificando as deformaes esquelticas, as artrites e as cries dentrias nesse grupo, assim como se pronunciando a reduo na sua estatura, tudo ligado a um progressivo empobrecimento do solo que o grupo ocupava. Outra conseqncia funesta do desflorestamento da regio tem sido a intensificao do seu progressivo dessecamento com as terras privadas do importante trabalho de regularizao e fixao da umidade do solo, que a floresta sempre desempenha. Se o revestimento arbreo no modifica o regime das chuvas, como afirmam com certo exagero alguns agrologistas, influi, no entanto, de maneira decisiva, na formao das reservas subterrneas de gua. gua que indispensvel ao equilbrio da vida regional, evitando que a regio entre em decadncia. J hoje as terras nordestinas esto a exigir, por toda parte, a irrigao constante, a fim de que a cana continue a produzir em forma compensadora. Autores como o botnico Alberto Loefgren e o gegrafo francs Dessoliers acreditam na capacidade da floresta em regular o grau de precipitao pluviomtrica de uma regio. So de Loefgren as seguintes palavras: conhecida a grande importncia das matas nas condies ecolgicas e climatolgicas de uma regio e na sua qualidade de reguladoras das precipitaes (Notas Botnicas, 1923). Dessoliers, no livro Le Refoulement du Sahara, atribui a aridez progressiva de certas reas da frica destruio de massas florestais na regio. Estes pontos de vista no foram, no entanto, confirmados pelos estudos de categoria experimental realizados mais recentemente, [pg. 125] levando os modernos gegrafos a considerarem a interferncia da floresta sobre as precipitaes pluviomtricas mais como um fato de
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Consulte-se o trabalho Nutrition of Plants, Animais, Man in Centennial Symposium, Fevereiro 1955 Michigan University.
superstio popular do que de comprovao cientfica.20 Mas no foi s atuando sobre as condies edficas da regio, sobre a riqueza e qualidade do solo, que o desflorestamento se constituiu em fator de degradao do Nordeste, mas tambm fazendo minguar os recursos da fauna regional, cuja vida estava to intimamente ligada prpria vida da floresta. 21 Recursos representados pelas caas que a se encontravam e que eram importantes fontes de abastecimento do ndio e mesmo do colono, nos seus primeiros tempos de vida na nova terra. Pero de Magalhes Gandavo22 afirmou que uma das coisas que sustenta e abasta muito os moradores desta terra do Brasil a muita caa que h nestes matos, de muitos gneros e de diversas maneiras. E falava nos veados e porcos selvagens, coelhos e antas, pacas e tatus. Estes e outros elementos da fauna nordestina foram sendo pouco a pouco dizimados, afugentados pelas coivaras, se escondendo nas nesgas de mata cada vez mais ralas, mais limitadas, at quase se extinguirem de vez. O que mais grave que no foi apenas destruindo o que havia de aproveitvel para a alimentao regional riquezas da fauna, da flora e do prprio solo que a cana foi prejudicial, mas tambm, e principalmente, dificultando e hostilizando em extremo a introduo de recursos outros de subsistncia, que encontraria nessas terras tropicais condies as mais propcias ao seu desenvolvimento. A monocultura uma grave doena da economia agrria, comparada por Guerra y Sanchez gangrena que ameaa sempre invadir o organismo inteiro, e por Grenfell Price ao cncer, [pg. 126] com o desordenado crescimento de suas clulas se estendendo impunemente por todos os lados.23
Dffontaines, Pierre, LHomme et la Fort, 1933. No se transforma uma floresta em savana sem graves alteraes na fauna regional. No se pode abrir estradas, nem cultivar campos sem aniquilar ou rechaar inmeras espcies animais. Estas so perseguidas e destrudas, ou se retiram da regio. assustadas e desorientadas pela presena do homem. (Franis Picard, Les Phenomnes So-ciaux chez les Animaux. Paris, 1933.) 22 Gandavo, Pero de Magalhes. Tratado da Terra e Gente do Brasil, edio da Academia Brasileira de Letras, Rio, 1924. 23 Sobre o desequilbrio ecolgico que o homem pode provocar, agindo sobre o meio ambiente como se fosse um parasita patognico, um agente de doena do solo man as disease organism consultem-se duas obras fundamentais: Edward Hyams Soil and Civilisation. 1952 e B. Frank e A. Nethoy Water. Land und People. 1950.
Nordeste brasileiro traziam consigo a tradio de um bom tipo de regime alimentar. Tipo de alimentao ibrica, caracterizado principalmente por sua riqueza e variedade de vegetais de frutas, legumes e verduras produtos do cultivo intensivo, fino e delicado da horta e do pomar, cultivo introduzido na pennsula pelos invasores rabes e transmitido atravs de sculos a portugueses e espanhis. Com a invaso da Pennsula Ibrica pelos rabes, no comeo do sculo VIII, iniciou-se em terras europias um novo tipo de agricultura, baseado na policultura rotativa, intensiva e com irrigao. Gordon East, em sua Historical Geography of Europe, acentua o fato de que na parte muulmana da Espanha, pas dos ndalos donde se derivou o nome de Andaluzia , os invasores se organizaram com notvel habilidade para explorar o potencial agrcola da Espanha meridional... as tamareiras, as laranjeiras, as granadinas, as amendoeiras, enchiam os seus jardins. Quando o domnio rabe atingiu o apogeu, nos meados do sculo X, a agricultura ibrica no tinha rival na Europa. Atravs da traduo francesa, feita por Dosy em 1873, do texto rabe de um calendrio de Crdoba do ano de 961, resumido no livro de Levi-Provenal, Espagne Muulmane, verifica-se a riqueza dos mtodos agrcolas e a variedade de culturas que ali se desenvolviam com sucesso. At a era das grandes descobertas, Portugal e Espanha eram essencialmente agrcolas. Portugal, como uma monarquia agrria, lavrando a terra pobre com o seu arado.24 Infelizmente, este tipo ibrico de alimentao to equilibrado e principalmente to bem adaptado s condies de vida tropical, constituindo, at certo ponto, um verdadeiro fator tcnico de aclimatao, no se conseguiu manter no Brasil. [pg. 127] Dentre os fatores tcnicos essenciais ao mecanismo da aclimatao, e que so a habitao, o vesturio e a alimentao, o portugus utilizou com inteligncia os dois primeiros, mas quase no deu importncia ao ltimo. 25 De fato, em matria de habitao o portugus agiu nos trpicos com manifesta superioridade sobre os colonos de outras raas quando transplantou para as terras quentes da Amrica o tipo de casa grande, com largas janelas, varandas e ptios, num arranjo arquitetnico em que transparecem, associadas, influncias rabes e romanas. Quando construiu casas
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Azevedo, J. Lcio de. pocas de Portugal econmico, 1947. Sobre os fatores tcnicos de aclimatao e sua utilizao pelo portugus, leia-se o captulo Alimentao e Aclimatao do nosso livro Alimentao e Raa, publicado em 1936.
frescas que ajudaram na luta contra o calor, com a mesma eficincia das casas mouriscas levantadas nos desertos do norte da frica pelos colonizadores rabes. A sua capacidade de identificar-se com os povos nativos, imitando-lhes certos hbitos, levou tambm o portugus a se despojar dos excessos de vesturio no trabalho tropical, facilitando-lhe muito a aclimatao. O trabalho realizado nu da cintura para cima ou com uma simples camisa de algodozinho, vestida por fora das calas, constituiu um elemento de grande valor na regulao energtica sob a ao do novo clima. Tais tipos de habitao e de vesturio contriburam, pois, largamente, para a conquista dos trpicos e permitiram que se constitusse nestas terras baixas e, portanto, sem o privilgio da altitude que sempre ameniza os rigores do calor, um tipo de colonizao de enraizamento, de completa identificao do homem com a terra. Se estes fatores ajudaram na formao da sociedade agrria do Nordeste, o fator alimentar, descuidado e mal utilizado, contribuiu muito para sua desintegrao, para a decadncia precoce dessa sociedade, com seus senhores amolecidos por um regime com excessos de aucarados, mas deficiente em seus princpios essenciais, e com a massa de escravos e depois de camponeses e de operrios definhando a olhos vistos, morrendo de fome quantitativa e qualitativa. O primeiro obstculo transmisso e fixao de hbitos alimentares sadios ao novo grupo humano em formao foi a impossibilidade de encontrar ou de produzir nestas terras quentes dos trpicos o trigo, alimento bsico da rea alimentar mediterrnea, de clima temperado, e a sua substituio forada [pg. 128] pela mandioca indgena. Assim se procedeu ao primeiro rebaixamento no valor nutritivo do regime alimentar do Reino. A farinha de mandioca, que um poltico nordestino chamou uma vez demagogicamente de po dos pobres, muito inferior, tanto em seu teor protico, como mineral e vitamnico, farinha de trigo de que fabricado o po dos ricos. Procurando se ajustar s novas contingncias naturais, o colonizador no s incentivou de incio o cultivo da mandioca e de outras plantas nativas como o aipim, o amendoim, e o anans, mas procurou introduzir no Nordeste outras plantas que sua experincia de conquistadores de terras tropicais lhe fazia saber propcias ao novo quadro geogrfico. L-se no Tratado da Terra do Brasil escrito por Pero de Magalhes Gandavo por volta de 1570: quantos moradores h na terra tinham roas de mantimentos e
vendem muita farinha de pau, uns aos outros de que tambm tiram muito proveito. Isto mostra que, enquanto durou o ciclo de explorao de pau-brasil, se desenvolveu na terra uma cultura de sustentao. Entre os papis desempenhados pelo portugus da Renascena e de decisiva influncia na mudana de costumes do mundo moderno, destaca-se o de reformador da esttica do paladar. Papel que este povo desempenhou atravs da transplantao de plantas alimentares de um continente para outro, da aproximao de cozinhas at ento inteiramente desconhecidas e da universalizao das especiarias e dos sabores orientais. Sobre esta influncia reformadora de Portugal no panorama alimentar do mundo, leia-se o captulo Genialidade e Mediocridade, do interessante livro de Fidelino de Figueiredo, ltimas Aventuras. Assim se fez, de incio, uma tentativa de policultura, a qual, ajudada pela colheita das frutas silvestres e pela caa dos animais da terra, dava de sobra para manter um regime sadio dos primeiros colonos da Terra de Santa Cruz. Mas como ocorreu em Barbados, a policultura iniciada to promissoramente foi logo estancada pelo furor da monocultura da cana: as roas de mandioca abandonadas aos cuidados primitivos do indgena, sem o amparo e o interesse do colono, as plantaes de laranja, de manga, de fruta-po abandonadas sua sorte ou apenas limitadas aos pequenos pomares em torno das casas grandes dos engenhos, para regalo exclusivo da famlia branca do senhor. [pg. 129] Com este relativo abandono das roas, a farinha de mandioca foi escasseando cada vez mais, e a tal ponto que no perodo da ocupao holandesa, nos meados do sculo XVII, houve verdadeira fome da farinha. Conta Joan Nieuhof (op. cit.): Desde a guerra de 1645, o preo da farinha subiu para seis, sete, oito, nove, dez ou onze florins por alqueire, e, como essa situao levaria runa os engenhos, o Grande Conselho baixou ordens rigorosas para que cada habitante da zona rural de acordo com as suas possibilidades, plantasse sob penalidades severas cerca de mil covas de mandioca por ano. Assim foi que o preo da farinha caiu a ponto de ser vendida no Recife razo de quatro schelingen por alqueire, e por menos ainda no interior. Foi esta uma das poucas medidas que os holandeses tomaram de efeito salutar para a alimentao coletiva da regio, e na aparncia contrria aos interesses da monocultura aucareira. Na aparncia apenas. No fundo, do maior interesse,
desde que sem alimentos fundamentais para a gente dos engenhos no seria possvel manter as atividades aucareiras, e com a farinha em maior abundncia continuaria tranquilamente a produo do acar para exportao. Assim se desfez toda a influncia benfica que a cultura peninsular deveria ter trazido ao tipo de dieta do Nordeste brasileiro.
5. A influncia do ndio foi bem mais favorvel, embora quase que se limitando, como insiste Manoel Quirino, 26 em nos dar a conhecer a matria-prima, por assim dizer, de que se serviam no preparo das refeies, sem impor os seus hbitos e os seus processos rudimentares de cozinha, muito distanciados dos hbitos europeus. Acerca desta influncia, desta contribuio do indgena na constituio da dieta e da cozinha do brasileiro, escreveu o Prof. Nlson de Senna, em seu trabalho A Influncia do ndio em Linguagem Brasileira 1946, as seguintes palavras: A mesa brasileira recebeu a contribuio alimentar do aipim, da batata-doce, da batatinha, do car, da carim, da caratinga, do caruru, do mangarito, da taioba, do jerimum, do mandumbim, da castanha-do-par, do mel-da-jata, da mobuca e da uruu, da pacova, da mandioca, das espigas de milho verde [pg. 130] assado, do churrasco, do mingau, da paoca, da mixira e dos molhos, picantes do tacac e tucupi, com o ardor das pimentas cumari e murupi; o processo da conserva da carne no moqum; as variadas e deliciosas muquecas de pescado; o nutritivo piro de farinha-de-mandioca; pipocas-de-milho, as fritadas-de-siris, o casquinho-de-muu, os ovos-de-tracaj, as postas de pirarucu (verdadeiro bacalhau amaznico), os lambaris fritos, as peixadas famosas do tambaqui e do tucunar, e do piau e do surubim, do ja e das tainhas, das traras e dos mandis, das piabas e da piracanjuba, das finssimas iguarias da garoupa e do bijupir, todos eles guisados em molhos e caldos apimentados sem esquecermos ainda: a paoca de carne de vento, socada no pilo; a macaxera ou aipim; os beijus de farinha de mandioca torrada; os grelos da cambuquira e de samambaia; os frutos mais delicados da nossa flora riqussima (o abacate, o abacaxi, o abio, o abric, o anans, as vrias anonas, como os araticuns e biribs; o aracari, ou acri da Bahia, os variadssimos aras; a bacaba,
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o bacupari e o bacuri; a batinga, o caj-manga, o caj-mirim, o caju e o caju; o cambuc, o cambu, o cupuau; os cocos, aa, babau, bacaba, buriti, jerid, indai, licuri, macaba, da pupunha e do tucum; a guabiroba ou guabiraba, o gravat e os jus doces, o jenipapo, as goiabas branca, roxa e vermelha; a grumixama, as jabuticabas; a bixirica e a mexirica-de-campo; o mamozinho jacacati, a mangaba, os diversos maracujs, o murici; a pitanga, as mangas goiana, de Ub, e de Itamarac; a pacova-inaj, a marangaba, o marimari, o mandapu e o mucuj; pequi, a pitomba, o sapoti, a sapota, o jatob; as castanhas de sapucaia t: do Par; o tapereb, o uixi, o umbu, a uvaia, o tarum, o trapi, etc. Nem se esqueam bebidas de nomes indgenas, como a caiuma, o caium, a xixa; os licores de cacau, de jenipapo e de pequi; os vinhos de buriti, de caju ou de jabuticaba; a ardente tiquira, a nutritiva tipuca (o leite), o xib, o mocoron, a garapa de cana-de-acar, o delicioso e tonificante guaran-dos-Maus, o mate-chimarro gelado, os refrescos de cajuada, etc. Dos seus processos culinrios poucos se fixaram no panorama da cozinha regional, afora o preparo da pamonha, da canjica de milho, do beiju, da farinha de mandioca e da paoca. Quando se quer desvalorizar a influncia do indgena, a sua contribuio na obteno de recursos alimentares abundantes, [pg. 131] acusa-se este elemento racial de rebelde ao trabalho agrcola, disciplina do trabalho nas fazendas, mas no se esclarece que o trabalho que os feitores exigiam dele era o da agricultura comercial, o plantio da cana para fabricao do acar. Agricultura pela qual no podia o indgena sentir a menor atrao por lhe faltar todo esprito mercantil. Esquivando-se a este tipo de trabalho, resistindo desta forma presso da monocultura, o ndio foi mais benfico do que nocivo ao equilbrio da regio. Fazendo da floresta o seu reduto e defendendo-a com arcos e flechas, o ndio moderou a expanso da monocultura e suas funestas conseqncias. 6. Outra influncia favorvel a mais expressiva e valorizadora dos hbitos alimentares desta regio foi, sem nenhuma dvida, a do negro. A do escravo negro importado da frica, em cuja rea natural tinha obtido, pelo cultivo de variadas plantas, um regime alimentar dos mais saudveis. Regime que permitiu a formao de magnficos exemplares humanos com uma compleio atltica
verificvel em inmeros desenhos da poca e na impressionante resistncia fsica do negro desafiando os fatores mrbidos que o atacavam durante as viagens mortferas nos navios negreiros, desafiando os maus tratos, o trabalho exaustivo no eito dos canaviais, os agentes patognicos da fauna da nova regio insetos, vermes e protozorios que se encarniavam em atacar sem trgua estes gigantes pretos vindos da rea do Golfo da Guin. Num magnfico estudo acerca das condies de alimentao no Congo Belga, Bigwood e Trolli mostram como, antes da colonizao europeia, o negro se alimentava bem, base dos recursos que desenvolvera na regio, e como a economia mercantilista do colono europeu foi nociva s condies de vida desse povo. So destes grandes pesquisadores, um deles, Bigwood, verdadeiro pioneiro dos estudos da alimentao nos trpicos as seguintes palavras: Tem havido uma tendncia progressiva ao despovoamento desde o comeo da ocupao europia. Segundo os autores, a populao indgena leria diminudo de 25 a 50%. Atualmente ela se estabiliza. A julgar pelas descries concordantes feitas pelos primeiros exploradores, a populao relativamente densa do Congo Belga era robusta antes da colonizao. Era bem nutrida, segundo se pode deduzir pela variedade de suas plantaes [pg. 132] de subsistncia. Os produtos da caa e da pesca tambm participavam em grande parte da alimentao do indgena. Num relatrio apresentado em 1919 pela Comisso de Proteo ao Indgena era atribudo o despovoamento s modificaes que a colonizao branca imps nas condies de vida do nativo, pelas exigncias do comercio e da indstria. O governador-geral da colnia, M. E. Lippens, escrevia em 1920: antes da chegada dos brancos, os indgenas no cultivavam seno os vveres necessrios aos habitantes de sua aldeia, mas desde o desenvolvimento do comrcio, as necessidades alimentares se tornaram maiores e mais difceis de ser satisfeitas com grande nmero de braos empregados em trabalhos diversos, inclusive para os transportes dos vveres, muitas vezes a grandes distncias. As necessidades alimentares tornaram-se enormes e a diminuta produo agrcola tornou-se ainda mais escassa. Hoje o Congo v sua populao desaparecer numa rapidez tremenda, e isto porque abandonamos a salada verde pela borracha e pelo marfim.27
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Como povo de tradio agrcola, de tipo de agricultura de sustentao, o negro reagia contra a monocultura de forma mais produtiva do que o ndio. Desobedecendo s ordens do senhor e plantando s escondidas seu roadinho de mandioca, de batata-doce, de feijo e de milho. Sujando aqui, acol, o verde montono dos canaviais com manchas diferentes de outras culturas. Benditas manchas salvadoras da monotonia alimentar da regio. Que o negro nunca perdeu esse instinto policultor, esse amor terra e s plantaes, apesar da brutalidade com que fora arrastado de sua terra, com todas as suas razes culturais violentamente arrancadas, o que podemos verificar atravs do estudo da organizao econmicosocial dos quilombos, dos ncleos de negros fugidos e escondidos no mato. Palmares, o mais significativo dos ncleos de libertao negra da tirania monocultora, se apresenta como uma demonstrao decisiva da absoluta integrao do negro natureza regional, aproveitando integralmente seus recursos e desenvolvendo, a favor de suas possibilidades, recursos novos. Na paisagem cultural de Palmares, com os traos naturais da terra to bem ajustados s necessidades do homem, [pg. 133] vamos encontrar um regime de policultura sistemtica.28 Uma das principais atividades dos negros Palmarinos era a agricultura, afirma Edson Carneiro29 depois de consultar extensa documentao sobre a vida na repblica negra: os homens do quilombo lavravam e disciplinavam a terra, beneficiando-se da experincia que traziam como trabalhadores do eito nas fazendas e nos canaviais dos brancos, diz o autor de Repblica dos Palmares, e da experincia ainda mais larga deles e dos seus antepassados nas savanas e nas florestas tropicais africanas, acrescentamos ns. Cultivavam milho, batata-doce, feijo, mandioca, bananas (pacovas) e outras plantas alimentares. Tambm plantavam algodo e cana-deacar.30 O nmero de roas era enorme... num s dia os holandeses incendiaram mais de 60 casas em roas e em plantaes.31 Tal era a importncia da lavoura dos
1937, Paris, 1937. 28 A fonte mais pura de documentaes autnticas de que dispomos sobre Palmares , sem nenhuma dvida, como acentua Afonso Arinos de Mello Franco, A Histria da Amrica Portuguesa, de Rocha Pita. Pela leitura de observaes a contidas verifica-se que os Palmares traduziam o mais forte exemplo de reintegrao do homem na natureza para realizao da liberdade, fator fundamental da vida. (Afonso Ari nos de Mello Franco, Conceito de Civilizao Brasileira, 1936.) 29 Carneiro, Edson, La Repblica de Palmares, Fondo de Cultura econmica, Mxico). 30 Faziam agricultura regular plantando cereais e algodo, cujos ex cessos comerciavam com as populaes vizinhas. (Joo Dornas Filho, A Escravido no Brasil, 1939.) 31 Carneiro, Edson, op. cit.
negros de Palmares que a guerra contra os quilombos se desenvolveu estrategicamente baseada na destruio prvia do seu roado de subsistncia. ainda Edson Carneiro quem nos informa que, em relatrio, o ex-governador Joo de Sousa considerava que o mais sensvel mal de que os negros sofriam era a destruio de suas lavouras, propondo o estabelecimento de dois arraiais de tropas para estorvar-lhes a plantao de mantimentos, a maior opresso de que eles padecem. Infelizmente, a ao restauradora do negro foi limitada, no adquirindo uma consistncia e extenso capazes de atuar decisivamente na economia do pas, como aconteceu na Ilha de Jamaica, onde o negro rebelado contra a ganncia dos plantadores contribuiu para melhorar sensivelmente o regime alimentar da ilha. [pg. 134] Conta Law Mathieson32 que os colonos ingleses latifundirios do acar, mesmo depois da abolio da escravatura da Jamaica, tentaram por todos os meios entravar o trabalho dos negros fora das plantaes de cana e chegaram ao extremo de fixar descabidos impostos sobre as terras destinadas produo de alimentos, obrigando, desta forma, os negros libertos a continuarem escravos dos miserveis salrios estabelecidos pelos senhores de engenho. Os negros resistiram; embrenharam-se nas matas, fundaram em pouco tempo cerca de 200 colnias negras, nas quais se desenvolveu uma variada produo agrcola que perdura at o momento. A interferncia do negro no sentido de melhorar o padro de nutrio do Nordeste fez-se sentir ainda, mais do que no campo da produo em escala econmica, atravs da introduo feliz de certas plantas africanas e do uso de certos processos culinrios que se mostraram excelentes no aproveitamento dos recursos alimentares da regio. a contribuio da cozinha africana, dos processos culinrios desenvolvidos pelas cozinheiras negras do Nordeste, principalmente do recncavo da Bahia, dando lugar hoje to famosa cozinha baiana. Famosa no somente pela excelncia dos seus temperos, pelo sabor dos seus quitutes, mas tambm, como demonstraremos mais adiante, pelos corretivos que as suas criaes culinrias encerram, capazes de entravar o aparecimento de vrias avitaminoses a que estariam irremediavelmente expostas as populaes locais, pelo uso dos alimentos preparados exclusivamente maneira europia. Esta ao corretiva da cozinha baiana, at pouco
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tempo elogiada pelos epicuristas, mas ferozmente atacada pelos higienistas sem slidas bases cientficas, ser melhor compreendida um pouco mais adiante, depois que tenhamos estudado as caractersticas bioqumicas da dieta regional.
7. No Brasil, a resistncia dos ndios abstencionistas e dos negros rebeldes dos quilombos, e mesmo dos colonos brancos e mestios mais pobres desprovidos de terras, no deu para vencer a fora opressiva do latifundiarismo. Para vencer as proibies contra a agricultura de outras utilidades e a criao de quaisquer espcies proibies estabelecidas em cartas- [pg. 135] rgias33 e reforadas ao mximo pela autoridade ilimitada dos senhores de engenho, onipotentes em seu regime de vida escravocrata e patriarcal. Homens com um cime de suas terras maior do que de suas mulheres e horrorizados com o perigo de que estas terras se rebaixassem devassamento a produzir qualquer outra coisa que no fosse cana. Qualquer coisa menos nobre, seja de cultura ndia ou negra mandioca, milho, amendoim, feijo. Assim subjugados pela forte presso dos fatores de natureza econmica cederam s influncias tanto naturais como culturais, e todo o complexo alimentar da regio se fixou em torno da farinha de mandioca, de cultivo fcil e barato, sem grandes exigncias nem de solo nem de clima, nem de mo-de-obra. Complexo de alimentao muito pobre que arrastou o Nordeste condio de uma das zonas de mais acentuada subalimentao do pas. Mais do que isto, zona de fome quase to grave quanto a da regio do Extremo-Norte. A princpio, e enquanto a densidade de populao se mantinha baixa, procuravam os senhores mais abastados compensar a escassez de suas dietas importando vveres de Portugal. Mas as grandes distncias a vencer, os transportes lentos e precrios da poca dificultando em extremo sua conservao e a infestao dos barcos pela peste devastadora dos ratos,34 tornavam os gneros de baixo valor nutritivo, chegando ao Brasil a maior parte j mofada ou bichada. O domnio pelos ratos, dos antigos barcos veleiros, constituiu durante o perodo colonial um dos mais graves fatores de degradao alimentar das colnias,
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No sculo XVII foi baixada uma carta-rgia proibindo sob ameaa de duras penalidades a criao de gado a menos de 60 quilmetros da costa (Roberto Simonsen, Histria econmica do Brasil. 1937). 34 R. Goffin, Le Roman des Rats, Paris, 1937.
pela destruio que provocavam os roedores nos vveres importados. Eram avaliados em cerca de dez mil francos os prejuzos correspondentes aos estragos provocados pelos ratos em cada viagem que um barco realizava entre a Europa e a Amrica. Alm disto, com o crescimento das populaes, que se fez rpido, condicionado pela fome de braos para o cultivo da cana, no foi mais possvel importar do Reino quantidades suficientes de gneros alimentcios e foram os colonos se acostumando [pg. 136] comida rude da terra, com sua dieta rotineira de feijo com farinha. preciso no esquecer que nesta zona como em todas as outras em que se foi diferenciando a economia monocultora da cana na Amrica, a fome de braos sempre imperiosa condicionou rapidamente uma alia concentrao demogrfica. Ainda neste sentido o acar veio agravar a situao alimentar, aumentando o nmero de bocas e amarrando os braos desta gente ao trabalho exclusivo da cana. Ainda hoje representa o Nordeste aucareiro uma das zonas rurais de mais alta densidade demogrfica do pas. Nos municpios da rea da mata, no Estado de Pernambuco, a densidade de cerca de 137 habitantes por quilmetro quadrado, enquanto que a densidade dos municpios do serto nordestino de apenas 7 habitantes e a densidade mdia do pas, de 6 habitantes por quilmetro quadrado. Em toda a Amrica Latina as zonas de mais alta concentrao da populao so exatamente as zonas aucareiras: Barbados, com seus 624 habitantes (quase todos negros) por quilmetro quadrado, concorrendo nos quadros estatsticos mundiais com os enxames humanos do Oriente, Porto Rico, com 311 habitantes, Haiti, com 175, e Jamaica, com 145 (dados estatsticos de 1950). So todas estas reas de monocultura da cana, zonas de fome, das mais acentuadas manchas de misria orgnica de toda a Amrica Latina. O trigo importado nos primeiros sculos de colonizao era de to m qualidade, chegando ao consumidor em to mau estado de conservao, que todos acabaram por preferir o po da terra a mandioca ao po de trigo mofado e ranoso. At os holandeses, to presos a seus hbitos europeus, to impermeveis aos costumes da terra, se foram habituando ao uso da mandioca, conforme nos deixou relatado Joan Nieuhof (op. cit.): A raiz de mandioca originria do Brasil; da transplantada para outras regies americanas e para a frica. com sua farinha
que os brasileiros bem como portugueses, holandeses e negros crioulos fazem po, que depois do trigo, de todos o melhor. Tanto assim que os nossos soldados preferiram receber em nossos celeiros sua rao em po de mandioca a receb-la de trigo. desta alimentao, sempre pobre em vegetais, frutas e verduras, em carne e leite por falta de culturas agrcolas e de criao de extensa zona nordestina que nos vm falando os [pg. 137] peridicos relatos de antigos historiadores e viajantes que por a viveram ou passaram. So quase todos unnimes exceo de uns poucos mais apressados ou mais superficiais, que viam nos banquetes de hospitalidade com que eram recebidos, uma expresso de fartura do passado regular da gente da terra em afirmar que a alimentao da regio era muito escassa e muito pouco saudvel. Atravs de escritos como os do Padre Ferno Cardim, das cartas do Padre Vieira, das impresses de viagens de ingleses e franceses, que por ali passaram, dos estudos com certo ar cientfico dos doutores da poca e de outros documentos, verifica-se a constante precariedade da alimentao regional. Apoiados nas suas afirmativas, as mais das vezes empricas mas, mesmo assim, denunciadoras de um estado de coisas bem patente, e em outras mais bem fundamentadas como as de um Inbert, Antnio Jos de Sousa, Jos Rodriguez Duarte, Antnio de Sousa Costa e Francisco dos Santos Sousa, pode-se concluir que, desde quase o incio da colonizao brasileira at hoje, a alimentao do nordestino foi sempre de m qualidade. O perodo de ocupao holandesa no alterou fundamentalmente este panorama. Apenas acentuou alguns dos seus males, provocando uma maior concentrao urbana, no Recife, sem zona de abastecimento adequada, e atenuou outros poucos, com medidas como a j apontada, do plantio obrigatrio da mandioca, e com o exemplo de uma dieta um pouco mais variada, pelo uso mais freqente das saladas. Mas isto tudo foi transitrio como o prprio domnio holands e no deixou marca definitiva nos hbitos da regio. Dos traos que compem o complexo regional, apenas um, que teve sua origem neste perodo, no s se conserva at hoje, mas se difundiu por outras reas do pas e, mesmo, pelo mundo inteiro. Foi o hbito de se misturar o caf com leite, criando esta mistura j to banalizada a mdia que s com dificuldade se pode fixar o seu ponto de origem. Mistura alimentar das
mais felizes porque compe uma bebida do mais alto valor nutritivo e de magnficas propriedades tanto organolpticas como fisiolgicas. Segundo se l em Jos Honrio Rodrigues, foi o prprio Joan Nieuhof que inventou a notvel mistura: A Nieuhof devem os brasileiros um hbito alimentar nacional: a mdia, isto , o caf com leite. Segundo as pesquisas realizadas por estudiosos da histria do caf, foi Nieuhof quem inventou a mistura. Modernamente, Padberg Drenkpol e, tambm, Afonso de E. Taunay registram a crena antiga de que [pg. 138] para a tsica nada havia como caf com leite. Nieuhof, inventor da mistura, imitara neste particular os chins, que aos seus tuberculosos ministravam ch com leite. (Introduo de Jos Honrio Rodrigues edio de 1942 da obra j citada de Joan Nieuhof.) Depois da ocupao holandesa continuou a alimentao a ser de m qualidade, mantendo seus mais graves defeitos. O que no se sabia com exatido era quais esses defeitos mais graves e as suas principais conseqncias. Procurando esclarecer e precisar cientificamente estes aspectos da questo, levamos a efeito em 1932 um inqurito sobre as condies alimentares do povo na cidade do Recife,35 que pode ser considerada como a capital do Nordeste aucareiro. O inqurito que abrangeu quinhentas famlias, num total de 2.585 pessoas, pelo fato de ser o primeiro levado a efeito no pas, veio revelar certos aspectos entrevistos por alguns, mas at ento no afirmados de maneira definitiva por ningum, e foi olhado por muitos com certas reservas e suspeitas. Reservas contra o alarma das cifras apresentadas. Suspeitas de que houvesse exagero nos seus resultados. Outros inquritos realizados posteriormente vieram, no entanto, confirmar as nossas concluses e remover a desconfiana ingnua, em face de nossas afirmaes, dos que viviam at ento mergulhados no seu ponto de vista lrico de que no havia em nenhuma parte do Brasil gente morrendo de fome. O inqurito viera demonstrar exatamente o contrrio: que, pelo menos naquela regio do Nordeste aucareiro, do que mais se morria era de fome. Das conseqncias da fome crnica em que vivem h sculos as populaes regionais. O primeiro grave defeito, evidenciado por nosso inqurito, no tipo de dieta estudado, foi a sua terrvel monotonia, a falta de variedade das substncias
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Castro, Josu de, Condies de Vida das Classes Operrias no Recife. 1935.
alimentares que entram em sua composio;36 dieta quase exclusivamente formada de farinha com feijo, charque, caf e acar. Tudo o mais participando dela apenas incidentalmente ou em quantidades insuficientes. [pg. 139] Basta ver que s l9% das famlias recenseadas consumiam leite e apenas 16% faziam uso de frutas, e isso mesmo em quantidades irrisrias. Leite na proporo de 126 gramas dirias per capita, e as verduras representadas por um tomate murcho ou algumas folhas tostadas de alface. Esta evidncia de que 80% da massa das populaes no consumiam praticamente nenhum alimento protetor do grupo do leite, dos ovos, das verduras ou das frutas, marca o primeiro trao negro do perfil nutritivo daquela gente. O segundo desses traos e representado pela insuficincia calrica do regime, que se apresentou com um teor energtico mdio de 1.645 calorias dirias, mais baixo ainda do que o da regio amaznica, quando as condies climticas desta rea do Nordeste condicionam um metabolismo um pouco mais alto do que o metabolismo dos habitantes da floresta equatorial.37 Noutro inqurito realizado seis anos depois na mesma zona, Antnio Freire e A. Carolino Gonalves38 encontraram um teor calrico dirio de 1.625 calorias, quase igual, portanto, ao do nosso inqurito.
8. Sob o ponto de vista qualitativo, o regime local se revelou em nosso inqurito com um excesso proporcional de hidrocarbonados, como quase sempre ocorre nas regies tropicais do mundo, e com uma deficincia patente em protenas. O seu teor mdio protico se fixou em 62 gramas dirias, na maior parte representado por protenas incompletas de origem vegetal, protenas do feijo, do milho e da farinha de mandioca. [pg. 140]
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Sobre as graves consequncias que decorrem para um grupo humano da falta de variedade em seus recursos alimentares, isto , em sua monotonia, consulte-se a erudita obra de Alberto Cassinelli Alimentacin de Tiempo y Lugar, Montevidu, 1941. 37 As medidas do metabolismo basal que realizamos na cidade do Recife, ponto de partida para a criao de nossa teoria da predominncia do fator umidade relativa do ar sobre o fator temperatura absoluta no condicionamento das trocas energticas individuais, revelaram-nos que o metabolismo basal nestas zonas apenas 12% mais baixo do que nos climas frios e temperados, correspondendo dentro destas cifras uma necessidade energtica total diria de cerca de 2.640 calorias para um adulto normal. Vede. para maiores detalhes, os nossos trabalhos: Metabolismo Basal e Clima, in Revista Mdica de Pernambuco. n. 11. e Problema da Alimentao no Brasil (Seu Estudo Fisiolgico). 3. edio. So Paulo. 1939. 38 Freire. Antnio, e Gonalves, A. Carolino. Sondagem sobre o Custo de Vida nas Classes Trabalhadoras no Recife, publicao da Di-retoria Geral de Estatstica do Estado de Pernambuco, 1938.
A taxa tambm muito baixa de gordura, correspondendo a cerca de 13 gramas dirias, constitui um ndice bastante expressivo da deficincia desse regime em vitaminas do grupo lipossolvel. Das cotas de sais minerais se revelaram muito insuficientes as de clcio e as de ferro, com teores, respectivamente, de 400 e de 5 miligramas, menos da metade das taxas indicadas pelos nutricionistas como racionais. Das vitaminas hidrossolveis, as deficincias dos elementos do complexo B e da vitamina C so inegveis, dada a ausncia ou exigidade dos cereais integrais ou das frutas frescas na dieta habitual da maioria da populao. Este regime alimentar insuficiente e carenciado das populaes do Recife exprime, at certo ponto, em sua tpica constituio, os hbitos alimentares de toda a regio. verdade que na cidade novos fatores interferem para um maior rebaixamento do padro da nutrio local. Deve-se tomar em considerao, ao se caracterizar as falhas do padro alimentar de uma larga zona do Nordeste aucareiro, o fato de ter-se a desenvolvido prematuramente um ncleo demogrfico de atitudes e interesses predominantemente urbanos, que foi o da cidade do Recife, reagindo contra os interesses agrrios regionais. Dizemos desenvolvido prematuramente porque, enquanto no resto do Brasil continuava um violento contraste entre a pujana da vida rural e a mesquinhez urbana, com cidades sujas e desleixadas, neste Nordeste agrrio surgiu, levantada pelas mos dos holandeses, em pleno sculo XVII, a cidade do Recife. Este trao excepcional de nosso panorama cultural assim comentado por Srgio Buarque de Holanda: Populao cosmopolita, instvel, de carter predominantemente urbano, esta gente se apinhou no Recife ou na Mauritsstad que crescia na Ilha Antnio Pais, estimulando assim de modo prematuro a diviso clssica entre o engenho e a cidade, entre o senhor rural e o mascate, diviso que encheria mais tarde toda a histria pernambucana.39 Se o surto de urbanizao, de predominncia das atividades urbanas sobre as rurais, com o rebaixamento, que se processou intensivamente no sculo passado, das atividades agrcolas, foi motivo de grave degradao de nosso panorama alimentar, no Nordeste aucareiro este fator se [pg. 141] antecipou de dois sculos numa precocidade terrivelmente prejudicial. Recife uma cidade que sempre atraiu um excesso de populao formado de elementos adventcios que
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fugiram da zona rural acossados por dois grupos de causas de expulso: as secas peridicas do serto nordestino e os salrios miserveis das zonas das usinas. Estes elementos tecnicamente mal equipados subsistem as mais das vezes margem da economia urbana, vegetando num tipo de vida extremamente precrio, de recursos os mais limitados. Dos 700 mil habitantes que o Recife possui, 230 mil vivem em habitaes do tipo de mocambos, plantados nos mangues e nos arredores da verdadeira cidade. Sobre esta populao marginal escreve Mrio Lacerda de Mello: Assim, de acordo com informaes oficiais, construa-se em nossa capital quase duas vezes mais mocambos do que casas de alvenaria e taipa. E a populao das reas onde se levantam aquelas habitaes miserveis que cercam a cidade sobe a cerca de 165.000 almas. populao superior de qualquer cidade brasileira, exceto uma meia dzia: Rio, So Paulo, Recife, Salvador, Porto Alegre e Belm. Se separssemos imaginariamente esta parte da populao do Recife em uma mocambpolis parte, teramos uma cidade to grande que estaria em stimo lugar entre as cidades brasileiras. Para rivaliz-la em populao, s encontraramos um centro urbano na Amaznia, um no Nordeste, dois no Brasil oriental e dois no Brasil meridional. No Brasil central, nenhum. claro que as condies de vida dessa parte da populao, dos habitantes da mocambpolis40 so bem inferiores aos dos habitantes das 25.000 vivendas de padro mais elevado, de alvenaria ou de taipa que completam a paisagem urbana do centro. No nosso inqurito no discriminamos este aspecto: ao contrrio, ele se fundamenta em sua maior parte na zona dos mocambos. Mesmo assim, as condies a reveladas so apenas acentuadas em certos traos, sem alter-los substancialmente em sua essncia. Tal o panorama alimentar de toda a zona aucareira, apenas com leves diferenas de coloridos locais. [pg. 142] Num inqurito que realizou o antroplogo baiano Tales de Azevedo 41 na
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Lacerda de Mello, Mrio. Pernambuco. Traos de sua Geografia Humana, 1940. Azevedo, Thales de, Padro Alimentar da Populao da Cidade do Salvador, trabalho apresentado ao Primeiro Congresso Brasileiro de Problemas Mdico-Sociais, Bahia, 1942. Este pesquisador apresenta as seguintes concluses sobre as condies de alimentao na capital da Bahia: A anlise dos dados desta pesquisa, conquanto no nos d ele mentos quantitativos que nos conduzam a um juzo sobre a composio bioqumica das dietas, revela-nos a reduzida variabilidade das refeies, e a ausncia, na maioria dos informantes, de artigos que forneam elementos nutritivos essenciais como protdios, sais minerais e vitaminas, tudo fazendo ainda acreditar no pequeno valor energtico das dietas dos grupos scio-econmicos
cidade do Salvador, os dados encontrados coincidem em quase todos os pontos com os nossos. Apresentou-se o regime na Bahia tambm com insuficincia energtica, com escassez de alimentos protetores e com uma terrvel monotonia dos seus componentes habituais. O regime alimentar em plena zona rural se apresentou, no inqurito levado a efeito por Vasconcellos Torres,42 com caractersticas muito semelhantes aos regimes da rea urbana. Na zona aucareira do recncavo baiano encontrou este pesquisador, em 98% das famlias inquiridas, deficincias calricas que variavam de 5 a 57% do seu total energtico. Os componentes da rao usual eram o feijo, a farinha de mandioca, o charque, o acar, a carne de gado e o toucinho. Tais hbitos alimentares do campo se estendem mesmo por certa zona, transbordando da rea aucareira e se prolongando por toda a faixa de terra aproveitada pela monocultura do cacau. O fenmeno faz com que, sob o ponto de vista alimentar, a zona do cacau e a zona do acar constituam um s tipo de rea de alimentao. Sendo que, conforme observou aquele investigador, a carne entra na rao em quantidade insignificante, apenas para dar gosto comida. E no poderia ser de outro modo, em vista dos salrios extremamente baixos que aquela gente recebe pelo trabalho e com todo o abastecimento de carne se fazendo custa de gado vindo de outras zonas ou de charque tambm importado de regies distantes. [pg. 143] No inqurito que realizamos na capital pernambucana encontramos em 1932 um salrio mdio dirio de Cr$ 3,60 o qual, estudado luz da capacidade aquisitiva do nosso dinheiro naquela poca, se revelava como um salrio de fome. Pois bem: na zona rural, Gilno De Carli, levando a efeito em 1939 um inqurito em oito usinas pernambucanas, encontrava para o trabalhador do campo, que constitui o grosso da populao, salrios que variavam entre 2 e 3 cruzeiros e meio. A falta de opo com outras espcies de trabalho obrigava o trabalhador rural a se submeter irremediavelmente terrvel explorao ou a emigrar para as cidades ou para outras zonas econmicas do pas. Atualmente estes salrios foram sucessivamente majorados por lei, mas em compensao o custo da vida subiu de tal forma que a
inferiores. 42 Torres, Vasconcellos, Condies de Vida do Trabalhador na Agro-indstria do Acar, 1945. Trabalho louvvel e de interesse pelo largo campo que o autor estudou, mas infelizmente um tanto falho em seus mtodos de indagao, sentindo-se, no captulo referente alimentao, a impreciso a que a falta de conhecimentos especializados no assunto conduz o autor.
carne, o leite e os ovos continuam inacessveis capacidade aquisitiva do trabalhador rural da zona aucareira. H ainda outro fator de ordem econmica a ser tomado em considerao. a periodicidade com que se trabalha na indstria do acar. Durante o perodo da safra amplia-se o horizonte de trabalho e surge uma prosperidade relativa, mas na entressafra vem o desemprego e se acentua a misria dessa populao, que no tem possibilidade de acumular reservas na fase de produo. Minneman observou o mesmo fato em Cuba, salientando a ntida diferena da dieta e dos hbitos de vida nos dois diferentes perodos no perodo de zafra e no de tiempo muerto.43 Mais recentemente, a Comisso Nacional de Poltica Agrria, num inqurito que realizou em 1952 em colaborao com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, atravs de seus Agentes em todos os municpios brasileiros, chegou a concluses idnticas, que confirmam os baixos nveis de alimentao e sade das populaes do Nordeste.
9. Desta alimentao precria resultam graves conseqncias para as populaes nordestinas: umas especficas, presas em relao de causa e efeito s diferentes carncias que a dieta acarreta; outras inespecficas, refletindo, porm, a misria orgnica a que o meio social reduziu o homem da bagaceira. As primeiras manifestaes diretas da deficincia alimentar so as que resultam de sua insuficincia calrica, de sua pobreza [pg. 144] energtica. Por sua conta decorre, em grande parte, a reduzida capacidade de trabalho dessa gente que se cansa ao menor esforo, que no capaz de acompanhar o ritmo muscular do trabalhador das regies de melhor alimentao do sul do pas. Ou mesmo dos habitantes da zona do serto. O sertanejo sempre se sentiu superior ao brejeiro, tachando-o de preguioso, pela pequena capacidade de trabalho que ele demonstra. Gilberto Freyre afirmou que os mais bem alimentados na regio sempre foram os representantes dos dois extremos econmicos: o senhor de engenho e o escravo; o senhor alimentando bem o escravo para que ele produzisse mais. Que os escravos no eram uns bem alimentados, com suas trocas metablicas bem equilibradas, conclui-se facilmente verificando o nmero enorme
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de doenas da nutrio que eles apresentavam. Ruy Coutinho, num estudo muito bem documentado acerca da alimentao dos negros escravos, depois de concordar, de incio, com a afirmativa de Gilberto Freyre, de que o escravo tinha sido o elemento melhor nutrido em nossa sociedade, exibe, logo a seguir, baseado em fontes seguras, uma alarmante seqncia de afeces nutritivas e carncias assolando sempre as senzalas que torna desconcertante a sua concordncia inicial com o socilogo de Casa Grande & Senzala.44 A rigor, o socilogo no deveria escrever os mais bem alimentados, mas, os que comiam maiores quantidades de alimentos, o que bem diferente. So afirmaes como esta destitudas de todo fundamento, ao lado de uma impropriedade vocabular que denuncia o desconhecimento, o mais completo, do autor, dos assuntos de alimentao, que tornam a obra de Gilberto Freyre uma obra destituda de qualquer valor cientfico. Quando um socilogo ignora que protena e albuminides vm a ser a mesma coisa e cai na pachecada de escrever que a nutrio da famlia colonial brasileira de m qualidade pela pobreza evidente de protenas e possvel de albuminides, (Casa Grande & Senzala, 1. edio, p. 63) no se pode mais levar a srio a sua obra cientfica. Porque a verdade que esta ignorncia lapidar daria para reprovar qualquer aluno secundrio que estivesse [pg. 145] fazendo seu exame de histria natural, de qumica ou mesmo de economia domstica. Quando o senhor fornecia ao negro uma dieta mais abundante de feijo, farinha, milho ou toucinho, no melhorava o seu regime alimentar, seno num nico aspecto: no de abastec-lo de maior potencial energtico sem minorar nenhuma das suas deficincias qualitativas, agravando mesmo algumas delas, como
demonstraremos oportunamente. Dava-lhe maiores quantidades de combustvel, sem nenhum cuidado pelos reparos necessrios na mquina de combusto. certo que essa maior carga de carvo fazia com que a mquina, enquanto no casse minada pelas avitaminoses, pela tuberculose e por tantos outros males habituais, fosse um bom animal de trabalho, com um rendimento compensador de tantos gastos feitos com feijo, milho e farinha de mandioca. Dando maior quantidade de comida ao negro, o senhor de engenho estava pensando em alimentar a prpria cana, em
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transformar o feijo e a farinha barata em acar de muito bom preo, vendido a peso de ouro, num processo muito semelhante ao dos criadores de porcos que, alimentando esses animais com muito milho, vendem depois o milho por bom preo, transformado em carne e ensacado na prpria pele do porco. Com a abolio da escravatura, os negros e os mestios sados das senzalas, ficando com a alimentao a cargo dos seus salrios miserveis, comearam por diminuir as quantidades de alimentos de sua dieta, e j no dispunham nem de combustvel suficiente para produzir o trabalho que antes realizavam. Diminuram, ento, o seu rendimento para equilibrar o dficit orgnico, sendo esta diminuio tomada pelos patres mais reacionrios como um sinal de preguia consciente, de premeditada rebeldia do negro liberto contra o regime feudal da economia aucareiro. A verdade que a moleza do cabra de engenho, a sua fatigada lentido no um mal de raa, um mal de fome. a falta de combustvel suficiente e adequado sua mquina, que no lhe permite trabalhar seno num ritmo ronceiro e pouco produtivo.
10. Outra conseqncia especfica e das mais graves desse tipo de dieta sua carncia permanente de protenas a falta de cidos aminados em quantidades adequadas ao perfeito desenvolvimento e equilbrio do indivduo. No se poderia [pg. 146] mesmo esperar a obteno desses princpios essenciais com fontes proticas quase que exclusivamente vegetais. Com as protenas incompletas do feijo e da farinha que entram na composio do regime local. A primeira manifestao clara de carncia protica o crescimento lento e precrio do homem do brejo nordestino. So as populaes desta zona, na maioria, formadas de indivduos de estatura abaixo do normal, rapazes de quinze anos parecendo meninos de oito. Num estudo biotipolgico bem orientado que realizaram os Drs. lvaro Ferraz e Andrade Jnior, 45 foi verificada a predominncia ntida dos tipos brevilneos naquela rea do pas. Embora se possa atribuir tal polarizao biotipolgica a fatores de vrias categorias, desde os hereditrios, ligando o fato fixao racial do tipo negride, de descendentes de negros atarracados, baixos e
Brasileiros, 1. volume, Rio de Janeiro, 1935. 45 Ferraz, lvaro, e Lima Jnior. Andrade, A Morfologia do Ho-mem do Nordeste. Rio de Janeiro, 1939.
fortes, escolhidos a dedo na costa dfrica para o rduo trabalho dos engenhos, at o da seleo condicionada pelo gnero de vida, no resta dvida de que a falta de protenas colabora nesta tendncia ao aparecimento de indivduos de estatura insuficiente,46 hipotrofia geral, fixao antropolgica desse tipo mirrado na populao, chamada impropriamente de raqutica. Quando mais acentuada a carncia protica, surgem as perturbaes trfcas, com tendncia aos edemas. Um especialista nordestino, nosso antigo colaborador na Faculdade de Medicina do Recife, Luiz Igncio de Andrade Lima, 47 investigando os ndices de nutrio dos escolares da cidade do Recife, ndices baseados principalmente na correlao entre o peso e a altura, verificou o fato, na aparncia paradoxal, de que as crianas das classes mais pobres, portanto mais mal alimentadas, apresentavam em mdia um ndice melhor do que as crianas das classes mais abastadas. Indagando mais detidamente [pg. 147] as causas do desconcertante fenmeno, chegou o investigador concluso de que o fato resulta de as crianas dos grupos mais necessitados apresentarem graves sinais de carncias proticas, revelados biologicamente pelos desequilbrios de suas taxas de globulina e serina no sangue, carncias que acarretam certo edema dos tecidos, aumentando, custa da gua retida, o peso das crianas. Verifica-se, deste modo, que a carncia protica com sua tendncia edemaciante, pode primeira vista dar a iluso de que se tratam de indivduos bem nutridos e no de subalimentados. Entre as doenas mais comuns dos engenhos no perodo colonial destacam-se, nas referncias dos mdicos da poca, as chamadas hidropisias, os casos de negros aparentemente sadios que de repente comeavam a inchar, a se encher de gua, ficando com a pele lisa e esticada, porejando linfa pelas rachaduras. quase certo que na etiologia de muitos desses casos de hidropisias tenha entrado o fator alimentar com suas acentuadas carncias proticas. Escapam s carncias dessa natureza, pela obteno de protenas completas no seu regime, os habitantes das praias que vivem beira-mar ou beira dos mangues,
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Acerca das repercusses da nutrio sobre a constituio bitipo-lgica, consulte-se o trabalho de Slvio de Candia, Alimentazione e Constituzione, 1931. e o de Nicola Pende, Alimentation et Biotype Habituel, in Nutrition, tomo 5, n. 3, Paris, 1935. Sobre a correlao entre estatura e nutrio, consulte-se o captulo 4. do livro de Ruy Coutinho. Valor Social da Alimentao, 1937. 47 Lima. L. I. Andrade, Um Aspecto Regional de Antropologia Escolar, Recife, 1941.
nos deltas dos rios e nas lagunas que existem em relativa abundncia nestas terras baixas do litoral nordestino. Lanando mo dos recursos da fauna aqutica dos peixes, dos siris, dos caranguejos, das ostras, dos mariscos, dos camares, dos pitus e dos sururus que infestam guas salgadas ou doces, o homem do litoral dispe de muito melhor teor de protena em sua dieta do que o que vive distante das guas, nas terras mais enxutas onde o mar verde dos canaviais inunda toda a paisagem com o seu manto ondulante de vegetao. Vivem os habitantes destas reas aluvionais dos mangues ou das lagoas nordestinas numa estrita dependncia da fauna da lama, identificados com o ciclo do caranguejo, do marisco ou do sururu. Sobre o ciclo do caranguejo j nos ocupamos longamente noutro trabalho de nossa autoria Documentrio do Nordeste e a mostramos como deste crustceo depende a vida de milhares de famlias que vivem atoladas nas margens da cidade do Recife. Tambm o ciclo do marisco uma realidade social nos dias atuais. At hoje, quem disponha de pachorra para rondar as margens do Capibaribe, nos arredores do Recife, ver nas mars- [pg. 148] baixas, quando ficam descobertas as coroas de areia e lodo, um verdadeiro exrcito de gente pobre desenterrando mariscos para sua alimentao. um verdadeiro formigueiro humano arrancando da lama a sua subsistncia. Em Alagoas vivem as populaes pobres de extensa rea do estado o seu ciclo do sururu. Em ensaio crtico que escreveu acerca deste livro, quando apareceu em 1946, em sua primeira edio, J. Fernando Carneiro chamou a nossa ateno para a importncia do sururu na alimentao de uma extensa rea do Estado de Alagoas e advogava mesmo a necessidade de se considerar uma subrea alimentar do sururu no estudo da alimentao do Nordeste. Em resposta a esta crtica penetrante e construtiva, escrevemos em 1948 as seguintes palavras em apndice segunda edio deste livro: O estudo mais aprofundado da subrea do sururu, obedecendo mesma orientao metodolgica, s poder enriquecer, com certas singularidades locais, o panorama alimentar do Nordeste. Meditando um pouco sobre o assunto, chegamos mesmo concluso de que merece uma indagao sistemtica o problema das possveis correlaes existentes entre a dieta daquelas populaes que vivem nas margens das lagoas salgadas, infestadas de sururu (Mytilus alagoensis) e o seu bitipo constitucional. Nada conhecemos acerca do valor nutritivo desse molusco
que constitui o alimento bsico daquelas populaes, mas levando em conta as mais recentes anlises realizadas em outros pases, que demonstraram a extraordinria riqueza alimentcia da fauna aqutica, de presumir que seja ele uma fonte nutritiva de valor inestimvel. A sugesto de J. Fernando Carneiro tomou ainda maior consistncia quando h poucos dias procedemos leitura de um interessante trabalho de Mr. Maurice Fontaine Les Ocans et les Mers, Sources de Vitamines, publicado em 1945, mas que as dificuldades de comunicao com a Europa no nos permitiram conseguir seno recentemente. Nesse trabalho, demonstra o naturalista francs que, em teores iguais de vitaminas, os alimentos de origem marinha beneficiam muito mais do que os de origem terrestre. Esse trabalho, um outro de Billings e colaboradores sobre o contedo em vitaminas de complexo B de certos peixes e os recentes estudos acerca das antivitaminas, nos levaram a pensar numa reviso do problema de abastecimento em vitaminas das populaes das praias e das margens das lagoas nordestinas. Posteriormente, por nossa sugesto, [pg. 149] nossos colaboradores no Instituto de Nutrio, Drs. Rubens de Siqueira, Emlia Pechnik e Otlio Guernelli, levaram a efeito um trabalho experimental determinando a composio qumica do sururu alagoano atravs do qual se confirmaram as nossas suposies. O sururu representa um alimento de alta riqueza protdica, no s pelo teor de protena que encerra, como pela tima qualidade desta protena revelada atravs da anlise que foi procedida dos seus cidos aminados. Representa tambm este molusco uma aprecivel fonte de cido nicotnico e de ferro. 48 J na zona dos engenhos e usinas escasseiam estes recursos da fauna aqutica. verdade que as terras dos engenhos e das usinas so quase sempre atravessadas pelos rios e riachos, muitos deles com peixes e crustceos, carapebas, camorins, jundias e pitus que os ndios utilizavam para suas muquecas. Mas infelizmente tambm esses recursos alimentares foram devastados pela sanha destrutiva das usinas. As suas caldas, ou sejam, os dejetos de suas engrenagens, com os resduos de fabricao do acar despejados nas guas, tm sido uma causa terrvel de matana de tudo quanto peixe, ficando os rios quase que despovoados. 49
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R. de Siqueira, Emlia Pechnik, Nabuco Lopes. Ottlio Guernelli Pesquisas sobre o Sururu Alagoano Arquivos Brasileiros de Nutrio tomo 10, nmero 4, 1954. 49 Chama-se calda ao dejeto proveniente da gua utilizada nos aparelhos de fabricao do acar e do lcool. A calda a gua suja das usinas. Ela sempre lanada no riacho ou no rio mais prximo. Um dos efeitos deste despejo a matana do peixe, j observada por um nosso
As populaes costeiras tm a sua vida to intimamente ligada vida do mundo aqutico que vivem quase dentro dgua, nos deltas dos rios, nos mangues das mars e nas margens das lagoas. So verdadeiras populaes anfbias, nem da terra nem da gua, mas de uma zona de solo instvel, formado pela permanente mistura dos dois elementos. Destas populaes fazem parte os famosos jangadeiros do Nordeste, pescadores que passam a maior parte do seu tempo em alto mar, mantendo nas praias simples tendas de folhas de coqueiro que lembram as dos nmades pastores da sia, mostrando, atravs desse caracterstico geogrfico, [pg. 150] tratar-se tambm de um povo nmade, de um tipo muito especial de nomadismo de nmades marinhos, pastoreadores de peixe. A riqueza proteica de sua alimentao, assim como o maior teor de sais minerais que os alimentos marinhos lhes fornecem, constituem fatores importantes na diferenciao antropolgica desse tipo de homem da praia, biometricamente superior ao do homem do brejo. Predominam nas praias os longilneos altos e magros, porm bem proporcionados, tendo a estatura elevada e sua longitipia condicionadas em parte pela riqueza de iodo dos alimentos marinhos e do prprio ar da praia, excitando permanentemente a sua tireide, que a glndula impulsionadora do crescimento longitudinal dos ossos. No foi s atravs da fauna aqutica que o homem da praia pde melhorar seu regime local, mas tambm lanando mo de dois produtos vegetais de alto valor nutritivo: do coco e do caju. Dos frutos de duas rvores tipicamente praieiras, adaptadas aos solos arenosos. O coqueiro (Cocus nucifera) foi trazido da ndia e se aclimatou to bem nas praias nordestinas que a sua silhueta constitui hoje o trao mais tpico da paisagem vegetal da regio. uma rvore to providencial que no Ceilo afirmam ser o indgena proprietrio de 12 coqueiros um homem independente e haver para os frutos destas rvores tantos usos quantos so os dias do ano. 50 Na cozinha nordestina, o coco entra numa infinidade de manjares, tendo sido seu uso ampliado grandemente pelo negro,51 em tal proporo que, segundo alguns estudiosos, o coco
escritor, em to grandes propores que lhe evocou a viso de uma praga do velho testamento, Mrio Lacerda de Mello, Pernambuco, Traos de sua Geografia Humana, Recife, 1940. 50 Magalhes, Eduardo de, Higiene Alimentar, 1908.
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Fora o africano o introdutor do azeite-de-cheiro, do camaro seco, da pimenta-malagueta, do leite de coco e de outros alimentos no preparo das variadas refeies da Bahia. Quirino,
deve ser considerado um ingrediente tpico da chamada cozinha baiana, mais que o prprio azeite-de-dend e a pimenta.52 Com o coco se prepara feijo de coco, peixe de [pg. 151] coco, arroz de coco, vatap, canjica, pamonha, mungunz, doce de coco, cocada, e uma infinidade de outros pratos e doces caractersticos desta cozinha, de to justificada fama universal. Usam-se no preparo desses pratos a polpa, tanto verde como madura, do coco, assim como o seu leite e s vezes o azeite. Com o uso do coco em tal abundncia o nordestino do litoral aumenta a cota de gordura (a polpa do coco encerra 25% de gorduras) e de sais minerais de sua dieta. No so as protenas do coco de alto valor biolgico, mas consumidas de mistura com as dos peixes e dos camares da regio tornam-se excelentes. Quanto ao cajueiro (Anacardium occidentale) rvore nativa na regio, primitivamente utilizada pelo indgena em sua alimentao habitual. Dos quinhentos milhes de cajueiros existentes no pas 350 milhes esto localizados no Nordeste. 53 O seu verdadeiro fruto a castanha, que comida assada muito saborosa e entra como tempero no preparo do vatap e de outros quitutes regionais. Possui a castanha um teor de cerca de 20% de protenas, as quais se revelaram, em testes biolgicos realizados por F. A. Moura Campos, de um alto valor nutritivo. 54 Mais do que a castanha, que exportada hoje em escala regular, faz-se localmente uso do caju, que passa por ser o fruto da rvore, mas apenas uma excrescncia carnosa e aguada oriunda do pednculo floral anexo castanha. O alto valor nutritivo do caju est em sua extraordinria riqueza, em cido ascrbico. to alto o teor vitamnico da fruta que se lhe empresta um verdadeiro poder curativo. Muito antes de serem descobertas as vitaminas e conhecidas as suas propriedades, j o caju era apregoado pelos curandeiros como uma fruta milagrosa, curadora de inmeros males. Fala-se muito no Nordeste nas curas de caju, nos doentes que vo para as praias limpar o sangue
Manoel, Costumes Africanos no Brasil, 1938. 52 Qualquer dos que aqui vivem e estudam um pouco os nossos costumes sabe que o mais caracterstico de nossa culinria, sendo comum a estados litorneos vizinhos em direo ao Nordeste, so muito menos os pratos de origem e inspirao africana, condimentados com o famoso azeite-de-dend do que aqueles em que participam o leite de coco. Azevedo, Thales de. Padro Alimentar da Populao da Cidade do Salvador. 53 Mota, Mauro, O Cajueiro Nordestino, contribuio ao seu estudo biogrfico, 1954. 54 Veja-se sobre o assunto o seguinte trabalho desse ilustre fisiolo-gista: Valor da Protena da Castanha do Caju, n Revista Mdica Brasileira, ano 4., tomo 1, n. 1, 1941, e tambm Valor Nutritivo da Castanha do Caju. n Revista Mdica-Cirrgica, S. Paulo. n. 1 e 2, 1941. Veja-se tambm o trabalho de Carvalho Nogueira. Valor Biolgico da Protena da Castanha do Caju, O Hospital n. 1, 1941.
com os banhos de mar e o regime de cajus e cajuadas. [pg. 152] Em seu livro publicado em 1908, Higiene Alimentar, Eduardo de Magalhes faz a apologia do caju: Fala-se em cura de uvas, cura de mangas, de laranja, de limo, de cerejas e tambm de figos, mas e tmaras. Bem, sero todas eficazes, no contesto, mormente a primeira, a cura de uvas; nenhuma, porm, competir com a cura de caju. Indivduos fracos, magros, eczematosos, reumticos, enfastiados, diarricos, sifilticos, recolhendo-se no vero a uma das belas praias de Sergipe, onde os cajueiros amarelos e vermelhos so uma bela floresta, e atirando-se aos cajus cujo caldo ingerem chupando-os ou em cajuadas, de l voltam nutridos, ndios, nem parecem os mesmos que para l foram. Do caju se pode dizer que o prprio abuso proveitoso. No uso to abundante do coco e do caju e de outras frutas da costa baseia-se uma das superioridades da alimentao litornea sobre a da zona propriamente da mata, ou melhor, da cana. verdade que nesta tambm do os mesmos frutos, o prprio coqueiro se estende pelos vales adentro, indo alcanar e proliferar em pleno serto,55 mas as condies econmico-sociais da zona da cana fazem uma presso muito desfavorvel ao seu uso. Enquanto nas terras litorneas as rvores frutferas so quase silvestres (o caju nasce espontaneamente, formando matas, e o coco se estende pelas praias com seus frutos e sementes carregados pelas mars e correntes marinhas), na zona dos canaviais essas rvores so concentradas nos pequenos pomares, ao lado das casas grandes. Pomares ridiculamente insuficientes, quase que decorativos, servindo s para ingls ver, ou quando muito para proveito exclusivo dos senhores ricos, interditados por todos os meios, antigamente, aos escravos das senzalas e hoje aos moradores das redondezas. Pensando bem, essa interdio hoje quase desnecessria, porque o homem do povo no Nordeste aucareiro j perdeu o gosto e o hbito de comer fruta. Considera a fruta uma gulodice, como considera folha e verdura comida de lagarta. Comida de homem para essa gente mesmo feijo, carne e farinha. [pg. 153]
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Orlando Parahim, no livro O Problema Alimentar no Serto, refere que no municpio de Salgueiro, no interior de Pernambuco, a 600 quilmetros do litoral, existem 2.200 coqueiros que produzem to bem como nas praias distantes. E o que mais curioso, como observamos pessoalmente, que no serto o coqueiro frutifica com metade do tempo com que o faz na praia.
11. Muito contriburam para esse desamor mais do que desamor, desprezo mesmo do campons pelas frutas do Nordeste, os tabus, as interdies de toda ordem criadas contra as mesmas e hoje enraizadas na alma do povo. Num estudo que realizamos h tempo sobre os tabus alimentares no Brasil56 recolhemos no Nordeste grande nmero dessas supersties alimentares, proibies, restries ao uso de certos alimentos em determinados perodos, tudo sem nenhum fundamento biolgico, puras sobrevivncias culturais das interdies dos senhores a seus escravos e moradores. A verdade que esses tabus se constituram como uma espcie de policiamento moral que os proprietrios mantinham para defesa dos seus bens. No resta dvida que foram os fundamentos econmicos a mola impulsionadora destes tabus. Veja-se o caso do prprio acar. Pernambuco, sendo o primeiro Estado produtor, est colocado na lista dos consumidores, per capita, no 14. lugar do pas. Por qu? Por que se consome to pouco acar numa zona onde ele existe em tal abundncia? que o senhor de engenho, temeroso de que o apetite um tanto aguado dos escravos os levasse a comer muito do seu rico acar, reservado com tanto zelo para a exportao, apregoou com tal vigor os seus perigos, os supostos malefcios que o acar traz quando comido de manh dando lombriga e quando comido a qualquer hora estragando os dentes que assustou o pobre negro. Embora a cozinha regional seja abundante em doces e bolos, este consumo exclusivo dos abastados, os mais pobres ainda hoje mantendo-se escabriados do acar, proibindo os meninos de chuparem balas, de comerem doces para no criar bicho na barriga. Afirmando e fazendo crer aos negros escravos, e depois aos moradores de suas terras, que no se deve misturar nenhuma fruta com lcool, que melancia comida no mato logo depois de colhida d febre, que manga com leite veneno, que laranja s deve ser comida de manhzinha, que fruta pouco madura d clica, que cana verde d corrimento, os senhores e os patres diminuam ao extremo as possibilidades de que os [pg. 154] pobres se aventurassem a tocar nas suas frutas egoisticamente poupadas para seu exclusivo regalo. Os tabus assim constitudos e propagados se tornaram verdadeiras barreiras
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Castro, Josu de. Fisiologia dos Tabus, edio Nestl. Rio. 3.a edio, 1938.
psicolgicas contra o uso das frutas de frutas saudveis e nutritivas, como a manga, a jaca, o abacaxi, a melancia, o abacate e a laranja , frutas que, longe de serem nocivas, seriam do maior proveito para a sade daquela gente. Seria um verdadeiro antdoto contra a alimentao montona e principalmente desequilibrada pelo excesso de feculentos. Estes tabus, alm de perturbarem de maneira nociva os hbitos alimentares locais, fizeram com que aquela gente perdesse todo o gosto pela fruta e se desinteressasse por completo do seu cultivo. Muitas culturas vegetais tiveram no mundo as suas reas modificadas e a sua produo entravada ou mesmo extinta por influncia de interdies de natureza religiosa. Assim cita Pierre Dffontaines o caso da vinha, que tinha sua rea natural na frica do Norte, mas que, diante dos preceitos de abstinncia alcolica do Alcoro, teve sua produo extinta em seguida expanso do imprio maometano, atravs da frica, vindo a se desenvolver numa nova rea de produo, nas terras temperadas da Europa. Assim desapareceram as famosas vinhas de Cartago e Alexandria e surgiram as de Bordeaux e de Champagne, com suas produes estimuladas pelo cristianismo, que utilizava o vinho em suas oferendas. Esta falta de frutas acentua sobremodo as conseqncias do excesso proporcional de hidrocarbonados da dieta. Excesso habitual entre os mais abastados, pelo consumo de maior variedade de comidas, todas elas, porm, fontes quase que exclusivas de aucarados. So o aipim, o car, o inhame, a batata-doce, o po doce, os grudes, o mel, os beijus, os bolos, as pamonhas que fazem parte dos cafs, dos lanches, das ceias e das sobremesas das casas ricas e que enchem o organismo de amilceos. Conseqncia deste excesso a grande incidncia do diabete em certas famlias de senhores de engenhos, as quais so dizimadas em sucessivas geraes por essa doena do metabolismo. Doena de exagero do uso de um princpio alimentar, rompendo a harmonia do regime. O acar em excesso de sua dieta desequilibrando as trocas metablicas, como a cana desequilibrou de maneira to nociva o metabolismo econmico da regio. como se a terra se vingasse do homem, fazendo-o [pg. 155] sofrer de uma doena semelhante sua o organismo todo saturado de acar. So tambm esses ricaos mal alimentados, com seus excessos de massas aucaradas, bem mais expostos que os pobres, com sua falta de tudo, aos perigos das avitaminoses B, das carncias em tiamina, sempre insuficiente
para metabolizar toda aquela sobrecarga de hidrocarbonados. Muita priso de ventre, dispepsia e neurastenia de senhor de engenho tem seu fundo patognico na avitaminose B frusta, no declarada em quadros patognicos completos. Sofriam de avitaminose B, mesmo ingerindo boas doses dessa vitamina. Boas em condies normais, porm, insuficientes pelo vcio alimentar, pelo desmedido excesso de aucarado na sua dieta habitual. Bigwood e Trolli57 fizeram observaes no Congo Belga que confirmam esse mecanismo etiolgico das avitaminoses B, desde as suas formas frustas at o beribri declarado, pelo excesso proporcional de acar nas dietas. Verificaram que os negros da zona equatorial do Congo, vivendo de uma agricultura de mandioca e de banana, embora no disponham, em sua alimentao, do total energtico necessrio para cobrir as suas despesas calricas totais, no apresentam sinais nem de avitaminoses nem de carncias minerais francas. Quando, porm, esses nativos vm trabalhar nas grandes empresas industriais, onde a alimentao fornecida mais abundante, com um teor calrico mais elevado, custa d maiores cotas de farinha de mandioca, de milho e de arroz, comeam logo engordando, mas so atacados em poucos dias pelo beribri. O mecanismo que conduz ao aparecimento dessa manifestao de avitaminose bem claro. Em sua vida primitiva o negro se mantm num dficit latente de vitamina B1, mas, como em seu regime alimentar no h excesso de hidrocarbonados a metabolizar, consegue manter-se em equilbrio instvel com sua avitaminose oculta. Logo, porm, que lhe administrado um aumento de hidrocarbonados, sem haver um acrscimo proporcional de vitaminas, rompe-se definitivamente o equilbrio e a avitaminose se torna aparente. este um dos aspectos em que a alimentao dos ricos ainda pior que a dos pobres, em que a alimentao dos senhores e a dos escravos, longe de ser das melhores, tornava-se [pg. 156] das mais carenciadas do pas por seu excesso de hidrocarbonados em desproporo ao teor vitamnico da rao.
12. Das carncias minerais, a mais generalizada e patente a carncia de ferro, manifestando-se sob a forma de anemia alimentar. Anemia que faz dos brejeiros uns tipos plidos, chamados pejorativamente de amarelos pelos habitantes de outras
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zonas, principalmente pelos sertanejos de sangue, mais rico, com melhores cores na cara; e que constitui um verdadeiro caracterstico antropolgico dessa gente, com sua pobreza de hemoglobina por falta de ferro e com seu sangue j ralo, espoliado pela verminose e pelo paludismo, que so endmicos nessa regio. Para se dar uma idia da freqncia desse tipo de anemia basta referir os resultados da interessante pesquisa levada a efeito na Bahia por Tales de Azevedo e A. Galvo58 entre os escolares daquela cidade, e na qual foi encontrada uma percentagem de 40% das crianas com anemia declarada. Confirmando a sua origem alimentar esto os resultados dos exames hematolgicos realizados aps o uso, durante quatro meses, de um complemento alimentar, sob a forma de comprimidos, contendo ferro, clcio e vitaminas59. A proporo de anmicos havia baixado de 40 para 3,5%, apresentando-se a taxa de hemoglobina em 90% dos casos com um teor de 90 a 100%. Esta situao hematolgica observada na capital baiana se apresenta ainda mais acentuada em outras zonas da rea aucareira e contribui enormemente para o estado de apatia e depresso fsica em que vegeta o Jeca-Tatu nordestino.
13. Como conseqncia inevitvel dessa fome crnica de ferro e, certamente, de alguns outros elementos minerais, decorre a grande incidncia, nessa zona, do fenmeno da geofagia, [pg. 157] ao qual j nos referimos no estudo da rea amaznica. Nos tempos coloniais, os viajantes estrangeiros que passavam pela zona do acar se impressionavam muito com aquele mau hbito dos meninos de engenho de comerem terra e atribuam o fato ao contato malfico dos meninos brancos com os moleques das senzalas que lhes transmitiam o feio vcio africano60. verdade que os negros africanos da Costa do Marfim, da Guin e do Congo sempre foram bons comedores de terra. Mas tambm verdade que, antes da chegada dos
Paris. 58 Azevedo. Thales de e Galvo. Alfredo. Uma Pesquisa sobre a Su-plementao Nutritiva em Escolares. trabalho apresentado ao Primeiro Congresso Mdieo-Social Brasileiro. Bahia. 1945. 59 Quando estivemos frente do Servio Tcnico da Alimentao Nacional, preconizamos, como medida de emergncia contra as carncias minerais e vitamnicas, acentuadas de maneira alarmante no pas pelas dificuldades de abastecimento que a guerra acarretou, o uso de complementos alimentares na nutrio de coletividades escolares, militares, hospitalares, etc. Desses complementos alimentares foram fabricados. segundo frmula daquele Servio Tcnico, comprimidos contendo ferro, clcio e vitaminas, tanto sintticas como obtidas da farinha de alfafa, da casca do arroz e do leo do cao. Com esse tipo de complemento fornecido ao governo do Estado da Bahia e a usado por nossa sugesto, que foram realizadas as pesquisas a que fizemos aluso.
negros no Nordeste, j o ndio tinha o vcio da geofagia, atribudo com razo verminose, por Schiafino. Tanto l na frica como aqui no Brasil, negros e ndios se atiravam terra com apetite, sob a presso da fome especfica, da necessidade imperiosa de ingerirem os sais minerais, negados ao seu organismo por dietas incompletas. Quando os molequinhos do Nordeste e os anmicos senhorzinhos brancos comiam s escondidas seus bolezinhos de barro estavam corrigindo instintivamente as deficincias minerais de uma alimentao incompleta, imposta pela monocultura da cana. Estavam eles a merecer, em lugar de reprimendas e castigos, elogios pela presteza com que se medicavam, ou melhor ainda, um bom regime alimentar que os livraria depressa desse vcio com mais eficincia do que as horrveis mscaras de Flandres que eram afiveladas a suas carinhas magras, como mordaa em boca de cachorro mordedor ou os interminveis castigos de dias e dias a fio, pendurados dentro de um balaio at que largassem o hbito abominvel de comer terra. Ainda h pouco em certas zonas, como a do Pontal da Barra, em Alagoas, 61 vendiam-se nas bodegas, ao lado do bacalhau e do sabo, tijolinhos de barro de massap bem cozidos, para regalo dos viciados. So em geral terras ricas em ferro, [pg. 158] em clcio ou em fsforo62. Se uns comem o barro assim elaborado, como um verdadeiro produto alimentar, a maioria se contenta em ingeri-lo incorporado naturalmente a certos alimentos da regio. Assim, os moradores das lagoas em torno de Macei, quando comem o seu sururu mal lavado, esto a ingerir grandes quantidades da lama que esta espcie de marisco guarda em seu organismo. A taxa bem baixa de clcio que o regime encerra faz prever graves perturbaes no metabolismo desse mineral. Mas a verdade que suas exteriorizaes manifestas constituem uma raridade. No h praticamente o raquitismo na regio pelas razes j anteriormente apresentadas. esta uma das regies de piores dentes do pas e certamente o dficit em clcio trabalha para esta decadncia.
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Koster. Henry. Travels in Brazil. Londres. 1816. Lima. Jorge de. Calunga. 62 Veja-se sobre o assunto o trabalho de Maurice Uzin, Geophagie in La Medicine Chez Lui, fevereiro, 1938, onde se lem referncias aos exames feitos em terras comestveis por Cobert na Tunsia, por Remlin-ger em Marrocos, por Batz no Congo e por outros pesquisadores no territrio de Qunia e de Tanganika. No nos consta que at hoje se tenha realizado algum trabalho acerca da composio de terras comestveis no Brasil.
14. No que diz respeito s manifestaes de avitaminoses, no so elas to abundantes como seria de esperar tomando-se em conta apenas a anlise dos elementos que entram na composio da dieta bsica. As avitaminoses A, em suas formas extremas de xeroftalmia e de queratomalcia, cegando grande nmero de indivduos como ocorre na ndia,63 so relativamente raras na zona da mata. Mais raras do que era de supor, pela anlise do regime pobre em gorduras, fontes desses princpios essenciais e mais raras do que antigamente, no tempo da escravido, quando a queratomalcia assolava entre os pobres negros escravos em propores muito mais altas. O notvel mdico patrcio, Dr. Manoel da Cama Lobo,64 fazia, em 1865, uma comunicao Academia de Medicina sobre uma doena dos olhos que chamava oftalmia brasileira, comum entre os negros escravos e que no outra coisa que [pg. 159] a xeroftalmia carencial. J naquele tempo compreendera o ilustre clnico a origem dessa doena, quando afirmou: a causa desta oftalmia a falta de nutrio conveniente e suficiente a que esto submetidos os escravos dos fazendeiros... o organismo pobre de princpios vitais no pode fornecer os princpios necessrios para nutrio da crnea. extraordinria a intuio cientfica de Gama Lobo, nestes recuados tempos em que no se falava, nem mesmo se suspeitava, da existncia das vitaminas. Devemos anotar, tambm, a notvel intuio cientfica daquele que primeiro registrou tais tipos de oftalmias em terras americanas Wilhelm Pies. O clebre mdico de Maurcio de Nassau, mais conhecido pelo nome latinizado de Piso, em sua notvel obra De Medicina Brasilensi, publicada na Holanda em 1648, faz referncia existncia, entre os soldados e a plebe, da hemeralopia e atribui o mal m alimentao: os pobres e os soldados comem alimentos corrompidos, afirma o notvel mdico holands.65 Os negros escravos, com sua alimentao fornecida pelo senhor, alimentao quase que exclusiva de feijo com farinha e angu de milho com toucinho, ficavam
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Aykroyd, W. R., op. cit. Lobo, M. da Gama, Da Oftalmia Brasiliana, in Ann. Bras. Me-dic., n. 1, junho de 1865. 65 Para conhecimento mais detalhado do assunto, consulte-se o trabalho de Hermnio de Brito Conde Evoluo da Oculistica no Brasil. Hora Mdica, julho de 1939, no qual este oftalmologista estuda as vrias etapas, inclusive o ciclo nassoviano, das descobertas
muito expostos s avitaminoses A. Libertados, os negros orientaram sua dieta, se no para uma maior abundncia, pelo menos mais para as suas predilees, para seu gosto acentuado pelos azeites vegetais, principalmente de dend, e assim foram escapando da hemeralopia, da xeroftalmia e da queratomalcia, muito mais raras hoje em dia nos engenhos da mata do Nordeste. J as formas frustas desta avitaminose, reveladoras de carncias parciais, so ainda freqentes, destacando-se as manifestaes cutneas, do tipo hiperceratsico, idntico aos observados por Frazier e Wu na China. Manifestaes que tornam a pele spera, seca e farinhenta, com escamas em certas zonas, em torno dos bulbos pilosos. As placas hiperceratsicas dos cotovelos das moas das cidades do Nordeste os calos dos cotovelos atribudos pelo vulgo ao mau hbito de ficarem elas debruadas [pg. 160] o dia todo nos parapeitos das janelas namorando , sem dvida, uma das manifestaes habituais de hipo-avitaminose A. A alta incidncia das doenas do aparelho respiratrio nesta zona deve ser tambm interpretada como uma diminuio da resistncia do epitlio defensivo das vias respiratrias por falta desta vitamina. Tambm no que diz respeito avitaminose B1, no se trata de uma zona de beribri endmico. As polinevrites so raras. As deficincias desta vitamina se manifestam em suas formas frustas por perturbaes para o lado dos aparelhos digestivo e circulatrio e do sistema nervoso, traduzindo-se pela irritabilidade, a insnia, a anorexia, a constipao crnica e outros sintomas difceis de serem interpretados e ligados causa produtora. A falta de vitamina B2 bem mais sensvel. Os casos de arriboflavinose so abundantes, generalizados entre as crianas pobres, tanto rurais, como urbanas. As rachaduras dos cantos da boca, as queiloses chamadas vulgarmente de boqueiras, constituem quase que uma marca de classe, um caracterstico do menino pobre. Pensava-se antigamente que a boqueira era uma doena transmissvel, generalizada entre os pobres por falta de cuidados higinicos e pela promiscuidade em que vivem as crianas dos cortios, das vilas operrias, das zonas dos mocambos. Hoje se sabe que seu fator fundamental de natureza vitamnica, a avitaminose B2, sendo sua generalizao produto exclusivo da deficincia tambm generalizada deste componente do complexo B. As congestes da crnea, os olhos injetados e vermelhos, dando um ar de maldade expresso
oftalmolgicas brasileiras.
fisionmica, trao to comum entre os cabras das bagaceiras dos engenhos e das usinas, outro sintoma da falta de vitamina B2, identificado atravs dos estudos de Sebrell e Butler. A lenda do mau gnio destes camaradas de olhos injetados talvez tenha sua razo de ser, pelo menos, em parte, neste fenmeno de natureza nutritiva. As avitaminoses, as deficincias dos componentes do complexo B que sempre se apresentam associadas, quando de um lado chegam a provocar estes fenmenos oculares, acarretam por outro lado uma grande irritabilidade nervosa, tornando seus portadores mais irascveis e descontrolados, portanto meio irresponsveis. A sua valentia traduz muitas vezes paradoxalmente a sua fraqueza nervosa e o estado de misria de seus nervos desvitaminados e superexcitados. [pg. 161] A deficincia relativa em cido nicotnico, ou seja, no fator preventivo da pelagra, de Goldberger,66 faz com que surjam nesta rea certas formas frustas e s vezes mesmo tpicas da doena. No uma rea endmica do mal. No est, contudo, isenta do seu aparecimento em quadros espordicos 67. Vrios tipos de dermatites, glossites, estomatites e sndromes diarricas que ocorrem nesta zona tm em seu complexo etiolgico a deficincia em cido nicotnico. No so muito freqentes as avitaminoses C, constituindo o escorbuto uma raridade clnica nos hospitais do Nordeste. Este mal matou muito no primeiro sculo da colonizao e matou quase que exclusivamente negros escravos, trazidos da frica nos navios negreiros, que, ou morriam nas longas travessias de dois e trs meses de mar, ou j chegavam moribundos, com a carne das gengivas podre e infeta. que o regime alimentar dos navios era de uma espantosa misria. Num tempo em que at os viajantes ilustres eram atacados de escorbuto, no admira que esses pobres prias, trazidos aos montes como porcos no bojo imundo dos cargueiros,
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Os estudos de A. Elvehjem e Goldberger, demonstrando a correlao entre a deficincia nicotnica e a sndrome pelagrosa, pareciam ter esclarecido definitivamente o problema etiolgico do mal, considerado desta forma uma monocarncia vitamnica. A observao do fato de que nas reas de alimentao base de milho se desenvolve, contudo, a pelagra, com uma dieta contendo cido nicolnico em doses que seriam preventivas das doenas noutras reas alimentares, veio complicar o problema, dando a idia de tratar-se de uma policarncia e. principalmente, de cido nicotnico e de triptofano, que um cido aminado. do qual o milho carente. Ver Conocimientos Actuales sobre el Complexo B en la Nutricin Humana, Nutricin, vol. IV, n. 5, Mxico, maio de 1946. 67 Sobre a existncia e distribuio da pelagra no Nordeste, consultem-se os seguintes trabalhos: Jorge Lobo, Da Pelagra (nota prvia), in Correio Mdico, Recife, junho. 1935: e Rinaldo Azevedo. Pelagra, Contribuio ao Seu Estudo, setembro de 1935. Consulte-se, tambm, o trabalho publicado em So Paulo, da autoria de Mendes de Castro, Dante Giorgi e Julio Kieffer, sob o ttulo Contribuio do Estudo da Pelagra, 1941.
morressem do terrvel mal. Segundo clculos da poca, durante as viagens perdia-se em mdia um tero dos escravos embarcados.68 Desse tero, grande parte era dizimada pelo escorbuto. A maior parte talvez. Dos que aqui aportavam, num tal estado que ningum podia [pg. 162] suportar o seu fedor,69 muitos se refaziam, porque a alimentao dos mercados de negros, embora ainda deficiente, era muito superior dos navios.70
15. O quadro das avitaminoses mais comuns do Nordeste est longe de ser um quadro de impressionante riqueza nosolgica e desaponta mesmo os teorizantes do assunto, informados, um tanto por alto, dos hbitos alimentares da regio. Diante da monotonia e da pobreza do regime alimentar, apuradas nos inquritos, parece um verdadeiro milagre que se no manifestem, alm das apontadas, muitas outras formas de carncias declaradas, num ttrico cortejo, idntico ao das regies de fome do Extremo-Oriente. Uma das explicaes que encontramos para o fato a da influncia preventiva desempenhada por alguns condimentos e ingredientes especiais que, entrando na cozinha do Nordeste em propores algo exageradas, defendem os habitantes desta zona das avitaminoses endmicas. Destes ingredientes destacamos principalmente o leo de dend e a pimenta, que so obrigatrios nos pratos tpicos da chamada cozinha baiana, e que se consomem por toda a zona da mata, por toda esta larga rea alimentar to intensamente influenciada pelos costumes africanos. O azeite-dedend, retirado do fruto da palmeira Elaeis guine-ensis, trazida pelos negros da frica e bem difundida na regio, uma fonte extremamente rica de provitamina A, contendo em cada centmetro cbico de leo entre 1.000 e 3.000 unidades de betacaroteno. As pimentas das variadas espcies usadas, as nativas de que os ndios se empanturravam e as trazidas pelos negros a malagueta e a da costa ou Atar, os pimentes so todas muito ricas em cido ascrbico, dos mais ricos vegetais do mundo. Essa cozinha baiana, to impiedosamente condenada por mdicos e cientistas at quase em nossos dias, exatamente por sou excesso de azeite e
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Rugendas, M., Voyage Pitoresque dans le Brsil, 1838. Koster. Henry. Travels in Brazil (2 vols.), Londes. 1816. 70 Coutinho. Ruy. Alimentao e Estudo Nutricional do Escravo no Brasil, in Estudos Afro-
pimenta,71 mostra-se assim como uma tbua de salvao contra os perigos das avitaminoses [pg. 163] A e C. Com os conhecimentos que hoje possumos da riqueza vitamnica destes temperos, conclui-se que os abars, e os acarajs, que as cozinheiras negras preparam afogando bolos de farinha de fub e de feijo num banho apimentado de leo de dend, representam verdadeiros concentrados de vitaminas A e C. O mesmo se pode dizer do vatap e do caruru que, apesar do seu peculiar sabor, sem rival no mundo, nem por isso deixaram de sofrer agresses terrveis dos higienistas, defensores do estmago de nossos compatriotas baianos. Vejamos duas opinies emitidas neste sentido no comeo do nosso sculo: notrio, pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excelncia, a primazia na arte culinria do pas, pois que o elemento africano, com a sua condimentao requintada e exticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas, resultando da um produto todo nacional, saboroso, agradvel ao paladar mais exigente, o que excede a justificada fama que precede a cozinha baiana, afirmava Manoel Querino. De um lado o famoso caruru, com o competente leo de dend e mais ingredientes, e do outro, o vatap, de composio no menos complexa, alm das moquecas de peixe, ardentes de pimenta-malagueta, levam a supor que os estmagos baianos so dos mais vigorosos e invulnerveis, se com efeito resistem a tantos assaltos atentatrios do seu bom funcionamento, so palavras de Eduardo de Magalhes, Higiene Alimentar, de 1908. bom que se ponha em destaque o fato de que os estudos recentes da nutrio, valorizando mais os aspectos vitamnicos e minerais dos regimes e deixando em segundo plano seu valor energtico, vm reabilitando por toda parte as dietas por grupos humanos mais primitivos, com seus menus instintivamente organizados, base dos recursos naturais de cada quadro regional. O que se passa no momento entre ns, com a cozinha baiana to impregnada de influncia africana, passou-se, h pouco tempo, no Mxico, com a sua cozinha
Brasileiros, 1 vol., 1935. 71 Acerca desta cozinha e seus defeitos, escreveu Sampaio Viana, nos meados do sculo passado, citado por Gilberto Freyre: ... condimentadas com todas estas substncias excessivamente excitantes e com este pernicioso azeite da costa dfrica to usado por nossa populao pobre que de um lado acha uma alimentao insuficiente por sua quantidade e de outro lado por sua qualidade. Viana. A. C. de Sampaio (Qual a Causa da Frequncia das Ascites na Bahia. 1850).
indgena. Dois [pg. 164] componentes da dieta do mexicano o pulque e o chile uma bebida fermentada e as pimentas que entram sempre na alimentao do ndio, foram ale pouco tempo considerados por todos uma calamidade nacional. 72 Pois bem. Atravs dos estudos recentes de uma srie de notveis pesquisadores mexicanos, como Juan Rocca,73 Roberto Llamas,74 Jos de Lille e Elyseu Ramirez,75 se chegou concluso de que o pulque uma boa fonte de protena e de elementos do complexo B e que o chile abastece o ndio de vitamina C, livrando-o, desta forma, do escorbuto. O pulque e o chile mexicanos funcionam, no que diz respeito aos males que lhes eram atribudos naquele pas e ao desagravo recente que a cincia lhes fez, como o azeite-de-dend e a pimenta-da-bahia no nosso pas. Mais uma vez se afirma a sabedoria do instinto, 76 como guia admirvel da boa alimentao. E mais uma vez se verifica a intolerncia da cincia. De certo tipo de cincia, pelo menos... A importncia do instinto no deve ser esquecida na orientao cientfica a ser dada alimentao de quaisquer grupos humanos: afastar-se da natureza, isto , dos hbitos criados pelo clima, o lugar e o gnero de vida dos indivduos, para seguir conselhos de higiene alimentar, sempre uma coisa arriscada. Os regimes reconhecidos como defeituosos por seus maus efeitos biolgicos podem ser transformados, completados, mas no convm serem substitudos de maneira radical. Assim se exprimem grandes conhecedores do problema, como so Lucie Randoin et Henri Simonet.77 [pg. 165] esta nossa convico do alto valor nutritivo de certos pratos da cozinha baiana que nos leva a desenvolver intensa atividade por sua industrializao. Pelo preparo em forma de conservas do vatap, do caruru e de outras iguarias que consumidas em outras reas do pas iriam contribuir para elevar os padres de
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Assim escreve um especialista mexicano de renome: Nosso povo queima a boca com pimenta chile e apaga o ardor com pulque. Aproveita a secreo abundante de saliva que o chile determina tanto para tomar todos os dias o mesmo regime montono como para estimular o apetite que falta no dia seguinte de uma bebedei ra. Espinosa, Alfredo Ramos, La Alimentacin en Mxico. Mxico, 1939. 73 Rocca, Juan, Contribucin al Estudio Chimico del Chile, Ana-les del Instituto de Biologia, tomo I, Mxico, 1935. 74 Rocca, Juan e Llamas, Roberto, Consideraciones sobre el Valor Alimentcio del Pulque, in An. Inst. Biologia, tomo VI 1935. 75 Lille, Jos de e Ramirez, Elyseu, Contribucin al Estudio de la Accin Farmaco-dinmica de los Princpios Activos del Chile. An. Inst. Biol.. tomo VI, 1935. 76 Cannon, W. B., The Wisdom of the Body, Londres, 1932. 77 Radoin, Lucie e Simonet, Henri, Les Donnes et les Inconnues du Problme Alimentaire, Paris, 1924.
nutrio regionais. Mas isso s pode ser feito com um mais vivo e ativo interesse por parte dos governos, infelizmente ocupados quase que exclusivamente com os seus problemas polticos...
16. Se as manifestaes clnicas, especficas, da desnutrio do Nordeste no so aparentemente das mais alarmantes, o mesmo no se d com as suas conseqncias indiretas, evidenciveis atravs de certos ndices bio-estatsticos da regio. ndices que se apresentam realmente alarmantes. So de um estudioso de nossos problemas alimentares, C. de Seabra Veloso, estas observaes: Um povo como o nosso, que vive em dficit permanente de carne, peixes, leite, ovos, cereais, frutas e verduras, um povo fraco, um povo doente, dando uma prole fraca, incapaz e fadada a desaparecer entre a primeira e a segunda infncia. O rendimento do seu trabalho mnimo; a sua mdia de sade muito baixa, o que o torna pasto a terrveis molstias, como a tuberculose, as verminoses, as infeces e por a afora; a durao de sua vida sempre curta, extinguindo-se entre os 40 e 60 anos; e a sua utilidade para a Ptria quase nula, quando no negativa, uma vez que o cidado, nas circunstncias acima, torna-se um nus, um peso morto, susceptvel de obstruir e dificultar o curso normal do progresso.78 A primeira indicao ntida desta verdadeira hecatombe demogrfica nos dada atravs do estudo dos ndices de mortalidade infantil, ndices que, como afirma Newsholme, constituem o sinal mais sensvel do nvel de bem-estar social.79 Esta mortalidade alcana cifras impressionantes no Nordeste aucareiro. Estudando as estatsticas relativas s diferentes capitais dos Estados da Unio, verifica-se que os trs mais altos ndices do pas se encontram em trs cidades do Nordeste: Aracaju 457; Macei 443; e Natal 352 mortes por 1.000 [pg. 166] nascimentos.80 ndices que s encontram paralelo em unias poucas regies de extrema misria de nosso continente, certas reas da Bolvia e do Mxico, e os territrios de Salta e Jujuy, na Repblica Argentina. bom que se aluda ao fato comprovado de que o grosso destas crianas morre de perturbaes gastro-intestinais, em cuja etiologia participa as mais das vezes o fator diettico tanto atravs da alimentao imprpria
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Veloso. Cleto Seabra, Alimentao, 1940. Newholme, The Elemento of Vital Statistics, 1924. 80 Costa, Oswaldo Lopes da, Bioestatstica nas Capitais Brasileiras.
como contaminada. Outro ndice vital de ntima ligao com o tipo de dieta da coletividade e que reflete em expresso numrica o estado de nutrio do grupo o da mortalidade pela tuberculose. J Escudero81 afirmava h anos que a tuberculose uma doena da nutrio e os modernos estudos de tisiologia confirmam haver uma correlao bem significativa entre desnutrio e tuberculizao.82 Analisando os ndices de mortalidade pela tuberculose no Brasil, verifica-se que as capitais dos estados do Nordeste figuram trs vezes entre os seis ndices mais altos do pas. So estas cidades, todas situadas na regio da mata nordestina: Salvador, Fortaleza e Recife, com os ndices respectivos de 345, 302 e 359 por 100.000 habitantes. ndices que esto acima da mdia brasileira de 250 por 100.000 habitantes e incrivelmente acima do ndice de Nova Iorque, que de 47 por 100.000. Nos mapas sobre a incidncia da tuberculose no Brasil, verifica-se que a zona da mata nordestina apresenta-se na sua quase totalidade como uma rea de incidncia forte da peste branca. Incidncia que alcana, nas reas da mata da Paraba e de Pernambuco, um grau extremo. J na zona do serto esta incidncia se mostra fraca ou moderada. A alta mortalidade global e a verificao de que mais de 50% dos bitos nesta rea se verificam antes dos 30 anos de idade, vem completar o quadro sombrio da evoluo demogrfica do Nordeste. A anlise direta da marcha destas populaes nordestinas deixa entrever o tremendo estrago do seu material humano, inaproveitado pelas ms condies de higiene locais, principalmente as ms condies de nutrio. [pg. 167] Em magistrais estudos demogrficos levados a efeito no Laboratrio de Estatstica sob a direo do Prof. Giorgio Mortara ficou demonstrado que, no perodo de 60 anos decorridos de 1890 a 1950, o crescimento demogrfico do Nordeste foi inferior ao das regies do Norte, do Centro e do Sul do pas, apesar dos seus altos ndices de natalidade.83 que a nasce muita gente, mas morre cedo quase tudo e quase sempre de fome. Desta fome discreta, dissimulada, que destri surda e continuamente toda a energia vital do nordestino.
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Escudero. Pedro, Alimentacin, Buenos Aires, 1934. Consultar sobre o assunto das correlaes entre alimentao e tuberculose o trabalho de I. Leith, Diet and Tuberculosis, in Proceedings of the Nutrition Society, vol. III, 1945. 83 Enquanto as populaes do Norte cresceram neste perodo 283%. as do Centro-Oeste 448% e as do Sul 504 %, o aumento no Nordeste foi apenas de 231%. Contribuies para o
A verdade que a maior parte das endemias reinantes no Nordeste que ceifam o grosso de vida de suas populaes tem na fome um fator etiolgico de alta significao. As chamadas doenas de massa se enxertam sobre os quadros de fome como uma decorrncia natural. No foram outras as concluses a que chegaram os mdicos e cientistas reunidos no I Seminrio de Desnutrio e Endemias Rurais do Nordeste, reunido em junho de 1958, na cidade de Garanhuns, no Estado de Pernambuco. Encarando o problema das correlaes entre fome e endemias, com toda a objetividade e dentro do quadro da realidade econmico-social do Nordeste, este Seminrio apresentou concluses que merecem um destaque especial, da a deciso que tomamos de inclu-las neste nosso ensaio. So as seguintes as concluses deste conclave no que diz respeito estrutura econmico-social do Nordeste e o problema das endemias reinantes: 1 A atual situao econmico-social do Nordeste, decorrente de graves erros acumulados durante anos, a grande responsvel pela alimentao deficiente das suas populaes, contribuindo para o agravamento das endemias reinantes. 2 No possvel a erradicao da grande maioria das endemias sem que a estrutura econmico-social e os hbitos alimentares sejam modificados. [pg. 168] 3 Os programas assistenciais e de sade pblica, de um modo geral, embora absolutamente imprescindveis, no tm resultados duradouros nem objetivos sociais a longo prazo se no forem tomadas medidas paralelas que modifiquem a infraestrutura econmico-social e as condies alimentares das populaes.
4 O Nordeste necessita integrar-se na economia nacional e carece de medidas de iniciativa, pblica e privada, capazes de promover a elevao dos seus nveis econmicos e a melhoria da distribuio da riqueza. 5 O fenmeno regional das secas, embora grave, no poder ser invocado, no estado tcnico-cientfico atual, como principal fator do marasmo econmico do Nordeste.
6 urgente a elevao dos ndices de produtividade no Nordeste para que se possa melhorar os nveis de sade e dominar a incidncia das endemias regionais. 7 A subcapitalizao e o subemprego so obstculos explorao racional das riquezas e potencialidades do Nordeste,
representando, com a m distribuio da propriedade agrcola, fatores importantes da produo e desestmulo economia agrria regional. 8 A monocultura de cana-de-acar, na forma em que est estruturada, malgrado as riquezas que gera, contribui intensa e negativamente para o desequilbrio social e alimentar das populaes do Nordeste. 9 Os projetos e obras de emergncia s atendem a situaes especiais transitrias e de calamidade, sem se traduzirem em resultados permanentes. [pg. 169] 10 A indstria e a agricultura no Nordeste no devem ser consideradas atividades antagnicas e necessitam, ambas, de organizao tcnica e ajuda financeira, para diminuir o custo da produo, criar e desenvolver mercados e permitir o largo emprego dos indivduos teis, promovendo assim a fixao do homem nordestino.
A est um balano objetivo do tremendo desgaste que a fome produz no capital humano do Nordeste e algumas sugestes vlidas de como seria possvel entravar esta ao to negativa para a expanso econmico-social da regio. Todo o capital humano da regio que se povoou de incio to depressa, alcanando uma concentrao social bem favorvel ao desenvolvimento de um bom
horizonte de trabalho, estagnou logo a seguir quando a monocultura da cana-deacar iniciou o seu crescimento canceroso, envenenando toda a riqueza da terra, gangrenando toda a sua economia com as toxinas do seu exagerado mercantilismo.
17. Condies de vida mais ou menos idnticas, com um mesmo tipo de regime alimentar defeituoso e as mesmas calamitosas conseqncias apresentadas na rea do acar, vamos encontrar na rea do cacau. Na zona da monocultura do cacau, que se estende do Recncavo para o sul da Bahia at o Esprito Santo. Esta rea representada por uma estreita faixa de terras de solo autctone, recoberta de floresta tropical, compreendida entre os terrenos baixos de sedimentao do litoral e a montanha, que nesta regio se aproxima muito da costa.84 Esta lingeta de terra de largura idntica da faixa aucareira do Nordeste, se bem que um tanto mais afastada da costa, prolonga pura o sul do pas a rea alimentar da mandioca. [pg. 170] Embora em suas linhas gerais as condies alimentares sejam as mesmas nas duas reas, o mecanismo que deu origem sua estruturao apresenta algumas diferenas e merece referncia especial. Infelizmente no dispomos de bastante material informativo acerca das condies de vida na regio. Inquritos alimentares, no nos consta tenha sido realizado algum, nesta zona. O estudo mais completo de que dispomos, sobre o assunto, sem dvida o do Prof. Pierre Monbeig,85 realizado em visita local levada a efeito em 1935. Atravs deste notvel estudo de geografia regional verifica-se a preferncia da cultura do cacau pelos solos de decomposio local, ricos em potssio, produtos em geral de rochas feldspticas. As manchas dos cacauais se orientam mais pelos tipos de solo do que pelas cotas de chuvas. Embora se trate de uma rea s recentemente cultivada, os processos de cultura a utilizados so dos mais rudimentares. Os mesmos mtodos de queimada do roar, derrubar e queimar o mato , a quase
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Pierre Dnis. em sua Geographie Universelle. Paris. 1927. traou o mapa da monocultura do cacau, organizado por Wanderley de Arajo Pinho, com limites que at hoje no tm sofrido alteraes sensveis. Num ensaio de diviso econmica do Estudo da Bahia. Slvio Fris de Abreu limita a monocultura cacaueira chamada zona de baixada da floresta do sul. sendo a floresta alta. montanhosa, utilizada para outros fins. (Slvio Fris de Abreu) in Rev. Bras. de Geografia, ano 1, n. 1, jan. de 1939. 85 Monbeig, Pierre, Colonisation, Peuplement et Plantation de Cacaos dans le Sud de 1Etal de Bahia, Annales de Gographie, jan., 1936.
inteira indiferena pela seleo de sementes e por outros detalhes de intensificao do rendimento da planta. Com estes mtodos vamos deparar-nos com a mesma devastao da floresta, embora em escala menos intensiva do que na zona aucareira, primeiro porque o cacau uma cultura recente e no teve tempo ainda de alargar seus tentculos; segundo, que em certas fazendas se usa o processo do cabrocamento, no qual as rvores grandes so poupadas para ensombrar a cultura do cacau.86 No que diz respeito ao latifundiarismo, o cacau tem a mesma tendncia avassalante da cana. Acentua Pierre Monbeig o fato de que tanto os coronis, proprietrios de cacauais, como as sociedades estrangeiras, suas e inglesas, que exploram as indstrias do cacau, so todos aambarcadores de terras, possuidores quase sempre de vrias plantaes disseminadas na floresta. Trata-se de um tipo de agricultura mercantil, com os seus [pg. 171] donos preocupados exclusivamente com o mximo de lucro, sem e menor interesse em beneficiar a terra ou melhorar as condies de vida locais, e disso temos um documento insofismvel no absentesmo dos donos do cacau. A verdade que so eles negociantes e no agricultores, vivendo sua vida de nababos nas cidades e mesmo na capital da Repblica, custa das sementes do cacau que continuam funcionando em seus esquemas econmicos como moeda corrente, como no imprio Asteca, dos tempos de Montezuma. Monbeig refere como exemplo tpico deste absentesmo o caso de um negociante de cacau de Ilhus, que, possuindo uma fazenda a uma hora de viagem da cidade, passa cinco anos sem visitar as suas terras, de cujas rendas vive regaladamente. Sobre este aspecto de desamor plantao, de absoluta indiferena pelo futuro da terra, a manocultura do cacau ainda mais aviltante do que a do acar, em cuja rea os senhores de engenho sempre se mostraram bem mais interessados pela vida de seus canaviais, pela marcha do trabalho dos seus engenhos. Este regime agrcola monocultor e latifundirio arrasta as populaes locais a um nvel de vida terrivelmente baixo. Os salrios do cacau sempre foram miserveis, e sempre foram pagos, na maior parte, sob a forma de gneros alimentcios de segunda classe, os preos duas vezes mais altos do que nas cidades desta zona; o
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Para conhecimento mais detalhado dos processos de cultura do cacau, consulte-se a obra rica de informes de Gregorio Bondar, A Cultura de Cacau na Bahia, publicao do Instituto do Cacau da Bahia, 1938, alm das publicaes tcnicas do Instituto Agronmico do Leste.
charque, a farinha e o feijo vendidos pelos empreiteiros com escandalosas margens de lucro. Tais salrios, associados quase ausncia de recursos alimentares prprios da regio, desde que o cacau absorve todo o trabalho agrcola, 87 conduzem fatalmente as populaes da zona a um regime deficitrio. Regime de feijo, farinha, charque, caf e acar. Sem leite, sem verdura, sem frutas, sem carne verde. Regime cujas qualidades e defeitos j conhecemos bem e do qual resulta um nvel sanitrio baixssimo nesta rea. A misria fsica e a misria moral, estudadas com grande rigor psicolgico em trs livros de alta significao na literatura [pg. 172] brasileira Cacau, Terras do Sem Fim e Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado constituem expresses da condio humana nesta zona, culturalmente das mais atrasadas do pas, com complexos sociais mais brbaros, mais primitivos do que os da rea amaznica. Os fatores ligados ao enriquecimento sbito de um grupo de patres, sem base cultural, simples aventureiros trazidos na onda aluvional das migraes, aproveitadores do boom do cacau, na Primeira Guerra Mundial, deram um colorido ainda mais dramtico s conseqncias deste tipo de monocultura. A rea do cacau , sociologicamente, uma rea do acar despida daqueles arranjos acomodativos que o patriarcalismo criou no Nordeste, daquele sossego aparente da doce vida dos engenhos, deixando-se arrastar, no mpeto dos seus desenfreados interesses mercantilistas, aos graves extremos da misria fsica e moral. mais uma zona de fome, alimentada pela fictcia riqueza do cacau. [pg. 173]
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Com efeito, a monocultura atinge um grau infinitamente mais estrito do que nas regies cafeeiras. O cacau um tirano e recusa-se a perder uma polegada de terra arrancada floresta, para consagr-la a outras culturas; certos fazendeiros o interditam absolutamente. No resta seno a mandioca e a produo local est longe de satisfazer ao consumo. Monbeig, Pierre. op. cit.
1. Com o estudo da Amaznia e do Nordeste aucareiro foram apresentadas duas reas de fome endmica no Brasil. reas geogrficas com populaes locais submetidas permanentemente a um regime de subalimentao e de carncia, exibindo em vrias de suas caractersticas a marca desta dura contingncia biolgica. J no estudo desta nova rea a do serto nordestino vamos encontrar um novo tipo de fome, inteiramente diferente. No mais a fome atuando de maneira permanente, condicionada pelos hbitos de vida cotidiana, mas apresentando-se episodicamente em surtos epidmicos. Surtos agudos de fome que surgem com as secas, intercaladas ciclicamente com os perodos de relativa abundncia que caracterizam a vida do sertanejo nas pocas de normalidade. As epidemias de fome destas quadras calamitosas no se limitam, no entanto, aos aspectos discretos e tolerveis das fomes parciais, das carncias especficas, encontradas nas outras reas at agora estudadas. So epidemias de fome global quantitativa e qualitativa, alcanando com incrvel violncia os limites extremos da desnutrio e da inanio aguda e atingindo indistintamente a todos, ricos e pobres, fazendeiros abastados e trabalhadores do eito, homens, mulheres e crianas, todos aoitados de maneira impiedosa pelo terrvel flagelo das secas. A chamada rea do serto do Nordeste se estende desde as proximidades da margem direita do Rio Parnaba, no seu extremo norte, at o Rio Itapicuru, no seu extremo sul, abrangendo as terras centrais dos Estados do Piau, Cear, Rio [pg. 175] Grande do Norte, Paraba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, numa extenso territorial de cerca de 670.000 quilmetros quadrados, segundo os clculos
dos tcnicos da Inspetoria de Obras Contra as Secas. 1 Nesta extensa zona semi-rida que constitui a hoje chamada rea do polgono das secas, vivem cerca de sete milhes de habitantes, num regime que tem como alimento bsico o milho. esta zona das secas uma rea alimentar do milho. Do milho associado a outros produtos regionais, em combinao as mais das vezes felizes, permitindo que, fora das quadras dolorosas das secas, viva esta gente em perfeito equilbrio alimentar, num estado de nutrio bastante satisfatrio, e que nas pocas de calamidade possua energia e vigor suficientes para sobreviver ao flagelo, evitando o despovoamento da regio. Constitui a rea do serto do Nordeste um caso excepcional entre as diversas zonas de alimentao base do milho, no mundo, todas elas reas de fome, de graves deficincias alimentares, tais como a da Amrica Central, 2 com suas alarmantes carncias de toda categoria, a do Sul dos Estados Unidos da Amrica, com suas populaes negras assoladas pela pelagra, as da Itlia e da Romnia, grandes focos pelagrosos condicionados pela alimentao madica. Verifica-se, assim, que, no mundo inteiro, as reas do milho so reas de misria alimentar, exceo do serto nordestino. E que, nesta rea, a coexistncia de certas condies naturais e, principalmente, o gnero de vida local, com seus hbitos tradicionais, criaram na zona um complexo alimentar em que as graves deficincias proticas e vitamnicas do milho so compensadas por outros componentes habituais da dieta. Dieta que, como teremos ocasio de demonstrar mais adiante, talvez a mais racional e equilibrada do pas, incluindo as zonas isentas de fome. Se o serto do Nordeste no estivesse exposto fatalidade climtica das secas, talvez no figurasse entre as reas de fome [pg. 176] do continente americano. Infelizmente, as secas peridicas, desorganizando por completo a economia primria da regio, extinguindo as fontes naturais de vida, crestando as pastagens, dizimando o gado e arrasando as lavouras, reduzem o serto a uma paisagem desrtica, com seus habitantes sempre desprovidos de reservas, morrendo mngua de gua e de alimentos. Morrendo de fome aguda ou escapando esfomeados, aos magotes, para
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Sero feitas neste ensaio muitas referncias Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, caracterizada por suas iniciais I. F. O. C. S. Este servio pblico hoje se chama Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, mas a bibliografia utilizada se refere em sua maioria ao perodo anterior a esta mudana de nome, e por isso manteremos a antiga designao. 2 Quintana, Epaminondas, El Problema Diettico del Caribe, in Amrica Indgena, vol. II, n.
outras zonas, fugindo atemorizados morte que os dizimaria de vez na terra devastada.
2. O caracterstico fundamental desta extensa rea geogrfica o seu clima semi-rido. Clima tropical, seco, com chuvas escassas e principalmente irregulares. Com uma temperatura mdia elevada o ano inteiro, associada a baixos graus de umidade relativa do ar, dos mais baixos do pas, tornando o clima saudvel, isento de inmeras doenas tropicais, condicionadas pelo excesso de umidade do solo e do ar. J Rippley3 tinha notado h muitos anos que nos trpicos, onde h gua em abundncia e a vegetao frondosa, o clima se apresenta mortfero, e onde a gua escassa e a vegetao exgua, o clima salubre. So as chuvas incertas, com um regime pluviomtrico de uma irregularidade espetacular, que tornam o clima nordestino um fator de degradao da vida do homem nesta regio. 4 Desta irregularidade das chuvas resultam desde o empobrecimento progressivo do solo pela eroso at as crises calamitosas de fome na regio. Toda a paisagem natural, desde a topografia, as caractersticas do solo, a fisionomia vegetal, a fauna, a economia e a vida social da regio, tudo traz marcado, com uma nitidez inconfundvel, a influncia da falta dgua, da inconstncia da gua nesta regio semidesrtica. O solo arenoso, pouco espesso, quase sempre pobre em elementos nutritivos e rico em seixos [pg. 177] rolados, um produto dos extremos climticos, dos largos perodos de exagerada insolao e dos aguaceiros intempestivos, desagregando as rochas arenticas e acelerando todos os processos de demolio que nelas se realizam. Os terrenos desnudados em certos trechos, quase sem nenhuma carne de solo arvel recobrindo o esqueleto das rochas vivas, que irrompem aqui e acol em brancos serrotes escarpados, so exemplos desta terrvel capacidade agrofgica do clima: capacidade de roer as terras do serto nordestino deixando expostos os ncleos mais duros do seu esqueleto de granito e de calcrio. Tambm os sulcos marcantes que imprimem fisionomia geogrfica do Nordeste
11, abril, 1942. 3 Rippley, Races of Europe. 4 A aridez vem atuando sobre o facies regional desde remotos perodos geolgicos:. Branner supe que a causa da extino dos grandes mamferos pleistocnicos foi uma longa estiagem que fez secar todos os mananciais do Nordeste. A base de tal hiptese o encontro das grandes ossadas sempre junto aos caldeires que decerto foram os ltimos depsitos de gua de que dispuseram estes animais. Abreu, Slvio Fris, Nordeste do Brasil, 1929.
uma expresso de desolador sofrimento, sejam os superficiais como os crregos secos, sejam os profundos que descem pelas rampas das ravinas para a peneplancie, os enormes boqueires, abrindo na terra largas brechas escancaradas pelas torrentes erosivas,5 so marcas indelveis desta irregularidade climtica da regio. Mas no s deste tipo de solo de decomposio do arenito, descrito por Gilberto Freyre como um solo de terra dura e de areia seca num rangir de raiva permanente, que parece repelir a bota do europeu e o p do africano, a pata do boi e o casco do cavalo, a mangueira da ndia e o broto de cana,6 para mostrar bem o seu contraste com o massap acomodatcio, mole e pegajoso, do Nordeste do acar no s desse tipo, dizamos, que formada toda a capa agrolgica da regio. Em certos pontos, principalmente nas depresses e nos baixios, surgem manchas bem mais frteis de solos argilosos, mais ou menos vermelhos, ou mesmo de barro escuro, formando os tabuleiros aluvionais e as vrzeas de tabuleiros. 7 Nestes [pg. 178] pontos, no s a composio mas as qualidades fsico-qumicas do solo so bem diferentes, tornando-os umferos e frteis. So, porm, pequenas manchas limitadas.
3. No solo do serto, em geral pouco espesso, erodido periodicamente pelas torrentes espordicas e condicionado por este clima com suas eventuais descontinuidade de chuvas, desenvolvem-se tipos de vegetao que permitem aos gegrafos a caracterizao de trs subreas climato-botnicas: o agreste, a caatinga e o alto serto. O agreste constitui uma faixa de transio entre o Nordeste semi-rido e espinhento e o outro Nordeste mido e verdejante dos canaviais. H sempre na paisagem desta subrea a presena da gua. Rios que no chegam a secar
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Almeida, Jos Amrico de, A Paraba e Seus Problemas, 2.a edio, 1937. Ver tambm sobre o assunto Euclides da Cunha. Contrastes e Confrontos. Sobre maiores detalhes, tanto acerca dos aspectos geolgicos como topogrficos da regio, sobre os quais no nos podemos estender neste nosso ensaio especializado, consulte-se, alm das obras clssicas de Agassiz e de Candrall, o livro de Luciano de Moraes, Serras e Montanhas do Nordeste. 2 volumes, Inspetoria de Obras Contra as Secas. 1924. 6 Freyre. Gilberto, Nordeste. 1937. 7 Sobre o solo do Nordeste consulte-se o trabalho de A. da Silva Teixeira, Contribuio ao Estudo do Solo Pernambucano, publicado nos Arquivos do Instituto de Pesquisas Agronmicas de Pernambuco, n. 1, maro, 1938. E tambm os trabalhos agrolgicos empreendidos pela lnspetoria de Obras Contra as Secas e publicados em seu Boletim, principalmente os da autoria dos agrnomos Jos Ferreira de Castro e Walter Motta, e Solos e
inteiramente no vero, mantendo sempre um magro filete de gua ou empoados a distncia. A vegetao se organiza sob a forma de florestas espinhentas scrubforests , prolongando no solo semi-rido do serto a mata da regio mida. J a caatinga e o reino das cactceas. No solo rspido e seco estouram as coroas-defrade e os mandacarus eriados de espinhos. As rvores acocoradas em arbustos e as formaes herbceas completam a paisagem adusta da caatinga. a zona de maior aridez do Nordeste, com seus rios reduzidos nas pocas secas s faixas de areia, leitos ardentes inteiramente expostos ao sol. No alto serto, o clima se ameniza levemente, a vegetao, do tipo de savana, se enfeita, em certas zonas, com as fitas verdes dos carnaubais, enlaando os vales frteis da regio. Rareiam um pouco as espcies espinhentas e as secas so menos impiedosas. Verifica-se, assim, que a caatinga e o verdadeiro corao do deserto. A se localizam os principais centros de aridez da regio. A se apresenta a vegetao no mximo de sua agressividade e no mximo de sua convergente adaptao ao rigor climtico, extrema secura ambiente. O agreste e o alto serto so formas atenuadas da caatinga. 8 [pg. 179] Embora nas caractersticas de seu revestimento vivo, e mesmo em certos aspectos de sua geografia econmica, cada uma destas subreas apresente traos que lhe do individualidade e impem, num estudo de geografia humana, uma anlise particularizada, para o nosso objetivo, de um ensaio de geografia alimentar da regio, perfeitamente dispensvel a caracterizao detalhada de cada uma delas, desde que em todo o regime alimentar mantm a mesma unidade de hbitos e de composio, com pequenas nuances locais, variaes de amplitudes semelhantes s de quaisquer outras reas alimentares de certa extenso. Sob o ponto de vista alimentar, podemos englobar as trs subreas numa s: na rea do milho do serto nordestino. A flora de toda a regio do tipo xerfito, adaptada aos rigores da secura
gua no Polgono das Secas, de J. Guimares Duque. 8 Veja-se sobre os centros de aridez e a distribuio geogrfica da seca no Nordeste o interessante trabalho de Friedrich Freise The Drought Region of Northeastern Brazil, publicado na Geog. Review, de julho de 1938. e contendo um instrutivo mapa das secas, chamado pelo autor de mapa da calamidade calamity map. Sobre a caracterizao bem detalhada das diferentes subreas do Nordeste, encontra-se um material de primeira ordem na magistral obra de Jos Amrico de Almeida A Paraba e Seus Problemas, publicada pela primeira vez em 1933 e reeditada em 1937 com um prefcio de nossa autoria, no qual ressaltamos a sua significao cultural: marcou uma poca nos estudos da geografia regional do Brasil.
ambiente: falta dgua no solo e do vapor dgua na atmosfera. As espcies arbreas reduzem seu porte, se arbustizam em posturas nanicas para sobreviver. O frondoso cajueiro da praia Anacardium occidentale na caatinga adusta se inferioriza em arbusto, o caju do serto Anacardium humilis , em cajueiro ano das chapadas arenosas. As folhas se reduzem ao mnimo para evitar a evaporao, os caules se impermeabilizam, as razes se espalham em todas as direes para sugar a umidade escassa. Todos os rgos da planta se apresentam nesta luta incessante contra a falta dgua. As espcies que sobrevivem o fazem, ou custa de uma economia rigorosa em seus gastos, ou custa da formao de reservas aquosas nos bulbos, razes e caules. Entre as famlias que compem a flora xerfita destacam-se as cactceas, tais como as palmatrias, as mandacarus, os xique-xiques e os facheiros. Plantas dum valor inestimvel na poca das secas, ajudando a gente e o gado a escapar aos seus rigores mortferos. Ao lado das rspidas cactceas, dando cor e caracterstica [pg. 180] flora do serto, esto as resistentes bromeliceas as suas macambiras, crias e croatais, exibindo as lminas recurvas e afiadas de suas folhas em sabre. Pertencem as cactceas e as bromeliceas a uma categoria especial de plantas, chamadas por Saint-Hilaire de fontes vegetais e por Bernardin de Saint-Pierre de mananciais vegetais do deserto. Euclides da Cunha, em certos arroubos de imaginao potica, exagera a abundncia e prestimosidade dessas plantas, para indignao de outros estudiosos mais comedidos, mais fiis realidade cientfica e menos amantes dos exageros poticos em suas expresses geogrficas. Assim, sobre certas bromeliceas escreveu Euclides: As guas que fogem no volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas inclinadas dos xistos, ficam retidas, longo tempo, nas espatas das bromlias, aviventando-as. No pino dos veres, um p de macambira para o matuto sequioso um copo de gua cristalina e pura.9 Sobre o umbuzeiro, anacardicea que tambm uma fonte vegetal, escreve o estilista de Os Sertes: ... se no existisse o umbuzeiro, aquele trato do serto to estril que at nele escasseiam os carnaubais, to providencialmente dispersos nos que o convizinham at do Cear, estaria despovoado. O umbu para o infeliz matuto o mesmo que o
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mauritia para os garanos dos lhanos. Alimenta-o e mitiga-lhe a sede. So certamente um tanto excessivas tais palavras e s podem ser justificadas pelo mecanismo de inconsciente deformao que o esprito provoca diante do aparecimento inesperado de uma soluo milagrosa para a angstia da sede. A mentalidade coletiva exagera o fato e ele ganha foros de verdade, transmitindo-se de uns a outros. o mesmo mecanismo que explica que um gegrafo do valor e da honestidade cientfica de um E. F. Gauthier afirme ter sido inteiramente extinto o Antilope andax, do Saara argelino, pelo furor com que os nmades, chefes das caravanas, o caavam, para buscar nas suas entranhas, no seu estmago multiseptado, as reservas abundantes de gua com que aplacavam a sede nas largas travessias entre os distantes osis saarianos. O Adax, fonte animal de gua, seria assim no Saara uma salvao providencial semelhante s cactceas, no Nordeste do Brasil. [pg. 181] Jos Luiz de Castro, autor de um bom trabalho de sistematizao Contribuio para o dicionrio da flora do Nordeste brasileiro, publicao da I.F.O.C.S. , comenta com indignao os exageros euclidianos, que
comprometeram at certo ponto o valor cientfico de muitas das afirmaes do grande socilogo: To verdicas quanto estas afirmaes de Euclides da Cunha s esta outra do mesmo autor: ...nestas quadras cruis em que as soalheiras se agravam s vezes com os incndios espontaneamente acesos com as ventanias atritando rijamente os galhos secos destonados... O nico comentrio que seria permitido a tais absurdos ainda Euclides da Cunha que no-lo sugere naquela frase ... o poeta soberano no pequeno reino em que o entroniza a sua fantasia, frase em que o gelogo americano I. C. Branner sintetiza a crtica que, como conhecedor do Amazonas, pudera ter feito aos escritos de Euclides sobre o grande estado nacional. A verdade que Euclides foi antes de tudo um grande poeta. So de Afrnio Peixoto as seguintes palavras: .... ainda um Euclides, o que est em todos os outros e no isoladamente em nenhum o poeta ... esse Euclides que sugere a gnese um poeta miguelangesco transpondo o juzo final em nascimento da terra... Sobre o poeta da obra euclidiana, sobre o poeta que se oculta nas pginas de Os Sertes, escreveu outro poeta, Guilherme de Almeida: O poeta de Os Sertes, o artista da poesia pura, no intencional, no resolvida, no premeditada, mas imposta ao
homem por uma insuspeita conscincia lrica do universo, por esta imprevista substncia potica que h, nos seres e nas coisas e que, imperativa, reclama urgente expresso. E no foi s Euclides gegrafo e poeta quem se deixou levar por este exagero de ver rios correndo e fontes brotando de plantas milagrosas que criam osis vivos no deserto adusto. Um dos mais fiis documentadores da natureza brasileira, o Padre Ferno Cardim, cujas sbrias qualidades de escritor fizeram com que as suas descries de plantas e animais da terra fossem na opinio abalizada de Rodolfo Garcia, perfeitas e acabadas como diagnosis de naturalista,10 tambm caiu no mesmo pecado. Descrevendo outra rvore que d gua nos sertes nordestinos, [pg. 182] assim escreveu Cardim, em Clima e Terra do Brasil: ...esta rvore se d em campos e serto da Bahia, em lugares onde no h gua; he muito grande e larga nos ramos, tem huns buracos de comprimento de hum brao que esto cheios de gua que no tresborda nem no inverno nem no vero, nem se sabe donde vem esta gua, e quer dela bebam muitos quer poucos, sempre est em o mesmo ser, e assim serve no somente de fonte mas ainda de um grande rio caudal, e acontece chegarem 100 almas ao p delia e todos ficam agasalhados, bebem e levam tudo o que querem e nunca falta agua; he muito gostosa e clara e grande remedia para os que vo ao serto quando no acham outra. Esta rvore a que se refere Cardim seria, segundo opina R. Garcia, em notas obra do grande cronista, a Geoffroya spinosa, conhecida entre os nativos pelo nome de umari, que significa rvore que verte gua, da qual transuda gua em certos perodos do ano capaz de molhar o solo; mas da a rvore fonte ou rvore rio que se descreve, vai mais prodgio do que verdade, conclui o anotador da obra de Cardim. Pela descrio feita, temos a impresso de que, descontado o exagero, a rvore a que se refere o padre o umbuzeiro, do qual nos deixou Von Martius, com todo o seu comedimento de cientista germnico, a seguinte descrio: o exemplo do que acabamos de dizer nota-se no umbuzeiro Spondias tuberosa cujas razes horizontalmente distendidas, intumescidas perto da superfcie da terra, formam tubrculos nodosos e cheios de gua desde o tamanho de um punho at ao de uma cabea de criana. Algumas vezes abrimos estes esquisitos reservatrios a fim de procurar gua para os sedentos animais de carga e por
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Rodolfo Garcia, na introduo edio de 1939 dos Tratados de Terra e Gente do Brasil, de
vezes encontramos mais de meio litro de lquido em uma s raiz. A gua s vezes clara, s vezes um pouco opalescente, se bem que morna e de gosto resinobalsmico desagradvel, algum tanto amarga, , entretanto, potvel.11 Procurando avaliar com preciso a riqueza aquosa das razes do umbuzeiros, fizemos vir do Nordeste, por gentileza do nosso colega e colaborador Orlando Parahim, algumas razes da planta e as anlises em nossos laboratrios revelaram um teor mdio de gua de 95%. Verifica-se assim que, se nos casos dos incndios [pg. 183] espontneos de galhos secos. Euclides de um exagero comprometedor, no caso do umbuzeiro dando gua a populaes inteiras, o exagero relativo; apenas a verdade colorida pelo estilo um tanto empolado do autor. Nas zonas de solo mais espesso e menos rido surgem, ao lado das cactceas, as leguminosas como as juremas e os angicos, as bignominceas e as anacardiceas. No depresses midas, nas vargens viosas crescem certas espcies de grande porte, como o juazeiro Zizifus juazeiro e o umbuzeiro Spondias tuberosa , que se levantam frondosos e altaneiros no meio da paisagem acachapada da savana adusta. So os correspondentes na caatinga brasileira dos baobabs e das accias da savana africana.12 Recobre o solo, nas pocas que se seguem s chuvas, o manto, em certas zonas contnuo e espesso, noutras um tanto ralo e esfarrapado, dos pastos naturais. a babugem, formada pela associao de vrias plantas, principalmente gramneas, de ciclo vegetativo extremamente rpido, nascendo, crescendo e dando flor e semente num abrir e fechar de olhos. esta vegetao rasteira que d ao fenmeno da ressurreio da natureza nordestina aps as chuvas um signo de transformao sobrenatural, mudando a cor de toda a paisagem em alguns dias, assustando o viajante que um dia atravessou o deserto e poucos dias depois, voltando pelo mesmo caminho, se embevece em meio verdura. A babugem uma vegetao semelhante ao acheb saariano. Vegetao das regies esteprias do Norte da frica que Gauthier assim descreve: o acheb no uma planta determinada, uma categoria de vegetais que possuem sua ttica prpria de luta contra a seca. Vegetais que sobrevivem por
Ferno Cardim. 11 Von Spix e Von Martius. Atravs da Bahia, traduo e notas de Piraj da Silva e Paulo Wolf. 1938. 12 Mota, Mauro, Paisagem das Secas, 1958. 184
suas sementes cuja resistncia seca de durao quase infinita. Quando cai a chuva o gro de acheb a utiliza com energia admirvel. Em poucos dias ele germina, lana sua haste, cobre-se de flores e lana suas sementes. Ele sabe que no tem tempo a perder, est organizado para tirar todo partido da ddiva excepcional. Mas sua semente carregada pelo vento e recoberta pela areia, guardada nas anfractuosidades da rocha esperar, se for preciso, dez anos por novas chuvas. So vegetais que sacrificam tudo pela reproduo, so verdadeiros buqus de flores. Este o [pg. 184] pasto que d pena ver-se deglutido pela garganta imunda dos camelos.13 A babugem do Nordeste uma espcie de acheb, por conta do qual correm as mutaes de apoteose da paisagem, na linguagem sempre intensamente colorida de Euclides da Cunha. Tais so, em sntese rpida, as caractersticas da flora sertaneja na peneplancie cristalina e nos chapades de pouca altitude. Nas montanhas mais altas, a maior pluviosidade e principalmente a estrutura diferente do solo do origem a uma vegetao de aspecto mais doce, com tons do verde mais mido e carregado. Vegetao higrfila, semelhante das zonas do brejo. 14 Nestas reas, onde a altitude subverte o quadro climato-botnico da regio, alteiam-se em capes outras espcies arbreas, algumas delas frutferas, como a mangaba (Ancornia speciosa), o ara (Psidium ara), o cambu (Myrcia sphacrocarpa), espcie de uva silvestre, constituindo verdadeiros osis de alta significao na vida econmico-social do serto semideserto. So os osis de verdura dos flancos das serras do Araripe, de Baturit, da Borborema, algumas delas com plantas europias bem aclimatadas na zona: uvas. pssegos e meles produzindo frutas de clima temperado em plena rea tropical. No exagerando a importncia destes pequenos osis, devemos concluir que a flora do serto bastante pobre em espcies que forneam bons alimentos. Est longe de possuir uma riqueza to espetacular em frutas como a do outro Nordeste, o Nordeste da mata tropical. Afora o umbuzeiro e o piquizeiro sobre os quais
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Gaulhier. F. F. Le Sahara. Paris. 1928. A flora nordestina tem sido estudada minuciosamente por espe-cialistas probos e consumados. Para seu conhecimento mais aprofundado consultem-se, entre outras, a obra de Philipp von Luetzelburg Estudo botnico do Nordeste, publicao n. 57 da I.F.O.C.S.. e a de Alberto Loetgren. Notas Botnica, publicao n. 2 da mesma Inspetoria.
voltaremos a falar com mais vagar as plantas nativas do serto produzem frutos de segunda classe, nos tempos normais quase no despertam interesse ao apetite do sertanejo. As quixabas, os jus, os frutos dos cactos, dos xiquexiques, dos cordeiros, quase s so aproveitados nas terrveis pocas de seca, quando se come de tudo, tudo quanto alimento brabo, sementes venenosas, cascas de rvores e at solado de alpercatas. As prprias palmeiras esto longe de apresentar uma riqueza nutritiva [pg. 185] semelhante s da bacia amaznica. A carnaubeira Copernicia cerfera , que constitui a espcie de palmcea mais abundante no alto serto, fornece tudo em abundncia, menos alimento ao homem. S nos maus tempos a medula da planta nova, o palmito, usado como recurso alimentar. verdade que, conforme refere Euclides da Cunha, com estrpitos da palmeira oricuri (Cocus mucronata), ralados e cozinhados prepara-se nas pocas secas uma espcie de po, infelizmente de m qualidade, po sinistro, o br, que incha o ventre num enfarte ilusrio, empazinando o faminto.15
4. Tambm a fauna do serto fornece poucos recursos alimentares. Os rios e os prprios audes, hoje bastante disseminados na regio, tm as suas guas bem mais pobres em peixes do que as da zona da mata. 16 que a evaporao violenta neste clima abrasador e a irregularidade das chuvas, fazendo variar com certa rapidez e em graus extremos a salinidade das guas, torna-as pouco propcias vida das espcies aquticas.17 S os rios perenes como o S. Francisco mantm aprecivel riqueza pisccola em suas guas. A fauna terrestre est tambm longe de fornecer grande auxlio alimentar. Se no possui carnvoros de grande porte, que ponham em perigo
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Cunha, Euclides da, op. cit. No servio de catalogao das espcies de peixes existentes no Nordeste verificou a Comisso Tcnica de Piscicultura a sua acentuada pobreza, florescendo apenas os espcimes que podem sobrepor austeridade do ambiente os seus recursos naturais de defesa. Nem por isso o aspecto zoogeogrfico dessa extensa zona adquire peculiaridades prprias com o aparecimento de espcies tipicamente regionais Realizaes da Comisso Tcnica de Piscicultura, separata da I.F.O.C.S.. 2. semestre, 1940. Tm tentado esta Comisso, com algum resultado, desenvolver a criao de peixes nos audes pblicos do Nordeste, os quais representam, em conjunto, uma capacidade de cerca de dois bilhes de melros cbicos, principalmente com a aclimatao de espcies estranhas regio e indicadas para a cultura intensiva. 17 Sobre as variaes estacionais das condies fsico-qumicas das guas desta regio consulte-se o trabalho do Dr. Stillman Wright. Da Fsica e da Qumica das guas do Nordeste do Brasil, separata do Boletim da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, 1938. e Introduo ao Estudo da Limnologia, de Herman Kleerekoper (pp. 218-229), Servio de Informao Agrcola, 1944.
a vida humana na regio, possui, no entanto, alguns animais de rapina, como as raposas, gavies e caracars, que disputam ao homem alguns dos [pg. 186] recursos mais importantes da fauna comestvel desta zona. No s da selvagem, mas tambm da domstica, das suas criaes de galinhas, cabras e ovelhas. As aves so relativamente numerosas, principalmente os psitacdeos periquitos, jandaias e papagaios e certos tipos de pombas, das quais devemos destacar, por seu valor econmico, as aves de arribao, que viajam em enormes bandos em migraes peridicas, fornecendo ao sertanejo, em certas quadras, valioso subsdio alimentar. A riqueza em aves desta regio de poucos recursos alimentares se explica por esta capacidade migratria de todas elas, capacidade que se desenvolveu como um fenmeno de convergncia permitindo a sua adaptao num meio de exigidade alimentar atravs da intensiva mobilidade do animal. Este fenmeno de convergncia se manifesta em outras espcies da fauna sertaneja, todas dispondo de uma grande acuidade dos sentidos que lhes permite sobreviverem neste meio em que a luta animal pelo alimento to intensa. O biologista italiano Edoardo Zavattari, 18 estudando os mamferos das zonas ridas e semi-ridas do Saara, verificou que das 48 espcies a existentes 41 delas apresentavam uma singular hipertrofia da sua caixa timpnica, a qual servia para reforar a sua audio, para lhes permitir ouvir a grandes distncias os rudos dos inimigos ou das presas que lhes podem servir de alimento. Este singular fenmeno de convergncia que se apresenta extremado no deserto do Saara exprime bem esta fora condicionadora do meio ambiente fisiologia dos seres vivos que o habitam. Importante elemento da fauna para a alimentao do sertanejo e que merece um destaque especial e a abelha, cujo mel substitui muitas vezes o acar e a rapadura no tempero dos alimentos. Caf com mel de abelha uma combinao de largo uso nos perodos de seca do Nordeste. Esta abundncia do abelhas numa terra de vegetao to escassa parece tambm um tanto absurda e merece a sua explicao. Explicao que se encontra facilmente quando se estuda um aspecto particular da flora xerfila do Nordeste: as
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Zavattari, Edoardo Un Problema di Biologia Saariana: lIper-trofia delle Bulle Timpaniche del Mammiferi. extrado das Arti della Accademia Gioenia di Scienze Nuturali in Catania, srie 6, Vol. III. 1938.
suas [pg. 187] flores. Esta flora, como a de qualquer outro tipo desrtico, tem uma extraordinria riqueza de flores, quase todas brilhantes e indiscretamente vistosas. Estas grandes flores atrativas e exuberantes representam tambm um processo de adaptao ao clima desrtico numa rea de vegetao esparsa, funcionando como um elemento de garantia dos processos de fecundao que so realizados pelos insetos. S as plantas que possuem flores berrantes atraem com suficiente freqncia os insetos fecundadores e sobrevivem por esta razo nesta rea de forte concorrncia vital, da a sobrevivncia dos cactos que exibem, em certa poca do ano, nas extremidades dos seus galhos retorcidos, enormes flores intensamente coloridas, lembrando enormes candelabros acesos em torno dos quais zumbem as abelhas e outras espcies de insetos. Os gatos do mato, capivaras, tamandus, tatus, coelhos do mato, pres e mocs completam, com os micos e as serpentes, a fauna desta regio de fisionomia to singular.
5. Diante destas parcas reservas e das condies pouco atrativas da paisagem, que possibilidades viram nesta regio os seus primeiros desbravadores? Foi o esprito de aventura, o instinto de liberdade, de que nos fala Capistrano de Abreu, e a ambio do ouro e das pedras preciosas que levaram os primeiros aventureiros a terras to distantes do litoral. Verificada, porm, a inexistncia das minas no serto nordestino e a pouca serventia das suas terras para uma agricultura de grande rendimento, como se praticava na zona da mata, cedo se desviou a atividade do colono sertanejo para a pecuria. Para a criao do gado vindo de Portugal ou do Arquiplago do Cabo Verde, o qual se aclimatava muito bem neste ar seco e saudvel e se desenvolvia maravilhosamente nas suas pastagens naturais, formadas de variadas espcies de gramneas. Loreto Couto, nos Desagravos do Brasil, assim nos informava: Treze gneros se contam de erva que servem de pasto aos animais, por cuja bondade em Pernambuco to grande a cota de gado vacum e cavalar, que destes consumindo-se infinitos nos servios destas Capitanias, saem para fora todos os anos mais de 40.000, so ligeiros na carreira, dceis ao ensino e to fortes no trabalho que saindo de Pernambuco para as Minas Gerais com a carga de 6 arrobas andam 600 lguas
desferrados [pg. 188] e chegam sem diminuio nos alentos. V-se, assim, que as condies propcias criao desenvolveram no Nordeste as fazendas, no s de gado vacum, mas de cavalos e mulas que constituam o meio de transporte nico atravs da selva inspita. Entrando por Pernambuco, o gado se espalhou em currais pelo serto do Nordeste, fazendo-se as entradas pelas estradas naturais dos rios, principalmente atravs do S. Francisco, a grande artria viva do ciclo econmico do couro no Nordeste.19 O grande mercado de bois em que cedo se constituiu a zona da mata, to necessitada de sua fora de trao para os trabalhos dos engenhos e, bem assim, de sua carne apetitosa para alimentao de populao cada vez mais densa e mais absorvida no exclusivo trabalho do acar, foi um dos motivos impulsionadores da pecuria no alto serto. Outro impulso decisivo lhe foi dado a seguir pelo surto de minerao nos estados centrais. Vinham do Nordeste pelos caminhos dos currais os bois que deviam alimentar as populaes repentinamente concentradas nos campos de minerao do Sul. Nestas zonas de minerao faltava tudo e importava-se de outras reas os recursos alimentares de toda ordem. A no ser o porco, que vive intimamente ligado cozinha ou couve que cresce abandonada no quintal atrs da casa, compra-se fora tudo o que necessrio economia domstica. A famlia mineira no vive na fartura. Os comerciantes a exploram vendendo gneros n preos exorbitantes e o senhor da lavra, absorvido inteiramente pelas mineraes, imaginando que o ouro d de sobra para tudo, submete-se s exigncias dos mascates assim nos informa Miran Latif, em As Minas Gerais. Completando este quadro da falta de recursos alimentares nas zonas mineradoras, escreve Paulo Prado: Nos primeiros tempos das descobertas um boi chegou a valer 100 oitavas de ouro em p, um alqueire de farinha, 40. A situao s melhorou quando chegaram as boiadas de Curitiba e ao Rio das Velhas o rebanho dos campos [pg. 189] baianos (Retraio do Brasil, 1928). Tal misria alimentar, com preos to exorbitantes dos alimentos na zona de minerao documenta mais uma vez as graves conseqncias a que foram arrastadas as coletividades brasileiras pelas diferentes formas de
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Sobre a pecuria nos sertes do Nordeste consultem-se, entre outras, as obras de Capistrano de Abreu Captulos de Histria Colonial e os dois estudos de Nelson Werneck Sodr. Formao da Sociedade Brasileira e O Oeste. Consulte-se tambm o captulo 7. da
explorao econmica que sucessivamente foram estabelecidas no pas, todas elas indiferentes ao amparo e ao desenvolvimento sistemtico dos cultivos de subsistncia. Como no drama da Califrnia, o pioneiro Suter, 20 possuidor de riqussimas terras, cobertas de lavoura e de cabeas de gado, se arruinara por completo ao encontrar nos seus domnios riqussima mina de ouro, tambm no Brasil o ouro empobrecia o pas e morria-se de inanio ao lado de montes de ouro pelo abandono da cultura e da criao. Com dois mercados o Nordeste aucareiro e o Sul minerador a disputarem com avidez o seu produto, o serto nordestino prosperou custa dos timos preos encontrados para o gado. E no foi s para o gado vacum a que se mostrou to propcio o meio ambiente, mas tambm, e principalmente, para o gado caprino, mais resistente aos assaltos da seca e muito menos exigente de bons pastos, se acomodando a qualquer vegetao de serrotes e de lajedos, formada de duras gramneas, ou mesmo vegetao arbrea e arbustiva, da qual ele come as cascas e os caules ou as folhas. Esta a razo que fez do Nordeste o grande centro de criao de cabras, concentrando-se nos Estados de Pernambuco e da Bahia mais de 50% dos rebanhos caprinos de todo o pas.21 De tal forma as cabras se desenvolveram e se integraram no quadro ecolgico da regio que vm contribuindo como um verdadeiro fator geogrfico para modificar a fisionomia botnica da mesma. O botnico Loefgren, estudando a devastao das rvores e das matas nas terras do Cear, atribui papel importante nesta degradao vegetal s cabras soltas na regio: Um outro fator no desprezvel na devastao das matas, ou pelo menos para conservar a vegetao em estado de capoeira, so as cabras. Sabe-se quanto este animal daninho para a vegetao arborescente e arbustiva e como a criao de cabras soltas no Cear , talvez, maior que a do gado, sendo fcil imaginar-se [pg. 190] o dano que causa vegetao alta.22 Desfavorvel vegetao, foi a criao de cabras, no entanto, muito favorvel alimentao regional, pois tanto a sua carne como o seu leite so consumidos, na quase totalidade, nos mercados locais. Na contnua expanso dos seus currais, da qual nos legaram preciosa
Histria Econmica do Brasil, de Roberto Simonsen. 20 Zollinger, J. P., la Conqute de la Californie, Paris, 1939. 21 Brasil, 1939-1940, publicao do Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil. 22 Loefgren, Alfredo, Notas Botnicas, publicao da I.F.O.C.S., 2. edio, 1923.
documentao Ferno Cardim e Antonil, no se deixou o sertanejo absorver numa atividade exclusivista que seria extremamente nociva sua vida econmica: na pura criao. No encontrando na zona da mata, para onde enviara a maior parte dos seus bois, possibilidades de abastecimento adequado e seguro para suas necessidades alimentares, e sendo distantes e difceis os caminhos noutra direo, ele teve que se dedicar um pouco ao plantio de certos gneros de sustentao para o seu autoabastecimento. Fez-se, assim, numa saudvel atuao colonizadora, vaqueiro e agricultor ao mesmo tempo. Temos uma miniatura expressiva da economia de todo o serto nordestino no quadro que o agrnomo Trajano Pires da Nbrega nos pintou da organizao econmica de uma rea situada s margens do So Francisco, nos municpios de Itaparica e de Floresta, no Estado de Pernambuco: A explorao da propriedade feita em geral por meio da agricultura e da pecuria. Na serra de Tacaratu a agricultura exclusivista; na margem do rio predomina o regime misto, enquanto no centro da caatinga faz-se principalmente a pecuria. Na serra de Tacaratu as chuvas mais bem distribudas do lavoura melhores possibilidades; e a irregularidade destas, alm de escassas, no resto da rea em apreo, limita estas possibilidades aos raros anos mais chuvosos, salvo na margem do rio em que as culturas em vazante do sempre alguma colheita.23 Vemos assim associadas numa ingente adaptao s possibilidades do meio os dois gneros de vida, o da agricultura e o da criao. No se constituiu o sertanejo num agricultor de produtos de exportao, para fins comerciais, como se praticava nas terras do litoral, mas um plantador de produtos de sustentao para seu prprio consumo. Um semeador, em pequena escala, de [pg. 191] milho, feijo, fava, mandioca, batata-doce, abbora e maxixe, plantados nos vales mais sumosos, nos baixios, nos terrenos de vazante, como culturas de hortas e jardins. Pequenas boladas de verdura que os senhores de engenho do brejo, plantadores de extensssimos canaviais sempre olharam com desdm, chamando depreciativamente a este tipo de policultura do sertanejo, de roa de matuto. Roas de matuto diante das quais o homem do acar torcia o nariz de grande senhor agrrio, e que, no entanto, vieram a constituir um magnfico elemento de valorizao das condies de vida regional, de diversificao do regime
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Nbrega, Trajano Pires da, Ensaio Social econmico de um Setor do Vale do Rio S.
alimentar do sertanejo, bem superior em pocas normais ao da rea da cana. O aproveitamento pelo sertanejo destas manchas de terra de melhores condies edficas, com maiores reservas de umidade e melhor riqueza humosa, para o seu roado de subsistncia, fez-se de maneira muito semelhante ao aproveitamento do osis e dos ueds secos, dos vales e das estepes do Atlas e das bordas do Saara, por parte das populaes sarracenas que a se estabeleceram quando da expanso do imprio rabe por todo o Norte da frica. Tanto nos osis africanos como nas vazantes nordestinas, vamos encontrar a mesma textura de culturas variadas num aproveitamento intensivo dessas limitadas zonas onde a gua excepcionalmente se apresenta. A mesma tcnica de horta e de pomar, a mesma finalidade de policultura de sustentao.24 No por simples curiosidade que chamamos a ateno para a semelhana. que ela representa, a nosso ver, o resultado de uma influncia remota da cultura rabe sobre os costumes desta regio brasileira. Influncia que podemos sentir em muitos outros aspectos da vida econmica e social do serto e que se exerceu atravs dos peninsulares, dos portugueses formados em contato com a cultura maometana. [pg. 192] No estudo da cozinha do sertanejo nordestino, 25 a mais isenta de influncia tanto ndia como negra, quase que se podendo cham-la de colonial pura ou de reinol, vamos ver repontar outras muitas dessas influncias rabes, sempre favorveis, servindo como mecanismo de sbia acomodao do portugus s contingncias biolgicas deste quadro de vida caracteristicamente desrtico, muito semelhante ao quadro geogrfico natural dos rabes, aos seus desertos, s suas estepes, aos seus osis floridos. Muitos dos aventureiros que se internaram pelo serto adentro em sua penetrao pastoril foram certamente cristos novos judeus e rabes trazendo na massa do sangue ou na mentalidade de nmades inquietos muito da experincia viva dos bedunos, dos brberes do deserto saariano,
Francisco, in Boletim da I.F.O.C.S., volume 16, n. 1, 1941. 24 Sobre a organizao completa da agricultura nestes osis africanos, cujo conhecimento nos permitir algumas dedues fecundas sobre o caso dos sertes nordestinos, consulte-se a obra de Jean Brunhes La Gographie Humaine, no seu volume II, capitulo VI. tratando dos Osis de Souf e de Mzab, bem assim o livro de Preston James An Outline of Geography, no seu captulo I, em que so estudadas as regies desrticas. Veja-se tambm o magnfico estudo de K. S. Twilchell Water Resources of Saudi Arabia, publicado no nmero de julho de 1944 da Geographical Review. 25 Cmara Cascudo, A Cozinha Sertaneja.
adestrados, de h muito, na luta perene contra a escassez de gua e contra a rispidez do meio natural.26
6. base da criao de gado e da agricultura de sustentao e de certos recursos um tanto escassos do meio ambiente da caa e da pesca , o sertanejo, usando mtodos de preparo e de cozinha apreendidos de outro continente, adaptando, at certo ponto, muitos deles aos novos ingredientes da terra, criou um tipo de alimentao caracterstico. Alimentao slida, porm bem equilibrada, a qual constitui um bom exemplo de como pode um grupo humano retirar de um meio pobre recursos adequados s necessidades bsicas de sua vida. Vejamos quais as caractersticas desse regime de alimentao. No dispomos de documentao abundante acerca dos hbitos alimentares do sertanejo, principalmente documentao com rigor cientfico, encarando o problema luz dos atuais conhecimentos da nutrologia. Os inquritos alimentares levados a efeito na regio so pouco numerosos e quase que se limitam aos de Orlando Parahim, 27 realizados em 1939 no municpio de Salgueiro, no alto serto de Pernambuco, bem no centro geogrfico [pg. 193] da grande rea assolada pelas secas, ao de Jos Guimares Duque,28 realizado em 1936, entre famlias do posto agrcola de So Gonalo, e ao de Trajano Pires da Nbrega, 29 que estudou em 1941 as condies econmico-sociais dos municpios de Itaparica e Floresta, s margens do S. Francisco. Afora esses inquritos, tudo de que se dispe so referncias feitas incidentemente em trabalhos que visam fixao de outros aspectos sertanejos. O estudo da cozinha, da elaborao culinria no serto, tambm no tem atrado a ateno dos comentaristas desde que ela tem sido ofuscada em seus gostos moderados e em seu paladar comedido pelo esplendor to comentado e to exaltado
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Descola, Jean, Les Conquistadors, 1954. Orlando Parahim vem realizando em pleno serto nordestino uma srie de importantes pesquisas de campo e de laboratrio acerca das condies de alimentao nesta rea. Os resultados dessas pesquisas foram apresentados em trabalhos que constituem o que h de mais srio at hoje divulgado acerca da nutrio do sertanejo: O Problema Alimentar do Serto, 1940; A Vitamina C na Alimentao Sertaneja, 1941; e O Desenvolvimento Fsico dos Escolares Salgueirenses em face da Alimentao do Operrio Sertanejo durante a Seca, in Revista Mdica Pan-americana, vol. 1. 4, Recife, 1945. 28 Duque, Jos Guimares, O Fomento da Produo Agrcola, in Boletim da I.F.O.CS., volume XI, n. 2, 1939. 29 Nbrega, Trajano Pires da, Ensaio Social econmico de um Se-tor do Vale do Rio S. Francisco, in Boletim da I.F.O.CS., vol. XVI, n..l, 1941.
da cozinha do litoral. Afora alguns comentrios inteligentes deste incansvel esquadrinhador do folclore nordestino, Luiz da Cmara Cascudo, 30 existe muito pouca coisa de valor com referncia s tradies culinrias e ao estilo de cozinha da regio. De resto, a cozinha de todas as zonas do Brasil tem sido pouco estudada. Cleto Seabra Veloso, dos poucos a preocupar-se atualmente por estes problemas, alude, no seu ensaio sobre a Gastro-tcnica na alimentao brasileira, atmosfera de desprestgio e de ridculo criada em torno de problemas de to profunda significao na vida de um povo. Atmosfera que, longe de estimular, s pode ter abafado o gosto por estes estudos, nos quais se embrenharam, por exceo, um Manoel Quirino, um Nina Rodrigues, um Nunes Pereira e mais uns poucos manacos de nossos problemas etnogrficos. Baseados nos resultados dos inquritos mencionados, nas referncias encontradas na bibliografia sobre os sertes nordestinos e em observaes diretas que fizemos em viagens pelo interior de Pernambuco da Paraba, vamos tentar um levantamento [pg. 194] do mapa alimentar do serto, dos hbitos tradicionais da alimentao da gente sertaneja. J vimos que o componente fundamental de sua dieta o milho, alimento muito incompleto, com falhas graves por seu baixo teor protico, com deficincias desta sua protena em cidos aminados indispensveis, com sua pobreza relativa de sais minerais e de certas vitaminas. Enfim, alimento to pobre que nas zonas ricas, onde o homem dispe de outros recursos nutritivos, ele abandonado alimentao do gado. o caso do corn-belt norte-americano, onde a maior produo de milho do mundo em 90% do seu consumo total utilizada na alimentao animal, reservandose apenas 10% para a alimentao humana. 31 Em reas mais pobres, nas quais o milho usado como fornecedor de protenas e vitaminas, seja quase puro, com um exclusivismo de conseqncias funestas como no Mxico,32 seja misturado com outros alimentos incompletos como em Cuba, 33 associado ao feijo, surgem sempre manifestaes carenciais entre as populaes assim alimentadas, evidenciando srias deficincias do seu equilbrio nutritivo.
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Cascudo, Luiz da Cmara, Viajando pelo Serto. McCarthy. Harold. The Geographic Basis of The American-Economic Life. 1940. 32 Espinosa. Alfredo Ramos. La Alimentacin en Mxico. 1939. 33 Minneman. P. G. The Agriculture of Cuba. For. Agric. Ball.. n. 2. U. S. Depart. of Agriculture. 1942.
No serto nordestino escapam as populaes a esta sorte porque o milho, embora seja o alimento bsico, consumido quase que pela totalidade de seus habitantes e em quantidades relativamente altas (204g dirias per capita, na cidade de Salgueiro, segundo inqurito de O. Parahim), e mais ainda em plena zona rural, no constitui, no entanto, a fonte obrigatria nem de protenas, nem de vitaminas, nem de sais minerais do sertanejo. Mas apenas a sua base calrica, o fornecedor do grosso do total energtico de sua rao, ficando o fornecimento dos outros princpios alimentares a cargo de outras substncias. Usado sob as mais variadas formas, como angu, canjica, cuscuz,34 o milho quase sempre consumido juntamente com o leite, numa combinao muito feliz, completando a casena do leite as deficincias em aminocidos da zena do milho. [pg. 195] O cuscuz um prato tpico da cozinha sertaneja, cuja tcnica de preparo constitui uma simples variante dos processos rabes de fabricao de seu prato nacional o kous-kous. Apenas, em lugar do gro de trigo, usa-se o de milho pilado, no Nordeste como na Arbia, num pilo especial. Para se ver at que ponto o milho pilado em casa representa um trao definitivamente integrado no complexo cultural da regio, basta dizer que o sertanejo, mesmo dispondo das farinhas e xerns de milho j preparados, no abre mo dos seus mtodos tradicionais de preparo caseiro do gro. Conta Orlando Parahim que, tendo um industrial de Salgueiro aberto uma refinaria de milho para preparo de variados tipos de farinha, teve que fechar sua indstria porque o caatingueiro preferiu sempre fazer o cuscuz com o milho batido no seu pilo em domiclio (A Alimentao do Operrio Sertanejo durante a Seca, 1945). Felizmente, na preparao do milho para pil-lo no usa o nordestino o nocivo processo de acrescentar-lhe cal, como na rea do Mxico, destruindo esse meio alcalino a maior parte da riqueza vitamnica que o milho possa conter. Em experincias que levamos a efeito no Instituto de Nutrio da Universidade do Brasil, acerca do valor nutritivo da mistura de milho com leite, ficou demonstrado de maneira categrica o fato surpreendente de que os ratos alimentados com esta mistura apresentavam um desenvolvimento superior ao dos animais que
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dispunham de uma dieta cuja fonte de protena era exclusivamente o leite. Demonstraram, assim, estas experincias, que as protenas do milho e do leite em conjunto possuem um valor biolgico superior ao do prprio leite. 35 E no s com milho que se consome leite em abundncia no serto do Nordeste, mas de muitas outras formas. Misturado com caf de manhzinha, ou como coalhada fresca ou escorrida, ou sob a forma de derivados, manteiga ou queijo. Principalmente manteiga fresca e requeijo, tipo de queijo gordo de que os sertanejos fazem largo uso, cru ou assado. Em nenhuma outra zona do pas, mesmo no sul e no centro-oeste, onde os rebanhos de gado so bem mais abundantes, o leite constitui um alimento to constante da dieta, entrando no preparo de tantas [pg. 196] combinaes alimentares, como no Nordeste pastoril. que nas zonas de criao do Sul o leite, produzido em muito maior escala, constitui um produto comercial para o abastecimento das cidades populosas, ligadas s reas de criao por fceis meios de transporte. So de Castro Barreto, nos seus Estudos Brasileiros de Populao, as seguintes palavras: Fomos h algum tempo, numa das nossas excurses de estudo, a uma cidade do Estado de Minas, centro pecurio de grande produo de laticnios. Ali pudemos verificar um progresso animador na criao de gado leiteiro, de cavalos, de sunos magnficos. Em contraste com essa riqueza do rebanho e com as cifras de produo do leite, queijo e da banha, encontramos uma populao lamentavelmente carenciada e anmica, parasitada pelo ancilstomo. Os prprios tratadores, nas estncias da empresa, eram homens que, fornecendo aos animais raes tecnicamente certas e ricas, apresentavam um nvel de nutrio miservel. Viemos a saber que a infncia de toda essa regio privilegiada no toma leite nem se beneficia de outros laticnios porque toda a produo vem para o Rio de Janeiro; o leite desnatado e o soro, considerados subprodutos das fbricas de manteiga e queijo, so fornecidos aos porcos, para a engorda.36 J no Nordeste, a quase inexistncia de comunicaes prticas com as grandes cidades do litoral afastou sempre o leite sertanejo dos mercados urbanos. O leite, a manteiga e o queijo do serto ficaram sendo at hoje produtos de consumo local, elementos integrantes da
transcritas no livro de A. Cougnet. Il Ventre del Popoli. 1905. 35 Josu de Castro e Emitia Pechnik, Valor Nutritivo de la Mescla del Maiz con la Leche, in Archivos Venezolanos de Nutricin, vol. II, n. 2, 1951.
dieta do sertanejo. Das suas refeies matinais, de angu e cuscuz com leite; dos seus pratos de flego carne com abbora e leite e at de suas sobremesas, como a sua clebre umbuzada, preparada com leite e umbus bem maduros numa combinao de excepcional valor nutritivo, extraordinariamente rica em protenas e vitaminas, lembrando a associao admirvel de leite e tmaras de que fazem uso os nmades do deserto saariano, os quais se apresentam, por conta de sua dieta, com uma compleio superior a de todos os povos da Europa.37 Realizando o seu primeiro inqurito alimentar em Salgueiro durante uma quadra de seca, Orlando Parahim encontrou assim [pg. 197] mesmo um consumo mdio de leite, per capita, do 90g dirias, consumo que se lhe afigurou baixssimo para o serto. Apressou-se, ento, o investigador em explicar: Na quadra invernosa, devido abundncia de pasto para o gado, a produo leiteira aumenta consideravelmente e o preo apenas de 300 ris por litro. Nas estiagens demoradas d-se o caso inverso e o leite atinge o duplo do preo habitual. Escasseia e at desaparece, porque o gado retirado para stios mais favorveis criao. Atravessamos no momento um destes perodos de seca e o consumo do precioso alimento se nos afigurou baixssimo. Ademais, bom acentuar, tratava-se de um inqurito de populao urbana. Nas fazendas onde h o abastecimento prprio o consumo sempre mais elevado. Alm do leite, tem o sertanejo uma fonte liberal de protenas na carne. Carne de boi, carne de carneiro e, principalmente, carne de cabrito, que constitui o grosso do consumo da regio. Abatendo o seu gado para alimentar-se, o sertanejo come, no dia da matana, as vsceras e partes mais perecveis em famosas buchadas38 e paneladas, reservando para outros dias a carne dos msculos, fresca ou seca como charque, ou secada ao sol e ao vento. Este ltimo processo de preparao constitui o mtodo mais usual no serto para conservao da carne: o preparo da carne-de-sol ou de vento. Da carne secada ao sol no mais primitivo dos processos de desidratao, o qual s d resultado satisfatrio em climas de pouca umidade atmosfrica. Processo importado do reino e tambm aprendido dos habitantes do
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Castro Barreto, Estudos Brasileiros de Populao, 1944. McCollum e Simmonds, The Newer Knowledge of Nutrition. 1929. 38 hbito comerem de vez em quando as buchadas e paneladas servidas no momento em que se renem as famlias para alguma comemorao festiva. Costa Couto, Panorama da Alimentao Brasileira, Cultura Mdica, n. 5-6, 1943.
deserto.39 Esta carne-de-sol e o charque so usados de vrias maneiras, sendo a mais comum pelos vaqueiros nas suas lidas, sob a forma de paoca, ou seja, de carne moda, pilada e misturada com a farinha de mandioca torrada e temperada. Constitui este prato um dos poucos traos da influncia nitidamente indgena na cozinha do matuto. Se o ndio contribuiu com uma boa [pg. 198] dose de sangue para a formao da raa sertaneja, pouco trouxe como contribuio aos hbitos alimentares desta zona. Embora a quantidade de carne consumida pelo vaqueiro do Nordeste no seja muito grande, estando longe de alcanar a liberdade e muitas vezes o exagero do uso dos vaqueiros dos pampas do gacho o seu consumo , contudo, generalizado por todas as populaes do serto. No inqurito de Orlando Parahim ficou verificado que na zona de Salgueiro 90% das famlias acusavam um consumo de carne de 62g dirias per capita, cota que, na verdade, baixa e que leva Parahim a julgar o consumo de carne no serto insuficiente. No concordamos, neste ponto, com o ilustre pesquisador, lembrandolhe que os dados que ele apresenta, baseados no movimento do matadouro da cidade, para concluir que a carne tambm parcamente consumida pelo sertanejo, so pouco significativos numa zona em que a maior parte da populao, sendo mais rural do que urbana, cria e abate o seu prprio gado para abastecer-se de carne. Que o sertanejo foi sempre um comedor de carne, temos provas em inmeros documentos regionais de diferentes pocas, servindo de bom exemplo a seguinte referncia do autor do Desagravo do Brasil: De gado vacum h tanta abundncia em Pernambuco que pobres e ricos, brancos e pretos, se sustentam das suas carnes, que so as mais saborosas do pas. Este consumo de carne, numa rea onde o milho constitui a alimentao bsica, verdadeiramente excepcional e faz do Nordeste uma zona comparativamente privilegiada. J os ovos constituem um alimento raro, a criao de galinha sendo at hoje pouco desenvolvida na regio. Alm do milho, do leite e da carne, fazem habitualmente parte da alimentao do sertanejo o feijo, a farinha, a batata-doce, o inhame, a rapadura e o caf. O feijo, embora em menor proporo do que o milho, largamente usado em suas diversas variedades de arrancar, de rama o de corda, principalmente do tipo
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Robertoberto Llamas, do Instituto de Biologia do Mxico, Estudio del Frijol a carne de vaca
macassar, reforando o total protico da rao, embora com protena incompleta.40 A batata-doce colabora com o milho [pg. 199] no perfazer o total energtico, substituindo o po, de uso muito limitado na regio sertaneja. 41 Constituem falha visvel da alimentao do sertanejo a pobreza e irregularidade em que as frutas participam do seu regime habitual. J vimos como a flora nativa exgua em frutas, e o sertanejo, sob a ameaa das secas peridicas, no se tem animado a desenvolver a pomicultura. No que o solo e o clima sejam obstculos realmente intransponveis a esse gnero de agricultura. Mas porque o risco de perder o trabalho maior neste tipo de plantao, que exige largos anos para a colheita, do que nos tipos de cultura de colheita rpida do milho, da mandioca e do feijo. Provando que o meio ecolgico permite a fruticultura com rendimentos compensadores, esto os resultados obtidos pelas estaes agrcolas experimentais da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. As tentativas de fruticultura realizadas nas terras irrigadas pelos grandes audes tm surpreendido aos prprios tcnicos encarregados deste servio. O agrnomo Jos Augusto Trindade, que chefiou este servio, escrevera em 1937 as seguintes palavras: A fruticultura est fadada a constituir um dos recursos de explorao mais rendosos das bacias de irrigao dos audes. Mas, alm de riqueza, ela tem no serto uma alta finalidade humana. As frutas e as hortalias em toda parte constituem alimento indispensvel sade e eficincia do trabalho humano, mas no serto tal exigncia sobe de grau devido ao clima clido e alimentao concentrada, pobre em vitaminas e minerais. O sertanejo grande apreciador de frutas. As serras encravadas nas caatingas ridas, dispondo de melhores condies de solo e de clima so, com a regio dadivosa do litoral, os centros fornecedores de frutas no serto. Mas em regra as laranjas, as mangas e as bananas que tais zonas mandam s feiras sertanejas so caras e de m qualidade. Do prprio serto, das terras umedecidas pelos audes particulares, s se
secada ao sol, chamada de tasajo. La Alimentacin Espaola, 1934. 40 Sobre o valor nutritivoda protena do feijo a fascolina consulte-se o interessante trabalho experimental de Juan Rocca e Roberto Lamas, do Instituto de Biologia do Mxico, Estudio del Frijol como Alimento, publicado nos Arquivos. 41 Em todas as propriedades agrcolas, a batata substitui o po em vista deste no ser fabricado nas mesmas dado o preo excessivo do trigo. Neves, Carlos Alves das. A Batateira Doce e Sua Cultura no Serto e nas Bacias de Irrigao dos Audes do Nordeste, publicado no Boletim da I.F.O.C.S., vol. XVI, n. 2, 1941.
encontram bananas. Estas, sim, so de um delicioso sabor e [pg. 200] polpa finssima. Sua produo, entretanto, muito reduzida. De sorte que o estmulo da pomicultura nas reas irrigveis tem uma finalidade social de alta monta: tornar acessvel s populaes sertanejas um alimento saboroso e dotado de tantas propriedades higinicas. Penso, entretanto, que a produo de frutas nas bacias de irrigao no deve apenas visar o abastecimento das feiras sertanejas. No desarrazoado prever que as laranjas do serto, graas qualidade finssima que os nossos ensaios entremostram, conquistem os mercados das capitais e das cidades principais do Nordeste. Que dizer, ento, do futuro que se esboa produo de tmaras nas terras irrigveis? Capacitada das possibilidades econmicas que a pomicultura encontra nas bacias de irrigao, a Comisso dedicou-lhe muita ateno desde o incio de sua atividade. Existem em estudo de adaptao, nos diversos postos agrcolas, 110 variedades frutcolas.42 Das 110 variedades, acrescenta o tcnico que muitas se tm evidenciado perfeitamente adaptveis s condies locais, produzindo com proveitoso rendimento, destacando-se as frutas ctricas a laranja e o grape-fruit o mamo, o figo, a pinha, a goiaba e, principalmente, a tmara, 43 que reencontra no clima sertanejo como que seu prprio clima de origem. Esta planta dos osis africanos que exige, para bem frutificar, viver com os ps dentro da gua e a cabea ao sol ardente, produz com alto rendimento quando plantada nos vales irrigados dos sertes nordestinos. E no s nos terrenos frteis do aluvio, mas tambm nas terras sfaras, nos tabuleiros arenticos, desde que no lhe sejam negados gua e outros cuidados secundrios a seu cultivo. Infelizmente, estes ensaios de fruticultura esto ainda limitados escala experimental e at hoje no serto do Nordeste somente existe produo permanente de cereais, verduras e frutas junto aos audes e sendo esta produo ainda pequena, exclusivamente as populaes destes ncleos so beneficiadas, conforme afirma outro tcnico da Inspetoria das Secas, Jos Guimares Duque. [pg. 201] O socilogo Antnio Carneiro Leo, viajando pelos sertes da Bahia e Pernambuco, impressionou-se com a pobreza da dieta em verduras e frutas, em
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Trindade. Jos Augusto. Os Servios Agrcolas da Inspetoria de Secas. Boletim da I.F.O.C.S.. vol. XVII. n. I. 1937. 43 Sobre os resultados do cultivo da tamareira (Phoenix dactylifera) no Nordeste, consulte-se
contraste com a relativa riqueza de carnes a que j nos referimos. As refeies que nos ofereciam, ricas em carne boi, porco, carneiro, cabrito , no continham uma s verdura nem um s fruto nacional ou estrangeiro. No refere o ilustre socilogo a poca da sua viagem atravs das terras sertanejas, mas pelo quadro alimentar que apresenta devia ser poca de seca.44 Sem cultivo de plantas frutferas, resta ao sertanejo o recurso bem limitado das frutas silvestres do umbu, do piqui, do quib, da cajarana e da quixaba. A escassez de boas frutas criou, por mecanismo que j explicamos, tremendos tabus contra os mesmos, e assim se constituiu um novo obstculo ao consumo liberal de frutas por parte do sertanejo. Frutas s de manh, de tarde d sezes e maleita. De noite chega a matar. O consumo de verduras tambm limitado abbora (Cucurbita maxima) ao maxixe (Cucumis anguria) e s cebolinhas e coentros usados como tempero.
7. Caracterizada em seus principais componentes a alimentao do sertanejo e conhecida a sua relativa abundncia em certos alimentos protetores, como o leite e a carne, bem assim a sua pobreza evidente em outros, como as frutas e as verduras, passaremos agora a analisar este regime como um todo unitrio, que abastece o homem do serto nos princpios nutritivos de que ele necessita para sobreviver em sua luta incessante contra as hostilidades de uma natureza spera sobrepondo-se, com a temeridade e herosmo trazidos do bero, aos obstculos que de contnuo tentam embargar-lhe as iniciativas audazes. (O. Parahim.) A verdade fcil de se aprender que esta alimentao to sbria e to enxuta, de to espartana sobriedade, contrastando violentamente, na simplicidade de seus processos culinrios, com a rebuscada cozinha do Nordeste aucareiro, sempre to adocicada ou lambuzada de azeite, representa um trao de alta compreenso do colono portugus e do mameluco seu descendente, em face das contingncias especiais do meio geogrfico. [pg. 202] Colono que, sempre que a cobia exagerada no lhe vinha turvar os propsitos de vida, se apresentava com uma aguda capacidade de compreender e de contornar as exigncias mais tenazes e as
Paulo de Brito Guerra. A Tamareira no Nordeste, Boletim da I.F.O.C.S., vol. XI. n. 2. 1939. 44 Leo, A. Carneiro, A Sociedade Rural: Seus Problemas e Sua Educao, Rio de Janeiro, 1939.
necessidades mais prementes sua boa adaptao ambiente. Sua sobriedade alimentar, no caso, longe de significar misria e decadncia, traduz uma sbia aplicao de economia biolgica. As caractersticas da alimentao sertaneja, um tanto magra e despida de qualquer excesso de tempero, harmonizam-se admiravelmente com os traos naturais da terra tambm magra dos sertes nordestinos. Serto de areia seca rangendo debaixo dos ps. Serto de paisagens duras doendo nos olhos. Os mandacarus. Os bois e os cavalos angulosos. As sombras como umas almas do outro mundo com medo de sol, na imagem evocativa de Gilberto Freyre.45 Por outro lado, o seu preparo simples, desnaturalizando ao mnimo os alimentos, criando combinaes de admirvel primitivismo, como a da abbora com leite, do queijo com rapadura, da batata-doce com caf, representa um trao quase que obrigatrio das cozinhas de todos os povos nmades ou seminmades, 46 condenados a reduzir os seus utenslios de cozinha ao pouco que se possa enrolar dentro de uma tenda ou de uma rede ou da matulagem do retirante, do tangedor de gado, do bandoleiro ou do cangaceiro itinerante. Mas no ser que essa alimentao, fazendo-se to excessivamente sbria a ponto de constar apenas de trs refeies, das quais s uma pesada, 47 no acaba por se tornar insuficiente? Incapaz de subscrever as necessidades energticas do vaqueiro submetido climtica e profissionalmente a certos rigores excessivos? Na verdade, o problema merece ser bem meditado, bem analisado para se chegar a uma concluso rigorosamente cientfica. [pg. 203] Tanto pela influncia do clima semirido, a que est submetido, como pelo laborioso gnero de vida que exerce, necessita o sertanejo retirar de sua dieta um potencial energtico mais alto do que o suficiente para o habitante de qualquer outra rea equatrio-tropical. A ao do clima neste particular se faz sentir pelas caractersticas estimulantes do ar seco, pela baixa taxa de umidade relativa que condiciona uma perda fcil de calor e,
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Freyre, Gilberto, Nordeste, 1937. Acerca dos hbitos alimentares dos povos que se mantm neste gnero de vida rabes, labateus, maronitas, etopes e tuaregues consulte-se a obra rica de preciosas informaes de A. Cougnet, ll Ventre del Popoli, 1905. 47 No Nordeste pastoril o sertanejo costuma fazer uma primeira refeio matinal antes de ir para o trabalho, a segunda refeio constituindo a mais abundante, com suas carnes, feijo e amilceos, sendo a terceira, noitinha, uma simples ceia de caf, leite e batata-doce ou aipim com manteiga.
conseqentemente, um estmulo s queimas orgnicas que regulam a intensidade do metabolismo. Os resultados dos trabalhos experimentais que vimos realizando h 25 anos nos permitiram chegar a concluses, hoje universalmente confirmadas e aceitas, de que o metabolismo basal varia em funo de certas caractersticas meteorolgicas que compem os fcies climticos, principalmente em funo da umidade relativa do ar e da temperatura. Assim se explica o fato, tambm por ns evidenciado, de que nos climas quentes e secos o metabolismo seja sempre mais alto do que nos climas quentes e midos. Neste metabolismo basal mais elevado, nesta maior atividade energtica do sertanejo, reside em parte o mistrio de sua inquieta atividade, to diferente da madorra amazonense e do sedentarismo um tanto cansado da gente do acar. O cearense, exemplar tpico de nmade brasileiro, sempre cheio de f e de iniciativa, de energia e de inquietao criadora, , como o rabe, o saariano, enfim, como todo habitante do deserto tropical, um hipermetablico, gastador de muita energia. A esta parcela de energia de fundo correspondente s despesas de metabolismo basal48 faz-se necessrio juntar o suficiente [pg. 204] s atividades em
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Veja-se sobre o assunto o nosso trabalho, Basal Metabolism in Tropical Climates, in A. Med. Legal, n. 16, 1938, e o nosso livro, Alimentacin en los Trpicos, Fondo de Cultura econmica, Mxico, 1946. Nestas publicaes estudamos detalhadamente o mecanismo das variaes metablicas nos climas tropicais e os fatores que as condicionam. As experincias que realizamos na rea dos sertes nordestinos e que ali vo referidas mostram o metabolismo basal do sertanejo, cerca de 11% mais alto que o do habitante da mata e do litoral. Para verificao da opinio, hoje universal, confirmando nossas teorias, consultem-se as seguintes obras de fisilogos e nutricionistas estrangeiros: Professor Mrio Camis, Metabolismo Basale e Alimentazione in Somalia, Roma, 1936, no qual este fisilogo afirma ter encontrado entre os nativos desta regio quente e seca da frica Oriental um metabolismo basal que em 92% dos casos se mostrou mais alto do que o standard do metabolismo de base nos climas temperados, sendo o aumento mdio de 27,80%; Prof. Sabato Visco, Alimentation Dans les Colonies Itallennes, no qual so relatados os resultados dos estudos do Prof. G. Gena sobre o metabolismo dos rabes que habitam o deserto da Lbia, de tipo extremamente quente e extremamente seco, apresentando-se este metabolismo superior em cerca de 10% ao Standard dos europeus e norte-americanos; Prof. A. Noyons, La Signification Gn-rale des Recherches Comparatives du Metabolisme de Base (Convnio Volta), Roma, 1937. Este saudoso fisiologista holands relata neste trabalho as suas experincias comprovadoras da decisiva influncia da umidade do ar sobre as variaes do metabolismo de base. Das confirmaes realizadas entre ns a este ponto de vista destacamos os trabalhos experimentais de F. Moura Campos, Metabolismo Basal nos Climas Tropicais e Subtropicais, in A Folha Mdica, 1939 e Influncia de Temperatura, Grau de Umidade e Nutrio sobre o Metabolismo Basal de Ratos Brancos, Arquivo da Faculdade de Medicina da Univer-sidade de S. Paulo, XVI, tomo I, 1941. Foi diante desta comprovao, vinda de vrias partes do mundo, ao nosso ponto de vista, que o eminente fisilogo italiano, Prof. Filippo Bottazzi, apresentando ao Convnio Volta de 1938, convocado pela Real Academia de Itlia para tratar do tema frica, um estudo de atualizao do problema sob o titulo II Metabolismo di Base nei Climi
geral bem rduas do vaqueiro levando-se em conta sua vida mais agitada fisicamente, obrigado a contnuos exerccios de equitao, pois o cavalo seu companheiro inseparvel, no dorso do qual percorre as dezenas de lguas que distanciam as cidades, vilas e fazendas do serto. Para tais despesas energticas compreende-se logo que as 2.400 calorias que calculamos serem suficientes para o homem da Amaznia mostrar-se-o deficitrias para o sertanejo nordestino. Com um metabolismo de base, conforme as determinaes que efetuamos em 1935, cerca de 36,2 calorias, quase igual, portanto, ao dos habitantes dos climas frios e temperados, e com um gasto de trabalho do tipo intensivo, no ser exagero calcular-se entre 2.600 e 2.880 calorias as despesas energticas [pg. 205] dirias do vaqueiro do Nordeste. Clculo que coincide com o teor mdio que o seu regime alimentar encerra (2.865 calorias, segundo o inqurito levado a efeito por Orlando Parahim).
Tropical Africani, Roma, 1938 trabalho traduzido e publicado no Brasil na Resenha ClinicoCientfica, n. 9, setembro, 1941 escreveu as seguintes palavras: Disse eu que os fatores capazes de produzir variaes mais ou menos importantes no metabolismo basal so mltiplos: h fatores externos e internos. Dentre os primeiros, aquele a que se atribui mais importncia a temperatura, ou, mais geralmente, o clima. A alta temperatura dominante nos pases tropicais baixa o metabolismo de base, atenuando os processos de oxidao dos tecidos e, portanto, diminuindo a produo de calor, porque o homem tem ento menos necessidade de regulao qumica para manter constante a temperatura do prprio corpo. Mas a temperatura no o nico fator a ser tomado em considerao nos climas tropicais. Camis reconhece que o clima dos trpicos algo muito complexo, que abrange fatores pouco conhecidos e no pode ser definido atendendo unicamente a dados geogrficos e termomtri-cos. Um desses fatores a umidade relativa; s recentemente que sua importncia foi posta em relevo por Moura Campos, Noyons e Josu de Castro. Na discusso que no Convnio Volta se seguiu leitura do Prof. G. Quagliarello sobre O metabolismo de base dos italianos, o Prof. Noyons recomendou que dorenavant lon tienne aussi compte du degr dhumidit relative et de la temprature qui exercent une influence sur le metabolisme. Jai t trs frapp ces derniers temps par le fait que la respiration cutane reprsente un facteur dont on doit aussi tenir compte, acrescentou o Prof. Noyons. A influncia da umidade relativa foi, porm, estudada de modo especial por Josu de Castro. Em 15 habitantes do Nordeste do Brasil, achou, em primeiro lugar, o metabolismo basal mais baixo nos climas tropicais que nos climas frios e 2 temperados; esse metabolismo basal seria em mdia 33,8 calorias por m e por hora, e, portanto, 15% inferior ao padro norte-americano de 39,7 calorias. Alm disso, pde ele constatar uma notvel diferena entre o metabolismo de base dos habitantes do Recife e o dos habitantes do Rio de Janeiro, o primeiro sendo de 34,6 e o segundo de 31,6 calorias. Ora, Josu de Castro julga que tal diferena possa ser explicada pela maior umidade relativa do Rio de Janeiro em relao ao Recife, no obstante ser a temperatura mdia do ar mais alta no Recife (25,5C) do que no Rio (22,7). Se a temperatura fosse o nico fator a influir sobre o metabolismo este deveria ser mais baixo no Recife do que no Rio de Janeiro, entretanto o contrrio que se d. Josu de Castro determinou tambm o metabolismo em duas cidades: Rio Branco e Nazar, no Estado de Pernambuco, nas quais a temperatura mdia a mesma (24,5), ao passo que a umidade relativa mdia menor na primeira cidade (68,3%) que na segunda (83,4%). Ora, o metabolismo basal encontrado foi de 36,2 calorias nos habitantes de Rio Branco e 32,7 calorias, isto , nitidamente inferior nos de Nazar. Foi assim posto decididamente em relevo um fator capaz de influir sobre o metabolismo de base do homem, o fator umidade relativa do ar, que parece ser at mais importante que a temperatura no
O seu regime alimentar, embora na aparncia pouco abundante, alcana alto potencial energtico, graas s doses liberais em que entram o milho, a batata-doce e a manteiga. bem verdade que nem sempre obtm estes ascticos vaqueiros um tal teor calrico em sua rao e mais raramente ainda dispem de um excesso de energia alimentar que se possa [pg. 206] acumular sob a forma de reserva, de depsito de gordura e de glicognio que seriam de inestimvel valor na poca difcil das vacas magras. esta mesma parcimnia calrica, sem margens a luxo, que faz do sertanejo um tipo magro e anguloso, de carnes enxutas, sem arredondamentos de tecidos adiposos e sem nenhuma predisposio ao artritismo, obesidade e ao diabete, doenas essas provocadas, muitas vezes, por excesso alimentar. No o do atleta de capa de revista, nem de heri de fita de cinema, atraindo os olhares femininos com suas formas apolneas, mas o do atleta fisiolgico, com o seu sistema neuro-muscular equilibrado, com bastante fora e agilidade e com excepcional resistncia, nos momentos oportunos. Este tipo constitucional do sertanejo caracterstico da maioria dos povos pastores, todos de vida frugal e de grande atividade fsica. Veja-se a descrio que nos faz Bulnes49 do tipo do pastor rabe: O rabe rude como a areia, ensimesmado como o deserto, seco e esbelto como a palmeira, amargo e nobre como seu caf, e quase desprovido de gordura por viver submetido a dois fogos: o do sol e o do solo. Chega-se, assim, concluso de que vive o sertanejo base de um regime que se apresenta quantitativamente suficiente para suas necessidades bsicas, sem sobras, sem margem para excessos. Se isto no o ideal, constitui, contudo, nas contingncias especiais do meio, uma circunstncia mais favorvel do que se fosse este um regime excessivo em teor energtico custa de hidrocarbonados que no se fizessem acompanhar das vitaminas necessrias sua perfeita metabolizao. A frugalidade se ajusta sabiamente dentro do equilbrio alimentar, sendo que os excessos so muitas vezes mais prejudiciais do que as prprias deficincias.
condicionar a diminuio, termina o Prof. Bottazzi. 49 Bulnes, Francisco, El Porvenir de las Naciones Hispano-america-nas, Mxico.
teor de protenas relativamente alto e subscrito em boa parte por vrias espcies de protenas completas: da carne, do leite e do queijo. O teor protico liberal associado a boas doses de vitaminas fornecidas ao sertanejo pelo leite e pela manteiga constitui um dos fatores do seu crescimento [pg. 207] proporcional, da boa estatura da populao e da polarizao do bitipo numa tendncia acentuada gongitipia, ao aparecimento dos tipos longilneos, em contraste marcante com a tendncia das populaes do brejo para os tipos brevilneos. 50 No queremos dizer com isto que seja a alimentao o fator nico desta seletiva diferenciao dos longetipos no serto nordestino. Outros fatores trabalham no mesmo sentido, sobressaindo entre eles os de base hereditria: a influncia ancestral dos colonizadores da regio, que, na qualidade de desbravadores e pioneiros, devem ter sido, em acentuada maioria, desse tipo constitucional a cujo painel morfolgico se associa quase sempre a psicologia do aventureiro. Foi o longilneo astnico que colonizou o serto, e a ele coube a tarefa ingente de dilatar e integrar o territrio nacional. O brevilneo parou na zona agrria para trabalhar; o longilneo aventureiro e idealista varou o serto, concluem lvaro Ferraz e Andrade Lima Jnior, em seu bem planejado ensaio sobre a diferenciao do bitipo do Nordeste. a alimentao bem servida de protenas que d ao sertanejo essa resistncia um tanto impressionante para os habitantes de outras zonas do pas. 51 Na carne de bode, no leite e no queijo do serto esto em boa parte as justificativas biolgicas que respaldam a hoje famosa frase de Euclides da Cunha, que o sertanejo , antes de tudo, um forte. Realmente, s um povo forte pode exibir esta fora, esta resistncia surpreendente s fadigas e s vicissitudes mais exacerbadoras, esta disposio incansvel ao trabalho, esta constituio frrea que o torna sobranceiro s intempries, aos reveses, s endemias, e o leva com freqncia a cometimentos titnicos.52 [pg. 208]
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Vede sobre a distribuio dos bitipos do Nordeste o trabalho de lvaro Ferraz e Andrade Lima Jnior A Morfologia do Homem do Nordeste, 1939. Sobre a possvel correlao entre o regime alimentar e o bitipo, consulte-se o trabalho de Pende Alimentation et Biotype Habituel, e o de Silvio de Candia Les Aliments et le Systme Regulateur EndocrinoSympathique, in Nutrition, Tomo V, n. 3, Paris, 1935. Consulte-se tambm o interessante artigo de David Kaz, La Faim et lApptit en Psychologie Gnrale et Biotypologie, in Biotypologie, Paris, n. 4, dezembro de 1938. 51 Sobre o teor de protena e a resistncia fsica dos grupos humanos consulte-se o livro de Ruy Coutinho, Valor Social da Alimentao. 52 Menezes, Djacir, O Outro Nordeste, 1937.
O equilbrio protico alimentar deve entrar como importante fator na maior resistncia que manifesta o sertanejo em face das doenas infectuosas, principalmente em face da tuberculose, que a se apresenta muito menos destrutiva do que nas zonas da mata e do litoral. Analisando a proporo em que entram os outros alimentos simples na rao sertaneja, v-se que no quebram o seu equilbrio harmnico. No h exagero de hidrocarbonados, como na zona da mata, com sua alimentao excessiva de feculentos e de aucarados. A dieta sertaneja dieta de poucas, de raras sobremesas. No to gorda de leo como a da cozinha baiana, contendo, no entanto, o suficiente de gordura para fornecer as vitaminas lipossolveis indispensveis. uma dieta de poupana, de verdadeira defesa contra as carncias relativas em vitaminas B1, sempre latentes. A pouca abundncia de frutas e a quase ausncia de verduras na alimentao do sertanejo leva, de incio, o estudioso de tais problemas a concluir que devemos estar diante de uma rea de grandes carncias minerais e vitamnicas. que os livros afirmam serem esses dois grupos de alimentos protetores as fontes naturais mais abundantes daqueles princpios alimentares. A realidade sertaneja desconcerta, de certo modo, estes pontos de vista doutrinrios. O sertanejo, quase sem comer frutas nem verduras, consegue escapar por outros meios aos malefcios das avitaminoses e das carncias minerais patentes. Nos tempos normais dificilmente topar o mdico, mesmo o especialista arguto, com estados de hemeralopia, de beribri, de pelagra ou de escorbuto, cuja existncia o seu raciocnio puramente terico faria supor ser freqente. No. Estes casos s surgem, e ento em trgica abundncia, nos perodos calamitosos da seca. Nos bons tempos em que a gua rega o solo sertanejo, no se apresentam estes quadros de misria- orgnica ligados s carncias especficas. Este estado de coisas no encerra nenhum mistrio nem segredo que contrarie os conceitos hoje bem assentados da etiopatogenia das carncias alimentares. Para explicar o fenmeno em suas expresses locais no vemos mesmo nenhuma necessidade de se apelar para hipteses ousadas, como aquela de O. Parahim, de que seja a riqueza da luz solar do Nordeste capaz de provocar snteses inditas de vitaminas, como a da vitamina C, salvando o organismo de [pg. 209] sua fome especfica. No vemos necessidade de hiptese desta categoria, insistimos,
porque h outras explicaes mais naturais. O que ocorre que muitos outros alimentos, alm das verduras e das frutas conhecidas, so capazes de abastecer o organismo tanto de sais minerais como de vitaminas. E o sertanejo seja por simples acaso, seja por sabedoria instintiva consome estas espcies de alimentos em combinaes apropriadas. O matuto no apresenta carncia clcica por consumir quantidades liberais de leite e de queijo que so as mais ricas fontes naturais desse princpio mineral. Tambm as guas sertanejas so, em geral, de alto grau de dureza, guas calcrias que ajudam no abastecimento em clcio. Escapa s anemias ferroprivas, que assolam os brejeiros, comendo carne fresca e seca, feijo, favas, milho,53 e, principalmente, a rapadura, que muito superior ao acar por seu contedo tanto em ferro como em outros princpios minerais. Apesar de sofrer grande espoliao em cloreto de sdio, pela sudao abundante que o clima condiciona, o sertanejo equilibra o seu metabolismo deste outro mineral com a sua alimentao rica de sal, o qual constitui o tempero por excelncia do sertanejo. A descoberta de boas reservas de sal no Nordeste, constituindo importante fator de incremento da pecuria, permitiu tambm o desenvolvimento no sertanejo deste gosto acentuado pelos sabores salgados, que venceu e dominou inteiramente o outro gosto, o dos sabores doces. O sertanejo come a batata-doce assada com bastante sal, mas quase nunca a utiliza para fazer doce o doce de batata de tanta fama e atrao ao paladar do pessoal da bagaceira dos engenhos e dos moradores das cidades do litoral nordestino. Este sabor salgado da alimentao do sertanejo confirma a nossa indicao anterior, da quase nula influncia indgena na cozinha regional, dada a pouca inclinao do nativo, ao consumo do sal, em contraste patente com a tendncia do excesso de sal da cozinha sertaneja. Quanto ao teor de iodo da gua e do solo nordestino que so as mais ricas fontes naturais desse principio mineral nada se conhece em base cientfica; apenas se sabe que, apesar de sua distncia do litoral, o serto do Nordeste no constitui [pg. 210] uma rea de alta incidncia do bcio endmico, o que faz supor um abastecimento pelo menos suficiente deste metalide. O mistrio da origem das vitaminas tambm se dissipa quando se busca com
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Sobre o contedo de ferro nos alimentos brasileiros consulte-se o trabalho de Paula Santos, Tito Cavalcanti e F. Moura Campos Ferro em Nossos Alimentos. O Hospital, 1938, XIII, n. 6.
mais detalhe analisar o teor destes vrios princpios em certos alimentos de uso habitual no serto. Assim se v que a vitamina A existe em relativa abundncia em vrios componentes da dieta normal do vaqueiro: o leite e a manteiga so suas fontes centrais; o milho amarelo e a batata-doce constituindo elementos subsidirios de abastecimento em betacaroteno. Sendo que o milho verde ainda dispe de maiores cotas do que o seco, e bom lembrar que o sertanejo o come desta forma nas pocas de colheita, seja assado ou cozido ou fazendo parte da matria-prima de suas pamonhas e canjicas. Tambm algumas frutas silvestres, como o piqui, constituem fontes abundantes desta vitamina.54 De vitaminas do complexo B no h dficit patente no serto nordestino. O beribri, forma clnica da carncia de vitamina B1, no se apresenta nesta rea alimentar nem mesmo nas pocas das agruras da seca, quando as outras avitaminoses surgem em ttrico cortejo. verdade que registram os cronistas o seu aparecimento excepcional na seca de setenta e sete (1877), nesse ano de negro destaque no calendrio das calamidades do serto. Mas a descrio dada aos casos clnicos to imprecisa que mais provvel que se trate de outras carncias alimentares. Rodolfo Tefilo, referindo-se quele surto de beribri to atpico, diz que os sintomas patognomnicos falhavam completamente.55 Noutros perodos de secas posteriores no se tm registrado surtos epidmicos de beribri. Nos registros minuciosos que fez Amadeu Fialho 56 das carncias alimentares agudas ocorridas entre os flagelados de 1933, no encontramos referncia a casos de beribri. A ausncia do mal nesta rea, mesmo nas pocas de mais dura crise alimentar, refora nosso ponto de vista j anteriormente manifestado de que, mais do que [pg. 211] uma doena de carncia propriamente dita, o beribri um desequilbrio nutritivo provocado pela desproporo entre o teor de glicdios e de vitamina B, desequilbrio que nunca ocorre na vida incerta do nordestino. J as formas frustas de avitaminose B1 possvel que existam, como existem em quaisquer outras reas alimentares, mesmo as mais favorecidas do mundo. Tambm a pelagra, praga to ligada s reas alimentares do milho, que, como
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Campos, F. Moura, Guerra, M., e Junqueira, N., Vitaminas A e B em leo de Piqui, Livro Jubilar do Prof. Cantdio Moura Campos, 1942. 55 Tefilo, Rodolfo, Histria da Seca no Cear (1877 a 1880), 1883. 56 Fialho, Amadeu, Relatrio sobre a Seca de 1932. Em relatrio da Comisso Mdica de Assistncia e Profilaxia aos Flagelados do Nordeste, Rio, 1936.
j vimos, durante muito tempo se pensou tratar-se de uma intoxicao crnica produzida pelas toxinas deste cereal, constitui doena excepcional no serto. Aparece quando muito em casos espordicos e isto mesmo em proporo bem menos abundante do que na zona da mata, onde a busca bem orientada dos especialistas vem revelando ser bem alta a incidncia do mal. que na zona do brejo se associa carncia alimentar um fator complementar muito importante na etiopatogenia do mal, o alcoolismo crnico, que de excepcional raridade no serto, sendo o sertanejo o tipo de maior sobriedade de todo o Brasil. As arriboflavinoses, caracterizadas por feias boqueiras que assolam os meninos dos engenhos, s surgem no serto na poca das secas, entre os filhos dos retirantes. Tanto esta como as outras formas de carncia em vitamina B2 so raridades clnicas entre os sertanejos com sua economia organizada, com seu gado no pasto, e com suas vazantes reverdecendo de plantaes. J na seca a histria outra, e l chegaremos. O problema da vitamina C no serto apresenta tambm aspecto de extrema curiosidade para o estudioso desta questo. A quase que ausncia de frutas ctricas nesta zona faria logo pensar em ondas pestilentas de escorbuto grassando com furor nesta rea geogrfica e, no entanto, o mal s se manifesta em escala aprecivel nas agruras da seca. Nos tempos normais to raro quanto nas zonas de bom consumo de laranja e de limo. que existem no serto, nesta estranha e desconhecida dieta do sertanejo, fontes ignoradas de aprecivel riqueza em cido ascrbico. Esta riqueza comea pelo leite que se revelou no serto s anlises de O. Parahim 57 com aprecivel teor de [pg. 212] vitamina C. Principalmente o leite de cabra que o sertanejo tanto consome e que se mostrou quase duas vezes mais rico nesta vitamina do que o leite de vaca. claro que o teor em cido ascrbico varia largamente sob a ao de mltiplos fatores, principalmente do tipo de pastagem de que o gado se alimenta. Nas pocas de chuvas, quando o pasto est verde e representado pelas vrias espcies de gramneas, o teor vitamnico do leite alcana o seu mximo, porm nas pocas secas, em que o gado se sustenta com cactceas e bromeliceas, o teor baixa at quase reduzir-se a zero. que, enquanto as gramneas so quase todas
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So os seguintes os teores mdios de cido ascrbico encontrados no serto de Pernambuco: leite de vaca. 19,3 miligramas por litro; leite de cabra. 36.1 miligramas por litro (Orlando Parahim, A Vitamina C na Alimentao Sertaneja, 1941).
forragens muito ricas em vitamina C, as cactceas e as bromeliceas apresentam um contedo insignificante deste princpio regulador. Enquanto o capim de planta, o capim jaragu e o capim alpiste contm, respectivamente, as doses de 116, 45 e 56 miligramas de cido ascrbico por cem, o teor da palmatria, do mandacaru e da macambira no vai alm de 3,9, 0,35 e 9,25, respectivamente. Com a chuva no falta, portanto, vitamina C nem para o gado nem para a gente do serto. E no s o leite que se mostra bem provido desta vitamina na rea sertaneja. O milho verde, o feijo verde e o jerimum ou abbora, que fazem parte habitualmente do menu do caatingueiro, contm cido ascrbico em doses que no esto longe das encontradas nas frutas ctricas. Mesmos alguns frutos silvestres, como o umbu, o caju e outros ainda mais desprezados, como o ju e o fruto do quib,58 se tm mostrado extraordinariamente ricos nesta vitamina. Diante desta abundncia de vitamina C no meio natural do serto, muito maior do que se presumia at bem pouco, j no h razo para se admirar que o escorbuto no se manifeste nas pocas de vida normal nesta regio. Orlando Parahim procurava explicar o fato aduzindo outras causas presumveis de tal fenmeno [pg. 213] biolgico. Julgamos interessante transcrever na ntegra as explicaes que este autor procura dar ao fato, porque algumas delas, embora estejam longe de sua comprovao cientfica, abrem, no entanto, um mundo de fecundas sugestes aos estudiosos da matria: Aqueles que demoram no serto e estudam atentamente os hbitos de vida, o regime de trabalho e o tipo do homem surpreendem-se em face da raridade do escorbuto, da extraordinria resistncia fsica e pasmosa energia do sertanejo, submetido habitualmente a uma dieta alimentar precria e desequilibrada, vez por outra restringida por estes perodos de fome que so as secas. Para explicar fatos que parecem, pelo menos primeira vista, paradoxais, ocorre-nos sugerir o seguinte: a) influncia favorvel da luz solar talvez ativando a sntese da vitamina C no organismo; b) maior contedo vitamnico nos alimentos naturais da luz solar intensa; c) presena de quantidades apreciveis de vitaminas C em alguns alimentos at agora no devidamente estudados (macaxeira, abbora ou jerimum, milho verde,
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O quib o fruto de uma cactcea do gnero opuntia, palmatria comum tanto no serto do Nordeste como em outras reas do continente americano. Nos Estados Unidos, a fruta conhecida pelo nome de pera espinhenta prickly pear e nos pases hispano-americanos pelo nome de tunas. Segundo as determinaes levadas a efeito por Orlando Parahim, esta fruta uma das mais ricas fontes vegetais em vitamina C, contendo em mdia 40 miligramas
feijo verde, goiabas e muitos frutos silvestres); d) possibilidades de aproveitamento mximo da vitamina desses e de outros alimentos pelo nosso organismo ; e) possvel adaptao do organismo dos sertanejos a regimes pobres; f) qui sejam as necessidades cotidianas de vitamina C menores na realidade do que as apresentadas teoricamente nos livros, uma vez que no h ainda acordo definitivo sobre o assunto, divergindo notavelmente as cifras propostas pelos diferentes autores; g) talvez esteja em causa a influncia sinrgica de outros fatores dietticos ainda no conhecidos; h) possivelmente, o mecanismo metablico, o aproveitamento e as relaes da vitamina C com os demais componentes alimentares so fenmenos mais complexos do que geralmente se admite. No h problema de vitamina D para o sertanejo. O cu lmpido, quase sempre despido de nuvens, e o ar seco, quase isento de umidade, permitem que o sol despeje como man divino muita vitamina D no serto. que, com poucos obstculos a vencer na atmosfera, os raios ultravioleta do espectro solar alcanam o solo sertanejo numa proporo tal que a luz do sol nesta zona capaz de curar o raquitismo experimental com a mesma impressionante rapidez com que o fazem as lmpadas de quartzo dos laboratrios. [pg. 214] A extraordinria riqueza em raios ultravioleta da luz solar nas regies ridas e semi-ridas um dos motivos condiciona-dores da grande salubridade dos seus climas. Tal riqueza capaz de esterilizar o meio ambiente de inmeros agentes patognicos. No Saara, conforme refere E. F. Gauthier, os grandes traumatismos se curam sem antisspticos de nenhuma espcie, com uma facilidade surpreendente. Conta este autor que o explorador Rohlfs, tendo sido deixado como morto na regio de Soura, se restabeleceu de suas feridas sem nenhum cuidado mdico, com a simples graas de Deus.59 No Nordeste brasileiro o clima salubre do serto atalhou o prprio clera-morbe em seu surto devastador.60 A sntese da vitamina D ao nvel da pele garante as necessidades do organismo neste princpio alimentar. Da a inexistncia do raquitismo tpico nesta rea. O que se chama erradamente de raquticos, de meninos raquticos no serto, so tipos enfezados, subnutridos, carenciados de outros muitos elementos nutritivos,
de cido ascrbico por 100 em 2. O ju contm 24 miligramas e o umbu cerca de 31 miligramas. 59 Gauthier, E. F., Le Sahara, 1928. 60 Almeida, Jos Amrico de, A Paraba e Seus Problemas, 1937.
e que no se puderam desenvolver normalmente, acossados pelo bombardeio das fomes muito seguidas, naquelas fases em que as secas se amiudam alm de certos limites. No so, na verdade, raquticos estes filhos da seca que aparecem como um signo de fatalidade em inmeras famlias sertanejas. So esfomeados e carenciados de toda espcie, menos raquticos, porque, quanto mais escasseiam as outras fontes de alimentos no Nordeste, mais se acende e se intensifica a grande fonte de vitamina D a luz do sol. E assim se completa a anlise da dieta do sertanejo em tempos normais. Dieta que, sem ser nenhuma maravilha de perfeio e abundncia, est, no entanto, muito acima do que era de esperar de um meio aparentemente to pobre e to pouco dadivoso. Dieta que pelo menos se mostra eficiente para evitar o aparecimento das carncias endmicas de toda natureza e para dar ao sertanejo esta fibra desadorada de lutador, capaz de enfrentar impvido o tremendo fatalismo climtico das secas. A verdade que, com chuvas regulares, com as guas transbordando das margens dos seus rios e fecundando as suas terras trabalhadas, o sertanejo vive mesmo uma poca de abundncia [pg. 215] e fartura. poca em geral curta, a deste serto florido e acolhedor, que a musa sertaneja canta num tom ingnuo:
Quando o inverno constante O serto terra santa; Quem vive da agricultura Tem muito tudo que planta. A fartura e boa safra, Todo pobre pinta manta.
D milho, feijo, Tem fruta, tem cana, Melo e banana Arroz, algodo. As melancias do Tantas como areia.
Jerimum campeia Na roa faz todo Vive o povo todo De barriga cheia. Com vinte dias de chuva Logo aps a vaquejada Chega a fartura do leite Manteiga, queijo e coalhada. No tempo da apartao, Isto que festa falada.
Chega a abundncia, Reina a alegria, Passa a carestia, Passa a circunstncia. Com exuberncia A lavoura duplica
E uma vida rica Passa o sertanejo; Carne gorda e queijo, Pamonha e canjica...61 [pg. 216]
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Versos do improvisador popular Antnio Batista Guedes e que fazem parte do seu poema A Vida Sertaneja, transcritos da obra Vaqueiros e Cantadores, de Luiz da Cmara Cascudo.
O esforo que o sertanejo desenvolve para obter os frutos desta fartura transitria titnico e como que o absorve inteiramente, no lhe deixando tempo nem energia para cuidar de outros aspectos fundamentais da vida. 62 Esta uma das
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O que choca o esprito menos apercebido dos fenmenos sociais que se relacionam, propriamente, com a existncia do homem, avistar em pleno deserto, distncia de lguas de um ncleo populoso qualquer, um casebre de taipa com a coberta de palha, onde algumas figuras humanas se movem, tirando de um meio falto de tudo os seus elementos de subsistncia. A gente que vive assim nas caatingas sertanejas vive da vaqueirice de algumas cabeas bovinas e de um nmero um pouco maior de caprinos. No tratamento deste nmero reduzido de animais de que o vaqueiro percebe como remunerao apenas a quarta parte da produo, ele consome a maior parte de sua ativida-de; no cultivo de uma pequena rea de milho e feijo gasta outra parte e na caa de animais silvestres, pe o restante que lhe sobra do tempo, a que no d nenhum apreo. Hildebrando Menezes. Condies do Trabalhador
razes da estagnao em que permanece o serto, apesar do esprito empreendedor do sertanejo. Causa da falta do conforto de suas habitaes, da rusticidade do vesturio, do atraso mental em que vivem atolados. que constitui um trabalho de hrcules, capaz de esgotar as reservas e energias de qualquer povo, este de retirar de um solo semi-rido recursos alimentares suficientes e variados para a vida do homem economicamente segregado em tais confins. Se custa deste constante labor pode o sertanejo manter o equilbrio da sua economia alimentar base da produo, que as quadras chuvosas fornecem, toda e qualquer anomalia que surja no regime das precipitaes um simples retardamento no incio das chuvas, sua interrupo antecipada ou sua inopinada ausncia vem a desencadear tremenda crise de alimentos na regio.
9. Com as secas desorganiza-se completamente a economia regional e instalase a fome no serto. Os seus efeitos sempre desastrosos so de amplitude variada, conforme se trate de seca parcial, limitada a pequena rea, ou uma grande seca, abrangendo considervel extenso, ou, finalmente, de uma seca excepcional, das que atingem de vez em quando todo o serto em bloco. Sobre as diferentes categorias de secas a que est exposto o serto, veja-se o que nos diz Luiz Augusto Vieira: A crise de [pg. 217] produo se manifesta ento nestas regies que, se pequenas em reas, podero ser socorridas pelas regies vizinhas, no atingidas pela anomalia. Estamos diante de uma seca parcial. Quando essa anomalia climtica atinge extenses territoriais considerveis, como aconteceu em 1915 com o Estado do Cear, e em 1877 e 1932 com toda a regio semi-rida, ento se trata de uma seca propriamente dita, com todos os caractersticos de calamidade pblica. Normalmente as crises climticas, mesmo as mais extensas, ficam adstritas ao perodo de um ano, mas no raro que esse desequilbrio alcance um perodo maior, dois anos e at trs, como aconteceu nas duas maiores crises at hoje registradas: a de 1877 e a de 1932. Nesse caso trata-se de uma seca excepcional, de intensidade extraordinria, de conseqncias indescritveis, com o cortejo de misrias e humilhaes, do conhecimento de todos os brasileiros. Pelo que acabamos de ver, as crises do Nordeste esto sujeitas a intervalos diferentes: a seca parcial que obedece a um
Rural nas Zonas do Serto Agreste, 3.a Semana de Ao Social, Recife, 1939.
perodo da ordem de 4 a 5 anos. A seca generalizada, cujo perodo parece ser de 10 ou 11 anos, e a seca excepcional, que parece obedecer ao ciclo de 50 anos. Esclareamos, porm, que esses nmeros nada tm de precisos, pois no foi ainda descoberta a lei que rege a freqncia das secas. Essas crises tm surgido sempre de forma imprevista, surpreendendo no s os pobres e hericos habitantes do Nordeste, como tambm os prprios governantes que nunca souberam aproveitar as pocas de bonana para acumular reservas capazes de enfrentar a iminncia de crises futuras.63 A trgica histria destes cataclismos peridicos, desse calendrio de calamidades, tem sido registrada por grandes escritores brasileiros, desde um Euclides da Cunha, condensando em quadros de fulgurante beleza todos os horrores indescritveis da seca, a um Felipe Guerra, com as ttricas descries de detalhes macabros acerca dessa herica epopia dos nordestinos. Toms Pompeu, Rodolfo Tefilo, Ildefonso Albano, Jos Amrico de Almeida, Rachel de Queirs, Alceu de Lellis, Clodomiro Pereira e tantos outros nos apresentaram em pginas de intenso realismo o excruciante espetculo de fome e de misria. No vamos repisar no presente ensaio estas cenas j bem conhecidas de todo o pas, projetadas com tal intensidade [pg. 218] na conscincia de todos que, como diz Gilberto Freyre, a palavra Nordeste nos evoca sempre o espetculo das secas. Quase no sugere seno as secas, os sertes de areias secas rangendo debaixo dos ps.64 Utilizaremos destes estudos e relatos apenas o essencial para a compreenso de como se instala a fome no serto, nestas pocas calamitosas. Para o estudo de suas principais manifestaes e de suas conseqncias mais marcantes sobre o estado fsico e mental dessa gente, sobre sua vida orgnica e sobre sua vida cultural. Nestes sinistros perodos em que o clima se nega a regar com chuvas benfazejas o solo adusto da caatinga, toda a vida regional se vai exaurindo da superfcie da terra. O despovoamento da regio resulta do fato de que no s os animais domsticos, como os que fazem parte da fauna nativa, emigram ou so em sua maior
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Vieira, Luiz Augusto da Silva, A Rodovia e o Combate Seca no Nordeste, Boletim da I.F.O.C.S., vol. X, n. 12, 1938. 64 Freyre, Gilberto, Nordeste, 1937.
parte dizimados nas pocas de secas prolongadas. Von Spix e Von Martius, 65 atravessando o serto baiano numa destas quadras secas, admiraram-se da desolao da paisagem regional, quase isenta de vida: a fauna parecia ter completamente abandonado este deserto adusto. S observamos vida e movimentao nas casas de cupim, de forma cnica, tendo s vezes at cinco ps de altura. Aves e mamferos pareciam ter emigrado para regies mais ricas de gua. As culturas desaparecem dos roados com as sementes enterradas na poeira esturricada ou com as plantas tenras dessecadas pela soalheira. O pasto seco se esfarinha e arrastado pelos ventos de fogo, ficando o gado mngua de gua e de alimento. Recorre o vaqueiro ao recurso das ramas e dos cactos, queimando os espinhos dos mandacarus e dos facheiros e picando os seus gomos a faco para evitar a extino imediata do rebanho. As prprias reses esfomeadas procuram arrancar com os cascos e com as bocas sangrando os espinhos dos cactos aquosos que lhes mitiguem por um momento a fome e a sede.66 [pg. 219] No dura, porm, muito que o gado se deixe aniquilar pela morrinha, pela inanio e pelas pestes, e comece a entrevar, a cair e a morrer como moscas. Os ptios das fazendas vo ficando coalhados de cadveres, transformando-se as campinas em pouco tempo em grandes ossrios, com as carcaas alvejando na amplitude cinzenta dos chapades descampados. Golpeado a fundo pelo cataclismo, com suas fontes de produo estagnadas, o sertanejo quase sempre desprovido de reservas cai imediatamente num regime de subalimentao. Comea por limitar a quantidade de sua rao e a variedade de seus componentes. A sua dieta nesta fase se reduz logo a um pouco de milho, de feijo, de farinha. Mas se a seca persiste, estes poucos gneros desaparecem do mercado, ficando o sertanejo reduzido aos recursos das iguarias brbaras, das comidas brabas razes, sementes e frutos silvestres de plantas incrivelmente resistentes dessecao do meio ambiente.
10. Fazem parte desta dieta forada dos flagelados pela seca inmeras
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Von Spix e Von Martius Atravs da Bahia. Traduo e notas de Piraj da Silva e Paulo Wolf, 1938. 66 Marion, Los Maravillas de la Vegetacin, 1873.
substncias bem pouco propcias alimentao, das quais os habitantes de outras zonas do pas nunca ouviram falar que fossem alimentos. Substncias de sabor estranho, algumas txicas, outras irritantes, poucas possuindo qualidades outras alm da de enganar por mais algumas horas a fome devoradora, enchendo o saco do estmago com um pouco de celulose. Esgotados os recursos naturais de alimentao, tangidos pela fome, estes infelizes se atiram aos ltimos recursos vegetais, em geral imprprios alimentao, ricos apenas de celulose, por vezes mesmo txicos, tais como a mucun, e a macambira, que tantos casos fatais ocasionaram nas secas passadas e que agora mesmo alguns produzem, escreveu Amadeu Fialho no seu Relatrio sobre a seca de 1932. Do cardpio extravagante do serto faminto fazem parte as seguintes iguarias brbaras: farinha de macambira, de xique-xique, de parreira brava, de macaba e de mucun; palmito de carnaba nova, chamada de guandu; razes de umbuzeiro, de pau-pedra, de serrote ou de moc, manioba e maniozinha; sementes de fava-brava, de manjerioba, de mucun; beijus de catol, de gravat e de macambira mansa. Quando o sertanejo lana mo destes alimentos exticos que o martrio da seca j vai longe e que sua misria j atingiu [pg. 220] os limites de sua resistncia orgnica. a ltima etapa de sua permanncia na terra desolada, antes de se fazer retirante e descer aos magotes, em busca de outras terras menos castigadas pela inclemncia do clima. A musa sertaneja, em sua simplicidade comovedora, canta em versos melanclicos este cardpio das quadras calamitosas, to diferente do das pocas de fartura:
Xiquexique, mucun Raiz de imbu e col Feijo brabo, catol Macambira, imbirat Do pau-pedra e caim A parreira e o muro Manioba e gordio
Comendo isso todo o dia Incha e causa hidropisia Foge, povo do serto!67
So ainda incompletos os conhecimentos que possumos acerca desses alimentos selvagens. Alguns deles foram por ns estudados, com a colaborao dos nossos tcnicos, no Instituto de Nutrio, mas estamos ainda longe de uma viso conjunta do valor nutritivo deste cardpio extico. Contudo, baseados em tais estudos, nas afirmaes populares, e nos poucos conhecimentos cientficos recolhidos de outras fontes, vamos repassar cada um desses alimentos. Da macambira (Encholirion spectabile) utilizam os flagelados o bulbo, o qual cozinhado durante algumas horas depois exposto ao sol para secar. Seca a macambira cozida, ela pilada, obtendo-se, desta forma, uma farinha grossa como p de serra, a qual se revelou, nas anlises, excepcionalmente rica em clcio, mais rica do que o queijo. Com tal produto fabricam-se beijus e mingaus. Das diferentes espcies de gravats ou croats retira-se produto idntico aos das macambiras [pg. 221]. A parte alimentar do xiquexique (Cereus setosus) a sua medula, a qual consumida assada com aipim ou servindo para o fabrico de farinha obtida dos tipos mais enxutos.68 Todas estas farinhas so bastante pobres em amido, mas parecem inocentes, isentas de propriedades txicas. verdade que, segundo referem as crnicas locais, sempre que se estabelece o seu uso na alimentao humana surgem diarrias incoercveis que fazem pensar na toxidez destas plantas, mas o fenmeno se explica como uma simples manifestao de carncia. Quando se chega ao uso das farinhas-de-pau, j a carncia alimentar vai longe e os surtos de diarria constituem apenas manifestaes obrigatrias de uma determinada fase do processo de carncia protica e vitamnica. As farinhas brabas, quando muito, intensificam este mal pela irritao que produzem com seu excesso de celulose nas mucosas do aparelho digestivo, inflamadas pelas carncias do complexo B, que se associam s carncias em protenas. Tanto no se trata de toxidez que se comem destas farinhas
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Versos inditos de um desafio entre Nicandro Nunes do Nascimento e Bernardino Nogueira, cantando as epopias da fome de 1877; versos fornecidos pelo Sr. Pedro Batista a Jos Amrico de Almeida, estampados por este autor em sua obra A Paraba e seus Problemas. 68 Sobre o preparo da farinha de xiquexique, assim como de outros produtos obtidos da flora desrtica, consulte-se o captulo A Alimentao do Brasileiro, no livro de Renato Souza Lopes
nas quadras de abundncia sem que se manifestem as tais enterites diarricas. J a mucun (Mucuna urhens) constitui um recurso chamado de desespero, sendo acusada de txica. Essa planta, da famlia das leguminosas, uma trepadeira que produz grandes vagens, encerrando de trs a cinco sementes extremamente duras a achatadas de cor vermelha ou preta (donde as suas variedades a mucun vermelha e a mucun preta). Nos perodos de fome intensa, o sertanejo faz uso, segundo Rodolfo Tefilo, dos dois tipos: os retirantes, prevenidos sempre contra suas propriedades nocivas, se utilizam dela quando lhes tm faltado todos os meios de subsistncia. Usam de ambas as espcies. Da mucun vermelha alimentamse no s da fcula contida na semente como ainda de uma matria amilcea extrada da raiz. Da mucun preta s se utilizam da raiz, desprezando as sementes que, dizem eles, so bravas.69 Para preparo da farinha usam complicado processo, tendo como finalidade eliminar o suposto veneno que a planta encerra. Retiram o duro invlucro das sementes [pg. 222] e com as mesmas cozidas e reduzidas a massa procedem sua lavagem em nove guas, sendo depois convenientemente esprimida antes de ser levada ao fogo para torrar. No preparo da farinha da raiz da mucun vermelha, lava-se tambm o produto em muitas guas, que saem mais txicas que a manipuera da lavagem da mandioca. Com todos esses cuidados o produto ainda considerado pelo povo mais nocivo do que til, havendo um anexim popular no serto que diz: A mucun suja mata e lavada aleija. Dos seus efeitos nocivos destaca Rodolfo Tefilo o aparecimento da anasarca, e nas mulheres, a suspenso das regras por muito tempo. 70 Dada a alta importncia econmica da mucun na vida do sertanejo sendo suas razes longas e grossas, uma alta fonte fornecedora de farinha, referindo Rodolfo Tefilo que s num p, que pela haste ningum avaliaria o nmero de razes, viu retirar quinhentos quilos da mesma resolvemos iniciar por esta planta os estudos de categoria experimental acerca dos alimentos brabos do Nordeste. Analisamos o valor nutritivo da semente da mucun, do tipo vermelho, que se
A Cincia de Comer e de Beber. 69 Tefilo, Rodolfo, Monografia sobre a Mucun, 1888. 70 A suspenso das regras deve ser consequncia exclusiva da inani-o. Todos os experimentadores so unnimes em afirmar que a ina-nio prolongada paralisa as funes glandulares que dirigem o ciclo menstrual. Assim, durante os anos de fome da Rssia Sovitica, de 1918 a 1921, os casos de amenorria subiram da taxa de 0,4% em 1915 para 2,5% em 1918 e 6% em 1919 (P. Sorokim, Man and Society in Calamity, 1942).
revelou altamente aprecivel, com um teor protico de 28,50%, de 54,57% de hidrocarbonados e de 2,25% de cinzas minerais. Trata-se, pois, de um alimento vegetal extremamente rico em protenas, dos mais ricos do mundo, quase idntico soja (com 38%) e altamente energtico por seu contedo de hidrocarbonados. De sua riqueza de sais, destacam-se os teores de clcio de 104 miligramas por cento e de ferro de 5 miligramas por cento. Contm ainda a semente da mucun 390 miligramas de vitamina B1 por cento. Cozida a semente, ela adquire uma consistncia e sabor agradveis, permitindo um consumo satisfatrio, sendo que os estudos experimentais no revelaram nenhuma toxidez da mesma. Realizamos longos estudos experimentais sobre o valor nutritivo e a suposta toxidez da mucun, chegando concluso de que a mesma destituda de toda toxidez, correndo os fenmenos observados tanto ao homem como nos animais alimentados [pg. 223] com a mesma planta por conta de graves carncias, principalmente de certos aminocidos indispensveis. Veja-se sobre o assunto os nossos trabalhos Os Alimentos Brbaros dos Sertes do Nordeste, em colaborao com Emlia Pechnik, Orlando Parahim, talo Viviani Mattoso e J. M. Chaves Trabalhos e Pesquisas do Instituto de Nutrio, vol. I 1948 e Novas Pesquisas Sobre a Mucun, em colaborao com Hlio Luz e Emlia Pechnik Trabalhos e Pesquisas, n. 2 1949. As nossas observaes provando a ausncia de toxidez da mucun foram confirmadas pelos estudos experimentais do Prof. Mrio Taveira, Catedrtico de Qumica Toxicolgica da Faculdade Nacional de Farmcia, e do Prof. Joo Cristvo Cardoso, catedrtico de Fsico-Qumica, da Faculdade Nacional de Filosofia. Trata-se, pois, de uma leguminosa de alto valor nutritivo e atxica, que, considerando sua extraordinria resistncia aos perodos de seca, deveria ser plantada no serto como um valioso recurso para combate fome nos perodos de calamidade. A goma da carnaubeira extrada dos palmitos das plantas novas os guandus quando ainda no est formado o seu estirpe. Tratando-se a massa do palmito com gua, retirada sua fcula. Esta alimentao, segundo Rodolfo Tefilo, alm de inocente, muito nutritiva. No a encontravam, porem, em abundncia: alm de serem um pouco raros os guandus, era penosa a extrao do palmito para
braos enfraquecidos e cansados. A raiz cuca do umbuzeiro formada de um tecido esponjoso ricamente embebido de gua. A riqueza dgua tamanha que no se pode chamar o produto de comida, mas de verdadeira bebida. Numa amostra de raiz que fizemos vir ao serto do Nordeste por via area, encontramos um teor dgua de 96%, o que faz supor que, colhido de fresco, o teor aquoso da raiz seja ainda mais elevado. A manioba e a maniobinha so euforbiceas com razes bastante ricas em amido, assemelhando-se muito s razes da mandioca. Por processo especial obtm o sertanejo uma boa produo de fculas destas razes. Tambm das razes do pau-democ (Tipoana especiosa) chamado em certas zonas pau-de-serrote ou pedra, por sua tendncia a proliferar nos solos pedregosos, fabricam uma farinha usada em mingaus. A sua fabricao se obtm pela lavagem da cortical da raiz, deixando-se [pg. 224] a seguir decantar a goma que se deposita no fundo. Embora a planta queimada produza uma fumaa venenosa, capaz de cegar, a farinha incua. Entretanto, a fumaa que resulta de sua combusto afirmam ser to venenosa que, posta em contato com os olhos, produz cegueira, a qual precedida de extrema inflamao das conjuntivas, resultando uma oftalmia purulenta. Nos sertes, para destruir as formigas, dizem, basta folear os formigueiros com pau-de-moc. Ainda sobre a cegueira produzida pela fumaa desta planta diz o Dr. Mello Moraes: a fumaa da madeira desta rvore cega. Almeida Pinto, em seu Dicionrio de Botnica, exprime-se assim: Asseveram-nos pessoas fidedignas que a fumaa desta madeira cega em pouco tempo, do que j tem havido exemplo. Acreditamos, no entanto, muito exageradas as propriedades nocivas da fumaa do pau-de-moc. Ouvimos, a respeito, dezenas de emigrantes e acabamos por nos convencer de que fato que a fumaa daquela madeira ataca seriamente o rgo da viso, mas no a ponto de inutiliz-lo ao contato de uma simples resfrega. (Rodolfo Tefilo, Histria da Seca no Cear.) Herbert Smith, no livro Brazil, the Amazon and the Coast, fazendo certa confuso, afirmou que a farinha do pau-de-moc, quando comida, cegava. E outro escritor americano, mais recente, Lynn Smith, caiu no mesmo engano quando escreveu, em Brazil: People and Institutions, as seguintes palavras: the roots of a shrub called pao-de-moc whose poisons (...) for the destruction of ants. (...) But the refugees, desperate from hunger on the long trails of the
unfortunate, and not knowing at the noxious properties of the tuber, cooked and ate it. A few hours after the ingestion of so toxic a root they were completely blind. Esta citao final atribui Lynn Smith a Rodolfo Tefilo. O engano, no entanto, est no fato de que na sua Histria da Seca no Cear, Rodolfo Tefilo diz estas palavras no mais acerca do pau-de-moc mas, conforme se pode verificar, sobre uma outra planta de que se alimentavam os retirantes e que muitas vtimas fez... uma trepadeira que sentimos no nos ter chegado s mos a fim de poder descrev-la. Certamente a leitura destes pargrafos em portugus por um estrangeiro, embora com relativo conhecimento da lngua, o conduziu ao engano. Com as sementes torradas de manjerioba (Cacia occidentalis) fazem no serto uma bebida que substitui o caf. [pg. 225] o caf de manjerioba. Alm destas plantas enumeradas, h outras de que o sertanejo acossado pela fome lana mo, sem atentar para o seu valor como alimento nem para a sua possvel toxidez. Refere Rodolfo Tefilo a existncia de uma trepadeira de haste delicada e flores azuis, que insere sua haste num tubrculo de cor vermelha. Este tubrculo quando comido pelos retirantes desavisados produz uma cegueira quase que instantnea. No conseguiu este estudioso das secas do Nordeste identificar o nome daquela planta, mas conta dos seus terrveis efeitos os seguintes episdios: Pelas informaes que pudemos colher e todas fornecidas pelos desgraados que dela usaram, a planta trepadeira de haste muito delicada, flores azuis, inserindo-se a haste num tubrculo de cor vermelha. Os retirantes desesperados de fome nas longas estradas do infortnio e desconhecendo as propriedades nocivas de tal batata cozinhavam-na e comiam-na. Algumas horas depois da ingesto de fcula to txica, ficavam completamente cegos. Disse-nos um velho que cegara havia dois meses, que no sentiu incmodo algum, nem dor nos olhos nem perturbaes no estmago, nada enfim que lhe alterasse a sade; que, comendo a batata com dois filhos menores, as quatro horas da tarde, pela manh a nenhum foi concedido ver a luz do dia. Tinham os olhos limpos e perfeitos. Foi esta referncia de Rodolfo Tefilo, em Histria da Seca no Cear, que deu lugar confuso a que aludimos antes entre esta planta, que quando comida cega, e o pau-de-moc, confuso a que foi levado Lynn Smith. Com esta insistncia sobre este assunto visamos esclarecer o mecanismo do mais que justificvel engano do
autor do Brazil: People and Institutions, obra das mais notveis, mais bem informadas e de mais sadia metodologia das que se tm escrito sobre o Brasil. Embora com os conhecimentos incompletos que se tm dos alimentos brabos no seja possvel determinar com rigor o valor nutritivo da dieta dos retirantes da seca, no resta nenhuma dvida de que se trata de um regime extremamente carenciado, no sendo possvel ao organismo manter-se por muito tempo com tal alimentao. Ademais, esses recursos silvestres so limitados e, em pouco tempo, com um exrcito de raizeiros sua cata, rareiam e se esgotam por completo. Baseado em testemunhas locais, conta Ildefonso Albano como na famosa seca de [pg. 226] 1915 quase se acabou a macambira em certas regies do serto nordestino.71
11. Assim, esgotadas as suas esperanas e reservas alimentares de toda ordem, iniciam os sertanejos a retirada, despejados do serto pelo flagelo implacvel. Sem gua e sem alimentos, comea o terrvel xodo. Pelas estradas poeirentas e pedregosas ondulam as interminveis filas dos retirantes como se fossem uma centopia humana.72 Homens, mulheres e crianas, todos esquelticos, deformados pelas perturbaes trficas, com a pele enegrecida colada s longas ossaturas, desfibrados e ftidos pelo efeito da autofagia.73 Afrnio Peixoto d-nos impressionante descrio sobre a arrancada dos retirantes, nestes trgicos momentos: Queimam-se os espinhos e d-se ao gado, cujos beios se enrijecem com as cicatrizes que os acleos lhes deixaram, sangrentos, doloridos, depois calejados... Vai-se buscar gua aos poos ou cacimbas a quatro lguas de distncia, em lombo de burro, nos jegues incansveis. Mas o cacimbo vai mostrando o fundo. Se o gado morre mngua, no h mais a esperar, a retirada... Uma trouxa do que se pode salvar e levar, e com os outros que passam na estrada, a mesma amargura, o calvrio de mais passos apenas... O homem esgota tudo em torno para nutrir-se: o cardo, o xique-xique, em beijus; a batata da
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Em carta escrita em 1915 pelo vigrio de Russas, no Cear, relatando os horrores da seca, l-se o seguinte: As alimentaes silvestres esto acabadas, no h mais palmitos nas vrzeas e a pouca macambira que existe arrancada na chapada do Apodi com quatro lguas ou mais de distncia dessa cidade. Ildefonso Albano, O Secular Problema do Nordeste, Rio, 1918. 72 Duarte Filho, Joo, O Serto e o Centro, 2. edio, 1939. 73 Almeida, Jos Amrico de, op. cit.
macambira em farinha; a manioba como se fora mandioca; as sementes da mucun torradas, pisadas, lavadas, relavadas em nove guas, em goma; carnaba em sopa; o umbu um agrado da providncia... O palmito da carnaba, a palmeira providencial, at ela, ltimo recurso... Que extrair desta parca e at, s vezes, nociva alimentao? Nem alento, nem esperana... Fugir, se no se cai [pg. 227] vencido ante esta resoluo que tanto custa... Deixar a terra onde se sofre tanto...74 So as sombrias caravanas de espectros caminhando centenas de lguas em busca das serras e dos brejos, das terras da promisso. Com os seus alforjes quase vazios, contendo quando muito um punhado de farinha, um pedao de rapadura; a rede e a filharada mida grudada s costas, o sertanejo dispara atravs da vastido dos. tabuleiros e chapades descampados, disposto a todos os martrios. Sem recursos de nenhuma espcie, atravessando zonas de penria absoluta, gastando na spera caminhada p resto de suas energias comburidas, os retirantes acentuam no seu xodo as conseqncias funestas desta fome. V-los ver, em todas as suas pungentes manifestaes, o drama fisiolgico da inanio. Nas descries que nos legaram os cronistas e os mdicos, testemunhas oculares principalmente das secas de excepcionais propores, como as de 1744, de 1790, de 1877, de 1846, de 1915 e de 1932, encontram-se instantneos destes retirantes em todos os graus e formas da penria orgnica, caindo de fome beira das estradas. Da vasta literatura referente seca de 1877 queremos chamar a ateno de duas obras significativas. Uma, o romance Fome, de Rodolfo Tefilo, no qual o ilustre farmacutico e escritor cearense conta as peripcias da vida sertaneja nos anos de inexcedvel sofrimento que decorreram de 1877 a 1879. Medeiros e Albuquerque, em crtica que fez a este trabalho de fico, comparou-o ao clebre romance de Knut Hamsun, Fome acentuando mesmo tratar-se de uma obra de mais sinceridade que a do romancista noruegus: Se, porm, mais incorreto e por assim dizer tumultuoso, tem a superioridade de ser mais verdadeiro. Knut Hamsun talvez nunca tivesse de fato sentido sentido ao menos de um modo intenso por dias, meses e anos o que ele pretendia descrever. A Rodolfo Tefilo no faltaram infelizmente os modelos. Por isto o seu livro vivido. Sente-se que verdadeiro. a fome de um povo inteiro, a fome coletiva entre os sertanejos. A referncia a esta
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crtica de Medeiros e Albuquerque serve, no entanto, para mostrar o valor do trabalho nacional, se no como uma obra-prima de estilo ou de tcnica ficcionista, pelo menos como um documentrio honesto daquela poca de calamidades. A segunda obra a destacar [pg. 228] a de Herbert H. Smith, Brazil, the Amazon and the Coast, cuja significao se impe por ter o autor estrangeiro assistido diretamente aos horrores da seca e s suas terrveis repercusses na capital do Cear. Da seca de 1915 tem-se um documentrio admirvel na obra de Rachel de Queiroz, O Quinze. Romance em que, mais do que a misria orgnica dos sertanejos esfomeados, retratada em traos seguros a misria moral a que ficam eles reduzidos durante esse perodo de privaes extremas. Poucos livros se prestaro to bem para uma interpretao cientfica das influncias psicolgicas do fenmeno coletivo, sobre a conduta moral de um povo, do que este romance de Rachel de Queiroz. Donde o largo uso que dele fizemos no captulo em que analisamos a mentalidade anormalizada dos flagelados da seca. O Quinze mereceria mesmo um estudo da categoria do que Freud realizou sobre o romance Gradiva, de Jensen, para arrancar-se da sua textura os elementos interpretativos de uma psicanlise dos flagelados da seca. Jos Amrico de Almeida, no romance A Bagaceira, d-nos o mais fiel retrato desta retirada inglria, principalmente dos tristes contatos humanos entre sertanejos e brejeiros. O livro concentra quase que toda a sua fora dramtica em mostrar a misria da humilhao sertaneja. H uma misria maior do que morrer de fome no deserto, no ter o que comer na terra de Cana , diz o grande romancista sertanejo antes de contar a histria da bagaceira. A fome quantitativa se traduz de logo pela magreza aterradora, exibindo todos fcies chupados, secos, mirrados, com os olhos embutidos dentro de rbitas fundas, as bochechas sumidas e as ossaturas desenhadas em alto-relevo por baixo da pele adelgaada e enegrecida. Indivduos que mesmo no tempo de abundncia nas pocas do verde nunca foram de muita gordura, apresentando-se sempre com sua carne um tanto enxuta, chegam a perder, nas pocas secas, at 50% de seu peso. Mas, no se vem apenas estas esquelticas figuras, magras e chupadas pela fome, vem-se tambm as vtimas das terrveis carncias especficas nas suas mais grotescas e trgicas variedades. As deficincias qualitativas de toda ordem se
associando e modelando, numa macabra riqueza de detalhes, os mais variados quadros mrbidos. So as crianas as que exibem, com caractersticas mais vivas, as doenas de carncia. Atingidas [pg. 229] pela fome negra em pleno crescimento, elas param por completo seu desenvolvimento e chegam, em certos casos, como que a involuir a um perodo anterior. Refere Felipe Guerra que, segundo a tradio, na seca de 1774, a fome foi to tremenda que os meninos que j andavam tornaram ao estado de engatinhar.75 Muitas destas crianas ficam marcadas a vida toda com suas estaturas mirradas pelo nanismo alimentar, com suas deformaes das osteopatias da fome e suas endocrinopatias carenciais, manchando e afeando o conjunto de homens fortes que constitui a raa sertaneja. Alm da parada do crescimento nas crianas, as carncias proticas se manifestam em larga escala pelos edemas de fome e outros distrbios trficos. Os edemas, sejam discretos, sejam generalizados em disformes anasarcas, constituem um dos sinais mais constantes com maior freqncia referido em todos os relatos sobre as secas do Nordeste. Nas levas de retirantes encontram-se sempre as figuras grotescas de famintos, com as suas pernas de graveto carregando enormes ventres estufados pela hidropisia, dando ironicamente uma impresso de plenitude e de saciedade. Na seca de 1932, o Dr. Amadeu Fialho teve oportunidade de estudar a fundo este tipo de edema inconfundvel. Apareciam numerosas crianas com todas as gradaes do edema, desde o fcies tmido empastado e plido, at as grandes infiltraes com franco aspecto de anasarca, apresentando colees lquidas nas cavidades serosas, alguns tinham as bolsas escrotais volumosas, tensas, cheias de lquido, translcidas. Os derrames que se achavam nestas cavidades eram completamente lmpidos, de baixa densidade e incolores. A marcha dos doentes era um pouco lenta pela dificuldade de movimentos com os membros distendidos pelo edema. No havia perturbaes de sensibilidade, porm, pelo que era impossvel a sua confuso com o beribri. Em alguns casos que tivemos oportunidade de autopsiar, casos no muito avanados mas que sucumbiram a intercorrncias, vimos o tecido celular com aspecto francamente edemaciado, os msculos rseos, midos e derrames lmpidos e incolores no peritnio e cavidade pleurais. Chamamos a ateno para a afirmao que, em tom categrico, faz o
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autor, [pg. 230] de que no se pode confundir este tipo de edema com o do beribri edemaciante, doena tara no serto, mesmo durante o perodo de seca. As sndromes diarricas que se associam ao edema como expresso de carncia constituem fenmenos de graves conseqncias, aniquilando de vez com a resistncia fsica e moral dos pobres flagelados e dificultando em extremo a higiene coletiva dos campos de concentrao, onde so agrupadas pelos poderes pblicos as grandes massas de retirantes. Facilitando o contgio e desenvolvendo por este meio as grandes epidemias de disenteria e de febre tifide, que dizimam milhares de criaturas. Outra praga terrvel a das oftalmias, das afeces oculares de vrias categorias, que se manifestam em altas propores nos perodos calamitosos. Mesmo nos tempos normais o serto, principalmente o do Cear, constitui um terrvel foco de doenas oculares, especialmente do tracoma. Temos a impresso de que so as secas e as fomes peridicas que deixam como monturo de suas misrias orgnicas estas manifestaes oculares de to trgico aspecto. Sobre o assunto escreve o higienista Gavio Gonzaga: De todos os estados do Brasil, o do Cear o mais favorvel ao desenvolvimento desta molstia por seu baixo grau de umidade, seu excesso de luz, seu terreno arenoso e seu calor excessivo. A endemia est bastante disseminada no Cariri com focos esparsos nas regies serranas e zona do litoral. Segundo dados histricos, a sua origem ali anterior a seu aparecimento nos estados do Sul, provavelmente levada tambm por elementos estrangeiros. Nos focos de tracoma so tambm muito comuns as diversas conjuntivites e afeces oculares, de etiologia vria. Entre essas salientam-se a conjuntivite primaveril que recrudesce nas pocas chuvosas, a sapiranga ou gorgoni. O primeiro termo consagrado pelo modismo popular olhos de sapiranga tem sua origem etimolgica na lngua tupi com a locuo sa piranga ou antes a piranga, que significa literalmente olhos vermelhos ou sanguneos, conforme ensina Joo Ribeiro.76 As carncias de diversas vitaminas associadas irritao permanente que as poeiras das estradas provocam nos olhos dessa gente so causas efetivas de muitas dessas perturbaes [pg. 231] oculares. A hemeralopia ou cegueira noturna
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provocada pela carncia de vitamina A tem sido registrada em altas propores durante as vrias secas do serto nordestino. Rodolfo Tefilo refere que na seca de 1877 viam-se nos abarracamentos centenas de indigentes atacados desta enfermidade.77 curioso verificar-se hoje o que realizava naquele tempo a medicina. Vejamos o que sobre o assunto escreveu o Dr. Rodolfo Tefilo: Pela manh iam ganhar a rao nos servios do governo, voltavam e passavam o dia em pleno gozo da vista. Entretanto, proporo que o sol sumia-se no ocaso, eles se recolhiam a suas choupanas completamente cegos. A noite enchia-lhes as plpebras e o desgosto enegrecia-lhes a alma. Aos primeiros raios de sol voltava-lhes a luz aos olhos, mas doze horas depois tornavam a ficar cegos. A medicina combatia este estado mrbido com tnicos e reconstituintes; o povo, entretanto, sempre infenso s drogas da farmcia, aplicava e com excelentes resultados um tpico em lugar de medicamentos internos, assava o fgado de boi, extraa-lhe a salmoura que instilava sobre o globo do olho, muitos ou quase todos assim se restabeleceram. Esta medicao tem a sua base cientfica na riqueza em vitamina A existente na gordura do fgado. Euclides da Cunha, em Os Sertes, escreve o seguinte sobre o aparecimento da hemeralopia durante as secas: Uma molstia extravagante completa a sua desdita a hemeralopia. Esta falsa cegueira paradoxalmente feita pelas reaes da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. uma pletora do olhar. Mal o sol se encobre no poente, a vtima nada mais v. Est cega. A noite afoga-a de sbito, antes de envolver a terra.78 Em graus mais acentuados de carncia e principalmente nas crianas surgem, alm das perturbaes funcionais da viso, as leses orgnicas do seu aparelho protetor, a queratomalcia com seu cortejo clnico habitual, a dissecao da crnea, a sua queratinizao, ulcerao e mesmo fuso completa do globo ocular. As simples congestes da crnea, com uma rede vascular bem desenhada caracterizando a deficincia em riboflavina [pg. 232] vitamina B2 tambm se notam em grandes propores. Em sntese, as perturbaes oculares de natureza puramente carencial ou nas quais o fator carencial participa eram to abundantes que nestas
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pocas impunham, como nos afirma Amadeu Fialho, a presena obrigatria de um especialista em olhos em todos os campos de concentrao dos retirantes. Passada a quadra da seca, o nmero de cegos que imploram a caridade pblica no Nordeste aumenta de maneira alarmante. A estreita correlao evidencivel no Nordeste, entre as pragas de cegueira e os cataclismos das secas, tem sido observada com rigor em outras reas de fome do mundo. Sempre que um grupo humano fica exposto s conseqncias de uma alimentao carenciada, surgem inmeros distrbios oculares que traduzem a extrema sensibilidade do rgo da viso s deficincias nutritivas. A alta proporo de cegos que infestavam os burgos europeus durante a Idade Mdia tinha a sua causa fundamental nas miserveis condies alimentares da Europa durante esse largo perodo histrico, to sujeito s crises peridicas de fome. 79 Conta-nos Sergius Morgulius que, depois da fome de 1898 nas provncias centrais da Rssia, quase todas as crianas sofriam de erupes cutneas de vrias categorias, raquitismos, diarrias e infeco purulenta dos olhos. Os mdicos que iam prestar socorros nesta zonas empestadas ficavam assombrados diante do espantoso nmero de indivduos afetados de graves doenas oculares.80 Fato idntico foi observado pelo Dr. Emmet em seguida crise de fome de 1848 na Irlanda: O nmero de cegos aumentou de 13.812 em 1849 para 45.847 em 1851.81 Todas estas referncias demonstram a importncia do fator nutrio na etiologia das doenas oculares e nos do autoridade para afirmar que no Nordeste a existncia de uma alta percentagem de doentes dos olhos tem na alimentao miservel a sua causa principal. O excesso de luz, a irritao pelas poeiras, a [pg. 233] falta de gua para lavagem dos olhos, tudo isto bem secundrio, se no inteiramente incuo. A fome que o elemento gerador destes terrveis males, seja nas afeces de carncia, quando determina por si s leses graves, seja predispondo o aparelho visual, pela diminuio de sua resistncia, invaso microbiana, que realizar, por sua vez, a faina destrutiva. Neste compndio de patologia ambulante, ilustrado ao vivo pelos retirantes da seca, ocupam largo espao as estomatites de vrias naturezas, inflamaes de
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Cunha, Euclides da, Os Sertes, 1902. Consulte-se sobre o assunto o livro de Walford Cornelius, The Famines of the World, 1878. 80 Morgulius, Sergius, Fasting and Under-Nutrition, Nova Iorque, 1923. 81 Citado por Parmalle Prentice, Hunger and History, Nova Iorque, 1939.
mucosa bucal, da lngua e dos lbios, que traduzem desde a carncia em ferro at s deficincias mais acentuadas em cido nicotnico e em riboflavina. William G. Darby82 demonstrou que a deficincia acentuada em ferro capaz de produzir por si s estomatites e glossites inteiramente semelhantes s at ento consideradas de carncias exclusivamente vitamnicas. Conclui-se, pois, destes estudos mais recentes, que a anemia ferruginosa constitui uma causa comum destas leses da boca, que se curam muitas vezes com a simples teraputica com o ferro ou com uma alimentao rica neste princpio mineral. As boqueiras, ou sejam, fissuras e queiloses das comissuras labiais, estendendo-se muitas vezes como uma estomatite difusa pela mucosa da boca, so de freqncia alarmante durante estes perodos de fome. S numa localidade da Paraba, nas vizinhanas de Pianc, pde um especialista observar em 1932 cerca de 300 casos (Amadeu Fialho). As manchas cutneas pelagrosas, ptalas negras do terrvel mal da rosa,83 tambm fazem nestes perodos seu macabro aparecimento, completando os quadros clnicos das formas nervosas e digestivas da pelagra. Entre as observaes que fez Herbert Smith, durante a seca de 77 na cidade de Fortaleza, destaca-se a do aparecimento de uma epidemia que se seguiu de varola. Para alguns tratava-se [pg. 234] de uma nova epidemia, havendo mesmo rumores de que se tratasse da praga negra. provvel, no entanto, que fosse uma forma grave da varola; a doena caracterizava-se pelo aparecimento de manchas negras no corpo e eu creio que os casos eram invariavelmente fatais, mesmo antes que as pstulas aparecessem. Temos a impresso de que, em muitos casos, essas placas negras revelam casos de pelagra. Do beribri bastante discutida a existncia em forma epidmica. A descrio que nos deixou Rodolfo Tefilo do mal beribrico, atacando em larga escala em 1877 e 1878, est longe de permitir a sua caracterizao inconfundvel: A molstia se manifestava por sintomas diversos, disfarando-se s vezes a ponto de iludir a perspiccia da cincia. Em alguns aparecia de forma mista, em outros predominava a
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Darby William The Oral Manifestations of Iron Deficiency, in The Journal of the Am. Medic. Ass., vol. 130, n. 13, maro, 1946. 83 Gaspar de Casal descreveu, em 1725, uma molstia existente nas Astrias e conhecida pela denominao de mal da rosa. Pela descri o das observaes completas que este autor apresentou, verificou-se tratar-se da doena hoje denominada pelagra, e produzida por um
paraltica, ainda em outros os sintomas patognomnicos, se ela os tem, falhavam completamente. O doente queixava-se de uma inapetncia terrvel acompanhada de vmitos to violentos que no permitiam a ingesto do alimento mais leve. No acusava dor alguma, os membros inferiores estavam no gozo de sade regular. S o estmago sofria. O mdico procurava a causa daquele estado mrbido, tentava combat-lo com tnicos estomquicos e antiespasmdicos, a molstia progredia at que no fim de dez a vinte dias arrancava-se a mscara e conhecia-se que o doente estava acometido de beribri. A paralisia se manifestava franca, as funes do crebro pervertiam-se, vinha a cegueira, o delrio e o doente estava s portas da morte. Nestas condies s havia um recurso: a mudana para as serras. Em estado desesperador o doente era conduzido para Maranguape, Baturit. A alguns voltava a sade aps estada em amenos climas. Durante a estada nas montanhas passava como por encanto. Nos do interior, os que eram atacados de beribri morriam como mngua. Ora, a descrio acima est longe de corresponder da sintomatologia do beribri, exprimindo muito mais quadros variados de policarncias, nas quais se destacam, sem dvida, as deficincias de todo o complexo B, inclusive de cido nicotnico. Desde os sintomas gstrico-intestinais e, principalmente, os do perodo final, so tpicos de uma sndrome de fundo pelagroso. A pelagra aguda tpica se apresenta por uma associao sintomtica de dermatite, flossite, estomatite, diarria e [pg. 235] perturbaes mentais, indo at ao delrio. 84 A sndrome descrita por Rodolfo Tefilo lembra, pois, muito mais a pelagra do que o beribri. Amadeu Fialho no registrou casos de beribri na seca de 1932, e Orlando Parahim afirmou recentemente que o beribri, em sua manifestao sintomtica tpica, desconhecido nesta zona sertaneja.85 Os casos de escorbuto franco so raros, mas as gengivites ftidas e sangrentas surgem muitas vezes atestando a deficincia alimentar em vitamina C. No se
estado de carncia vitamnica. 84 Youmans, J. B., Nutritional Deficiencies, 1941. Em muitos casos de pelagra faltam os fenmenos cutneos, reduzindo-se a sndrome aos sintomas gstricos e nervosos, quadro que os autores italianos, grandes conhecedores do assunto, chamam expressivamente de pellagra sine pellagra. Vede, sobre o assunto, G. Frontali, Studi Sperimentali sulla Pellagra Umana, in Arch. Ita. di Med. Esp., vol. III, n. 8, agosto, 1939. Veja-se tambm o trabalho de Jos Nivaldo Aspectos da Alimentao no Agreste de Pernambuco. Rev. Bras. de Medicina vol. VII, n. 9, 1955. 85 Parahim, Orlando, A Alimentao do Operrio Sertanejo durante a Seca, 1945.
registram casos de raquitismo. Em exame de centenas de crianas nunca surgiu um caso do mal ante os olhos experimentados do Dr. Amadeu Fialho. Em combinaes variadas se apresentam os casos de policarncias, de desnutrio a mais acentuada, nos quais bem difcil discernir por falta de que elementos nutritivos decorrem os sintomas variados. Tudo o que se pode concluir que a misria orgnica atingiu ao mximo. A fome desagregando todas as fibras do organismo numa devastao impressionante.
12. Neste estado de penria orgnica, os retirantes perdem toda a sua resistncia e capacidade de defesa contra os agentes mrbidos de toda categoria, principalmente os de natureza infectuosa, e tornam-se presas fceis de inmeras doenas. Em sua incerta peregrinao, sem os menores rudimentos de higiene, comendo alimentos poludos e poluindo tudo em torno com os seus excretas, 86 sem gua para sua limpeza, sem cuidados [pg. 236] de espcie alguma contra o contgio que a promiscuidade intensifica, a retirada se constitui numa verdadeira marcha fnebre em busca da morte. por isto que o bardo popular canta esta marcha com dolorosa melancolia:.
Marchemos a encarar Trinta mil epidemias Frialdade, hidropisia, Que ningum pode escapar. Os que para o brejo vo Morrem de epidemia Sofrem fome todo dia Os que ficam no serto.87
Conta o Dr. Amadeu Fialho que nos campos de concentrao dos flagelados da seca de 1932 os doentes de disenterias de toda ordem que pululavam aos milhares contaminavam a tudo e a todos: As sn-dromes disentricas eram abundantes, doentes havia que, privados de vasilhame prprio, enfraquecidos, nem fora de casa iam para suas necessidades naturais, e era no solo mesmo de sua palhoa onde esvoaava uma nuvem de moscas que eles expeliam suas dejees muco-sanginolentas. 87 Versos de Nicandro Nunes do Nascimento e Bernardo Vieira
brejos so as mais das vezes atacados de graves doenas infectuosas, para as quais lhes falta a necessria imunidade, e morrem aos milhares. Em todas as grandes secas do Nordeste segue-se sempre, fome; a calamidade das pestes para completar o quadro da tragdia nordestina. Na seca de 77 os retirantes que desciam dos sertes cearenses e se concentravam na capital da provncia 88 eram exterminados em massa pelas epidemias de varola, de febres biliosas, de disenterias. A epidemia de varola tomou to tremendo vulto que Fortaleza, com sua populao de 124.000 indivduos, assinalou a existncia de 80.000 variolosos. Naquele terrvel ano de 1878 a febre biliosa, o beribri, a anasarca, a disenteria, a varola, [pg. 237] haviam povoado os cemitrios, diz-nos Rodolfo Tefilo. Na cidade de Fortaleza, em 12 meses sepultaram-se nos cemitrios de S. Joo Batista e Lagoa Funda 56.791 pessoas, mortandade espantosa para uma populao de 124.000 almas. As pestes despovoavam a cidade, o cataclismo da seca se estendia em suas funestas conseqncias at costa. Num depoimento antigo, dando um balano das perdas na terrvel seca, depoimento transcrito por Edmar Morel no seu interessante livro-reportagem sobre o Pe. Ccero do Juazeiro, encontram-se estas cifras assustadoras: o sculo dezenove v dez grandes invernos e 7 grandes secas. Destas a de 1845 tem gravssimas conseqncias para o gado e a de 1877-1879 torna-se clebre. Ela determina a mortandade de 500.000 habitantes do Cear e vizinhanas, ou cerca de 50% da populao. Nas grandes secas em geral, porm, a mdia da mortandade no costuma exceder 33%. Dos mortos de 1877 a 1879 calcula-se que 150.000 faleceram de inanio indubitvel, 100.000 de febres e outras doenas, 80.000 de varola e 180.000 da alimentao venenosa ou nociva, de inanio ou mesmo exclusivamente de sede.89 Dos retirantes que, acossados pelo flagelo, em suas mltiplas investidas, se
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A ao dos fatores climticos, principalmente das secas, vai alm da formao do tipo tnico regional. Ela influi tambm sobre as condies nosolgicas do estado. A histria das secas demonstra que as epidemias esto sempre associadas fome e sede. As secas atuam, pois, de uma maneira direta e de uma maneira indireta sobre a noso-logia do estado. Atuam diretamente causando a decadncia organo-fi-siolgica das populaes e indiretamente provocando o xodo dos flagelados que, em sua peregrinao atravs do hinterland brasileiro, adquirem molstias e trazem-nas de retorno aos primitivos lares. Num e noutro caso, os cataclismos climticos contribuem poderosamente para a constituio de um quadro nasolgico complexo, em que avultam a disseminao e a multiplicidade das endemias. (Gonzaga, A. Gavio, op. cit.) 89 Morel. Edmar. Padre Ccero, Rio, 1946.
dirigiram para a Amaznia atrados pela miragem do ouro branco calcula-se que meio milho90 foi dizimado pelas epidemias, pelo paludismo, pela verminose e pelo beribri. O grosso dos casos de beribri verificados na epidemia que assolou a Amaznia, durante o ciclo da borracha, era formado por nordestinos da rea da seca. Sertanejos que chegavam ao inferno verde sem nenhuma reserva de vitaminas, e, que se no caam de beribri na sua prpria terra que l pouco comiam, no sobrecarregando o organismo com material a metabolizar. Na Amaznia, com novo regime alimentar quantitativamente mais abundante custa das conservas e da farinha de [pg. 238] mandioca, processava-se o desequilbrio nutritivo e surgia a praga terrvel das polinevrites beribricas. A Amaznia, ou melhor o Acre, que era seu ponto de atrao mais forte, foi o grande sorvedouro de vidas sertanejas: O Acre como outro mundo: pode ser muito bom mas quem vai l, no volta mais, diz em tom melanclico um personagem de A Bagaceira,91 que assim fala mas que tambm acaba partindo passivamente para o inferno verde. Uma das causas desta absurda mortandade dos sertanejos nordestinos no vale amaznico era a absoluta incria com que se procedia imigrao do flagelado para a nova rea. Afirmava Euclides da Cunha que no conhecia na histria exemplo mais anrquico de emigrao do que a realizada desde 1789 entre o Nordeste e a Amaznia. Escrevendo sobre Euclides da Cunha, o escritor Silvio Rabello 92 retratou a improvisao da colonizao amaznica com as seguintes palavras: O sertanejo que se dispusera a penetrar na Amaznia dificilmente conseguia adaptar-se s condies nosolgicas da regio. Em regra, sucumbe s febres ou ao regime de carncia. A terra recm-aberta ao povoamento estava longe de ser um leito macio para seus desbravadores. ainda um pantanal que espera os mais elementares cuidados de engenharia sanitria. A umidade e o calor so ali meios de cultura ideal aos germes
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As selvas amaznicas devoraram mais de 500.000 criaturas emigradas do Nordeste brasileiro, meio milho de vidas, mais do que a populao normal do estado! de uma eloquncia cruel. Este ttrico ossrio foi o alicerce da desgraada indstria da borracha. (Aurlio Pinheiro, A Margem do Amazonas, S. Paulo, 1937.) 91 Almeida. Jos Amrico de. A Bagaceira. Rio. 6. edio, 1936. 92 Rabello. Slvio Euclides da Cunha e o Mistrio da Amaznia, in nmero especial de D. Casmurro, maio de 1946.
mortferos. Por outro lado, nenhum esforo realiza o colono para adaptar-se sua nova condio de vida. Continua com os seus antigos hbitos: a mesma alimentao, o mesmo vesturio, o mesmo tipo de habitao. A terra e o homem no se aproximam nem se entendem reciprocamente. Ainda por ocasio da chamada batalha da borracha, que se desenvolveu durante a ltima guerra, dos 30.000 nordestinos que foram levados como soldados desta batalha, afirma-se que um nmero impressionante deles pereceu, abandonado nas zonas dos seringais. O fato alcanou tais propores que levantou grande celeuma na Assemblia Nacional.93 [pg. 239] Depoimentos interessantes a respeito so tambm o discurso pronunciado pulo Deputado Paulo Sarasate e o informe prestado pelo Sr. Firmo Dutra, ento presidente do Banco da Borracha, perante a Comisso de Investigao Parlamentar, e no qual opina ser o desastre desta mortandade oriundo da falta de adaptao racional desta gente jogada sem nenhuma preparao nos perigosos igaraps da Amaznia. Numa reportagem sobre o assunto, dos jornalistas David Nasser e Jean Manzon, l-se o seguinte: A guerra terminou. Os cearenses que tinham partido no voltaram. Uns voltaro, talvez, porque, dos 54.000 soldados da borracha segundo os dados apresentados na Assemblia Nacional Constituinte pelo Deputado Paulo Sarasate a maior parte dorme sombra das florestas amaznicas. Morreram longe dos seus, por um sonho de riqueza, pela esperana de melhores dias. O Exrcito da Borracha ainda hoje moribundo, espalhado, derrotado, faminto e errante, como em terra inimiga, perdido entre as rvores enormes, afogado nos pntanos do deserto verde, definitiva e inapelavelmente vencido. O treme-treme, a ter maligna, a disenteria amebiana, a fome, a absoluta falta de recursos eram mais fortes que a coragem, a dedicao, a bravura e a teimosia dos homens do Cear, da Paraba do Norte, da Bahia e do Rio Grande do Norte. De tifo, de disenteria, de bouba, de tuberculose, de paludismo vo as populaes de retirantes se rarefazendo num brbaro processo de reequilbrio da situao econmica das regies superpovoadas com a sua abrupta invaso. Sobre o problema da tuberculose doena to difundida, de aspecto to verstil e de interligao com tantos e to complexos fatores segundo Csar de Arajo,
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devemos nos deter um pouco mais. No se sabe muita coisa sobre os coeficientes epidemiolgicos do serto desde que o problema da tuberculose rural tem sido pouco estudado, mas com os poucos elementos de que se dispe pode-se, contudo, afirmar que no Nordeste a incidncia do mal bem alta na regio da mata e no litoral mais do que na regio do serto. No mapa sobre a incidncia de tuberculose no Brasil, destaca-se bem o fato de que na zona semi-rida do Nordeste os graus de incidncia so fracos ou moderados, enquanto nas zonas da mata e do litoral se apresentam fortes ou muitos fortes... Num trabalho do Dr. Csar de Arajo. A Tuberculose Rural e nos Pequenos Centros Urbanos, apresentado ao 2. Congresso Nacional de Tuberculoso em 1941, trabalho magistral [pg. 240] sobre o assunto, seu autor destaca a pobreza de dados informativos acerca da tuberculose rural em quase todos os estados do Nordeste. Apenas Pernambuco e Bahia permitem certa apreciao do problema atravs dos dados colhidos em algumas de suas reas. Com os elementos estatsticos de 8 cidades de Pernambuco, 4 da zona da mata e 4 da zona do serto, obtivemos os seguintes ndices de mortalidade nas duas zonas: 212,7 por 100.000 na zona da mata e 161,2 por 100.000 na zona do serto (o coeficiente na capital do estado de 268 por 100.000). Nestes altos coeficientes do litoral e da mata esto includos os numerosos casos de retirantes que vieram do serto de corpo aberto para se infestarem nestes grandes focos de infeco, e nos coeficientes do serto esto outros tantos que, depois de se terem infectado na mata, voltaram com o trmino da seca para seus ambientes familiares, para a disseminarem a terrvel peste branca. Dos que sobrevivem a estes diferentes males e passam a constituir populaes adventcias das cidades do litoral, grande parte fica sempre aguardando as notcias de cima, notcias de que o flagelo passou com a queda das primeiras chuvas, para voltar sua gleba e recomear o seu destino de predestinados, a lutar sem esperanas de vitria contra o eterno ciclo de calamidades. Assim se constituram grandes massas de populaes marginais nas capitais do Nordeste. Muitas das cidades do litoral nordestino mantm permanentemente populaes deste tipo. No Recife, nos mangues do Capibaribe, desenvolveu-se uma verdadeira cidade de mocambos que cresce em seguida a cada seca com os novos casebres levantados no charco por levas de retirantes. A maior parte dos que descem
debatido em sesso de 18 de julho de 1946.
do serto acossados pelo flagelo a fica vivendo uma vida de inadaptados e vencidos, num regime de carncia que uma continuao do martrio, da fome no serto. Numa srie de contos que enfeixamos em volume, sob o ttulo de Documentrio do Nordeste, j fixamos quadros da vida dessa gente que vive atolada nos mangues se sustentando de caranguejo da pesca de caranguejos e siris, chafurdando nesse charco onde tudo , foi ou vai ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resduos que a mar traz, quando ainda no caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela e vive dela. E o homem que a vive se alimenta desta lama sob a forma do caranguejo . As populaes mantidas atravs desse [pg. 241] trgico ciclo do caranguejo representam um resto do monturo humano que o vento quente das secas joga nas praias do Nordeste. Em torno de Fortaleza vivem populaes ainda mais miserveis, algumas se alimentando apenas de verduras silvestres beldroegas e. manjangomes cozinhadas com sal e comida com os arus espcie de molusco , muito abundantes nas lagoas da regio. A misria dessa gente chega a tal ponto que para espanto de Rodolfo Tefilo eles chegam a comer os ovos dos arus: at os ovos de aru comem. Tanto tm de belos os ovos deste animal como de repugnantes. Nos caules das plantas aquticas, s margens das lagoas, fazem a postura em filas de pequenas esferas cor-de-rosa que se agrupam numa extenso de cerca de 5cm. Os ovos contm um lquido gosmento, adocicado, parecendo uma mistura de sangue e pus de abscesso. No se admiraria o Dr. Rodolfo Tefilo de que esses famintos fizessem dos ovos do molusco o seu caviar caviar de flagelado se soubesse que em certas regies do Mxico os nativos consomem os ovos de uma mosca axayaati , cuja postura espalhada sobre as guas forma crostas gelatinosas em sua superfcie: A axayaati uma mosca prpria dos lagos mexicanos. Dos ovos inumerveis que pe nos juncos, nas gladolas e nos lrios do lago, formam-se grossas crostas que os pescadores vendem nos mercados. Esta espcie de caviar chamado de ahuauhtli se comia no tempo dos mexicanos e ainda hoje manjar comum nas mesas dos espanhis. Tem quase o mesmo sabor que o caviar dos peixes, porm os mexicanos antigos no s comiam os ovos como tambm as moscas reduzidas a massa e cozidas com sal.94
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Clavijero, Francisco, Histria Antigua de Mxico, publicada pela primeira vez em 1870,
Nenhum povo do mundo, exceo talvez do chins, se mostra to enraizado a uma terra que periodicamente se mostra to ingrata, como o sertanejo ao Nordeste. Perscrutando a alma singular do povo chins, povo que sofre h milnios as agruras peridicas de todos os tipos de cataclismos naturais secas, inundaes, terremotos, tufes, epidemias de gafanhotos etc. e se mantm sempre preso a esta terra to martirizante, Keyserling escreveu as seguintes [pg. 242] palavras: No h outro campons no mundo que d tal impresso de identificao absoluta com a terra. De participar tanto da vida da terra. Tudo a toda a vida e toda a morte se desenrola na terra herdada. o homem que pertence ao solo, no o solo ao homem.95 Tambm no serto do Nordeste o homem, apesar do seu seminomadismo, est rigidamente apegado terra. Ainda hoje os fazendeiros so conhecidos muitas vezes pelo seu nome prprio e do lugar: Antnio Pedro tio Salgadinho, seu Juca de Serra Branca, Manoel Basto do Arvoredo... Nomes dos homens e das terras como na Idade Mdia, afirma com certo orgulho, o sertanejo Luiz da Cmara Cascudo. 96
13. No somente agindo sobre o corpo dos flagelados, roendo-lhes as vsceras e abrindo chagas e buracos na sua pele, que a fome aniquila a vida dos sertanejos, mas tambm atuando sobre o seu esprito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta social. Nenhuma calamidade capaz de desagregar to profundamente e num sentido to nocivo a personalidade humana como a fome quando alcana os limites da verdadeira inanio. 97 Fustigados pela imperiosa necessidade de alimentar-se, os instintos primrios se exaltam e o homem, como qualquer animal esfomeado, apresenta uma conduta mental que pode parecer a mais desconcertante.98 Muda o seu comportamento como muda o de todos os seres vivos
reeditada em 1944. 95 Keyserling, H. von, Le journal de Voyage dun Philosophe Paris, 1935. 96 Cmara Cascudo, Luiz da, Vaqueiros e Cantadores, 1939. 97 A fome no somente um fator de destruio da sade e do vigor fsico. Ela ainda, em maior grau, um fator de desagregao moral. Na spera luta para manter a vida, todos os escrpulos ficam esquecidos. Vizinhos ficam contra vizinhos e os fortes sem nenhuma contemplao com os fracos. (Sergius. Morgulius, op. cit.) 98 No sertanejo nordestino o imprevisto de sua conduta constitui um dos traos caractersticos de sua personalidade at certo ponto impene-trvel: O homem do serto pratica atos inesperados por todo mundo e por ele prprio, informa Gustavo Barroso. E acrescenta que quando se procura, indagar os mveis de seus atos delituosos responde num tom de abatimento: sei l, foi uma coisa que me deu... (Heris e Bandidos, 1931.)
alcanados pelo flagelo nesta mesma rea geogrfica. [pg. 243] L-se numa memria do Pe. Joaquim Jos Pereira,99 vigrio do Rio Grande do Norte, que na seca de 1792 apareceu na regio uma tal quantidade de morcegos que mesmo de dia atacavam as pessoas e os animais. Confirma o fato Rodolfo Tefilo quando escreve que a praga de morcegos conhecida em todas as secas, com especialidade na de 1792, comeava a aparecer fazendo estragos em alguns pontos da provncia. Verifica-se, assim, que estes animais comumente de vida noturna, excitados pela fome passavam a agitar-se durante o dia, atacando os prprios homens, os quais normalmente eles temem. As pragas de serpentes, pestes de cascavis que surgem habitualmente aps as grandes secas traduzem tambm a mudana de comportamento desses animais que, nas quadras de abundncia, vivem quase sempre em suas tocas e que, em conseqncia da fome, nos perodos de seca passam a se agitar de maneira alarmante. Depois da grande seca (1877) desenvolveu-se em toda a provncia um mal terrvel. A cascavel Crotalos horridos devastou os sertes de um modo assombroso. Apareciam estes terrveis rpteis com tal abundncia que indivduos havia que tinham morto para mais de 500 em pouco tempo. A vida do sertanejo e do gado que escapou da seca corria o risco de acabar ao dente do peonhento animal. Assim escreve Virglio Brgido, no prefcio a A Fome, de Rodolfo Tefilo. evidente que a idia a desenvolvida, da assombrosa abundncia de rpteis, exprime, na verdade, a maior freqncia com que eles aparecem e topam com o sertanejo. Embora Roquette Pinto atribua ao calor excessivo uma mais rpida evoluo nos ovos da cascavel, temos a impresso de que a peste mais produto da mudana de hbitos do animal do que de um aumento de proliferao da espcie, mesmo porque so animais ovparos, e o calor s muito indiretamente poderia afetar o nmero de filhos de cada ninhada. a fome que joga as cobras para fora de suas tocas, espalhando-as famintas e furiosas pelos caminhos, pelos currais, pelos ptios e at pelas casas dos fazendeiros. Noutras reas de fome do mundo, observadores avisados tm verificado estranhas mudanas na conduta de animais tanto domsticos como selvagens, quando expostos aos rigores da fome. Conta Pedro-Pons que, durante a epidemia de
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fome que [pg. 244] grassou em Barcelona com a guerra civil espanhola de 1936 a 1939, os ces vagabundos aumentaram consideravelmente, enchendo as ruas com as suas tropelias. As imagens de rua oferecidas pelos ces que buscavam com af alimentar-se, uns secos, com as costelas salientes, outros fofos e inchados, com andar fatigado e plos caducos, frequentemente com paralisia de uma pata traseira, foram contemplados por qualquer indivduo medianamente observador, escreveu Pedro-Pons, em seu livro Enfermidades por Insuficincia Alimentcia, 1940. Na descrio rpida que o autor nos faz destes animais logo se identificam as vrias espcies de fomes especficas de que padeciam: carncias proticas e avitaminoses. Como animais domsticos, integrados vida dos grupos humanos, os ces se apresentam com aspectos muito semelhantes aos das populaes humanas submetidas ao flagelo da fome. Contam cientistas da Smithsonian Institution, de Washington, que na regio de Waterberg, no Transvaal africano, depois da terrvel seca de 1913, mudaram-se os costumes dos animais da regio: muitos carnvoros noturnos caam agora de dia e os leopardos, contrariamente aos seus hbitos, atacam de tarde os acampamentos. Os baboons, grandes monos que antigamente no se moviam no escuro, parecem no dormir mais em busca de alimentos noite e dia. Os ces selvagens passaram a ser extremamente agressivos e assim por diante. Como estes animais, voltamos a insistir, tambm o homem capaz de alterar a sua conduta, quando acossado pelos martrios e estragos da fome. Dissemos no prefcio primeira edio deste livro que no nos interessava diretamente o estudo da fome individual, nem em seu aspecto estritamente fisiolgico, nem em seu aspecto psicolgico; no entanto, para que se possa entender a possvel interferncia deste fenmeno sobre o comportamento social da coletividade sertaneja, temos necessidade de fixar em rpidas linhas como atua biologicamente a falta prolongada de alimentos sobre a organizao psquica do indivduo. Quando uma calamidade desaba sobre nossa vida, nossas sensaes e percepes, nossos rgos e sentidos tendem a tornar-se extremamente sensveis a todos os fenmenos dessa calamidade e a todos os objetos correlatos, escreveu P. Sorokin, em sua obra clssica, Man and Society in Calamity, 1942. [pg. 24] Quanto
irritabilidade nervosa, chega-se mesmo a um estado de fria ou raiva, chamada pelos navegadores dos sculos XVI e XVII, bons conhecedores das crises de alimento, de hidrofobia da fome. Encontramos um depoimento curioso desses estados nervosos na obra de Jean de Lry,quando conta seu regresso do Brasil Europa em 1558, a bordo do navio James. Diz o cronista: Vindo a faltar por completo os vveres, em princpios de maio, dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar, como de praxe. E depois de narrar as peripcias da fome a bordo do navio desgarrado, conclui que durante estas fomes rigorosas, os corpos se extenuam, a natureza desfalecemos sentidos se alienam, o nimo se esvai, e isso no s torna as pessoas ferozes, mas ainda provoca uma espcie de raiva, donde o acerto do dito popular: fulano enraivece de fome, para dizer que algum est sofrendo falta de alimento. (Viagem Terra do Brasil, escrito em 1577.) No mecanismo fisiolgico desta exaltao de ira entram vrios fatores, entre os quais se destaca a queda do teor de glicose no sangue e nos humores. Maraon100 atribui hipoglicemia importante papel no mecanismo nervoso da fome, provocando uma hiperexcitabilidade dos centros nervosos. A sensao de fome no uma sensao contnua, mas um fenmeno intermitente com exacerbaes e remitncias peridicas: De incio, a fome provoca uma excitao nervosa anormal, uma extrema irritabilidade e principalmente uma grande exaltao dos sentidos, que se acendem num mpeto de sensibilidade, a servio quase que exclusivo das atividades que conduzam obteno de alimentos e, portanto, satisfao do instinto mortificador da fome. Destes sentidos h um que se exalta ao extremo, alcanando uma acuidade sensorial incrvel: o sentido da viso. No faminto, enquanto tudo parece ir perecendo aos poucos em seu organismo, a viso cada vez mais se vai acendendo, vivificando-se espasmodicamente. Veja-se a descrio que nos faz dos flagelados um escritor do Nordeste: Mais mortos do que vivos. Vivos, visssimos s no olhar. Pupilas do sol das secas. Uns olhos espasmdicos de pnico como se estivessem assombrados de si prprios. [pg. 246] Agnica concentrao de vitalidade faiscante.101 Sob a ao desta dolorosa
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Maraon, Gregorio, Rgulacin Hormonal del Hambre, in Estudios de Endocrinologia, Buenos Aires, 1938. 101 Almeida, Jos Amrico de, A Bagaceira.
sensao, o homem mais do que nunca se manifesta como um animal de rapina,102 com o olhar certeiro varando os espaos em busca da presa que lhe aplaque a fome. nestas horas que o sertanejo se torna um caador insupervel, pressentindo no movimento leve de uma folha ou na queda imperceptvel de um torro de barro a vibrao assustada do nambu, que se oculta numa touceira de macambira, ou do pre faminto acoitado nos serrotes. tambm nesta hora que ele se faz muitas vezes cangaceiro. Em penetrante e sutil ensaio sobre a arte da caa, que serve de prefcio ao sugestivo livro de Conde de Yebes, Vinte Aos de Caza Mayor, Orteza y Gasset, analisando os motivos geradores do caar, aponta como dos fundamentais a escassez da prpria caa. O fato de que no universo se cace pressupe que exista e tenha existido sempre pouca caa. Se superabundasse, no existiria este peculiar comportamento dos animais, entre eles o homem, que distinguimos com o preciso nome da arte de caar. Como o ar existe de sobra no h uma tcnica da respirao e respirar no caar ar.103 Cr, pois, o filsofo espanhol que a conduta do animal caador se moldou sob o influxo da relativa escassez do animal presa em seu mundo circundante. Mostra, a seguir, o pensador, como o sentido que mais agudamente trabalha no caador o da viso: O caador o animal alerta. a vida com o integral alerta, a atitude que o animal mantm na selva. Aproxima-se assim o caador do animal selvagem, vivendo com a vivacidade e a iminncia da selvageria. Nesta fase desaparecem todos os outros desejos e interesses vitais e o pensamento se concentra ativamente em descobrir o alimento por quaisquer meios e custa de quaisquer riscos. Exploradores e pioneiros que, em suas aventuras, caram nas garras da fome, nos deixaram uma documentao rica de detalhes [pg. 247] desta obsesso do esprito, polarizada num s desejo, concentrada numa s aspirao comer.104 Em seguida a esta fase de exaltao, vem a fase de apatia, de tremenda
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O animal de rapina, assevera Spengler, a forma suprem a da vida movedia: significa o mximo de liberdade, com respeito aos outros e a si mesmo, o mximo de responsabilidade prpria e de solido, o extremo da necessidade de afirmar-se lutando, vencendo e aniquilando. Spengler, Osvald, El Hombre y la Tcnica, 1932. 103 Ortega y Gasset, Dos Prlogos a un tratado de monteria, a una historia de la filosofia, Madrid, 1944. 104 Consultem-se sobre este aspecto as seguintes obras: F. Nansen, Farthest North, 1897; R. Peary. Northward Over the Great Ice. 1898; e E. Mikelsen, Lost in the Artic. 1913.
depresso, de nusea e de dificuldade de concentrar-se. Knut Hamsun descreve muito bem estas crises cclicas de emotividade no seu heri autobiogrfico da Fome, passando da irritabilidade extrema ao quietismo mrbido, ora irritado, ora manso, ora perverso, ora magnnimo, sem aparente razo de ser. Este ritmo psquico que se evidencia to caracteristicamente nas pocas calamitosas do serto deve ter pesado nos julgamentos de alguns autores quando, procurando caracterizar o temperamento do sertanejo, vem nele um tipo ciclotmico, 105 um sintonizado com as extremas solicitaes ambientes. A verdade que, se por algumas de suas qualidades mentais seu realismo e seu sentido prtico das coisas o sertanejo insere sua personalidade individual na vida social, maneira dos ciclotmicos de Kretschmer, por outras muitas de suas caractersticas psicossomticas lembra mais um esquizotmico acentuado. Sua tendncia ao isolamento, seu exaltado sentimento de liberdade, caracterstica esta a que Martius e depois Capistrano de Abreu 106 deram grande e justa importncia, como fator de povoamento da regio, e tambm sua constituio biotipolgica de longilneos atlticos ou diplsicos, todas estas qualidades do ao sertanejo nordestino um painel com muitos traos de uma esquizotimia tpica, atingindo, em certas eventualidades, [pg. 248] s raias da patologia individual e social, com seus esquizides e esquizofrnicos francos. Seus cangaceiros sanguinrios e seus beatos fanticos. A nossa impresso que este o tipo predominante no serto: o esquizotmico, com sua curva de temperamento instvel. Estes estados de esprito extremos representam, em ltima anlise, as exteriorizaes do tremendo conflito interior que se trava entre os impulsos e instintos da fome e os que levam a satisfao de outros desejos e aspiraes. Entre a alma do homem e a do animal de rapina, entre o anjo e o demnio que simbolizam a ambivalncia mental da condio humana.
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Pompeu Sobrinho, que assim opina, atribui em grande parte o suposto ciclotimismo do sertanejo herana do indgena, que contribuiu com um grande contingente para sua etnogenia. Djacir Menezes faz tambm referncia a esse ponto de vista, ligando a constituio ci-clotmica grande plasticidade e capacidade de adaptao do homem do serto a outros ambientes naturais e culturais (O Outro Nordeste. 1937). Ver tambm, sobre a teoria dos temperamentos. Kretschmer. Manuel Thorique et Pratique de Psychotogie Medicale. 1927. e Ramos, Arthur, Introduo Psicologia Social, 1936. 106 ... os fazendeiros vo se estabelecendo em suas terras, ou por incit-los o esprito de liberdade que, segundo o ilustre Martius, foi o precursor dos povoamentos dos sertes do Norte, ao contrrio dos do Sul, de que a ambio do lucro foi a grande alavanca. Abreu. Capistrano de, Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, 1930.
Nestes limites j bem perigosos para a segurana do esprito, a personalidade se vai desagregando, se esfumaando e apagando as suas reaes normais a inmeras outras solicitaes do meio exterior, sem correlao com a fome. Nesta desintegrao do eu desaperecem as atividades de autoproteo, de controle mental e d-se, finalmente, a perda dos escrpulos e das inibies de ordem moral. Esta total transformao da personalidade se constata facilmente com os vaqueiros, prottipo da estrutura social da regio. Nos sertes do Nordeste o vaqueiro , em geral, srio, de uma hostilidade a toda prova. gente capaz de tratar durante anos uma rs perdida, ficando sempre espera do legtimo dono. Euclides da Cunha que nos conta este velho hbito sertanejo: Quando surge no seu logradouro um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrrio, conserva o intruso, tratando como aos demais. Mas no o leva feira anual nem o aplica em trabalho algum, deixa-o morrer de velho. No lhe pertence. Se uma vaca e d cria, ferra esta como o mesmo sinal desconhecido que reproduz com perfeio admirvel e assim pratica com toda a descendncia daquela. De 4 em 4 bezerros, porm, separa um para si, a sua paga. Estabelece com o patro desconhecido o mesmo convnio que tem com o outro. E cumpre estritamente sem juizes e sem testemunhas o estranho contrato que ningum escreveu ou sugeriu. Fruto exclusivo de sua frrea honestidade. Tambm quando uma rs qualquer de ferro desconhecido d para ladrona, derrubando cercados e devastando lavouras, conta-nos Xavier de Oliveira que os fazendeiros da redondeza se renem, avaliamna, cotizam-se entre si, fazem uma matutagem da mesma e a dividem proporcionalmente [pg. 249] cota de cada um, e quando o dono aparece recebe a quantia exata por que foi avaliada sua rs. isto to nobre e honroso como comum na velha virtude sertaneja (Beatos e Cangaceiros, 1920). Pois esta gente de princpios morais to elevados d, na poca da seca, para roubar o gado alheio, para roubar cabras, como aquele Chico Bento, personagem de O Quinze que, num destes delrios de fome, perdeu os escrpulos morais e, com as mos trmulas, a garganta spera e os olhos afogueados, derrubou a cacete o animal alheio que se atravessou em seu caminho de retirante. Estes desvios das convenes morais constituem muitas vezes o comeo de uma vida de bandoleiro, numa terra de princpios morais to rgidos. Depois da transgresso, j no possvel voltar aos caminhos honestos e
esquecer o erro cometido. Apagada assim a conscincia, prossegue o conflito inconsciente entre as foras de satisfao do instinto de, nutrio e as foras de outros interesses humanos, predominando um dos dois grupos, de acordo com o que Sorokin chama a lei da diversificao e polarizao dos efeitos originando, em certos casos, as psicopatias graves, verdadeiras psicoses reacionais ou de situao. Assim se geram os bandidos e os santos sinners and saints das eras de calamidade. Contribuem, desta forma, as secas e as fomes peridicas que delas decorrem para a cristalizao desses tipos caractersticos da vida social do serto: o cangaceiro e o beato fantico. Tipos to significativamente inseridos, por suas razes culturais, na vida sertaneja, a tal ponto associados em sua atuao social que se constituem muitas vezes como uma s personalidade o beato-cangaceiro, como o clebre Bento da Cruz, de Juazeiro, assassino de seu pai, que com uma cruz numa mo e um punhal na outra,107 distribua justia na povoao, ou como os truculentos Batistas que na campanha de Canudos serviram de ajudantes de ordens a Antnio Conselheiro e que eram capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosrios... (Euclides da Cunha). [pg. 250] O cangaceiro que irrompe como uma cascavel doida deste monturo social significa, muitas vezes, a vitria do instinto da fome fome de alimento e fome de liberdade sobre as barreiras materiais e morais que o meio levanta. O beato fantico traduz a vitria da exaltao moral, apelando para as foras metafsicas a fim de conjurar o instinto solto e desadorado. 108 Em ambos, o que se v o uso desproporcionado e inadequado da fora da fora fsica ou da fora mental para lutar contra a calamidade e seus trgicos efeitos. Contra o cerco que a fome
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Oliveira. Xavier de, Beatos e Cangaceiros, 1920. Neste livro o escritor nordestino nos apresenta 13 perfis, impressionantes por seu realismo, de malsinados heris deste tipo. um documento inestimvel da histria dos sertes pela fidelidade dos retratos e pelo vigor descritivo com que foram pintados. 108 No necessrio que se seja ortodoxamente um materialista histrico para que se reconhea a influncia dos fatores econmicos nas manifestaes de formas religiosas: O homem no somente esprito, ele possui um corpo, ele sofre necessidades. Ele trabalha para satisfa-z-las e a religio no nele muitas vezes seno uma estratgia de seus instintos buscando sua satisfao assim nos fala um dos maiores estudiosos dos problemas sociolgicos da religio, Roger Bastide, em lements de Sociologie Religieuse (Paris, 1935). Tambm Frazer julga o totemismo, ncleo da religio de certos grupos primitivos, de origem puramente alimentar, tendo como finalidade evitar as fomes coletivas, e Max Weber v na magia o esforo do selvagem para servir seus instintos materiais.
estabelece em torno destas populaes, levando-as a toda sorte de desesperos.109 Estudando a gnesis do jaguno, os fatores que condicionam a formao de um Antnio Conselheiro, fantico cangaceiro, sntese de toda a psicologia da sociedade que o formou, Euclides da Cunha d grande relevo ao fator alimentar, ao ascetismo forado ou voluntrio do heri: Vinha do tirocnio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angstias recalcadas, e das misrias fundas... Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados com requinte de ascetismo que surpreenderia Tertuliano, este sombrio propagandista da eliminao lenta da matria. Demonstrativos desta influncia da fome peridica na gnesis do cangaceiro so as seguintes palavras de Gustavo Barroso: Ribeiras houve regadas longos anos seguidos por invernos fecundos e abastecidas por colheitas abundantes. Durante o perodo da fartura, no surgiu um bandido. [pg. 251] Os enxotados das vizinhanas no pousavam, porque lhes davam caa. Vieram secas. Os seareiros fugiram para os povoados, emigraram para a Amaznia, ou de agricultores se tornaram mseros cabreiros. As terras amaninharam-se abandonadas. O cangaceiro veio de fora e domiciliou-se ou irrompeu da prpria gente arruinada (Heris e Bandidos, 1917.) O mesmo pensou Afonso Arinos quando escreveu: Em perodos de instabilidade social, provocados por causas de natureza econmica (causas estas que evidentemente no so as mesmas, embora produzissem resultados anlagos), o tipo humano a que se convencionou dar, no Nordeste, o nome de Cangaceiro, aparece, se instala e. domina a imaginao e at certo ponto a vida popular da regio. (Prefcio do livro Terra de Homens, de Ademar Vidal, 1944.) No se pense que, num impulso de biologismo que seria um tanto ingnuo, vamos chegar ao extremo de atribuir s fomes peridicas uma ao determinante e exclusiva na formao destes tipos sociais. Claro que no. Inmeros outros fatores hoje bem conhecidos e estudados interferem em sua elaborao, traando mesmo as direes gerais do fenmeno, esboando em linhas um tanto imprecisas as suas tendncias bsicas, mas no h dvida que o cataclismo social precipita seu aparecimento, provocando a sua cristalizao definitiva. 110
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A populao do Nordeste brasileiro constitui uma populao em estado de cerco por causa da inclemncia de seu clima. Esta espcie de estado de cerco d uma fisionomia particular a essa gente e a sua psicologia. Pierre Dffontaines no prefcio do livro de C. A. Barbosa de Oliveira, LHomme et la Scheresse. 1938. 110 Estudo psicolgico de primeira ordem destas espcies de fuga contra o angustioso cerco
Estribando-se nas nossas concepes, Roger Bastide procurou analisar este fenmeno sociolgico com mais profundidade, analisando-o em dois estudos mais recentes e no qual se encontram preciosas observaes. 111 Nestes estudos este ilustre socilogo francs que viveu durante muito tempo no Brasil afirma que fora de dvida a existncia de um vnculo entre os fenmenos do banditismo e do fanatismo religioso e o cataclismo das secas peridicas. E afirma mais ainda que este vnculo mais visvel, mais fcil [pg. 252] de evidenciar-se no caso do fanatismo religioso. H uma pgina sua a este respeito que por sua fora evocativa e pela lucidez de sua lgica merece ser transcrita neste nosso ensaio: A seca no a nica desgraa que se abate sobre o serto. Juntam-se a ela o fanatismo religioso e o banditismo, trs fenmenos estreitamente associados. Que existe um vnculo ligando banditismo e perodos de grande seca, evidente. O nmero de cangaceiros aumenta em cada um desses perodos. Do mesmo modo que a mendicidade aumentava na Rssia ou na ndia a cada grande perodo de fome. Mas justamente porque o mesmo fenmeno a fome traduz-se ali pelo deslocamento de vagabundos, mais mendigos do que larpios, e aqui pela organizao de pequenos bandos de cangaceiros, que devemos procurar, alm desta, outras causas que possam ter influncia. A ligao entre fanatismo religioso e seca, no entanto, parece-me mais fcil de demonstrar. A histria apresenta-nos numerosos casos dela, principalmente a Idade Mdia que, na Europa, foi ao mesmo tempo o perodo das grandes fomes e das grandes crises msticas. A ndia fornece-nos exemplo anlogo com as fomes destruidoras, os iogues descarnados. O serto do Nordeste faz-nos, assim, mergulhar em plena Idade Mdia, arrasta-nos para a ndia... O vaqueiro, acuado pela misria, diante de uma terra ressequida pelo sol, de ossada de animais e de cadveres que a morte semeou, de plantas que se transformaram em coroas de espinhos ou em cravos, lanhando-o nos ps e nas mos, renovando-lhe na carne o suplcio cristo da cruz, sonha com uma terra abundantemente cortada de regatos, adornada de eterna vegetao, ofertando doces frutos. Retoma por sua conta, e mistura-os, o mito da
imposto vida do sertanejo o que encontramos no romance de Jos Lins do Rego, Pedra Bonita, no qual o autor apresenta uma famlia marcada, com vrios irmos. Um deles cai no cangao, outro no delrio mstico e o outro permanece at o final do livro num estado de desesperadora incerteza mental. 111 Roger Bastide, O Messianismo e a Fome, in O Drama Universal da Fome, Simpsio
Terra sem Males do antepassado ndio e a histria do povo de Israel saindo do Egito em busca da Terra da Promisso, que o mito do antepassado portugus. Da toda uma srie de movimentos msticos e fanticos que apenas so o reflexo desta angstia diante da fome, movimentos que se encadeiam no decorrer dos sculos, desde a pajelana, na poca das primeiras mestiagens, at o Juazeiro do Padre Ccero, na Repblica atual. Graas aos estudos mais recentes acerai da fisiopalologia da nutrio conhecem-se mesmo quais os fatores nutritivos que mais influem no equilbrio do tono emocional e por cuja falta ficam os indivduos expostos a terrveis desequilbrios. A interferncia [pg. 253] dos vrios elementos componentes do complexo B no bioquimismo cerebral e a evidncia de graves perturbaes nervosas e mentais nos casos de carncias especficas de alguns deles, como sejam de tiamina e de cido nicotnico, j no deixam mais dvida de que o estado mental se pode perturbar at os limites da insanidade, por causas de natureza carencial. Em certas sndromes neurastnicas com crises de depresso nervosa acentuada e de extrema irritabilidade, o fator avitaminose constitui, s vezes, causa nica e sua cura se faz com milagrosa rapidez com a ingesto de altas doses de vitamina B1. 112 Quanto aos fenmenos nervosos que acompanham a deficincia em cido nicotnico, so eles bem conhecidos e sistematizados, aparecendo com freqncia entre os pelagrosos, desde a simples desorientao at as formas mais complexas de psiconeurose, com confuso mental, manias, fabulaes e delrios completos.113 Ora, as carncias mltiplas que se associam nos casos de fome absoluta entre os sertanejos devem provocar distrbios nervosos por conta destas vrias deficincias. J um tropicalista bem avisado tinha afirmado que a chamada neurastenia tropical no uma doena peculiar destas reas nem causada por nenhuma ao enervante do clima, mas produto de mltiplas causas, entre as quais a m alimentao.114
publicado em 1958; e Brasil, Terra de Contrastes, no captulo V, intitulado O Outro Nordeste. 112 Spies, Tom; Bradley, J.; Rosenbaum, M. e Knott, J. R., Emotional Disturbances in Persons with Pellagra, Beriberi and Associated Deficiency States, 1943. 113 Bowman, Karl, e Wortis, Herman, Psychiatric Syndromes Cau-sed by Nutrition Deficiency, 1943. 114 Culpin, Millais, An Examination of Tropical Neurasthenia. in Proc. Roy. Soc. of Med., vol. XXVI, 1933. Neste trabalho o autor apresenta dados estatsticos, pondo em evidncia a alta incidncia das perturbaes mentais dos colonos ingleses nos trpicos. Dos casos de invalidez dos funcionrios britnicos da frica Oriental Britnica, 45% so consequentes a perturbaes
Mordem Carthew 115 tambm incluiu a dieta inadequada como um dos fatores de deteriorizao do estado mental dos colonos nas regies tropicais. Na etiologia de uma das formas mais espetaculares de neurastenia aguda, comum nas terras tropicais do Oriente, principalmente na pennsula de Mlaca e nas ndias Orientais Holandesas, nesta loucura violenta acompanhada [pg. 254] de terrvel instinto assassino o amok deve entrar certamente o fator carencial. Basta pensar que a doena comum nas zonas de alimentao mais precria, zona da mono-extrao da borracha ou da monocultura da cana-de-acar, e basta atentar na descrio do mal que arrasta indivduos, dos estados de depresso melanclica em que estas populaes subnutridas vegetam, para os estados de agitao extrema, estados de verdadeira hidrofobia de fome, num mpeto de violncia-incontida. Vejamos a descrio, embora um tanto literria, porm fiel; que Stefan Zweig nos d do amok, e procure-se decompor neste quadro descritivo os vrios elementos que exprimem os estados emocionais que apresentamos, como componentes do quadro psquico da fome extrema: a desagregao mental, a perda dos escrpulos morais, a monomania aguda, a excitao desmedida e a sinistra exploso de raiva. Assim escreve Zweig: Sabeis o que o amok?... mais do que embriaguez, loucura. uma espcie de raiva humana, literalmente falando... Uma crise de monomania assassina e insensata, qual nenhuma excitao alcolica se pode comparar... Um nativo de tipo tranqilo est tomando calmamente uma bebida com ar aptico e indiferente, e bruscamente salta, agarra o punhal e precipita-se para a rua... Corre sempre em linha reta, sem saber para onde... Tudo o que encontra no caminho, homem ou animal, abate com a arma, e o cheiro do sangue o vai tornando cada vez mais violento... Enquanto ele corre, a baba lhe vem aos lbios, e. urra como um possesso, corre sempre, sem ver nada nem direita nem esquerda, sempre a urrar de maneira cruel e sempre com a arma ensangentada na mo... As pessoas da aldeia sabem que nenhuma fora humana pode conter aquele que est possudo desta crise de loucura sanguinria e quando o vem gritam de longe o sinistro aviso: amok! amok! E todos fogem... Mas, ele. sem nada ouvir, prossegue na sua louca carreira; corre som nada ver e continua a matar tudo o que encontra, at que seja
neuromentais, a neuropsicoses. 115 Carthew, Morden, The Etiology and Prophylaxis of Mental Irritability in the Tropics; in Jour. of Trop. Med. and Hyg., vol. III, 1937.
abatido como um co raivoso, ou que caia aniquilado e escumando de fria...116 O mpeto sanguinrio que o amok acarreta lembra at certo ponto certas atividades dos cangaceiros que explodem inopinadamente na vida pacata do serto nordestino. [pg. 255] Alm desta ao direta sobre a personalidade do sertanejo, fazendo-os uns desorientados e desajustados, age a fome peridica desorganizando ciclicamente a economia da regio e criando um meio social extremamente receptvel s atividades do cangaceirismo e do beatismo. Meio social formado de massas humanas predispostas aceitao e adorao desses tipos singulares que simbolizam a sua aspirao de fuga misria fuga pela fora do fuzil ou pela fora da magia. A verdade que, para o sertanejo, o cangaceiro raramente um criminoso, um celerado, sendo cantado e louvado como um homem valente que joga
cavalheirescamente a sua vida para defender os oprimidos e alimentar os famintos, roubando dos ricos para distribuir com os pobres.117 As conexes entre a fome e a adorao mstica so to claras e conhecidas que quase no merecem comentrios. Todos sabem que os grandes lderes religiosos, Buda, Moiss, Maom e Cristo, todos apregoavam os benefcios do jejum, tanto para permitir uma maior elevao do sentimento mstico individual como para desenvolver nos crentes uma maior fora de adorao mstica. No foi por simples coincidncia que a Idade Mdia, com suas fomes devastadoras, se tornou o grande perodo mstico do mundo, apresentando massas humanas alternativamente atacadas de uma estpida e desesperada apatia118 e de um intenso furor mstico, atirando-as impunemente em mortferas guerras religiosas para acalmar a sua sede de fanatismo e seu apetite de esfomeados crnicos. O serto nordestino viveu at bem pouco a sua Idade Mdia. Durante a luta de Canudos, o fantico Antnio Conselheiro pregava entre os seus proslitos, conforme documentou Euclides da Cunha, os jejuns prolongados,
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Zweig. Stefan. Amok. Paris. 1932. Veja-se um tipo como Jesuno Brilhante, clebre cangaceiro que apareceu na seca de 87 varando o serto em todos os sentidos com suas faanhas hericas. Fazendo o diabo com os grandes. Dando ordens. Matando ladro. Salvando o povo. Jos Lins do Rego, Pedra Bonita. 1939. Tambm Antnio Silvino, outro clebre bandoleiro, foi sempre considerado protetor dos pobres, atacando os grandes comerciantes para distribuir os vveres com os famintos nas pocas de penria... 118 Cruschmann, F., Hungersnote in Mitelalter, citado por P. Soro-kin in Man and Society in Calamity, 1942.
as agonias da fome, a lenta exausto da vida. Dava o exemplo fazendo constar, pelos fiis [pg. 256] mais ntimos, que atravessava os dias alimentando-se com um pires de farinha. E estas pregaes encontravam eco no esprito da coletividade j acostumada aos martrios da fome. Certa vez que um padre vindo de fora, em Santa Misses, se referiu em sermo ao fato de que se poderia jejuar sem ir aos extremos da fome, comendo carne ao jantar e tomando pela manh uma xcara de caf, respondeu-lhe um fantico em aparte: ora! isto no jejum, comer a fartar! Os primeiros povoadores portugueses que a se embrenharam no sculo XVI viviam, como demonstrou Sanchez Albornoz,119 ao estudar a empresa colonizadora ibrica na Amrica, saturados de medievalismo. Viviam dentro de um esprito caracteristicamente medieval, ao mesmo tempo religioso e guerreiro, mstico e de desenfreada cobia, contrastando com o esprito burgus e heterodoxo de signo moderno, ps-renascentista e ps-luterano, que presidiu a colonizao inglesa na Amrica. Se, como afirma aquele historiador, a luta contra o Isl desviou a rota da Pennsula Ibrica e lhe deu um atraso secular em seu medievalismo, maior ainda foi esse atraso histrico em Portugal, metido em seu desterro geogrfico, separado do grande mundo pela espessa muralha da meseta castelhana deserta e dura.120 No serto do Nordeste o forado isolamento dessa gente, a falta de contatos mais seguidos com o resto do mundo prolongou estas sobrevivncias do medievalismo portugus at quase nossos dias. Djacir Menezes, estudando a alma do sertanejo, escreve: As atividades mentais das turbas sertanejas recuam no tempo. No seu folclore, nas suas crenas, nas suas tradies e nos seus folkways esto residuariamente as raas primitivas que revivem.121 [pg. 257] Foge de nossos propsitos estudar a fundo todos os fenmenos sociais que decorrem deste estado de ensinamento da vida no serto. O nosso intento foi apenas mostrar como, a nosso ver, age, por um mecanismo biolgico especial, o fenmeno
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Albornoz. Cludio Sanchez. La Edad Media y la Empresa de Amrica. Congresso de Histria de Amrica, Sevilha, 1930, publicado posteriormente in Espana y el Islam. 1934. 120 Figueiredo. Fidelino de. ltimas Aventuras, 1943. 121 Menezes. Djacir. op. cit. Loureno Filho, referindo-se a este in-sulamento do Nordeste e ao seu recuo no tempo, escreveu, no interessante estudo Joazeiro do Padre Ccero - Cenas e Quadros do Fanatismo no Nordeste: um filho do sul.... a impresso primeira, quando pelo Nordeste se interne, a que vai como num sonho recuando pelo tempo a cada passo. A vida parece que desanda e inicia um giro inverso, recuando para trs duas dezenas de anos, em cada dia de viagem...
econmico-social das fomes peridicas. Pondo em equao a influncia deste fator, ao lado de muitas outras que trabalham em conexo nesta rea, possvel obter-se uma interpretao mais justa do mistrio da barbaria sertaneja, da intolerncia e da valentia do homem do Nordeste, da sua sobranceria e do seu misticismo medieval.
14. Tivemos diante dos nossos olhos, expostos em seus traos mais marcantes, os retratos dos dois nordestes o da mata e o das secas e atravs desses quadros uma tentativa de interpretao do fenmeno da fome nestas regies. Interpretao que merece uma anlise mais circunstancial dentro do critrio geogrfico do regional. O estudo do regionalismo veio trazer uma nova e fecunda vitalidade velha cincia geogrfica que permaneceu at o comeo do nosso sculo numa atitude de estril academicismo. Atitude de desvinculao, quase que completa, com a realidade e a singularidade das diferentes paisagens vivas do mundo. Apenas ligada ao real pelo frgil fio das enumeraes de uma superficial corografia, mais descritiva do que interpretativa, mais erudita do que explicativa. Numa palavra, mais morta do que viva. Foi a focalizao mais profunda, a anlise mais dinmica dos traos que compem a fisionomia singular das unidades regionais, que veio dar geografia o seu grande sentido prtico, a sua insero ativa dentro dos valores de criao da cincia, posta a servio da vida das coletividades. Tem toda a razo o Prof. E. W. Gilbert122 em afirmar que foi atravs do estudo do regional que foi possvel recobrar, de uma nova carne, os descarnados ossos da geografia clssica. Mais do que descarnados: fossilizados pelos mtodos de uma cincia geogrfica que Ilin123 chamou, com muita propriedade, de uma geografia de fichrios e de gavetas. Com as suas fichas engavetadas, murchando e [pg. 258] amarelando por falta desta seiva que circula na vida das paisagens e que caracteriza, por excelncia, o verdadeiro fenmeno geogrfico, em permanente transformao. E pagamos bem caro por esta despreocupao da cincia geogrfica em face da realidade dinmica. Da a validez daquela frase pronunciada por um gegrafo e estadista britnico de que o custo da ignorncia geogrfica tem sido
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Gilbert, E. W. , Geography and Regionalism Geograpky in XX Century G. Taylor, 1951. 123 Ilin, M., Les Montagnes et les Hommes, 1946.
incomensurvel. Grande parte das dilapidaes das riquezas naturais, da violentao e do desequilbrio provocado pelo homem nos quadros ecolgicos regionais e mesmo das violentaes dos grupos culturais, se deve ao pouco conhecimento das realidades geogrficas em sua expresso dinmica, exercida atravs do jogo de suas interaes e implicaes do natural sobre o cultural e viceversa. Quando nos nossos dias todos os pases procuram se equipar tcnica e culturalmente para levar a efeito o desenvolvimento econmico e social dentro de planos previamente concebidos, a fim de evitar as distores e violentaes a que o empirismo econmico arrastou o mundo, os estudos de geografia regional crescem de importncia e passam a constituir a indispensvel base de trabalho para os polticos, os planificadores, os administradores, os estadistas. Sem um bom conhecimento geogrfico, que transcenda do geral para o regional e penetre alm do mundo das aparncias at as razes dos fatos ocultos, nenhum plano nem ao poltica ou administrativa poder alcanar qualquer sucesso duradouro. Ora, este nosso documentrio geogrfico da fome deve servir como instrumento de informao para todos aqueles que desejem formular uma poltica econmica para o Nordeste, capaz de libert-lo dessas taras ancestrais de sua fome e de sua misria. Para isto cumpre-nos correlacionar agora os dois nordestes em suas caractersticas complementares e suas mtuas influncias condicionadoras da sua resultante econmica: da sua realidade estrutural. Pelo Brasil afora se tem a idia apressada e simplista de que o fenmeno da fome no Nordeste produto exclusivo da irregularidade e inclemncia de seu clima. De que tudo causado pelas secas que periodicamente desorganizam a economia da regio. Nada mais longe da verdade. Nem todo o Nordeste seco, nem a seca tudo, mesmo nas reas do serto. H tempos que nos batemos para demonstrar, para incutir na conscincia nacional o fato de que a seca no o principal fator da pobreza [pg. 259] ou da fome nordestinas. Que apenas um fator de agravamento agudo desta situao cujas causas so outras. So causas mais ligadas ao arcabouo social do que aos acidentes naturais, s condies ou bases fsicas da regio. Muito mais do que a seca, o que acarreta a fome no Nordeste o pauperismo generalizado, a proletarizao progressiva de suas populaes, cuja produtividade
mnima e est longe de permitir a formao de quaisquer reservas com que seja possvel enfrentar os perodos de escassez os anos das vacas magras, mesmo porque no Nordeste j no h anos de vacas gordas. Tudo pobreza, magreza, misria relativa ou absoluta, segundo chova ou no chova no serto. Sem reservas alimentares e sem poder aquisitivo para adquirir os alimentos nas pocas de carestia, o sertanejo no tem defesa e cai irremediavelmente nas garras da fome.124 Se a regio do Nordeste no fosse uma rea subdesenvolvida, de economia to fraca e rudimentar, poderia resistir perfeitamente aos episdios das secas sem que sua vida econmica fosse ameaada e as suas populaes acossadas pela fome. Poderiam mesmo esses episdios funcionar como um fator de propulso e de expanso de sua economia. No h nada de paradoxal nesta nossa assertiva. Ela deriva de observaes levadas a efeito em diferentes pontos do mundo por socilogos e economistas, que, libertos das idias preconcebidas, so capazes de analisar os fatos em toda sua objetividade. Sobre este aspecto, Andr Piatier 125 nos traz uma preciosa contribuio quando afirma que o nvel de desenvolvimento pode ser medido ou aferido pelo grau de resistncia de uma estrutura econmica em face de uma catstrofe natural ou social: seca, inundao, revoluo, guerra. Enquanto os pases subdesenvolvidos se deixam esmagar, os pases realmente desenvolvidos reagem s catstrofes de forma positiva, estimulando suas funes de defesa e de conservao, conseguindo rapidamente apagar os efeitos catastrficos. Em sua reao chegam mesmo estes pases, em face [pg. 260] do impacto, a ultrapassar o seu ritmo habitual de progresso. Para comprovar esta sua teoria Piatier cita o caso da Trana se reconstruindo dos efeitos da ltima guerra, no prazo de 5 anos, e alcanando em 10 anos um ritmo de crescimento como o pas jamais conhecera. Cita o caso da Holanda diante da catstrofe do rompimento de seus diques h poucos anos e o da Alemanha aparentemente desmantelada por sua derrota militar e, no entanto, em dez anos refeita e economicamente poderosa. De outro lado apresenta o caso da Grcia que no dispe de foras para se recompor em face dos estragos da guerra ou das inundaes que sofreu nos ltimos anos.
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Apresentei na Cmara Federal uma srie de discursos sobre o problema e suas verdadeiras origens, dos quais destaco os dois seguintes: O Problema das Secas do Nordeste e o Desequilbrio econmico Nacional, pronunciado em 11 de julho de 1956, e Operao Nordeste de 21 de maio de 1959. 125 25. Piatier, Andr, Dveloppement Economique Regionale et Dveloppement Economique
O Nordeste subdesenvolvido, como a Grcia, ou a ndia, ou o Ceilo, no resiste ao impacto da catstrofe. A luta contra a fome no Nordeste no deve, pois, ser encarada em termos simplistas de luta contra a seca, muito menos de luta contra os efeitos da seca. Mas de luta contra o subdesenvolvimento em todo o seu complexo regional, expresso da monocultura e do latifndio, do feudalismo agrrio e da subcapitalizao na explorao dos recursos naturais da regio.126 A meu ver todo o sistema de fatores negativos que entravam as foras produtivas da regio so oriundos da arcaica estrutura agrria a reinante. Todas as medidas e iniciativas no passaro de paliativos para lutar contra a fome, enquanto no se proceder a uma reforma agrria racional que liberte as suas populaes da servido da terra, pondo a terra a servio de suas necessidades. preciso no esquecer que no Nordeste 74% de sua populao ativa se ocupa nas atividades primrias da agricultura, enquanto no resto do Brasil esta mdia de 61% apenas. Da a maior necessidade do nordestino de dispor de mais terra em condies favorveis para torn-la produtiva. Condies praticamente inexistentes no atual sistema agrrio regional. Para evidenciar esta situao basta uma cifra: 50% da rea total do Nordeste so aambarcados por 3 % dos seus proprietrios rurais e por isto que mais de 50% das propriedades contam com mais de 500 hectares de terra. Ao lado deste latifndio h a pulverizao dos pequenos retalhos de terra os minifndios improdutivos. [pg. 261] Ao arcaismo da estrutura agrria est intimamente ligado ao problema do desemprego que sem dvida um dos fatores condicionantes da alta prevalncia da fome no Nordeste. Gabriel Ardant127 afirmou com muita razo, que se vlida a existncia de uma geografia da fome, tambm vlido o conceito de uma geografia da desocupao gographie du dhmage e dentro deste conceito podemos considerar o Nordeste como uma das grandes reas geogrficas de desemprego. No apenas de desemprego ostensivo e endmico, mas do desemprego dissimulado, mascarado, parcial ou estacional. Sob estas diversas formas h um grande
Nationale, conferncia realizada no Cairo em 1957. 126 Campos, Alosio, Realidade econmica e Planejamento do Nordeste, Banco do Nordeste, 1956.
desperdcio da mo-de-obra nesta rea do pas pesando de maneira extremamente negativa na evoluo da economia regional. Qualquer plano de desenvolvimento desta regio visando elevao dos seus nveis de vida tem que centralizar seus objetivos ou alvos primeiro no combate ao desemprego: em pr em ao este fator ocioso na produo a mo-de-obra regional. Como a reforma das estruturas agrrias, tambm a eliminao de subocupao dos fatores essenciais, um prrequisito do progresso, na afirmao categrica de G. Ardant. Nestas reas do latifndio, exceo da cana-de-acar, se pratica uma agricultura primria sem assistncia tcnica, sem adubagem, sem seleo de sementes, obtendo-se um rendimento irrisrio da terra e do trabalho consumido. E mesmo na rea da cana-de-acar no andamos muito longe desta situao, tanto assim que o rendimento mdio da cana no Nordeste apenas de cerca da metade do de So Paulo e um tero do de Porto Rico. No Seminrio para o Desenvolvimento do Nordeste, realizado em 1959, em Garanhuns, foram todos estes assuntos ventilados numa srie de estudos bem fundamentados entre os quais destacamos os de Pompeu Acioly Borges, J. Arthur Rios e Ignacio Mouro Rangel. Por estas anlises bem conduzidas do problema, chega-se concluso de como o Nordeste estava a necessitar de um planejamento seguro dos seus problemas que orientasse o seu desenvolvimento econmico insular, marginal ao desenvolvimento brasileiro. Da a oportunidade da criao da Sudene, encarregada de conduzir e superintender esta ao coordenadora do Governo no processo da evoluo econmica regional. [pg. 262] No estou muito de acordo com alguns dos princpios que orientaram a formulao doutrinria deste rgo, principalmente quando em documento de base os seus criadores afirmam que o subdesenvolvimento do Nordeste produto da pobreza de sua base fsica e quando advogam o deslocamento dos supostos excedentes estruturais de sua populao, 128 mas reconheo com entusiasmo que pela primeira vez os problemas do Nordeste so encarados com certa dose de seriedade.
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Ardant, Gabriel, Le Monde en Friche, Paris, 1959. 262 Uma poltica de Desenvolvimento econmico para o Nordeste 1959. Sobre nossas discordncias com os principais aspectos expostos neste documento, veja-se O Observador econmico e Financeiro. de abril de 1959, no seu artigo intitulado Operao Nordeste: Dois Nomes e Duas Opinies.
Ultrapassamos, assim, a fase das lamentaes, da ao-lamento,129 das lamrias e da mo estendida para o Sul, alcanando a fase das reivindicaes formuladas em termos de economia e de interesses realmente nacionais. Pouco a pouco este novo organismo tomar corpo e, expurgado de alguns defeitos estruturais e burocrticos mais graves, enveredar pelo caminho das realizaes prticas que atendam realmente s necessidades regionais e aos interesses nacionais. [pg. 263]
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1. Com este captulo alcanamos o estudo das duas restantes reas alimentares do Brasil a rea Central e a rea do Sul nas quais as deficincias alimentares so mais discretas e menos generalizadas. Como antecipamos na introduo do presente ensaio, no so reas de fome, no sentido rigoroso da palavra, mas reas de subnutrio, de desequilbrio e de carncias parciais, restritas a determinados grupos ou classes sociais. Assim sendo, o seu estudo detalhado ultrapassa os limites convencionados no plano deste livro. Considerando, no entanto, que, para obter-se uma viso de conjunto da situao alimentar do pas, se faz necessrio um conhecimento pelo menos geral dessas reas, parece-nos de interesse sejam ditas a respeito algumas palavras. Claro que no vamos analis-las com o mesmo esprito que procuramos manter em face das reas de fome anteriormente estudadas, limitando-nos a traar delas no um retrato completo e acabado, mas um simples esboo impressionista, no qual sero destacados os seus traos mais significativos. Assim completaremos a anlise do mapa alimentar do Brasil, com suas reas de fome, estudadas mais a fundo, e as suas reas de subnutrio, delineadas como zonas de transio entre as nossas e as outras reas de fome que se apresentam no continente sul-americano o planalto boliviano, o chaco, o deserto chileno, as terras subandinas da Argentina, a Amaznia peruana, colombiana e venezuelana, cujo estudo abordaremos no nosso livro Geopoltica da Fome. [pg. 265]
2. Abrangendo as terras do Centro-Oeste brasileiro encontramos uma nova rea alimentar tpica, tendo como alimento bsico o milho, diferenciando-se, no entanto, da rea do serto nordestino pelas associaes com que este alimento se
combina a diferentes outras substncias alimentares. a rea Central do Milho, que abrange as regies montanhosas de Minas Gerais, o serto do sul de Gois e os pantanais de Mato Grosso. Zona em parte de clima quase subtropical, com chuvas abundantes e regulares e de temperatura abrandada em seus extremos de calor, pela altitude. Esta a zona por excelncia do cultivo do milho, concentrando a 25% da produo nacional. Corn-belt brasileiro que, como o norte-americano, possui tambm os maiores rebanhos de porcos do pas: os dois mapas de produo, o do milho e o da carne de porco, superpondo-se rigorosamente, traduzindo deste modo a interdependncia absoluta dos dois fatos econmicos. O porco funcionando como o processo mais rendoso de ensacar e exportar o milho. No se conclua da que se limitam a esses dois produtos os recursos alimentares da regio. H tambm a criao abundante de gado bovino e o cultivo de variados produtos agrcolas, como o feijo, o caf, o arroz e a cana-de-acar, sendo a sua paisagem regional um verdadeiro mosaico de manchas agrcolas e de pastagens. Apesar da criao de gado em grande escala nesta zona, o milho, que o alimento bsico das populaes, no se associa preferentemente ao leite, 1 no regime local, mas ao feijo e gordura de porco, num complexo nutritivo cuja expresso tpica o tutu de feijo mineiro, preparado com farinha de milho, feijo, gordura, toucinho e lombo de porco, complexo alimentar de alto valor calrico, mas qualitativamente de valor nutritivo bem inferior ao do angu ou do cuscuz de milho com leite do serto nordestino, principalmente por seu teor mais baixo em clcio e vitaminas.2 Inferior mesmo aos pratos de milho e feijo da cozinha do litoral baiano, onde os negros fabricam os seus abars, acas, e acarajs, afogando [pg. 266] bolos de fub, ou de feijo, num banho de leo de dend e de pimenta, verdadeira infuso concentrada de vitaminas A e C. J a gordura de porco com que refogado o tutu mineiro inteiramente desprovida de vitaminas. Esta inferioridade , no entanto, compensada, e o regime ganha de categoria biolgica pelo consumo bem mais liberal que faz nessa zona dos vegetais verdes, principalmente das couves. A couve mineira componente habitual da dieta
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Em inqurito realizado nessa zona, sob a orientao de A. de Arruda Cmara, verificou-se que o consumo local de leite , em geral. baixo, porque os fazendeiros vendem o produto para as indstrias de laticnios. Dessa forma o leite, na regio, passa a ser preferentemente um produto de comrcio e no de subsistncia. 2 Duarte, Lima, Ensaios Sobre a Higiene da Escravatura no Brasil, 1849.
regional, servindo de boa fonte de sais e de vitaminas. Outras hortalias, assim como as frutas, so de consumo mais amplo do que nas outras reas at agora estudadas; principalmente a laranja, o mamo, a banana e o abacate. Produtos da cana, como o caldo, o melado, a rapadura so abundantemente consumidos em certas reas mineiras; onde proliferam os pequenos engenhos de acar. A anlise qumica deste regime permite-nos verificar que no h dficits calricos no mesmo; pelo contrrio, deve haver at certo excesso quantitativo, por conta do amido do milho e das gorduras do porco, o que resulta numa maior incidncia, nesta zona, da obesidade e do diabete, e na formao do tipo biolgico dos mineiros lentos e pesados, conservadores e pachorrentos. Quanto aos dficits qualitativos, no so to intensos a ponto de se exprimirem sob a forma gritante de carncias declaradas, manifestas clinicamente, mas apenas sob a forma discreta dos estados frustos. Desvitaminoses A, B e C, representadas por sinais mais apagados, que s o olho bem avisado e experiente do especialista capaz de apanhar. H apenas uma carncia que, por exceo, se estampa nessa rea de maneira espetacular a carncia em iodo. A pobreza deste metalide nessas terras montanhosas, no seu solo, na sua gua e nos vegetais a produzidos, responsvel pela enorme incidncia do cretinismo endmico nessa regio, cretinismo que se manifesta numa rica gradao de formas clnicas, bociosas ou no. Como se trata de uma carncia manifesta, a nica grassando em escala social na rea, merece que se faa dela uma anlise particularizada. As observaes e os estudos experimentais, realizados em diferentes zonas bociosas do mundo, levaram os cientistas concluso unnime de que o bcio endmico ou endemia bcio-cretnica uma doena de carncia, resultante da ingesto ou [pg. 267] da utilizao deficiente do iodo alimentar, nas regies em que a doena assola. Youmans3 afirma de maneira categrica esta etiologia da doena, quando diz ser a deficincia em iodo to especfica e indiscutvel quanto as deficincias em vitaminas, capazes de determinar avitaminoses tpicas. Foi Chatin quem primeiro ps em destaque a importncia desse metalide no funcionamento da glndula tireide, atribuindo sua deficincia um papel decisivo na formao do bcio.
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Tendo, em meado do sculo passado, aperfeioado um processo de dosagem de iodo de grande sensibilidade e preciso (capaz de dosar 0,1 de y gama, ou seja, de um dcimo de milsimo de miligrama), o cientista francs determinou o teor em iodo da gua, do solo e dos alimentos produzidos em diferentes regies assoladas pelo bcio, chegando concluso de que em todas elas havia alarmante pobreza desse elemento mineral, comparando-se os resultados obtidos com os das regies indenes de bcios. Com a demonstrao dessa absoluta correlao entre bcio endmico e pobreza regional de iodo estavam lanadas as bases da teoria carencial do bcio. Mesmo ignorando a presena do iodo na tireide e o seu papel fisiolgico como componente qumico do produto hormonal da glndula, fatos s ulteriormente fixados, graas aos estudos de Bauman (1896), Oswald (1899) e Kendall (1914), mesmo assim, com uma intuio verdadeiramente genial, Chatin afirma ser a falta de iodo a causa fundamental do bcio endmico e ser a medicao iodada a nica teraputica especfica do mal. Infelizmente, os estudos de Chatin no foram bem aceitos. Atravessava-se a fase de maior esplendor da era pasteuriana e a bacteriologia suplantava todas as demais cincias. Os adeptos da teoria microbiana do bcio criticaram acerbamente as concepes ousadas de Chatin e continuaram a afirmar a natureza contagiante e, portanto, infectuosa do bcio endmico. Uma srie de fatos e observaes, bem conduzidos nos tempos atuais, vieram mostrar, no entanto, os fundamentos cientficos dos conceitos de Chatin e a absoluta falta de fundamento da teoria microbiana. Destes fatos bastam ser apresentados os mais significativos, para se ter uma demonstrao categrica da natureza carencial dessa doena: [pg. 268] 1 Estudando a distribuio geogrfica do bcio endmico, verifica-se que as reas de maior incidncia so as regies dos Alpes, Pireneus, Montes Crpatos, Himalaia, vales centrais da Nova Zelndia, regies dos grandes lagos norte-americanos e regio central do Brasil, regies essas todas encravadas no centro de massas continentais, distantes da costa e com condies, tanto geolgicas como climticas, desfavorveis existncia de suficientes reservas
de iodo no meio natural. O iodo largamente distribudo na natureza, encontrando-se as suas maiores reservas no s no mar, como crena popular, mas em terra. 4 Acontece, porm, que a sua distribuio continental muito irregular, havendo tipos de solos onde os compostos iodados so rapidamente decompostos ou solubilizados e arrastados pelas lavagens da regio. 5 A natureza qumica das rochas bsicas, o fator continentalismo, os fenmenos lavagem e eroso do solo fazem cair intensamente o teor do iodo regional, traando nas zonas de deficincia extrema, o mapa da distribuio do bcio. McClendon,6 estudando estas variaes regionais atravs da anlise do contedo em iodo das guas dos Estados Unidos, verificou a existncia de guas com um teor mil vezes mais rico do que o de outras guas, sendo este o limite mximo de variao encontrado. 2 Os estudos realizados numa dessas reas de bcio, o Estado de Michigan nos Estados Unidos, 7 demonstraram que a incidncia da doena em diferentes regies era inversamente proporcional riqueza em iodo da gua e do solo regionais, sendo tanto mais alta quanto mais baixo o teor desse mineral. [pg. 269] 3 Analisando a freqncia dos casos de bcio entre os recrutas do exrcito norte-americano, McClendon8 observou uma incidncia muito mais alta da doena nos recrutas originrios das regies abastecidas com guas pobres ou isentas de iodo, que nos das regies possuidoras de alto teor desse mineral, nas suas guas, nova confirmao da correlao iodo e endemia bcio-cretnica.
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Orr. J. B. e Leith. J.. Iodine in Nutrition. in Medical Research Council, Special Series Depart.. n. 123. Londres. 1929. 5 Soil and Men. Yearbook of Agricultura, U.S.A., Department of Agriculture. 1938. 6 McClendon. J. F.. The Distribution of Iodine with Special Referen-ce to Goiter. in Physiology Review. 7, 1937. 7 Kimball. O. P.. The Efficiency and Safety of the Prevention of Goiter. in Michigan Health Report. 21, 1924. 8 McClendon, J. F.. Iodine and the Incidence of Goiter. 1939.
4 Os trabalhos de Remington e Levine, 9 provocando a hiperplasia da tireide em ratos jovens alimentados durante cinco semanas com um regime carenciado em iodo, constituem argumento excepcional de alta valia em favor da teoria alimentar do bcio. 5 O fato de at hoje, apesar dos notveis progressos da microbiologia, no ler sido isolado qualquer germe ou vrus capaz de ser responsabilizado pela doena, constitui tambm argumento destrutivo da antiga teoria microbiana defendida por McCarridon, Messerli e outros. 6 Os estudos anatomopatolgicos, mostrando que nos casos de bcio endmico no apresentam os tecidos glandulares um aspecto de reao inflamatria, constituem tambm forte argumento contra a hiptese de uma tireoidite parasitria. 7 Finalmente, os surpreendentes resultados obtidos com a profilaxia do mal pelo uso permanente de doses mnimas de iodo, verificadas nas mais diferentes regies do mundo, constituem o ltimo e definitivo argumento de que o bcio endmico produto exclusivo de carncia em iodo.10 [pg. 270]
O bcio endmico grassa no Brasil desde os tempos coloniais; abrange grande rea do Brasil Central, alcanando os seus mais altos graus de incidncia nos listados de Minas Gerais, So Paulo, Rio de Janeiro. Paran, Gois e Maio Grosso. Em certa zona do Estado de Minas Gerais, no municpio de Conselheiro Lafaiete, lvaro Lobo11 registrou, entre os alunos das escolas pblicas, incidncia de bcio de
Remington, R. R. e Levine, H., Studies on the Relation of Diet Goiter, in Journal of Nutrition, 11. 1936. 10 Curtis, G. M. e Fertman, M. B., Iodine in Nutrition, in Hand-book of Nutrition, American Medical Association, 1943. 11 Lobo Leite, A., Bcio Endmico e Doena de Chagas, O Hospital, junho. 1942.
44% e Arruda Sampaio12 encontrou, num distrito nos arredores da capital de So Paulo, incidncia atingindo a 60% dos escolares. Outros estados da Unio apresentam em escala menos alarmante a endemia bcio-cretnica. As conseqncias de tal endemia carencial so muito graves, tanto para o lado do sistema orgnico como sobre o psiquismo dessa gente. As alteraes orgnicas se manifestam pelas deficincias de crescimento, pelas deformaes locais e gerais, pelas alteraes de todo o metabolismo que se rege sob o influxo da tireide. Sobre o psiquismo, o bcio-cretnico atua profundamente, constituindo os casos de cretinismo, de imbecilidade, de idiotia hipotireidicas. com razo que lvaro Lobo, estudando esta terrvel praga carencial, acentua o fato de que o mais grave dela no est, como poderia parecer, no bcio propriamente dito, na deformidade cervical mais ou menos pronunciada... o mais grave so as perturbaes por vezes profundas e irreparveis, das demais glndulas de secreo interna e do sistema nervoso que se encontram nas mesmas regies, produzidas pelos distrbios da glndula tireide e que, condicionadas e agravadas por fatores de hereditariedade e consanginidade, conduzem a estados mrbidos de profunda degenerao do indivduo... a debilidade mental, o nanismo tireideo, o cretinismo, a surdo-mudez, a idiotia, etc.. Embora referida incidentemente desde os tempos coloniais por naturalistas e sbios que visitaram o nosso pas, o estudo de semelhante endemia no foi posto em foco, luz dos conhecimentos mdicos, seno depois dos sugestivos estudos de Carlos Chagas. Foi Chagas quem polarizou o interesse dos meios mdicos do pas sobre o problema do bcio com sua notvel [pg. 271] descoberta da tripanossomase americana. Encontrando entre os infectados de Tripanosoma cruzi grande nmero de bociosos e comprovando a presena do parasita nos tecidos glandulares alterados, Chagas levantou a hiptese de que o bcio endmico dessas zonas do serto brasileiro era causada pela tripanossomase. A concepo de Chagas parecia bem fundamentada e a teoria infectuosa do bcio endmico robusteceu-se com as suas observaes e afirmaes. Estudos posteriores, levados a efeito pelos continuadores da sua obra, principalmente os de Beata Viana, lvaro Lobo, Eurico Vilela, Arruda Sampaio e
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outros, vieram mostrar mais uma vez a precariedade da teoria infectuosa e as bases sempre bem comprovadas da teoria da carncia alimentar. lvaro Lobo, principalmente, apresentou uma documentao e argumentao convincentes sobre o assunto no seu magnfico trabalho Bcio endmico e Doena de Chagas. Inicialmente, baseou a sua argumentao no fato de apresentar a endemia bciocretnica no Brasil as mesmas manifestaes sintomticas das de outras reas conhecidas no mundo, e tambm no fato de ser a sua rea de distribuio muito mais ampla do que a rea vegetativa do barbeiro, inseto transmissor da tripanossomase americana. Em grande rea de bcio no Estado de Minas Gerais, verificou esse investigador no existir qualquer caso comprovado de tripanossomase aguda. Baeta Viana comprovou esses resultados de Lobo, negando a- existncia da infeco tripanossomisica nesta mesma rea bociosa, onde foi verificada grande deficincia em iodo nas guas e no solo da regio. Na zona paulista de bcio, estudada por Arruda Sampaio, tambm no se verificou a coexistncia da doena de Chagas. A impresso que se tem desses estudos mais recentes de que a doena de Chagas, grassando numa rea de bcio endmico carencial, atinge indistintamente bociosos e no bociosos, e nos casos de bcio, dado o carter infectuoso da tripanossomase, refora o estado de carncia exgena constituindo-se como uma causa endgena de maiores gastos de iodo. esta a explicao bastante sensata que nos d lvaro Lobo para justificar o aparecimento da infiltrao mucosa de tipo hipotireidico e o intumescimento glandular que se nota em muitos casos agudos da tripanossomase, sinais esses que constituam os argumentos mais fortes do conceito infectuoso do bcio. Vejamos as suas [pg. 272] prprias palavras: Chagas trabalhou em regio de bcio endmico muito afastado do litoral, onde provavelmente existe carncia idica do meio. Na fase aguda da tripanossomase, que se prolonga por tempo considervel, deve-se dar o esgotamento das reservas de iodo da glndula, por maior produo do hormnio tireideo. Da uma carncia idica relativa que se vem somar carncia exgena do meio. Assim se explica a insuficincia aguda da glndula nos casos agudos de tripanossomase no serto, traduzidos pelo mixedema e pela reao da mesma glndula traduzida pelo bcio. Deduz-se dessas palavras que a tripanossomase s pode ser considerada
agente de agravamento da carncia idica, mas nunca causa direta do bcio, provocando uma tireoidite infectuosa, como se pensou a princpio e as observaes anatomopatolgicas vieram a negar depois. O tripanossomo age no metabolismo do iodo de maneira semelhante ao ancilstomo no metabolismo do ferro, onde o verme acentua a anemia ferropriva, aumentando os gastos de ferro num organismo desfalcado das suas reservas parciais. Alm do bcio endmico, so vtimas estas populaes abandonadas em sua indigncia de outras endemias, tais como a verminose e o paludismo, em cujo mecanismo no deixa de influir o fator alimentar. Esta rea central sofre no momento um grande impacto dos seus hbitos tradicionais de alimentao do seu tipo de dieta em face da mudana da capital da Repblica para o Planalto Central. A rea do Planalto de Gois, que viveu at hoje praticamente insulada, por falta de vias de comunicao e de contactos com os grandes centros demogrficos do pas, comea a ser vitalizada em todos os setores de sua economia e inovada em sua estrutura social pela construo de Braslia e da rede de estradas que da partindo corta esta regio em todas as direes. Ainda cedo para se prever quais as principais alteraes que iro processar-se no padro alimentar da regio. Mas no h dvida que ele vai mudar, pela influncia dos novos grupos aliengenas que a se vo fixando, pela reviso que a se processa nos mtodos da utilizao econmica da terra e pela introduo das novas tcnicas at ento ignoradas neste meio social menos evoludo. [pg. 273] A curto prazo poder a nova capital constituir-se como um fator de agravamento das condies alimentares da zona rural, sugando para a nova metrpole no s as disponibilidades alimentares da regio, como a prpria mo-deobra agrcola. Mas ser, a nosso ver, um fenmeno transitrio desta rpida fase de reajustamento ecolgico da regio. H contudo quem tema efeitos negativos mais duradouros em face da relativa pobreza do solo na regio do cerrado goiano onde se assenta a nova capital, mas este aspecto do problema est a exigir maiores estudos para que se possa chegar a uma concluso mais objetiva. E tudo est na dependncia da planificao a ser estabelecida para ligar a nova capital zona rural da qual ela tributria para suas necessidades de abastecimento e a qual ela influencia pela
irradiao de sua fora poltica e administrativa. Com a criao de novas frentes de produo agrcola que encontraro escoadouro para seus produtos atravs da rede rodoviria que Braslia determinou, poder ocorrer uma mudana total da situao alimentar desta extensa rea, at hoje, de precrias condies de alimentao. este um dos aspectos mais importantes para o povoamento desta regio central onde as populaes pioneiras estaro expostas a graves doenas se no forem desta forma protegidas. O serto goiano onde se assenta a nova capital encerra focos ou nichos naturais de vrias doenas que podero tornar-se endmicas se no forem tomadas as devidas precaues. Mas estamos certos que os estudos da Geografia Mdica determinaro a conduta dos orientadores deste povoamento para que no se repita o drama ocorrido no passado nas zonas pioneiras de So Paulo, onde ocorreram cerca de cem mil casos de leishmaniose tegumentar ou o drama da Amaznia com seu meio milho de beribricos.13 Os recursos hoje disponveis, a planificao, a organizao sanitria, a colonizao dirigida e no de aventura desordenada, tudo isto nos d a certeza de que esta regio s ter a ganhar em matria de alimentao e de sade pela implantao da nova capital no meio do serto agreste. E esta mesmo uma das grandes misses de Braslia. A maior parte dos brasileiros se impressiona diante da construo da nova capital pelo que este ato significa como [pg. 274] arrojo e como epopia. Por seu impacto material que se exprime pelo ato de vontade criadora que est levantando no Planalto Central, descampado e deserto, uma grande e moderna metrpole: a mais moderna do mundo, por suas concepes arquitetnicas e urbansticas. A meu ver este impacto, com toda a sua grandiosidade, significa menos para o Brasil do que o impacto poltico e social que esta mudana provocar sobre a estrutura viva da Nao. No se muda uma capital pelo simples gosto de deslumbrar o mundo. Mudase uma capital quando as circunstncias histricas determinam a necessidade de mud-la. Com a transferncia da capital para Braslia, o que se objetivou antes de tudo foi mudar a posio do Brasil. Foi tirar o pas desta posio paradoxal em que se encontrava de, sendo uma espcie de imprio continental, viver de costas voltadas para sua prpria realidade econmica e social. Viver debruado sobre o Atlntico,
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em obedincia a esta espcie de vocao ocenica, que fez com que o brasileiro ignorasse durante sculos a realidade do Brasil. esta mudana de posio que o momento nacional est a impor em atendimento aos anseios populares de progresso e de desenvolvimento autntico, numa palavra, de integrao econmica de todo o corpo da nacionalidade. esta a grande misso de Braslia: misso de integrar e unificar, cada vez mais, todas as regies do pas num s todo, procurando atenuar os desnveis e desequilbrios econmicos e sociais que caracterizam por excelncia a realidade brasileira. como um instrumento de ao poltica, estrategicamente colocado, que Braslia vai influenciar de maneira decisiva nos destinos de cada uma das regies brasileiras, mesmos as mais remotas, as mais distantes dos grandes centros de atividade do pas. E nenhuma regio ser mais beneficiada do que o Brasil Central.
3. A rea do Sul que abrange geograficamente o Estado da Guanabara, o Estado do Rio, So Paulo, Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, caracterizada por uma maior variedade de elementos componentes do seu regime alimentar e pelo consumo mais alto das verduras e das frutas. Sendo a zona mais rica do pas, de maior desenvolvimento, tanto agrcola como industrial, compreendendo 80% da capacidade econmica de toda a nao, no de estranhar que disponha de elementos para tornar um tanto mais elevado o seu padro alimentar. [pg. 275] O primeiro fator dessa melhoria est na sua base econmica mais slida, desde que a capacidade de produo per capita, em certos pontos dessa rea, como no Rio de janeiro e em So Paulo, dez vezes mais alta do que a dos estados do Norte. Outro fator decisivo dessa superioridade regional a prpria produo mais abundante, desde que a rea do Sul, contendo 31% da populao nacional, nela concentra 40% da produo de alimentos de todo o pas. Tanto as condies do seu solo e de seu clima como a influncia favorvel das recentes levas de imigrantes que a se vm fixando do sculo passado at os nossos dias, tudo isto tem trabalhado num sentido de diversificar os recursos alimentares da regio e de utiliz-los de maneira mais racional. As altas cotas de italianos, alemes, poloneses, lituanos que vieram colorir o quadro etnolgico nacional nessa zona fizeram tambm dessa rea
Povoamento das Zonas de Influncia de Braslia (Aula Inaugural) 1960.
alimentar uma espcie de mosaico, constitudo de inmeras subreas, nas quais os alimentos bsicos variam e os seus arranjos e tipos de preparo variam ainda mais. Assim vamos nela encontrar desde um tipo de alimentao predominantemente vegetariana, caracterizada por um largo uso do trigo, sob a forma de macarro, ravioli e spaghetti, como na rea paulista, traindo a influncia do tipo de alimentao italiana, at o tipo oposto de alimentao, de predominncia carnvora, da regio dos pampas gachos, na subrea do Rio Grande do Sul, caracterizada pelo complexo alimentar do churrasco e do mate-chimarro. As colnias japonesas localizadas nas proximidades dos centros urbanos, como em torno da capital de So Paulo, tendo dado grande incremento s culturas hortcolas, tornaram mais abundante o consumo das verduras nessa rea. Nas zonas de maior influncia germnica vamos encontrar um consumo mais freqente de aveia, centeio, lentilhas, hortalias e frutas; assim como da carne, principalmente de porco, em suas inmeras variedades de salsichas, bacon, presunto domstico, carne de fumeiro, comidos com po preto, chucrute e cerveja. No se conclua pela enumerao desta apetitosa lista de substncias alimentares, produtos da ao conjunta de fatores naturais e culturais favorveis, que a alimentao nessa rea seja perfeita, isenta de deficincias e de desequilbrios. Estamos muito longe disto. Ela bem superior das outras reas brasileiras [pg. 276] estudadas, mas est bem distante daquele tipo de alimentao sadia e considerada perfeita dos habitantes da Califrnia e da Nova Zelndia, por exemplo. 14 Os inquritos realizados em diferentes pontos da rea do Sul tm mostrado que as dietas locais so, sob diferentes aspectos, incompletas e imprprias. No inqurito que em 1937 realizamos em colaborao com outros especialistas na cidade do Rio de Janeiro,15 verificamos que o regime alimentar nessa cidade deficiente em clcio, ferro e vitamina A e dos grupos B e C. Deficincias que resultam principalmente do baixo consumo de leite, de verduras, de legumes verdes, de cereais integrais e de frutas entre os elementos das classes proletrias. Os inquritos levados a efeito em So Paulo tambm revelaram carencias parciais desses elementos, embora um pouco
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Os estudos mais recentes de Nutrio comeam a evidenciar que mesmo nestas reas a dieta alimentar est longe de ser perfeita. Por seus defeitos e erros, principalmente pela escassez de certos princpios alimentares. se explica o alto ndice de doenas degenerativas entre estes povos aparentemente to bem alimentados. 15 Barreto. J. Barros; Castro. Josu de. e Castro. Almir de. Inqurito Sobre as Condies de
mais discretas do que as do Rio. De fato, So Paulo apresenta o padro alimentar menos defeituoso de todo o pas. Seu regime comea por basear-se mais no trigo, havendo um consumo local de sua farinha duas vezes mais alto do que o consumo mdio nacional. E ns sabemos que as protenas do trigo so superiores s dos outros cereais milho e arroz. Apesar desta maior tendncia dos paulistas a consumirem trigo, frutas e verduras, sofrem, contudo, da carncia de certos princpios nutritivos, conforme atestam os inquritos de hbitos alimentares e de nutrio, levados a efeito por Almeida Jnior, Jorge Queiroz Moraes, Pauta Sousa, Francisco Cardoso e Tavares de Almeida.16 Se em Santa Catarina a alimentao popular se mostrou, na indagao de Arruda Cmara, de modo geral suficiente e equilibrada, no Rio Grande do Sul encontrou Cleto [pg. 277] Seabra Veloso,17 na zona de Baj, um regime insuficiente e nitidamente carenciado em vrios princpios fundamentais, o que explica, em grande parte, a alta incidncia da tuberculose nessa regio, incidncia que das mais fortes no pas. Nesta rea do Sul, sem dvida a melhor alimentada do pas, verificou-se contudo atravs das indagaes bem conduzidas, toda uma srie de carncias alimentares, as mais das vezes parciais, discretas ou ocultas. Uma delas se manifesta, no entanto, de forma gritante: a carncia de protenas entre as crianas pobres dos grandes centros urbanos da regio. Em cidades como o Rio de Janeiro e So Paulo os pediatras tm constatado nos ltimos anos uma incidncia extremamente alta dos edemas de fome das distrofias malignas e mesmo dos sndromes tpicos de kwaskiorkor entre as crianas atendidas nos hospitais pblicos, nos bairros operrios e nos subrbios. Alguns pediatras chegam a afirmar que estes estados mrbidos que exteriorizam a carncia de protenas, ou melhor, de certos
Alimentao no Distrito Federal. 1938. 16 So as seguintes as publicaes que do conta dos resultados desses inquritos: Almeida Jnior, Nosso dirio alimentar, in Arquivos do Instituto de educao. n. 1. S. Paulo, setembro de 1935: Jorge Queiroz Moraes. O Problema Alimentar no Estado de S. Paulo, in Rev. Org. Cient. IDORT. e Preparemos o Brasil para os Dias Incertos de Amanh. S. Paulo, 1939; Paula Souza. Ulhoa Cintra e Pedro Egydio de Carvalho. Inqurito sobro a Alimentao Popular em um Bairro de S. Paulo. in Rev. Arq. Municipal. S. Paulo, n. XVII. 1935: Francisco A. Cardoso Avaliao do Estudo Nutritivo de uma Co-letividade pela Dosagem de Vitamina C da Urina, in Rev. de Medic.e Cirur.. S. Paulo. vol. V. ns. 9-12. 1945: A. Tavares de Almeida. O Oeste Paulista. 1943. 17 Veloso. Cleto Seabra. Alguns Aspectos da Alimentao no Rio Grande do Sul, separata do Arq. Bras. Medic, 1942.
aminocidos integrantes da molcula protica, longe de diminuir, tm sua incidncia em franca ascenso, com o surto de industrializao e o adensamento do proletariado urbano no Brasil. Voltaremos ao assunto quando no captulo seguinte analisarmos as condies alimentares do conjunto brasileiro e a influncia sobre os nossos padres de alimentao. Chega-se, atravs desta rpida anlise, concluso de que o Sul realmente uma zona de subnutrio crnica, cujas populaes, embora libertadas em sua maioria das formas mais graves da fome, esto no entanto longe de gozar dos benefcios de um metabolismo perfeitamente equilibrado. [pg. 278]
1. Com a apresentao, sob a forma de grandes manchas impressionistas, das reas de subnutrio do Centro e do Sul, completa-se a caracterizao do mosaico alimentar do pas. Atravs deste panorama verifica-se a veracidade do ttulo e das premissas deste volume: o Brasil realmente um dos pases de fome no mundo atual. Tanto em seus quadros regionais como em seu conjunto unitrio, sofre o Brasil as duras conseqncias dessa condio biolgica aviltante de sua raa e de sua organizao social. No vamos, para completar o quadro do conjunto brasileiro, enfileirar aqui dados estatsticos comprovantes dessa misria alimentar. Embora esses nmeros enchessem a vista de certos tipos de leitores, resolvendo as suas dvidas com uma simples comparao de cifras, e satisfazendo a sua curiosidade estatstica, no nos tenta o mtodo. Este ensaio no visa propriamente a uma anlise do problema em seus aspectos quantitativos, mas, principalmente, em seus aspectos qualitativos. 1 O mtodo estatstico com sua tendncia substancial para os grandes agrupamentos e para a homogeneizao dos fatos no nos poderia dar em seus painis genricos uma noo exata de certas [pg. 279] nuances, das infinitas gradaes de cores de que se reveste o fenmeno, nos dois sentidos, no vertical e no horizontal, na ampla superfcie de sua rea territorial e nas diferentes capas sociais que estruturam a nacionalidade. Esta a razo pela qual os dados estatsticos apenas participam deste ensaio como matria-prima, a ser sempre que possvel manipulada e transformada em argumentos explicativos sem que o seu texto se ressinta de um certo peso das
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Sobre o panorama alimentar no Brasil, expresso em dados e ndices estatsticos, consulte-se o relatrio apresentado pelo Deputado Agostinho Monteiro Comisso de Investigao econmica da Assembleia Legislativa e publicado sob o ttulo Problemas de Alimentao no Brasil. Rio, 1946.
notas explicativas, visando penetrar um tanto mais a fundo a essncia de fenmeno, to cambiante e polimorfo, como o da fome em sua expresso social. 2 Apesar desta constante fuga do fenmeno em se deixar apanhar em sua totalidade, pode-se, no entanto, tirar da observao de seus aspectos parciais uma noo mais ou menos concisa da sua expresso total. A fome no Brasil, que perdura, apesar dos enormes progressos alcanados em vrios setores de nossas atividades, conseqncia, antes de tudo, de seu passado histrico, com os seus grupos humanos, sempre em luta e quase nunca em harmonia com os quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa, portanto, da agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas, quase sempre, por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que no significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil. [pg. 280] Aventura desdobrada, em ciclos sucessivos de economia destrutiva ou, pelo menos, desequilibrante da sade econmica da nao: o do pau-brasil, o da cana-de-acar, o da caa ao ndio, o da minerao, o da lavoura nmade, o do caf, o da extrao da borracha e, finalmente, o de certo tipo de industrializao artificial, baseada rio ficcionismo das barreiras alfandengrias e no regime de inflao. sempre o mesmo esprito aventureiro se insinuando, impulsionando, mas logo a seguir corrompendo os processos de criao de riqueza no pas. o fique rico, to agudamente estigmatizado por Srgio Buarque de Holanda, em seu livro Razes do Brasil. a impacincia nacional do lucro turvando a conscincia dos empreendedores e levando-os a matar sempre todas as suas galinhas de ovos de ouro. Todas as possibilidades de riqueza que a terra trazia em seu bojo. Em ltima anlise, esta situao de desajustamento econmico e social foi
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Joseph Klatzmann, em conferncia realizada na Sorbonne em janeiro de 1958, d um excelente apanhado do que ele chama as armadilhas da estatstica, os enganos onde nos podem conduzir as cifras estatsticas. Vejamos um trecho bem significativo de sua conferncia: Todo mundo sabe como se enganam as pessoa s constantemente com as estatsticas. s vezes de forma premeditada, s vezes sem propsito. Mas por que as estatsticas enganam? Por variadas razes. De logo. porque elas so muitas vezes falsas. Mas no s com estatsticas falsas que se deforma a realidade. As estatsticas verdadeiras tambm servem a este objetivo. Com efeito, pode-se apresentar cifras, sem precisar de que se est falando, sem dar definies exatas. Mas tambm se pode enganar com estatsticas exatas. e precisas. Pois h ainda o delicado problema de interpretao de suas cifras. Ora, uma tendncia natural consiste em proceder a generalizaes abusivas, partindo de dados parciais. Doutro lado a seleo das informaes, falta de conhecimento ou inconscientemente, conduz a no tomar em considerao seno as cifras favorveis tese que se quer provar. Finalmente, a causa principal de erros a comparao dos dados no comparveis Les Cahiers Rationalistes, n.
conseqncia da inaptido do Estado Poltico para servir de poder equilibrante entre os interesses privados e o interesse coletivo. Ou mesmo pior, entre os interesses nacionais e os dos monoplios estrangeiros interessados em nossa explorao de tipo colonial. Foram os interesses aliengenas que predominaram, orientando a nossa economia para a explorao primria da terra e para a exportao das matriasprimas assim obtidas. Desenvolveu desta forma o Brasil a sua vocao ocenica, exportando toda sua riqueza potencial a riqueza do seu solo e de sua mo-de-obra por preos irrisrios. E no sobrando recursos para atender as necessidades internas do pas: bens de consumo para o seu povo e equipamentos para o seu progresso. Orientada a princpio pelos colonizadores europeus e depois pelo capital estrangeiro expandiu-se no pas uma agricultura extensiva de produtos exportveis ao invs de uma agricultura intensiva de subsistncia, capaz de matar a fome do nosso povo. Os governos se mostraram quase sempre incapazes para impedir esta voraz interferncia dos monoplios estrangeiros na marcha da nossa economia. Com uma total incapacidade do seu poder poltico para dirigir, em moldes sensatos, a aventura da colonizao e da organizao social da nacionalidade, a princpio por sua tenuidade e fraqueza potencial diante da fortaleza e independncia dos senhores de terras, manda-chuvas [pg. 281] em seus domnios de porteiras fechadas, 3 indiferentes aos regulamentos e s ordens do Governo que viessem a contrariar seus interesses; e ultimamente, num contrastante exagero noutro sentido, no excesso centralizante do poder, tirando das unidades regionais quase todas as receitas e todos os direitos para dep-los nos braos, um tanto curtos, em espalhar benefcios, do poder central. Sempre, pois, atuando o governo com uma noo inadequada do uso da fora poltica para levar a bom termo a empresa administrativa de to extenso territrio. Em face da fraqueza do poder poltico central, os interesses colonialistas
188, maio de 1960. 3 Uma das caractersticas do regime feudal aristocrtico das fazendas desenvolvido no Brasil foi o poder quase absoluto dos senhores de engenho que receberam privilgios do Rei no primeiro sculo da colonizao portuguesa... Vieram a ser tambm a expresso fsica de um novo tipo de poder feudal ou patriarcal que pelo isolamento e auto-suficincia originou um forte esprito de independncia e mesmo de rebeldia contra a coroa e o republicanismo. Freyre, Gilberto, Interpretao do Brasil, 1946.
manipularam no sentido de que o progresso econmico se limitasse a ampliar os lucros de um pequeno nmero de proprietrios agrcolas, associados em sua aventura colonial, sem atingir entretanto o conjunto da populao. Conforme acentuou muito bem o economista Gunnar Myrdal, as grandes potncias sempre utilizaram nos pases subdesenvolvidos para seu fins de explorao colonial os prprios grupos oligrquicos, interessados eles prprios na manuteno do statu quo poltico e social4 e portanto infensos ao verdadeiro desenvolvimento emancipador. Por outro lado, conseqncia da centralizao e da poltica de fachada da Repblica 5 foi o quase abandono do campo e o surto de urbanizao que se processou entre ns a partir dos fins do sculo passado. Urbanizao que, no encontrando no pas nenhuma civilizao rural bem enraizada, com uma explorao racional do solo, veio acentuar de maneira alarmante [pg. 282] a nossa deficincia alimentar. No que a urbanizao seja um mal em si mesma. Ela representa uma fase de transio obrigatria entre a economia agrria pura e a agro-industrial. Nos Estados Unidos, o fenmeno ocorreu e em volume mais violento de mobilidade social do que entre ns, sem, contudo, desequilibrar a alimentao daquele pas. Ao contrrio, foi um fator de estmulo da agricultura e da pecuria. Foi o surto de industrializao e concentrao urbana do Leste norte-americano que deu lugar agricultura intensiva de cereais e a pecuria do middle-west e que fez da Califrnia o primeiro estado agrcola da Unio, com o seu cultivo de frutas e de verduras. Entre ns o desequilbrio se deu acentuando males sempre existentes desde o dia em que os primeiros aventureiros europeus, financiados em grande parte pelo capital judaico, 6 resolveram criar nestas terras da Amrica a indstria do fique rico depressa para uns poucos e que foi, ao mesmo tempo, a indstria da fome para a maioria.
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Myrdal, Gunnar, Une conomie Internationale, Paris. 19S58. Rafael Xavier demonstra, em seu estudo sobre A Organizao Nacional e o Municpio, 1946, como esta centralizao chegou ao extremo de arrastar para os cofres do Governo central 93% das arrecadaes nacionais, deixando para atender, praticamente, s necessidades de 84% das populaes dos Municpios brasileiros apenas 7% das mesmas. S o Distrito Federal arrecada quase o dobro do quanto percebem os 1.552 Municpios do interior do Brasil. Neste caso os nmeros argumentam sozinhos. 6 Quatro anos antes da descoberta do Brasil, em 1496. decretava D. Manoel. Rei de Portugal, o fumoso dito de Expulso dos Judeus, ou melhor, do sofisma de sua expulso, desde que visava antes a sua converso ao cristianismo, diante do dilema: batismo ou exlio. Dos 2000.000 hebreus que faziam parte das populaes do Reino, 195.000 optaram pelo batismo e se fizeram cristos novos. Um sexto da populao de Portugal em 1500. Muitos desses reconvertidos fizeram parte das expedies colonizadoras enviadas ao Brasil. Ver sobre o assunto o trabalho de J. Lcio de Azevedo. A Histria dos Cristos Novos Portugueses. 1922. e
mesmo esta a caracterstica essencial do desenvolvimento econmico do tipo colonialista, bem diferente do desenvolvimento econmico autntico de tipo nacionalista. O colonialismo promoveu pelo mundo uma certa forma de progressos, mas sempre a servio dos seus lucros exclusivos, ou quando muito associado a um pequeno nmero de nacionais privilegiados que se desinteressavam pelo futuro da nacionalidade, pelas aspiraes polticas, sociais e culturais da maioria. Da o desenvolvimento anmalo, setorial, limitado a certos setores mais rendosos, de maior atrativo para o capital especulativo, deixando no abandono outros setores bsicos, indispensveis ao verdadeiro progresso social. Como conseqncia desta viso egostica do progresso econmico se constituiu em vrios pases de economia dependente o que alguns socilogos chamaram de uma estrutura social [pg. 283] dualista7 com a superposio de um quadro social bem desenvolvido sobre outro quadro de total estagnao econmica. Ainda hoje, perdura em certos meios uma atitude mental fiel s tradies colonialistas inclinada a conceber o progresso econmico em termos de lucros a curto prazo ou de simples injeo de dlares para explorao imediata de certos recursos mais abundantes. A dualidade estrutural da civilizao brasileira os dois Brasis de Jacques Lambert8 constitui a nossa herana viva, a sobrevivncia deste comportamento poltico que nos impuseram os colonialistas europeus desde o sculo XVI. E do qual s agora nos estamos libertando. Sob o influxo desta poltica antinacional cultivaram-se com mtodos vampirescos de destruio dos solos os produtos de exportao, monopolizados por meia dzia de aambarcadores da riqueza do pas, construram-se estradas de ferro exclusivamente para ligar os centros de produo com os portos de embarque destes produtos e instituiu-se uma poltica cambial a servio destas manipulaes econmicas. Por trs desta estrutura com aparncia de progresso progresso de fachada permaneceram o latifndio improdutivo, o sistema da grande plantao escravocrata, o atraso, a ignorncia, o pauperismo, a fome. Outro aspecto do nosso desenvolvimento, pouco favorvel melhoria das condies alimentares, tem sido o relativo abandono a que foram relegadas as
o de Mrio Saa, A Invaso dos Judeus, 1925. 7 Balantier. Georges. Le Contexto Socio-Culturel et le Cut Social du Progrs. in Le Tiers Monde. Paris. 1956.
regies mais pobres do pas, onde a fome grassa na mais alta proporo. justo que sendo escassos os recursos de um pas que procura desenvolver-se, principalmente com suas prprias poupanas, no se pode espalhar estes recursos limitados, sem um rigoroso critrio de prioridades. Este critrio se impe para no diluir as possibilidades dos investimentos ao nvel da inoperncia e da improdutividade. Mas, este critrio no pode ser o de concentrar todos os recursos nas reas mais adiantadas, onde j existem centros germinativos em expanso, deixando margem extensas reas potencialmente capazes de participar do processo econmico. E foi isto o que aconteceu. A filosofia do desenvolvimento brasileiro nos ltimos anos foi concebida dentro desta idia de desenvolver mais o [pg. 284] j desenvolvido e no de integrar no sistema econmico nacional as aluais reas marginais, tais como o Nordeste e a Amaznia. O caso do Nordeste o mais alarmante porque a se concentra um tero da populao brasileira, que vive em condies econmicas bem precrias, como tive ocasio de demonstrar. E no entanto toda a poltica econmica brasileira conspira contra a verdadeira integrao econmica desta rea do pas. Neste captulo, a poltica federal se tem limitado a certa proteo economia aucareira que nunca poder sozinha emancipar o Nordeste e poltica paternalista do ajuda-o-teu-irmo nas pocas calamitosas da seca. Ajuda essa que se tem manifestado ineficaz, mesmo como simples procedimento assistencial, beneficiando mais certos grupos apaniguados do que propriamente as vtimas do flagelo. O que o Nordeste necessita bem diferente. um tratamento do governo federal que no seja o de uma metrpole em face de uma colnia. Andr Philip, falando da situao dos pases subdesenvolvidos em face das grandes potncias, diz que aqueles no precisam de ajuda ou assistncia financeira para se desenvolverem, que o que eles esto a exigir o respeito econmico sua economia. Mais respeito do que ajuda. Dentro do Brasil se passa a mesma coisa. Faz-se necessrio que as reas mais ricas, de maior poder, tanto econmico como poltico, tenham mais respeito pelas regies mais pobres e procurem cooperar para sua emancipao, em benefcio da nacionalidade. No so estas palavras manifestaes inconsistentes daquilo que condenamos neste mesmo livro, da chamada ao-lamento ou lamria. No. No desejamos separar o Brasil com muros de lamentaes. Desejamos unific-lo cada
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vez mais, cimentando num s sistema a sua economia fragmentada. Para isto temos que derrubar as muralhas de velhos preconceitos, como este de que estas reas mais pobres do pas so reas irrecuperveis, quando apenas o que tem faltado ao seu progresso so condies histricas favorveis, so circunstncias econmicas que venham ao encontro de suas potencialidades. O Nordeste no est condenado irremediavelmente pobreza e o seu povo fome, por qualquer forma de determinismo inexorvel, mas, porque no jogo das variveis econmicas, a poltica colonial que se afrouxou mais no Sul ainda se mantm bem arroxada na regio nordestina, simples produtora de matrias-primas e produtos de base. Chego s vezes a pensar que o que mais tem faltado ultimamente ao Nordeste um pouco mais de fora poltica liderana [pg. 285] para reivindicar em termos dialticos, e no de splica, os seus direitos humanos. Se o Nordeste, ou melhor, todo o Norte reunido, advogasse uma poltica cambial de exportao, de tarifas e de crdito que no lhe fosse to nociva ou injusta, beneficiando apenas a economia de outras reas do pas, a sua economia se expandiria bem mais depressa do que atravs de limitados crditos oramentrios que so simples gros de areia, caindo num mar de misria e portanto incapazes de cimentar qualquer coisa de realmente slido. Darei apenas dois exemplos, mas que me parecem bem demonstrativos do tratamento discriminatrio que recebe a economia nordestina. O primeiro est ligado ao problema das exportaes dos seus produtos de base, tais como o cacau, o acar, a carnaba, o algodo, os leos e certos minrios, gerando um bom volume de divisas estrangeiras para a nossa economia. Ora, esta parcela de divisas assim geradas no tem beneficiado o Nordeste seno em pequena parcela, porque o seu grosso drenado pelo estado, para equipar a indstria do Sul e s vezes, ainda pior, para cobrir a importao de produtos de luxo, ostentatrios cadillacs e perfumes com que os pases subdesenvolvidos pensam cobrir a sua misria, mas apenas evidenciam de forma mais gritante o seu subdesenvolvimento. Porque
subdesenvolvimento exatamente isto: desnvel econmico, disparidade entre os ndices de produo, de renda e de consumo entre diferentes camadas sociais e diferentes regies que compem o espao scio-geogrfico de uma Nao. Promover o desenvolvimento econmico-social autntico ser antes de tudo procurar atenuar esses desnveis, atravs de uma melhor distribuio da riqueza e de
um mais justo critrio de investimentos nas diferentes regies e nos diferentes setores das atividades econmicas do pas. Os planos de desenvolvimento econmico postos em execuo pelo atual Governo, embora com o patritico objetivo de promover em ritmo acelerado o desenvolvimento econmico do pas, no tem proporcionado, entretanto, os instrumentos adequados a esse nivelamento reequilibrante do conjunto econmico nacional, e por isto no tem contribudo com a necessria eficcia para eliminar a fome de certas reas do pas. Outro exemplo eloqente a apresentar o cotejo das cotas de financiamentos levadas a efeito pelo rgo criado com o fim [pg. 286] precpuo de promover o desenvolvimento econmico do pas: o Banco Nacional de Desenvolvimento. Nos ltimos cinco anos este Banco que deu atendimento de crdito, numa proporo de 49% para a Regio do Leste, e 41% para a Regio do Sul, apenas concedeu ao Nordeste cerca de 4% do total de seus financiamentos. esta economia de dependncia, de dependncia total do Nordeste e da Amaznia ao sistema econmico de outras reas do pas, que mantm inalterveis as manchas negras da fome nessas reas. Depois de quatro sculos de ocupao humana vamos encontrar um pas que se dizia agrcola e que apenas dispe de cerca de 2% de suas terras trabalhadas no cultivo de utilidades e dessa rea insignificante s a tera parte se destinando produo de gneros alimentcios. Dessa produo insuficiente resultam naturalmente coeficientes de consumo per capita que s podem figurar, quando figuram, no fim das listas de consumo das tbuas internacionais, principalmente no que diz respeito aos alimentos protetores carne, ao leite, ao queijo, manteiga, s frutas e s verduras. O nosso consumo de carne de 55 kg per capita e por ano, enquanto que esse consumo atinge 136 kg na Argentina, 107 na Nova Zelndia, 62 nos Estados Unidos da Amrica, 64 na Inglaterra e 57 na Dinamarca. O consumo de leite ridiculamente insignificante: 37 litros por ano, ou seja, cerca de 100 g por dia. Tal consumo atinge as cifras de 164 litros na Dinamarca, 108 nos Estados Unidos, 101 na Austrlia e 95 na Frana. Igual insignificncia encontramos no consumo das demais fontes de protenas: queijo e ovos; 600 g de queijo, quando na Dinamarca se consomem 5,5 kg. A manteiga consumida entre ns na mesma quantidade que o
queijo 600 g , enquanto que os Estados Unidos, a Inglaterra e a Dinamarca consomem, respectivamente, 18, 10 e 8 kg. O consumo dos restantes alimentos protetores ocupa idntica posio nos quadros estatsticos mundiais: so dos mais baixos do mundo. Interpretando estes dados luz dos conhecimentos j expostos anteriormente, deduz-se da situao global da alimentao do nosso povo.
2. No este um quadro histrico de nosso passado, mas um retrato da realidade social vigente. Desta complexa e confusa [pg. 287] realidade social brasileira, que justifica o ttulo dado por Roger Bastide a um seu livro: Brasil, Terra de Contrastes.9 De contrastes atordoantes, como este evidenciado entre o esplendor da vida urbana de algumas de nossas metrpoles e o atoleiro social, o marasmo da vida agrria em torno destas metrpoles. Contrastes como este de possuirmos uma indstria de alto padro moderno e uma agricultura de ndole feudal, apegada rotina, a mais conservadora. Assim o Brasil. Assim se explica porque, apesar de todos os nossos surpreendentes sucessos no campo do progresso econmico, de nossa indstria pesada, de nossa indstria de automveis, de Braslia e de outras metas surpreendentemente alcanadas, ainda somos um pas de fome, ainda somos uma das grandes reas da geografia universal da fome. verdade que esta larga mancha negra da fome se atenuou um pouco em certos pontos, se retraram os seus limites noutros, mas o quadro geral perdura mais ou menos idntico. Ganhou-se nos ltimos anos uma melhor conscincia da realidade do problema. Governo e povo debatem a matria. Conhecem-se melhor os princpios essenciais da higiene alimentar. Mas, pouco foi obtido, como resultados concretos, para melhorar de fato a nossa situao alimentar. E em certos perodos e sob certos aspectos, esta situao parece at se agravar em face do surto de desenvolvimento industrial por que atravessa o pas. como se os responsveis pelos destinos do Brasil no tivessem ainda tomado a peito a soluo do problema, atacando-o em suas razes com coragem e deciso. Mesmo os governos mais empenhados em nossa emancipao econmica no tiveram ainda sucesso neste setor
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vital para o bem-estar social do nosso povo. Vejamos o que se tem passado em nossos dias em termos de desenvolvimento econmico nacional. O desenvolvimento econmico constitui hoje uma idia-fora dinamizando a vontade de nosso povo, desejoso de participar ativamente nesse processo de transformao de nossa economia e atento em controlar de perto os resultados desse esforo coletivo. Essa transformao de nossa economia que a partir de 1930 comeou a se integrar num sistema prprio com capacidade [pg. 288] de desenvolvimento autnomo vem acelerando o seu ritmo de expanso depois da ltima guerra mundial. Pelo cotejo de certos dados de semiologia econmica possvel avaliar-se o impulso de nosso desenvolvimento, o qual se mostra em certos setores bastante promissor. Basta verificar-se que o ndice de produo real do pas duplicou nos ltimos 15 anos, logrando a produo industrial um aumento de cerca de 190%, enquanto que a agricultura apenas cresceu em 40%. O pas industrializa-se e cresce, desta forma, a sua capacidade produtiva. Resta saber com que eficincia est sendo utilizada esta capacidade produtiva. a medida dessa eficincia que melhor revela a adequao ou inadequao de um plano de desenvolvimento econmico, porque depende em larga escala da validez dos critrios que orientam os investimentos, o ritmo de expanso de um sistema econmico. O que est ocorrendo no Brasil: qual a intensidade do nosso crescimento econmico e quais os fatores que esto porventura freando o seu impulso produtivo? O desenvolvimento econmico do Brasil, quando medido atravs dos ndices da renda mdia per capita, no pode ser contestado. Mas, se procurarmos auferi-lo, atravs da distribuio real das rendas pelos diferentes grupos sociais, mostra-se ele ento bem menos efetivo. E a verdade que o progresso social no se exprime apenas pelo volume da renda global ou pela renda mdia per capita, que uma abstrao estatstica, e sim por sua distribuio real. E esta distribuio, em lugar de melhorar, de mostrar sua tendncia a uma benfica disperso, cada vez mais se concentra em certas reas e nas mos de certos grupos. Faltou ao Governo a coragem de tocar nas estruturas de base, causadoras deste desequilbrio, e de promover, com o processo de desenvolvimento, este nivelamento reequilibrante do conjunto econmico do pas.
Mesmo industrializando-se, a nossa economia seguiu os difames de uma economia de tipo colonial, politicamente desinteressada pela sorte da maioria, apenas ocupada em desenvolver mais o j desenvolvido e em enriquecer mais os j enriquecidos pelo sistema vigente. E neste aspecto desequilibrante que o nosso desenvolvimento econmico no corresponde a um autntico desenvolvimento social, que representa a autntica aspirao das massas brasileiras. [pg. 289] Longe disso. Em certos aspectos, a poltica de industrializao intensiva concentrada na regio Sul do pas, onde j existia um sistema econmico integrado por uma economia de exportao base do caf e uma incipiente economia industrial, acentuou e agravou ainda mais os desnveis j existentes. O desnvel regional entre a rea do Sul e as do Norte e Nordeste e o desnvel setorial entre a indstria e a agricultura. Na verdade, o desnvel entre as regies no seno a projeo em reas geogrficas do desnvel setorial entre a economia agrcola e a economia industrial. esse desnvel setorial que merece neste nosso ensaio o maior interesse, porque ele constitui, a nosso ver, a mais grave distoro na dinmica de nosso desenvolvimento econmico e o principal fator de estrangulamento da industrializao do pas, a qual constitui uma meta fundamental do
desenvolvimento. Todo o processo de desenvolvimento dirigido, num pas subdesenvolvido, cria automaticamente uma srie de desequilbrios que exige a todo o momento a ao de medidas corretivas. O socilogo Costa Pinto acentua muito bem o fato de que nas estruturas sociais dos pases menos desenvolvidos no a falta ou ausncia de mudanas o trao essencial, mas sim o fato das diversas partes dessas estruturas mudarem em ritmos diferentes, gerando assimetrias e distores, contradies e resistncias.10 Da a impossibilidade de importar-se modelos pr-fabricados de
desenvolvimento para aplicar-se in loco como transposio vlida da experincia de outros povos. Cada sistema econmico em expanso se orienta de maneira original e at certo ponto imprevisvel, em face das possibilidades das virtualidades das diferentes reas geo-econmicas. No caso brasileiro, a distoro mais acentuada tem sido o atraso da agricultura em relao ao progresso do setor industrial. verdade que alguns contestam este
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Costa Pinto. L. A., in Resistncias a Mudana. Anais do Seminrio Internacional. Rio. out. de
fenmeno, referindo-se ao fato de que a agricultura tem crescido no Brasil num ritmo mais acentuado que a populao, numa relao de 3 para 2. Ora, este argumento extremamente fraco. preciso no esquecer que os padres alimentares do Brasil sempre foram dos mais baixos do mundo, com o subconsumo global de calorias e o subconsumo especfico de vrios produtos alimentares, principalmente [pg. 290] dos alimentos protetores. A produo de alimentos, no Brasil sempre esteve longe de dar atendimento s necessidades vitais de nossa populao, apenas atendendo s necessidades solvveis, limitadas em extremo pela baixa capacidade aquisitiva de nosso povo. E claro que melhorando esta capacidade aquisitiva com a industrializao em marcha, aumenta sobremodo a demanda de alimentos exigindo um crescimento da produo agrcola em ndices bem mais altos do que os obtidos at o presente. bom tambm lembrar que o setor agropecurio fornece at hoje 60% das matrias-primas duma expanso paralela do volume destas matriasprimas. Mas o atraso da agricultura se revela muito mais nitidamente, no atravs do volume da produo, e sim atravs dos seus ndices de produtividade, que so dos mais baixos do mundo. De produtividade do trabalhador agrcola e de produtividade da terra cultivada. o baixo rendimento do homem rural brasileiro que faz com que sejam necessrios dez milhes de trabalhadores para cultivar apenas vinte milhes de hectares de terra, enquanto nos Estados Unidos oito milhes de homens cultivam 190 milhes de hectares, ou seja, uma rea dez vezes mais extensa. A produtividade da terra em seus produtos tradicionais tambm se revela comparativamente em situao bem desfavorvel; assim a produtividade mdia por hectare da cana-deacar de 38 toneladas no Nordeste, contra 70 em Porto Rico: a de algodo em rama de 0.070 toneladas no Nordeste. 0.214 em S. Paulo e 0.304 nos EUA: a de milho de 0.676 toneladas no Nordeste, 1.402 em Minas Gerais e 2.271 nos EUA, e assim por diante. A fraqueza e o atraso da economia agrcola no Brasil constituemse, desta forma, como fatores de amordaamento de toda a economia nacional, freando o prprio ritmo de industrializao, atravs de vrios mecanismos. Atravs das matrias-primas escassas e do alto custo de produo, a agricultura se constitui indiscutivelmente como um fator de estrangulamento de um largo setor
1959.
das indstrias de transformao. Idntico efeito ocorre em face da escassez e dos altos preos dos produtos de subsistncia, impondo o estabelecimento de salrios para os trabalhadores da indstria que oneram, sobremodo, o custo da produo industrial, sem que ao menos permitam ao trabalhador a obteno de um tipo de dieta racional capaz de melhorar os seus ndices de produtividade. [pg. 291] E dificultando ainda em maior escala a formao de grandes parques industriais, cujo abastecimento passa a constituir a maior dor-de-cabea dos planificadores e dos homens de empresa, em certas reas do pas. O marginalismo econmico a que ficou relegado o homem do campo, com sua capacidade aquisitiva quase nula, no permite a formao de um mercado interno capaz de absorver a crescente produo industrial. As migraes internas, os altos graus de mobilidade social do campo para a cidade, supersaturando os ncleos urbanos com grandes massas humanas improdutivas, clulas economicamente mortas, infiltradas dentro da textura social, vm onerar terrivelmente o errio pblico com os indispensveis servios sociais, cujo alto custo absorve necessariamente uma grande parcela de recursos que deveriam ser aplicados em investimentos reprodutivos. todo um conjunto de foras de conteno, oriundas do atraso da economia rural brasileira, a se constiturem como fatores de limitao do nosso desenvolvimento econmico. No tenho a menor dvida de que por culpa deste lamentvel desequilbrio que se comea a verificar um relativo recesso no ritmo de expanso de nossa indstria nos ltimos trs anos, exatamente quando maior tem sido o contingente de esforo e recursos concentrados na promoo do nosso desenvolvimento industrial. J no segredo, nem produto de pura especulao dos economistas, que vrios setores industriais atingiram os limites da saturao do mercado interno, impondo a limitao de sua produo e dando origem ao desemprego que cresce em certos ncleos urbanos. Urge corrigir este desequilbrio que est a ameaar todo o esforo de integrao de nosso sistema econmico, fazendo-o perder uma boa parte da substncia de sua capacidade produtiva. E isto s poder ser obtido atravs de um melhor atendimento pblico s necessidades mais prementes da economia agrcola. Constitui um grave risco contar com as foras do automatismo para corrigir esta
distoro, baseando-se na premissa de que o progresso industrial, ao atingir certo nvel, provocar automaticamente o progresso rural. Falsa premissa no campo da realidade social que apenas perdura como uma sobrevivncia dos princpios da economia liberal, na qual a mo invisvel invocada por Adam Smith asseguraria sempre, atravs da livre concorrncia, o restabelecimento da ordem natural. [pg. 292] Ora, pensar assim negar a eficincia da planificao econmica, abdicar das possibilidades que hoje dispomos de dirigir o desenvolvimento econmico para metas definidas e no nos deixarmos ser arrastados aos acasos das aventuras mercantis. Com razo afirma o economista chins Pei-Kang-Chang11 que o desenvolvimento industrial por si s no bastante para conduzir a uma reforma da economia agrria. um ingrediente necessrio mas no suficiente para provocar a transformao da vida econmica rural. Mas, mesmo admitindo o fato discutvel de que alcanado certo nvel de desenvolvimento industrial o impacto econmico viesse a impulsionar o setor da agricultura, resta um ponto importante a esclarecer: qual seria este nvel e que garantias teremos de que poderamos alcan-lo, quando o nosso desenvolvimento amordaado e estrangulado pela subprodutividade e pelo subemprego de dois teros de nossa populao ativa, que vegetam no campo da agricultura? Este relativo abandono da agricultura se revela nos ndices de crescimento da produo agropecuria que se apresenta ronceiro, de ritmo bem inferior ao desejvel, para acompanhar a expanso econmica do pas. Se no vejamos: de 1948 a 1958, enquanto o produto nacional bruto per capita cresceu de 29%, a produo agropecuria apenas cresceu em 15%, ou seja, em cerca de 1,5% ao ano, que apenas d para cobrir o aumento natural da nossa populao.12 E devemos ainda referir o fato de que em alguns desses anos, como em 1958, este aumento reflete mais o incremento da produo dos produtos de exportao, principalmente o caf, do que dos produtos de subsistncia para consumo nacional. claro que esta distoro econmica vem pesando terrivelmente na situao alimentar de nosso povo, acentuando o fenmeno da inflao, que se exterioriza principalmente na alta dos preos dos gneros alimentcios.
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Bastariam algumas cifras para mostrar a marcha avassaladora desse processo inflacionrio. Nos anos de 1956 a 1959, o custo de vida aumentou nos seguintes ndices 20.8, 16,0, 14.9 e 39.1%. 13 Ora, um aumento do custo de vida de cerca de 40%, como este do ano de 1959, consome inteiramente as disponibilidades [pg. 293] das classes assalariadas, que so foradas a um regime de terrveis restries pela perda do valor aquisitivo dos seus salrios. E a se encontra a explicao de que seja no proletariado urbano que se evidencia esta verdadeira epidemia de carncias proteicas infantis o kwaskiorkor porque os alimentos protetores contra esta doena, principalmente o leite, foi se tornando inacessvel a este grupo social. E isto apesar dos reajustamentos salariais que chefiam sempre atrasados e em nveis inferiores aos alcanados pela espiral inflacionria. Como interpretar esta situao que perturba seriamente a marcha do nosso desenvolvimento? Como uma crise normal de crescimento da nacionalidade, embora perigosa pelos riscos de um desequilbrio por demais profundo. O desenvolvimento econmico constitui a nica soluo real ao problema do subdesenvolvimento, com suas caractersticas fundamentais do subemprego, da subprodutividade e do pauperismo generalizado. A tomada de conscincia da realidade social brasileira por parte do nosso povo incutiu no esprito das massas esta idia-fora de que s atravs do nosso desenvolvimento econmico real nos libertaremos da opresso e da escravido econmica que esmagam a maioria de nossas populaes. Ningum pode ter hoje outra atitude que a de aspirar e cooperar para que se processe, em ritmo acelerado e sem distores, o desenvolvimento econmico do nosso pas. Pensar diferentemente servir aos interesses antinacionais, fazer o jogo dos trustes internacionais, interessados em abafar o surto de progresso das regies de economia primria, fornecedoras das matriasprimas para os grandes emprios industriais que dominam a economia mundial. Representa a poltica de desenvolvimento, o que se chama necessidade histrica, um imperativo ao qual no podemos fugir. No devemos, pois, ter nenhuma reserva acerca da necessidade e da oportunidade de uma poltica desenvolvimentista para o Brasil. As nossas dvidas e possveis divergncias se encontram no campo de execuo desta poltica, nos
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elementos postos em jogo para dinamizar e orientar a nossa emancipao econmica. O atual Governo, desejoso de promover em ritmo acelerado a nossa expanso econmica, e impregnado da idia de que s atravs da industrializao intensiva poderemos emancipar-nos economicamente, vem realizando o seu programa de metas, de forma a criar no nosso esprito uma certa apreenso. [pg. 294] Apreenso de que o critrio de prioridades para aplicao de nossas escassas disponibilidades econmicas no seja o critrio ideal. Somos daqueles que julgam necessrio promover o desenvolvimento industrial, sem contudo sacrificar exageradamente os investimentos no setor da economia agrria. Concentrar lodo o esforo apenas num setor estimular um desenvolvimento desequilibrado, que comear dentro de algum tempo a sofrer o impacto do desequilbrio e a retardar o seu ritmo de expanso. A economia planificada deve agir sobre todo um sistema econmico integrado a fim de evitar os desequilbrios que se constituem com o tempo em fatores de estrangulamento. No atual momento da conjuntura econmica brasileira comeamos a presenciar o fato inegvel de que o atraso da agricultura nacional se constitui como um fator de estrangulamento da prpria economia industrial. S poderemos manter o ritmo de expanso da indstria brasileira e dar-lhe garantia de sobrevivncia se cuidarmos melhor de expandir e de consolidar a nossa economia agrcola. Temos que insistir muito neste aspecto porque o consideramos primacial nos nossos planos de desenvolvimento. Arriscamo-nos mesmo em nossa insistncia a desafiar a pacincia dos nossos leitores, repisando argumentos demonstrativos de quanto pode custar ao bem-estar dos brasileiros este grave marginalismo da nossa economia agrria. Mantendo a estrutura aluai de nossa economia agrcola, cujos ndices de produtividade so dos mais baixos do mundo, torna-se bem difcil obter-se as matrias-primas necessrias a uma indstria capaz de concorrer nos mercados mundiais e obter os meios de subsistncia para alimentar as massas trabalhadoras dos grandes parques industriais. Alm disso, a falta de um mercado interno para absorver a nossa crescente produo industrial exige medidas que venham a integrar no sistema econmico brasileiro a grande massa campesina, cerca de 70% da populao brasileira, que vive hoje praticamente sem consumir nem
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mesmo o mnimo necessrio sua subsistncia. Este relativo descaso ao setor agrcola, justificvel em parte pela escassez de recursos num pas subcapitalizado e pela necessidade de concentr-los ao mximo nos empreendimentos mais produtivos, nos bens de equipamento que venham emancipar o pas, comea entretanto a constituir-se como uma grave ameaa ao nosso desejo de emancipao e ao gigantesco esforo de industrializao nacional. Basta verificar-se [pg. 295] que, nos ltimos anos, o ritmo de expanso industrial sofreu um certo recesso e que nos grandes centros da indstria, como So Paulo, amplia-se o desemprego em face de uma superproduo relativa pela falta de mercado interno e em face da carestia dos altos cultos de produo impostos pela subida desordenada dos preos dos produtos de subsistncia. pela falta de amparo economia agrcola que se desloca anualmente enorme massa humana do campo para as cidades, vindo a supersaturar a vida urbana, criando graves embaraos aos problemas de abastecimento e onerando terrivelmente o errio pblico com servios assistenciais cujo custo desfalca necessariamente uma grande parcela de recursos que seriam mais bem aplicados numa poltica de produo agrria. O que alguns socilogos chamam de cidades inchadas, como a do Recife, com 200 mil marginais improdutivos, oriundos do interior, so uma demonstrao evidente de que, longe de se atenuar, se vai agravando no Brasil nos ltimos tempos o desequilbrio entre a cidade e o campo. Como se agrava tambm o desnvel entre a regio industrializada do Sul e as regies predominantemente agrcolas do Norte e do Nordeste do pas, vindo a situao do Nordeste a constituir-se no mais grave problema nacional, ameaando no s a nossa economia, mas mesmo a segurana nacional. Ao promover o desenvolvimento econmico do pas fica o Governo um tanto perplexo diante do dilema do po ou do ao, ou seja, de investir suas escassas disponibilidades na obteno de bens de consumo ou de concentr-las na industrializao intensiva, sacrificando durante um certo tempo as aspiraes de melhoria social da coletividade. A tendncia predominante entre os economistas de que se deve concentrar de incio todo o esforo no ao, ou seja, na industrializao, obrigando-se a coletividade a participar com seu sacrifcio na obra de recuperao nacional. o que se chama de pagar o custo do progresso indispensvel emancipao econmica. Devemos entretanto no exagerar este custo, no tender
demasiado ao exclusivismo porque a realidade social no se cinge apenas no economismo puro, mais sim na expresso econmico-social de um povo. A soluo ao dilema no est no atendimento exclusivo ao po ou ao ao, mas simultaneamente ao po e ao ao, em propores impostas em face ds circunstncias sociais e das disponibilidades econmicas existentes. Todas as tentativas de exigir de qualquer coletividade um custo de progresso acima do [pg. 296] tolervel acarretam ressentimentos e tenses sociais ameaadoras. Tenho a impresso de que o povo brasileiro hoje imbudo da idia do desenvolvimento e do progresso social est disposto a dar sua cota de sacrifcio, a fim de que o pas se desenvolva e se emancipe economicamente. Mas preciso que este povo esteja convicto de que o sacrifcio est igualmente distribudo por todos os grupos e classes sociais que compem a nacionalidade. E no estou muito seguro de que isso esteja acontecendo. Para levar a efeito o seu programa de desenvolvimento econmico dever o Governo no s estar mais atento s necessidades dos grupos humanos que vivem no setor da agricultura, como tambm procurar promover uma melhor distribuio regional em matria de crdito e investimentos a fim de que o gigante brasileiro no venha a crescer capenga ou torto. Se visarmos o desenvolvimento apenas de uma parte da Nao, imolando a esse novo Moloch as desvantagens e o desajustamento de outras reas do pas, ainda mais subdesenvolvidas, falsearemos o sentido do verdadeiro desenvolvimento econmico que constitui a aspirao mxima de todo o povo brasileiro. Urge tambm que sejam tomadas medidas contra o excesso do poder econmico, de forma a distribuir melhor as cotas de sacrifcio que hoje pesam quase que exclusivamente nas classes menos favorecidas, assoberbadas e consumidas em face do avassalante aumento do custo de vida. O Governo pode aparentemente desaperceber-se disto, mas o povo sente em sua carne os efeitos funestos da inflao que fez com que o valor aquisitivo de nossa moeda casse em 1959 a 35 vezes menos do que era em 1914, ao comear a Primeira Guerra Mundial. Diante desta rpida exposio, pode-se concluir que sendo imperioso o desenvolvimento econmico nacional, devem o Governo e o povo se unirem atravs de um processo de mtua confiana e de mtuo interesse a fim de que esse desenvolvimento no seja sacrificada em sua execuo por certas falhas inevitveis,
bem verdade, mas que devem ser corrigidas a tempo para evitar o desastre econmico do pas. No h dvida que o Brasil d no momento atual um grande salto em sua histria social. O que precisamos evitar que seja um salto no abismo, orientando-o de forma que as nossas foras nos permitam alcanar o outro lado do fosso a ser ultrapassado. [pg. 297] E no possvel saltar esse fosso com um povo faminto, um povo que no disponha do mnimo essencial para suas necessidades bsicas de vida, um mnimo essencial de alimentao. E a que est pegando o carro do progresso nacional. Este mnimo s ser obtido atravs de profundas alteraes de nossas estruturas de base que, em seu arcaismo se tornam incapazes de propiciar as condies indispensveis ao pleno exerccio de nossas foras produtivas. Destas estruturas, a mais retrgrada e a mais resistente ao verdadeiro progresso social , sem nenhuma dvida, a nossa estrutura agrria, da a necessidade de atac-la com deciso para adapt-la s necessidades sociais do Brasil atual. a inadequao de nossas estruturas agrrias o fator essencial da m utilizao de nossos recursos naturais, da baixa produtividade agrcola e da subocupao do homem do campo. Numa palavra: do atraso geral de nossa agricultura. O arcasmo desta estrutura agrria se evidencia no s pela inadequada distribuio das propriedades, como pelas relaes de produo de tipo feudal, nas quais ainda perduram o regime da meiao, a parceria e outras sobrevivncias do feudalismo agrrio. Moacyr Paixo14 expressa com muita felicidade o chamado problema agrrio brasileiro em trs caractersticas da sociedade rural: a) o domnio monopolista sobre grandes extenses de terra, por vezes as de melhor qualidade, exercido por uma classe social de fazendeiros capitalistas e latifundirios, que impedem a mais ampla utilizao dos solos no processo produtivo;
condio social heterognea, regra geral pobres, e que, para ter acesso terra, precisam sujeitar-se aos regimes de parceria, arrendamento, colonato e salariato nas fazendas de caf ou criao, nas plantaes de algodo, arroz, acar, trigo, fumo, cacau, milho; [pg. 298] c) as frices sociais em torno da terra, que se manifestam sobretudo a partir das posies opostas vividas pelos grandes proprietrios fundirios e a massa rural sem terra, atingem outras camadas sociais do campo. Chocam-se, realmente, contra o grande domnio centenas de milhares de proprietrios pobres, detentores de pequenas reas de terra.
A gritante impropriedade desse regime agrrio feudal em meados do sculo XX se pode exteriorizar atravs de alguns dados estatsticos que so de uma eloqncia impressionante: o Brasil com sua enorme extenso territorial possui o mesmo nmero de propriedades agrcolas que a Frana, cuja extenso territorial representa apenas 6% do nosso territrio. como se ainda perdurasse no Brasil o regime das capitanias hereditrias estabelecido em 1554 por D. Joo III de Portugal. que cerca de 60% das propriedades agrcolas no Brasil so constitudas por glebas de reas superiores a 50 hectares de terra, das quais 20% possuem mais de 10.000 hectares. No recenseamento de 1950, ficou evidenciada a existncia no Brasil de algumas dezenas de propriedades que so verdadeiras capitanias feudais: propriedades com mais de 100.000 hectares de extenso. Ao lado desta nociva tendncia ao latifndio, irmo siams do arcasmo tcnico e da improdutividade, encontramos a pulverizao antieconmica da propriedade o minifndio expresso da realidade social, de que 500.000 propriedades, ou seja, uma quarta parte dos estabelecimentos agrcolas existentes no Brasil 2 milhes apenas ocupam 0,5% da extenso das terras de propriedades agrcolas. Do latifndio decorrem a nfima percentagem de rea cultivada no pas apenas 2% do territrio nacional , as prticas agrcolas primitivas, de baixo rendimento e de alto grau de destruio da fertilidade dos solos, a ausncia de
tcnica agronmica e do esforo de capitalizao indispensvel ao progresso rural. Do latifndio decorre tambm a existncia das grandes massas dos sem-terra, dos que trabalham na terra alheia, como assalariados ou como servos explorados por esta engrenagem econmica de tipo feudal. Por sua vez o minifndio significa a explorao antieconmica da terra, a misria crnica das culturas de subsistncia que no do para matar a fome da famlia. Todo esforo de modernizao e dinamizao de nossa agricultura tropea neste arcabouo arcaico da infra-estrutura agrria, [pg. 299] verdadeira armadura contra o progresso econmico e social do pas. Atravs desta exposio sucinta da conjuntura econmico-social brasileira, chega-se evidncia de que indispensvel alterar substancialmente os mtodos da produo agrcola, o que s possvel reformando as estruturas rurais vigentes. Apresenta-se deste modo a Reforma Agrria como uma necessidade histrica nesta hora de transformao social que atravessamos: como um imperativo nacional. O tipo de reforma que julgamos um imperativo da hora presente no um simples expediente de desapropriao e redistribuio da terra para atender s aspiraes dos sem-terra. Processo simplista que no traz soluo real aos problemas da economia agrria. Concebemos a reforma agrria como um processo de reviso das relaes jurdicas e econmicas, entre os que detm a propriedade agrcola e os que trabalham nas atividades rurais. Traduz, pois, a reforma agrria uma aspirao de que se realizem, atravs de um estatuto legal, as necessrias limitaes explorao da propriedade agrria, de forma a tornar o seu rendimento mais elevado e principalmente melhor distribudo em benefcio de toda a coletividade rural. O conjunto de leis englobadas nesse cdigo deve regular inmeros problemas, tais como o da desapropriao das terras, os arrendamentos rurais, o dos contratos de trabalho e vrios outros aspectos complementares da posse da terra. Para levarmos a efeito esta reforma, certamente teremos obstculos a vencer, produtos da lei natural da inrcia ajudada pela reao que sempre criam ao progresso os direitos e os privilgios adquiridos. Mas a verdade que esses obstculos diminuem cada dia mais. Avultavam outrora pela incompreenso das elites brasileiras que no viam essa necessidade imprescindvel de se promover uma modificao nas estruturas agrrias, paralelamente s modificaes que surgiram no
campo da economia industrial. O rpido surto industrial dos ltimos quinze anos, possibilitado pela conjugao de toda uma srie de fatores favorveis, na sua maioria surgidos em funo da guerra, contribuiu para manter uma espcie de obscurantismo em torno dessa verdade. Hoje, porm, quando a indstria comea a sentir dificuldades em escoar a sua produo, o problema agrrio avulta de importncia e desperta a conscincia nacional no sentido de resolv-lo racionalmente. [pg. 300] Existem em andamento no Parlamento Nacional 178 projetos de lei referentes aos problemas da terra. Quase todos permanecem paralisados em face das foras reacionrias que dominaram at perto dos nossos dias as tendncias do pensamento do Parlamento Nacional. Mas sente-se hoje uma mudana sensvel deste pensamento. O fato de que no s as classes produtoras, principalmente os industriais, mas expoentes do pensamento das elites brasileiras se manifestem claramente a favor de uma reforma agrria, tende criao de um clima que permita a aprovao de alguns desses projetos ou de outros que possam progressivamente modificar a estrutura e as relaes de trabalho no campo da agricultura. O principal obstculo a ser superado sem nenhuma dvida a rigidez do preceito constitucional (art. 141, 6.), que garante o direito de propriedade, s admitindo sua desapropriao mediante o pagamento prvio em dinheiro pelo justo valor. Se esse justo valor for entendido como preo de mercado, segundo a tradio privativista de nossos tribunais, torna-se praticamente invivel qualquer reforma agrria, sem prvia reforma constitucional, em face da soma fabulosa de recursos necessrios para desapropriar largos tratos de terra. Se justo valor, porm, nos casos de desapropriao por interesse social e tendo em vista o novo sentido social que o art. 147 da Constituio Federal empresta ao uso da propriedade for conceituado de outra forma, como, por exemplo, o custo histrico, tal qual propem Seabra Fagundes, Carlos Medeiros da Silva e Hermes Lima, ou como o valor tributado, de acordo com a sugesto de Pompeu Acioly Borges, ento sim, podero ser superadas as limitaes contidas no aludido art. 141, 6. da Constituio. Como um imperativo nacional esta medida exige a participao de todos os brasileiros verdadeiramente patriotas para ser realizada em termos de interesse coletivo. Exige, pois, uma preparao psicolgica atravs de uma campanha de
esclarecimento da opinio pblica. De esclarecimento de que no se trata de uma medida visando beneficiar um s grupo, o dos prias rurais os sem-terras mas que beneficiar a todas as classes e grupos sociais, interessados no desenvolvimento econmico equilibrado do pas. Precisamos enfrentar o tabu da reforma agrria assunto proibido, escabroso, perigoso com a mesma coragem com que enfrentamos o tabu da fome. Falaremos abertamente do [pg. 301] assunto, esvaziando desta forma o seu contedo tabu, mostram do atravs de uma larga campanha esclarecedora que a reforma agrria no nenhum bicho-papo ou drago malfico que vai engolir toda a riqueza dos proprietrios de terra, como pensam os mal-avisados, mas que, ao contrrio, ser extremamente benfica para todos os que participam socialmente da explorao agrcola, porque s atravs desta reforma ser possvel inocular na economia rural os germes de progresso e desenvolvimento representados pelos instrumentos tcnicos de produo, pelos recursos financeiros, e pela garantia de um justo rendimento das atividades agrrias, de forma a libertar a nossa agricultura dos freios do colonialismo agonizante e liberar, indiretamente, o nosso desenvolvimento econmico do principal fator de estrangulamento do seu crescimento, que o marasmo da agricultura brasileira. E libertar desta forma o povo das marcas infamantes da fome. Ao lado da estrutura agrria, h outros obstculos estruturais a vencer.15 No s a infra-estrutura agrria que est superada, mas tambm os processos de distribuio da produo agrcola com sua rede interminvel dos intermedirios e atravessadores. Dos monopolistas e exploradores da fome. Tudo isto tem que ser revisto. Mas isto um livro e no um programa de governo e por isto nos limitamos a apontar onde esto os pontos fracos de nossa estrutura por onde o problema deve ser atacado.
3. Atravs desta sondagem das condies de alimentao e nutrio do brasileiro das diferentes zonas do pais, da viso sinttica da situao brasileira como um todo, da anlise dos fatores que interferem, de maneira mais direta, na sua estruturao e das consequncias que da decorrem, podemos formular as seguintes
15
Accioly Borges, Pompeu, Obstculos Estruturais Demogrficos, Econmicos e Sociais ao Desenvolvimento do Brasil e de Outras reas Subdesenvolvidas. n Resistncias a Mudana. Rio. 1960.
concluses gerais: I O Brasil, como pas subdesenvolvido, em fase de desenvolvimento autnomo e de acelerado processo de industrializao no conseguiu ainda se libertar da fome e da subnutrio que durante sculos marcaram duramente a sua evoluo social, entravando o seu progresso e o bem-estar social do seu povo. [pg. 302] II A dualidade da civilizao brasileira, com a sua estrutura econmica bem integrada e prspera no setor da indstria e sua estrutura agrria arcaica, de tipo semicolonial, com manifesta tendncia monocultura latifundiria, a principal responsvel pela sobrevivncia da fome no quadro social brasileiro. III Nenhum fator mais negativo para a situao de abastecimento alimentar do pas do que a sua estrutura agrria feudal, com um regime inadequado de propriedade, com relaes de trabalho socialmente superadas e com a no utilizao da riqueza potencial dos solos. IV Os baixos ndices de produtividade agrcola, produto da explorao emprica e desordenada da terra, a produo insuficiente pela exiguidade de terras cultivadas, apesar do enorme potencial de terras virgens do pas, os insuficientes meios de transporte e de armazenagem dos produtos se constituram como fatores de base no condicionamento de um abastecimento alimentar insuficiente e inadequado s necessidades alimentares do nosso povo. V A inflao provocando uma alta contnua dos preos dos produtos alimentares e a baixa capacidade de compra de largos setores de nossa populao, principalmente na zona rural, tem acentuado as dificuldades do abastecimento alimentar adequado de uma grande parcela do povo brasileiro. VI Apesar dos esforos realizados, dos programas de educao alimentar e de extenso agrcola que procuram disseminar pelo pas os conhecimentos
fundamentais e prticos da cincia da alimentao, constitui ainda a ignorncia destes fundamentos um fator de agravamento da dieta pela m aplicao por parte do povo de suas escassas disponibilidades financeiras. VII Tambm fator de agravamento da situao alimentar tem sido o surto de expanso industrial do pas, sem o paralelo incremento da produo agrcola, de forma a atender a crescente procura de alimentos de uma populao que procura elevar os seus padres de vida, principalmente nas cidades. [pg. 303] VIII A alimentao do brasileiro se mostra assim imprpria em toda a extenso do territrio nacional, apresentando-se em regra insuficiente, incompleta o desarmnica, arrastando o pais a um regime habitual de fome seja de fome epidmica, como na rea do serto, exposta s secas peridicas, a do Nordeste aucareiro e a da monocultura do cacau, seja epidmica, como na rea do serto, exposta s secas peridicas, seja de subnutrio crnica, de carncias mais discretas como nas reas do Centro e do Sul. IX A fome, tanto global como especfica, expressa nas inmeras carncias que o estado de nutrio do nosso povo manifesta, constitui, sem nenhuma dvida, o fator primacial da lenta integrao econmica do pas. Por conta dessa condio biolgica tremendamente degradante a desnutrio crnica decorrem graves deficincias do nosso contingente demogrfico. Deficincias que so consequncias diretas dos alarmantes ndices de mortalidade infantil, de mortalidade global, de mortalidade pelas doenas de massa, como a tuberculose, dos altos coeficientes de morbilidade e de incapacidade para o trabalho e dos baixos ndices de longevidade, expresses bio-estatsticas todas essas fundamentalmente condicionadas pelo estado de desnutrio da coletividade. A fome leva mais longe seus efeitos destrutivos, corroendo a alma da raa, a fibra dos pioneiros lutadores que conseguiram de incio vencer a hostilidade do meio geogrfico desconhecido, tirando-lhes toda iniciativa, levando-os apatia e ao conformismo ou exploso desordenada de rebeldias improdutivas, verdadeiras crises de nervos de populaes neurastnicas e avitaminadas.
X Nenhum plano de desenvolvimento vlido, se no conduzir em prazo razovel melhoria das condies de alimentao do povo, para que, livre do peso esmagador da fome, possa este povo produzir em nveis que conduzam ao verdadeiro desenvolvimento econmico equilibrado, da a importncia da meta Alimentos para o povo, ou seja, a libertao da fome. Esta dramtica situao alimentar, expresso do subdesenvolvimento, nacional e das contradies econmicas que esta situao gera no pas, apresentada esquematicamente nestes dez itens ou traos mais marcantes do retrato da fome no Brasil, impe a necessidade inadivel de uma poltica alimentar mais efetiva, que no seja apenas de paliativos e de correo das falhas [pg. 304] mais gritantes atravs de programas simplesmente assistenciais. Impe-se uma poltica que, acelerando o processo de desenvolvimento, quebrando as mais reacionrias foras de conteno que impedem o acesso economia do pas a grupos e setores enormes da nacionalidade, venham a criar os meios indispensveis elevao dos nossos padres de alimentao. Porque a verdade que nada existe de especifico contra a fome, nenhuma panacia que possa curar este mal como se fosse uma doena de causa definida. A fome no mais do que uma expresso a mais negra e a mais trgica expresso do subdesenvolvimento econmico. Expresso que s desaparecer quando for varrido do pas o subdesenvolvimento econmico, com o pauperismo generalizado que este condiciona. O que necessrio por parte dos poderes pblicos condicionar o desenvolvimento e orient-lo para fins bem definidos, dos quais nenhum se sobrepe ao da emancipao alimentar do povo. dirigir a nossa economia tendo como meta o bem-estar social da coletividade. S assim teremos um verdadeiro
desenvolvimento econmico que nos emancipe de todas as formas de servido. Da servido s foras econmicas externas que durante anos procuraram entorpecer o nosso progresso social e da servido interna fome e misria que entravaram sempre o crescimento de nossa riqueza. O Brasil, que acaba de construir a capital do futuro, precisa arrancar o resto do pais das brumas do passado, da sobrevivncia de sua infra-estrutura econmica de tipo pr-capitalista, na qual vegeta at hoje mais da metade de sua populao.
A vitria contra a fome constitui um desafio atual gerao como um smbolo e como um signo da vitria integral contra o subdesenvolvimento. [pg. 305]
VII. GLOSSRIO
ABAR* Massa de feijo fradinho, feita em azeite-de-dend, de maneira idntica ao acaraj, e a seguir envolvida em folha de bananeira e cozida em banho-maria.
* Na elaborao deste glossrio, serviram de fontes informativas bsicas as seguintes obras: Jos Bernardino de Souza. Dicionrio da Terra e da Gente do Brasil. 1939: Vicente Chermont de Miranda. Glossrio Paraense ou Coleo de Vocbulos Peculiares Amaznia, e Especialmente Ilha de Maraj, Belm. 1906: Alfredo Augusto da Mata. Contribuio ao Estudo do Vocabulrio Amazonense, 1937: Paul Le Cointe, A Amaznia Brasileira. rvores e Plantas teis. Belm. 1934; idem O Estado do Par, a Terra, a gua e o Ar. S. Paulo. 1945: Raimundo de Morais. Meu Dicionrio das Coisas Amaznicas, 1931: Armando Mendes. Vocabulrio Amazonense. 1942: e Manoel Querino, Costumes Africanos no Brasil, 1938.
ACA. Massa fina de milho bem cozida, em seguida embebida de leo de dend e envolta em folhas de bananeira para assar em fogo brando. AA. Euterpe oleracea, palmeira da vrzea alta, esguia e elegante, das mais estimadas pelas populaes amaznicas, que nos seus frutos encontram um recurso alimentar certo e grandemente apreciado. Os frutos do em cachos, tm o tamanho de uma cereja e so, quando maduros, de cor violcea escura. De sua polpa se faz um vinho, que misturado com acar e farinha dgua ou de tapioca constitui a bebida mais popular da regio e o alimento por excelncia da populao pobre. Nos pontos de venda, a existncia [pg. 307] da bebida assinalada por uma bandeira vermelha na porta, geralmente depois do meiodia. Nas casas de melhores recursos, o aa constitui a merenda da tarde; nas menores, o jantar. De aa faz-se sorvete e mingau. Tambm piro, para comer com pirarucu assado. Na opinio do homem amaznico, o aa a bebida mais saborosa do mundo. Nada h que lhe compare. E por isso ele diz, convicto,
num verso popular, que corre de boca em boca, com a fora de uma verdade:
ACARAJ. Massa de feijo fradinho, feita em azeite-de-dend. Pe-se o feijo de molho, para facilitar a retirada da casca, sendo a seguir ralado na pedra. Com a farinha de feijo temperada com cebola e sal prepara-se a seguir a massa, que vai sendo frita aos bocados num banho de azeite-de-dend fervente. O produto final, tendo absorvido grande quantidade de azeite, toma a cor amarelada. O acaraj comido com um molho de pimenta-malagueta, cebolas e camares modos e postos em suspenso em azeite-de-dend em outro vaso de barro (Manoel Querino). AIPIM ou AIPI (Manihot duke ou Manihot palmata). a mandioca mansa ou macaxeira, do Norte, cujas razes so consumidas assadas ou cozidas. ARU. Gasterpodo do gnero Ampulrio, comum nas lagoas do Norte, com feio de caracol, sifo respiratrio e quatro antenas. Come-se cozido, no Nordeste. Do tupi aru, que significa bem cozido. ARUB. Molho de consistncia pastosa, preparado com pimenta-malagueta, massa de mandioca, alho, sal e outros ingredientes bem triturados. muito usado na Amaznia para temperar o peixe, sendo, na opinio de Raimundo de Morais, mais saboroso do que a prpria mostarda. Usa-se tambm o arub engrossado com farinha de tanajuras torradas arub em massa. AVI. Espcie de camaro minsculo com que os nativos das regies do Tocantins preparam um tipo especial de sopa engrossada com farinha de tapioca. (Nunes Pereira.) [pg. 308] BARREIRO. Depresso de terrenos salobros ou salgados, na vrzea ou na floresta, procurada pelos animais pela riqueza do solo em sal. Os caadores procuram os barreiros, dada a riqueza em caa de suas vizinhanas. No serto do Nordeste, chama-se tambm barreiro a um pequeno aude ou simples fosso, para conservar as guas pluviais.
BEIJU. Espcie de panqueca preparada com a farinha de mandioca assada. H deles uma infinita variedade, sendo comumente usados no caf e na ceia. O seu preparo semelhante ao da tortilla de milho, sendo utilizado para condimentla vrios ingredientes, como a castanha de caju e o coco ralado. BUCHADA ou PANELADA. o nome dado no Nordeste a um tipo de cozido das vsceras, dos midos entrouxados no bucho aberto e depois costurado. A buchada pode ser feita com o fato de carneiro, de cabrito ou de boi, sendo a mais famosa e reputada nos sertes nordestinos a de carneiro. As vsceras aferventadas so a seguir temperadas com alho, pimenta, cebola, sal e vinagre e depois ensacadas no bucho do animal. Preparada a iguaria, em geral consumida com piro de farinha de mandioca, feito com o prprio caldo. CANJICA. Pudim de milho verde com leite de coco, acar e canela. Muito usado nas duas reas do Nordeste, principalmente na do serto. Sobre o seu preparo, deixou-nos Manoel Querino a seguinte receita: Previamente, ralamse os cocos, ou seja, cinco para cada vinte e cinco espigas de milho. Debulhados, ou melhor, retirados os gros da espiga, cortando-os com uma faca e recolhidos em urupema, depois de limpos, so ralados em mquina americana ou na pedra. Depositada a massa em vasilha grande com gua, os resduos que vm tona so apanhados mo, e passa-se na urupema, ou melhor, na estopinha, a massa contida na vasilha, espremendo-a mo. Reservam-se as sobras, que so novamente raladas na pedra, passadas e espremidas na estopinha. O vaso ou panela que recebe a massa do milho espremida conservado em repouso, por algum tempo, e, finalmente, escorrese a gua. Em seguida, massa que ficou aderida ao fundo do vaso adicionamse o sal e o leite de coco mais fraco; leva-se [pg. 309] ao fogo e mexe-se incessantemente com uma colher grande, de madeira, at que a canjica comece a engrossar, ocasio em que se deita o acar para no embolar, e quando a canjica estiver em efervescncia, tempera-se com manteiga fina, leite grosso de coco, gua de flor de laranjeira e gua de erva-doce e cravo fervidos parte. Finalmente, deixa-se cozer bastante at tomar ponto grosso. Nesta ocasio, retira-se a canjica do fogo e depositada em pratos grandes. Convm lembrar que a canjica, depois de levada ao fogo, nunca se deixa de revolver com a
colher. Quando a canjica estiver fria polvilhada com canela-em-p, antes de ser servida. CAR. Nome dado a um largo grupo de tubrculos comestveis de vrias espcies de Dioscorea. H o car branco, o car roxo e o car mimoso. Em certos estados do Brasil chama-se tambm de car ao inhame, tubrculo da Dioscorea piperifolia, W. e da Dioscorea lixifoles, Mat. Tanto o car como o inhame so alimentos altamente energticos por seu elevado teor em hidrocarbonados. CARURU. Em seu preparo empregam-se quiabos, mostarda ou taioba, que devem ser cozidos com pouca gua. Depois adicionam-se peixe assado, azeitede-dend e pimenta-malagueta. O cozimento engrossado com farinha de mandioca. CHARQUE. Carne de boi conservada com sal, chamada tambm carne-seca ou jab. Com a secagem do produto ao vento e ao sol, reduz-se em mais de 50% o teor de gua, concentrando a sua matria seca. o tipo de carne que se consome na zona aucareira e na Amaznia, importada das reas do Sul. Naquela rea o produto conhecido sob a denominao de carne-do-cear, onde se iniciou este tipo de industrializao da carne. CHIB. Bebida preparada pela adio gua da farinha de mandioca e rapadura. Na Bahia, chama-se jacuba e em Pernambuco conguinha. O vocbulo chib limita-se rea amaznica. COCADA. Doce seco de coco ralado, preparado com acar, rapadura ou mel de engenho. Sobremesa tpica das casa pobres das praias. dos doces de rua mais disputados pela meninada das escolas. [pg. 310] CUSCUZ. Bolo de massa cozida no vapor dgua que penetra atravs de um depsito com crivos colocado sobre uma panela em fervura. Segundo as regies, usa-se como matria-prima do cuscuz o milho, a tapioca ou o arroz. O cozimento sempre idntico, revelando a sua origem rabe. ENVIRA (Xilopia brasiliense, Spr.) Anoncea cujos frutos pequenos, muito aromticos, substituem como tempero a pimenta-do-reino. Tambm a envira
branca (Xilopia Grandiflora. St. Hil.), chamada pimenta-do-serto, de sabor picante, serve para o mesmo fim. POCAS DO VERDE. O sertanejo chama pocas do verde o perodo que se segue s chuvas e durante o qual a paisagem cinzenta da caatinga se recobre de um manto clorofilado. a poca da fartura. Do pasto verde. Do milho verde. Do feijo verde. FARINHA DGUA. Farinha da mandioca preparada pela macerao, durante vrios dias, das razes da planta, num depsito contendo gua, ou num poo. As razes assim maceradas amolecem, facilitando a retirada das cascas. a mandioca puba que, amassada e triturada, a seguir espremida e torrada ao forno. FRUTA-PO (Artocarpus incisa, L.) Planta originria da Polinsta, cujos frutos constituem um alimento bsico de vrias ilhas do arquiplago, sendo consumidos principalmente sob a forma de pasta, obtida do fruto fermentado: popoi. A fruta-po se aclimatou muito bem no Nordeste brasileiro, produzindo com relativa abundncia. GERGELIM (Sesamum indicum, D. C.) Planta originria da ndia, cujas sementes encerram alto teor de leo comestvel e de tima conservao: leo de Ssamo. IGARAP. Caminho de canoa, segundo a lngua tupi. um brao do rio que penetra no interior das terras ou se origina de veios nascentes em determinados pontos. um ribeiro, um riacho na denominao amaznica , um curso em miniatura que apresenta todas as caractersticas dos grandes. No entra e sai no mesmo rio, como o paran. A boca foz do igarap reservatrio habitual de jacars, cobras sucurijus, pirabas, puraqus e outros animais que ali aguardam e devoram os peixes midos, trazidos [pg. 311] pelas enchentes dos rios. O caboclo teme a boca do igarap e tem horror a nela pernoitar. IPADU (Erithroxylon-Coca, Lamk). Arbusto do qual extrado o alcalide, a cocana. Com as folhas da planta secas ao sol, depois de torradas e reduzidas a p, preparam os ndios da Amaznia a farinha de ipadu. Misturando esta
farinha com um pouco de amido de mandioca e com as cinzas dos brotos de imaba, formam uma pasta que usada nas longas viagens, para ser mascada. A pasta de ipadu anestesia a mucosa do estmago fazendo passar a sensao de fome. JAMBU (Wulffia stenoglossa (DC) Hub.). Arbusto muito utilizado, depois de cozido, na culinria amaznica, especialmente nos pratos onde entra o tucupi. Tem sabor sui-generis, sialagogo e adstringente, motivo porque, segundo observao popular, faz o beio tremer. MANGABA. Fruto da rvore gomfera Hancorna speciosa, verde-ferruginoso por fora e branco por dentro, do tamanho de uma ameixa fresca. Depois de cado da rvore conserva-se o fruto dentro dgua por algum tempo, para perder a resina e ficar em condies de ser comido. O sorvete de mangaba goza, merecidamente, do melhor conceito: saboroso. MANIOBA. Panelada preparada com as folhas da mandioca mansa ou aipim, socadas ao pilo e cozidas com carne ou peixe. Por este processo culinrio enriquece-se a dieta amaznica dos princpios vitamnicos contidos nas folhas verdes da maniva. Os negros e mestios do Nordeste aucareiro faziam uso idntico dessas folhas. MANIPUEIRA. Caldo de mandioca prensada, obtido numa das fases de preparao da farinha dgua. de alta toxidez. MAROMBAS. Grandes armaes de madeira construdas em forma de jirau sobre estacaria grossa, servindo para abrigar o gado durante as enchentes dos rios. MIXIRA. Conserva de carne de peixe ou mais raramente de carne de gado preparada em calor lento e brando, em azeite ou gordura animal. Em geral, a carne embebida no seu prprio leo, sendo depois preparada, mergulhada em banha liquefeita, a qual, depois de endurecida pelo [pg. 312] resfriamento, forma uma espcie de envoltura, que a protege e a conserva por longo tempo. As mixiras mais usuais so as de peixe-boi, de tartaruga, de tucunar e de tambaqui.
MOQUM. Processo de assar ou grelhar carnes e peixes, colocados a alguma distncia de um braseiro. Alimento sobre labareda, diz Alfredo da Mata. Segundo I. de Sampaio, o moqum, como designao indgena, significa o assador, grelha ou armao de varas, sobre o qual se mantm, a alguma distncia de um braseiro, as carnes a assar. Para Artur Neiva, moqum quer dizer, em lngua tupi, assar mal. PAOCA. Mistura de carne fresca ou seca, socada ao pilo com farinha de mandioca torrada. No serto do Nordeste usa-se a carne de bode salgada, a carne-de-sol e o charque. Na Amaznia prepara-se uma paoca com a castanha de caju assada e pulverizada e, principalmente, com a castanha-do-par (Raimundo de Morais). Segundo Alfredo Augusto da Mata, tempera-se a paoca com pimenta, mas nunca com sal, porque, com o excesso de umidade atmosfrica, o sal umedece a paoca, inutilizando-a. Na cidade de Belm, vende-se paoca de castanha-do-par, preparada com a castanha socada ao pilo, farinha, acar e sal, em cartuchos. A palavra paoca deriva, segundo Vicente Chermont Miranda, de passoc em tupi, moer em pilo. PAMONHA. Massa de milho verde, leite de coco e acar, envolta em palha de milho e cozida com vagar. No serto do Nordeste substitui-se muitas vezes o leite de coco pelo de vaca. PANELADA. (Ver buchada.) PARACARI. Planta que tem cheiro de hortel e de erva-cidreira, usada como tempero na Amaznia. PARAN. Curso dgua de pouco volume, cujo leito, zigue-zagueante, sempre coberto de espessa floresta hileiana, formando pequenas ou grandes ilhas no perenes. PEIXE-BOI. Grande cetceo da ordem dos Sirneos, que vive nos lagos e rios amaznicos. mamfero e herbvoro, de cor pardacenta, de cabea achatada, disforme, tronco fusiforme, pode medir mais de cinco metros de comprimento. precioso pela carne e pelo azeite que produz. A [pg. 313] carne gordurosa, indigesta, mas muito apreciada, sobretudo quando frita na prpria gordura e misturada com farinha dgua. O caboclo a considera altamente nociva s
pessoas que tem feridas ou doena venreas e s mulheres grvidas e lactantes e s crianas. Existe na Amaznia um lago de peixe-boi, e quem por ele transita devo deixar qualquer lembrana para o cetceo, sob pena de ter a canoa virada ou outra qualquer atrapalhao na viagem. Tambm refere uma lenda que quem possui a xandaraua, me do peixe-boi. no volta da pescaria sem trazer um desses mamferos. Deve, porm, contentar-se com um exemplar somente, que no seja o primeiro que aparea, para no perder o alto privilgio que possui. Com a gordura do peixe-boi, que uma banha branca, compacta, faz-se a mixira, cuja explicao vai noutra parte deste glossrio. PIQUI. Conhecido tambm por piqui, o fruto de uma das maiores rvores das terras altas da Amaznia, Curyocar villosum, cujo tronco atinge, por vezes, uma circunferncia de cinco metros. O fruto amarelo intenso, do tamanho de uma laranja comum, de polpa oleosa que recobre um caroo crivado de espinhos. O fruto isento de casca cozido com gua e sal comido puro ou com farinha dgua. Depois do aa e da pupunha, certamente o fruto oleoso mais apreciado na Amaznia. abundante nas chapadas do Nordeste ocidental. PIRACEMA. Cardume de peixes saltando contra a correnteza do rio. O fenmeno se manifesta de preferncia na poca das enchentes e d a impresso de uma maior riqueza pisccola das guas, levando o vulgo a dar palavra a significao de grande quantidade, mas em tupi significa peixe aos saltos (A. A. da Mata). PIRACU. Farinha de peixe preparada com o peixe moqueado e depois reduzido a p. A tcnica de preparao indgena consiste em moquear o peixe para uma primeira secagem, retirando-lhe depois as espinhas e cortando-o em pequenos pedaos, que so novamente submetidos ao moqum, para completa torrao. Depois de torrada, a carne de peixe pulverizada e guardada ao abrigo da umidade, sendo o produto utilizado principalmente durante as grandes viagens. O piracu tem um alto valor nutritivo. Produto alimentar [pg. 314] rico, tanto em protena como sais minerais, principalmente em clcio, fsforo e iodo. PIRARUCU. Um dos maiores peixes da Amaznia, chegando alguns de seus
exemplares a alcanar cem quilos e dois a trs metros de comprimento. Tem escamas vermelhas, de onde lhe vem o nome, e prefere as guas baixas dos lagos. arcfago e a borbulha que produz quando vem tona dgua para respirar serve de pista para o pescador, que o arpoa de longe. A sua lngua seca, grossa e spera serve para ralar guaran, madeira e tubrculos. As escamas so utilizadas como lixa. Fresco ou salgado, tem grande consumo. A cabea moqueada muito elogiada. Mas a parte mais apreciada a poro ventral, denominada ventrecha. Os ovos so tambm muito procurador; o peixe choca os ovos nas guelras e as ovas chegam a ter dois a trs palmos de comprimento. Os filhotes, denominados bodecos. no Baixo Amazonas, so criados sob os oprculos quando pequenos. O pirarucu salgado cortado em postas e mantas que ficam expostas ao sol por algum tempo. A salga do pirarucu nos lagos obedece a verdadeiro ritual e revela todo um complexo cultural do caboclo amaznico. O pirarucu o bacalhau da Amaznia. A sua culinria contem dezenas de preparaes, saborosssimas todas. PUPUNHA. a palmeira Guilielma, de grande altura, alguns exemplares com mais de quinze metros de comprimento, crivados de espinhos. Os frutos, agrupados em cachos, so arredondados, de tamanho comparvel a uma ameixa fresca e contm a polpa comestvel bastante oleosa que recebe um pequeno caroo escuro. Muito apreciados depois de cozidos, os frutos so comidos puros, com farinha, acar ou melado. Comem-se, tambm, com manteiga, acompanhando o caf. Existem vrias espcies de pupunhas. diferenciveis pela cor da casca e pelo tamanho. QUIBEBE. Mistura de abbora (jerimum) cozida e machucada com leite. Prato tpico do Nordeste. RAIZEIRO. Retirante que. chegando penria completa, se dedica a escavar no solo esturricado do serto as razes de algumas plantas silvestres que lhe possam servir de alimento, tais como as razes de mucun, da mandioca brava, do umbuzeiro, etc. [pg. 315] RAPADURA. Tijolos de acar mascavo endurecido e de variadas formas. Sob o ponto de vista nutritivo, a rapadura bem superior ao acar refinado, por sua
maior riqueza em princpios minerais, principalmente em ferro. TACACA. Papa de tapioca, ou seja, do amido da mandioca diludo em gua, qual e adicionada certa dose de tucupi apimentado, jambu, alho e sal. Bebida muito apreciada e privativa da rea amaznica. TIPITI. Aparelho de compresso usado para espremer a massa de mandioca no preparo da farinha. Tem a forma de um longo cilindro e fabricado com talas de vegetais da regio, tranadas de maneira especial. a prensa primitiva do indgena para extrair da massa de mandioca a manipueira txica. Segundo Vicente Chermont Miranda, h trs maneiras diferentes de tecer o engradado do tipiti, conhecidas pelos nomes de cutirana, escama de tamuat e miriti ou surucucu. Do tupi tipi, espremer, e ti, suco (A. A. da Mata). TRACAJ. Quelnio muito comum nos rios da Amaznia, semelhante tartaruga, porem de menor parte. VATAP. A mais famosa iguaria da cozinha baiana, com inmeras variedades: vatap de carne, de galinha e de peixe assado e salgado O mais famoso o vatap de garoupa, preparado com este peixe, camares secos, leite de coco, azeite-de-dend, fub de arroz, angu de maisena e pimenta-malagueta. Do vatap de galinha, d-nos Manoel Querino a seguinte receita: Morta a galinha, depenada, lavada com limo e gua, partida em pequenos pedaos que so depositados na panela e temperados com vinagre, alho, cebola e sal, tudo modo com o machado de madeira, em prato fundo. Pe-se a panela ao fogo e. quando o contedo estiver seco, adiciona-se pouca gua, a fim de continuar o cozimento. Enquanto a galinha est a cozer, rala-se o coco, retira-se o leite grosso com muito pouca gua e reserva-se. Novamente deita-se mais gua no coco para se ter o leite mais delgado, que bom misturado com o p de arroz, principalmente, e, derramada essa mistura na panela, revolve-se ou mexe-se constantemente com uma colher grande de madeira. Ato contnuo, moem-se os camares em poro, cebola, pimenta-malagueta em pequeno pilo ou [pg. 316] por outro qualquer processo, junta-se diminuta quantidade de gua, enquanto se dissolvem essas substncias e despejam-se na panela, continuando a mex-la com a colher. Quando a panela estiver a ferver deitam-se o azeite-
de-cheiro e o leite grosso, que ficou de reserva. Tem-se pronto o vatap de galinha, privativo das mesas elegantes. VIRAO. Processo de apanhar as tartarugas nas praias amaznicas, consistindo em revirar o quelnio, deixando-o com as costas sobre a areia. Realiza-se a caa tartaruga principalmente na fase em que estes animais saem das guas e sobem nos bancos de areia para desovar a poca da virao. [pg. 317]
Fala-se muito da sensibilidade exaltada dos escritores. Da sua intolerncia, do seu desagrado s crticas que possam fazer sua obra, reagindo s vezes com veemncia aos ataques da crtica como se ela estivesse ferindo sua prpria carne a carne de suas entranhas. Felizmente no sou desses. A crtica honesta me d mais satisfaes do que dissabores. E as satisfaes me so trazidas, s vezes, mais pelos que discordam de mim com sabedoria, do que dos que concordam com largueza dalma. Vejo no critico um colaborador inestimvel e. no seu trabalho, uma contribuio a ser aceita de corao liberto. Ao publicar esta 8 edio da Geografia da Fome, que marca 15 anos de vida desde nosso trabalho, tomei a deliberao de incluir neste volume, como um preito de gratido critica brasileira, este apndice contendo as primeira reaes que me provocaram os comentrios crticos 1 edio do nosso ensaio. J o havamos publicado na 2. edio aparecida em 1947, mas nas edies seguintes, tendo incorporado ao resto as mais interessantes sugestes da crtica, suprimi este apndice. Hoje achamos que ele deve voltar a figurar no nosso livro como um elemento explicativo de como e por que evoluram as nossas idias e principalmente a quem mais devo como artfices desta evoluo. Segue-se, pois, o apndice, tal qual foi publicado em 1947. A primeira edio deste livro aparecida nos ltimos dias de dezembro ltimo (1946) foi recebida pela crtica nacional com um interesse e com uma abundncia de comentrios que [pg. 319] excederam de muito a nossa expectativa. que tnhamos em mente a idia corrente de que os crticos brasileiros nunca se mostraram muito
inclinados anlise dos trabalhos desta categoria de ensaios ou estudos dando conta de pesquisas mais ou menos aprofundadas de campo e de laboratrio evidenciando muito maior interesse e disposio crtica em comentarem obras de fico. A causa dessa predileo, ou melhor, desta quase que limitao da crtica nacional a este setor da criao intelectual, foi h pouco atribuda por um dos mestres destas atividades Tristo de Athayde falta de especializao dentro de um campo de atuao, na verdade excessivamente amplo e, portanto, difcil de ser abarcado com segurana em sua totalidade. At hoje, quase no existem entre ns, os especialistas da crtica o crtico das cincias biolgicas, o crtico dos trabalhos sociais, o crtico da obra filosfica , como ocorre em outros centros de cultura mais amadurecidos da Europa e mesmo dos Estados Unidos. Mas, se dentro de um extremo rigorismo profissional no se pode apontar no pas essas distintas categorias de crticos especializados, o que no se pode negar que j atuam no nosso meio vocaes ntidas orientadas nas vrias direes das atividades crticas e, mais ainda, que a crtica nacional se torna cada dia mais sria e mais objetiva em suas anlises. J vai passando o tempo da crtica de gua de flor de laranja, dos simples jogos de palavras, para efeitos puramente literrios, atingindo-se a etapa, muito mais fecunda, da crtica de idias. Da crtica que colabora com o autor na difuso de sua obra, no melhor desempenho de suas finalidades, captando o interesse coletivo, debatendo conceitos, explicando e justificando atitudes mentais, sintetizando, enfim, a obra focalizada, dentro do panorama cultural do pas. O jornalista Homero Homem, em comentrio feito a esta Geografia da Fome, escreveu que a atuao, a simpatia e os aplausos que este livro recebeu da crtica revelam um sinal de novos tempos. A verdade que a crtica nacional, ao interessar-se to generosa e simpaticamente por nosso trabalho, trouxe s possibilidades de aprimoramento do mesmo uma contribuio inestimvel. Contribuio representada por uma integral compreenso de seus objetivos, por estimulantes comentrios ao prosseguimento da obra iniciada, por fecundas sugestes a [pg. 320] serem tomadas e ampliadas dentro do plano geral do trabalho, e, finalmente, por teis retificaes de alguns dos seus detalhes. A exceo de um ou outro artigo de exaltado patriota, indignado com a feia
pecha, que com este livro eu lanava sobre o Brasil, de ser um pas de famintos, quando o ufanismo nacional nos impunha esconder esta mancha to degradante, talvez mais degradante aos olhos de certos patriotas do que as manchas da mestiagem com o negro, toda a crtica brasileira foi generosamente compreensiva e altamente colaboradora na anlise deste nosso trabalho. Em artigos como os publicados por Olvio Montenegro, Rachel de Queiroz, Alceu Marinho Rgo, Nelson Werneck Sodr, J. Fernando Carneiro, Djacir Menezes, Paul W. Shaw, Srgio Milliet, Brasil Gerson, Ascendino Leite, Yvonne Jean, Artur Ferreira Reis, Homero Homem, Orlando Parahim, Thales de Azevedo, Luiz da Cmara Cascudo, Ademar Vidal, Maurcio de Medeiros, Antnio Constantino, Paulo Filho, Ary da Matta, Nunes Pereira, Abelardo Montenegro, Eli Pontes, lvaro Maia, Raul Gomes, Omer MontAlegre, Ernni de Carvalho, Geraldo de Freitas, Jos Honrio Rodrigues, Jos Bezerra Gomes, Alcides Siqueira e outros, encontrou o autor um mundo de sugestes que lhe esto sendo extremamente teis na elaborao dos volumes seguintes de sua obra e na retificao e ampliao de pontos de vista expostos neste primeiro volume. Dentro do conceito em que empreendemos um trabalho desta envergadura, cuja realizao s possvel, como j acentuamos no Prefcio, pela colaborao e ajuda de muitos e no pelo esforo isolado de uma s pessoa, s podemos receber com regozijo e com entusiasmo essas preciosas contribuies da crtica, procurando, sempre que possvel, incorpor-las ao contedo do nosso trabalho. Era mesmo nossa inteno desenvolver nesta segunda edio certos captulos do livro e acrescentar uma srie de novas notas elucidativas ao texto de acordo com as novas imagens formadas no nosso esprito sob a fecunda sugesto da crtica construtiva. Mas o fato de que a primeira edio deste livro se tenha esgotado em tempo mais curto do que previam o autor e o editor, no permitiu que esta nova edio fosse feita base de um texto mais ampliado, tendo-se aproveitado a mesma composio inicial apenas expurgada numa melhor reviso dos seus descuidos tipogrficos mais gritantes. No podendo, pois, desenvolver no prprio texto as idias que [pg. 321] a crtica nos sugeriu, resolvemos aproveitar de logo algumas delas, concentrando-as neste apndice a esta 2.a edio. Nele no desenvolveremos todas as idias e sugestes trazidas pela Crtica, mas apenas aquelas que representam um enriquecimento
definitivo para o livro, aquelas por cuja falta ele perde substancialmente em cumprir os seus objetivos. As outras sugestes as de carter mais bem erudito ou ilustrativo sero oportunamente aproveitadas, caso ocorra o advento de uma nova edio, elaborada com mais vagar, em notas de p de pgina, esclarecedoras de vrios pontos debatidos pela Crtica. Das contribuies fundamentais da Crtica, dessas que no devem permanecer sem uma imediata aplicao, utilizaremos de incio as que nos trouxe J. Fernando Carneiro, em artigo publicado no Dirio de Notcias, estudando com grande penetrao e equilibrado senso crtico o nosso trabalho. Foram duas as sugestes que mais nos impressionaram: a de estudarmos mais a fundo a rea do sururu de Alagoas e a de atentarmos com mais vagar para a riqueza de expresses idiomticas, ligadas ao problema alimentar, na gria nacional. Quanto primeira sugesto, ela bastante procedente, desde que estudamos com certo destaque, dentro da mesma Zona da Mata Nordestina, outra subrea a do cacau. O estudo mais aprofundado da subrea do sururu, obedecendo mesma orientao metodolgica, s poder enriquecer, com certas singularidades locais, o panorama alimentar do Nordeste. Meditando um pouco sobre o assunto, chegamos mesmo concluso de que merece uma indagao sistemtica o problema das possveis correlaes existentes entre a dieta daquelas populaes que vivem nas margens das lagoas salgadas, infestadas de sururu, e o seu bitipo constitucional. Nada mais conhecemos acerca do valor nutritivo desse molusco que constitui o alimento bsico daquelas populaes, mas levando em conta as mais recentes anlises realizadas em outros pases, que demonstraram a extraordinria riqueza vitamnica da fauna aqutica, de se presumir que seja ele uma fonte de vitaminas de valor inestimvel. A sugesto de J. Fernando Carneiro tomou ainda maior consistncia, quando h poucos dias procedemos a leitura de um interessante trabalho de Mr. Maurice Fontaine Les Ocans et les Mers, Sources de Vitamine1 publicado em 1945, mas que as dificuldades de comunicao com a Europa [pg. 322] no nos permitiram conseguir seno recentemente. Nesse trabalho, demonstra o naturalista francs que, em teores iguais de vitaminas, os alimentos de origem marinha beneficiam muito mais do que os de origem terrestre. Esse trabalho,
um outro de Billings e colaboradores 2 sobre o contedo de vitaminas de complexo B de certos peixes e os recentes estudos acerca das antivitaminas nos levaram a pensar numa reviso do problema de abastecimento em vitaminas das populaes das praias e das margens das lagoas nordestinas. Quanto ao problema da gria, ele to rico em sugestes abrindo to amplos horizontes psicologia social de um povo em estado permanente de fome, que todo o trecho do artigo tratando deste aspecto merece sua transcrio neste apndice: No encontro tambm no livro uma referncia gria nacional. Ns sabemos quantas coisas se podem descobrir atravs das expresses populares, assim como da linguagem interna dos grupos sociais. Estados dalma, vcios do corao, cimes de classes, nsias, revoltas. H tempos venho prestando ateno nesse assunto e vendo como a gria do povo brasileiro traduz com insistncia a representao mental das nossas privaes alimentares. O espectro da fome parcial e crnica na mente do povo humilde do Brasil. impressionante como a maior parte das expresses populares da gente subnutrida do Brasil gira em torno de imagens alimentares. De uma coisa fcil, se diz que canja ou que sopa. De coisa sem importncia se diz que caf pequeno. Uma coisa de fcil e barata aquisio, outrora se dizia que era uma pechincha ou um negcio da China: hoje se diz que uma galinha morta. Em compensao, uma situao difcil ser um abacaxi. Se uma imagem feminina agrada aos nossos olhos gulosos e a nosso instinto insatisfeito, logo dizemos que ela um chuchu ou uma uva. E mesmo que a beldade em questo no se digne retribuir aos olhares dos seus admiradores, haver sempre farofeiros que pretendero convencer-nos que a conquista foi fcil, enfim que tudo foi de colher. As expresses e interjeies fornecidas pela imagstica alimentar se sucedem: est no papo! po-po, queijo-queijo; na batata; uma ova!, uns tomates, etc., etc... Nenhuma fonte fornece imagens com maior abundncia. Verdadeira gria de compensao [pg. 323] diettica, atestando a extenso das nossas privaes, a fome crnica de que sofre a maioria do povo brasileiro. essa fome de grande parte de nossa populao que uma pequena maioria dominante no quer ver. A pequena maioria que come bem, at demais, e para quem o uso das imagens alimentares da gria nacional no tem provavelmente sabor nem sentido.
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Billings Riely, Fischer e Hedreen The Riboflavin Contente on Fish Products Journ. of
Outra contribuio valiosa foi a que nos trouxe Rachel de Queiroz, com seu depoimento de testemunha da tremenda mortalidade infantil no Nordeste, mostrando com que profundeza este fenmeno habitual imprime uma certa marca na alma coletiva da gente nordestina. So de seu artigo, tambm publicado no Dirio de Notcias, as seguintes palavras: Quando, em simples nmeros, nos d conta do ndice de mortalidade infantil nas capitais do Brasil, e assinala aquelas em que esse ndice mais alto (Aracaju, com 457 por mil; Macei, com 443; Natal, com 352), a gente v logo o morticnio desadorado das criancinhas pobres que se acabam como pinto quando d um ar na criadeira. A frutificao intil das mulheres, os penosos meses de gestao sofridos -toa, as dores do parto, as noites de insnia com o menino doente que chora, a caminhada sem fim para os raros ambulatrios de socorro e tudo isso s para dar de comer terra do cemitrio. H dessas cidades em que as meninas j tm um vestido branco separado para acompanharem enterro de anjinho. E uma senhora conheci tambm numa cidade dessas que fizera promessa aos Santos Inocentes de s usar flores do seu grande jardim para enfeitar caixo de anjo. No havia rosa Paul-Nron ou antes Palmeron que chegasse, nem rosa-jasmim, nem margarida, nem crislida arrepiada. Contou-me a dama que era raro o dia em que no batia uma pessoa porta (porque toda a cidade j sabia da promessa) pedindo flor para um anjo. E tinha dia de virem duas e trs. A este trecho de dramtica simplicidade, evocado pela romancista de O Quinze, sobre a mortalidade infantil, segue-se outro, sobre os estragos da tuberculose, que tambm merece transcrio: Quando nos fala nos dois fatores correlatos: desnutrio e tuberculinizao como se evocasse aquelas famlias nossas conhecidas que ficaram tabus no meio das outras, porque so compostas de gente fraca do peito. Quando comem na nossa mesa os pratos so depois escaldados e certas donas-de-casa, [pg. 324] mais exageradas no escrpulo, chegam a quebrar toda a loua usada pela visita suspeita. Se beijam as crianas, a gente esfrega lcool na cara do menino beijado, at quase arrancar a pele. E se algum membro desse cl marcado quiser casar com parente nosso seja embora o pretendente rico, bonito e prendado a famlia inteira faz uma oposio terrvel,
Nutrition 1941 F. 22.
porque ningum deve misturar-se com raa de tsico. Na verdade, vem-se moas morrendo da peste branca quando ainda amamentam o primeiro filho, vinte anos depois aquele filho, por sua vez, tambm vai sofrer do peito. Se praga, praga medonha, porque no tem reza forte que a abrande. De Olvio Montenegro, devemos destacar o poder sugestivo de suas palavras ao referir-se a uma das qualidades, a seu ver, positiva do nosso livro: a de sua unidade de expresso, desde que todo seu material, nada malevel, de nmeros estatsticos, de frmulas qumico-biolgicas, de smulas de pesquisa, funde-se to organicamente com a matria mais vivamente humana do livro, que no o endurece em nenhuma de suas partes. No o torna ossudamente anguloso. Os nmeros estatsticos no fazem muitas vezes seno dar um relevo mais pattico aos fatos e idias por ele sublinhados. Meditando sobre essas palavras, chegamos concluso de que se na maioria dos casos obtivemos este resultado, esta fuso do cientfico com o humano, num certo captulo no alcanamos esse objetivo, gritando os dados tcnicos de maneira um tanto rebarbativa. Refiro-me ao captulo onde estudado o problema do bcio e da carncia em iodo. este um trecho do livro que se ressente de uma certa dureza na exposio, merecendo ser mais humanizado, ter o seu esqueleto de cincias mais bem recoberto de carne social. Tomamos o compromisso de procurar melhorar no futuro este aspecto, pela sugesto velada que nos despertou o autor de O Romance Brasileiro. O economista Djacir Menezes, estudando com especial carinho a rea do serto nordestino, nos sugeriu uma anlise circunstanciada do Vale do Cariri e recomendou-nos a leitura de um ensaio que merece realmente ser includo na bibliografia do nosso livro: o ensaio de Joaquim Alves, intitulado O Vale do Cariri. A leitura desse trabalho traz, na verdade, muita luz a certos fenmenos sociais do serto. Sobre essa rea do serto, trouxe-nos uma contribuio opulenta, pela variedade de aspectos [pg. 325] encarados, Ademar Vidal, numa srie de artigos que escreveu para os Dirios Associados, sob o ttulo de O Nordeste na Geografia da Fome. Dos inmeros pontos abordados por Ademar Vidal. h um que merece uma especial referncia, pois fora esquecido inteiramente em nosso ensaio. aquele onde alude e crtico ao fato por ele observado do terrvel mau cheiro que exalam os campos de concentrao dos flagelados da seca a catinga horrorosa que enche os
ares de toda a redondeza desses imundos amontoados de famintos. Ele atribui principalmente o mau cheiro falta de higiene, ao fato de ningum tomar banho nessas pocas da seca, mas a nosso ver o fator principal da fedentina a prpria fome. a autofagia. As exalaes ftidas que os corpos famintos desprendem traduzem um estado de decomposio da protena viva e de adiantada acidose. o cheiro terrvel da fome, conhecido dos aviadores da ltima guerra, quando sobrevoavam, s escuras, os campos de concentrao da Alemanha: cheiro de carne humana em decomposio. Sobre essa mesma rea do serto, trouxeram preciosos ensinamentos J. Bezerra Gomes e Alcides Siqueira. O primeiro, procurando retificar alguns dos aspectos peculiares da flora e da fauna do serto que ele conhece a fundo. Destas retificaes. merece especial acatamento o da raridade da abelha urucu, quando o autor julgava ser esta a espcie mais comum naquela rea. Alcides Siqueira tambm refere-se raridade do mel de uruu no serto e tambm julga exagerada a informao, que apoiamos, de Loefgren, de que o gado caprino seja um fator de devastao das matas, de capoeiramento da paisagem. possvel que Loefgren tenha exagerado e que Alcides Siqueira tenha, at certo ponto, razo. De todas as reas estudadas em nosso livro fui a amaznica a que mereceu maior nmero de anlises crticas. Os estudiosos da Amaznia trouxeram para o debate e o estudo da fome no imenso vale equatorial os seus conhecimentos regionais de filhos ou de amantes fascinados da terra. Anlises detalhadas fizeram Arthur Ferreira Reis, Nunes Pereira, lvaro Maia e Paul V. Shaw. O historiador A. Ferreira Reis, em crtica publicada no O ms econmico e financeiro, depois de afirmar que a realidade atual da Amaznia exatamente aquela que pintamos em nosso livro, discorda que a evoluo econmico-social da mesma se [pg. 326] tenha realizado nas duas fases que estabelecemos didaticamente: a fase de penetrao e de domnio do lusitano e a fase de ocupao do nordestino no rush da borracha. Julga o historigrafo necessrio incluir uma terceira fase intermediria a fase agro-pecuria do consulado pombalino, insistindo que durante essa fase intermediria o homem da Amaznia cuidou um pouco mais da obteno de recursos de subsistncias, relegando para um segundo plano a obteno das especiarias: O processo scio-econmico da Amaznia apresenta-se aos nossos
olhos em trs etapas, ao invs de duas. A primeira a da penetrao do lusitano, militar, colono, religioso. Era o primeiro contato do europeu com o ambiente. Fase de aventura, estendendo-se at meados do sculo XVIII, mesmo nessa fase, quando se operou em grande escala e em grande estilo o desbravamento do hinterland, verificou-se a preocupao de criar bases alimentares com as espcies indgenas e as aliengenas. Assim, foi nessa fase que se fez a experincia da adaptao de tipos vegetais e animais trazidos do Oriente, da Europa portuguesa, das ilhas atlnticas. Os missionrios, em suas propriedades do Maraj, intensificaram a criao do gado. Quando ocorreu a ao drstica de Pombal, as autoridades encontraram, nas fazendas da ilha, montadas pelos Jesutas, Carmelitas e Mercedrios, cerca de 200.000 cabeas de gado vacum! (...) Aos incentivos e nova orientao colonial do consulado pombalino, que marca o incio da segunda fase, o panorama da Amaznia alterou-se profundamente. E ao invs de simples coleta de especiaria, que jamais abandonaria como estilo de atividade econmica, o colono, que comeou a chegar em grandes lotes, atirou-se aos empreendimentos agropecurios em grande escala. No alto Rio Negro, por exemplo, plantou-se at a fruta europia com algum sucesso. Os colonos aorianos, desembarcados s centenas, no Par, trabalharam intensamente. As autoridades rgias animaram-lhes a atividade agropecuria, concedendo prmios, fornecendo terras, instrumentos, sementes, exemplares bovinos. [...] Esse perodo de ao, em que o amaznico ora era o lusitano do Reino ou das ilhas, ora era o tapuio sempre volumoso, teve seu termo com o rush da borracha, em 1870. Ento, tudo regressou queles dias do desbravamento. Fizemos esta transcrio para mostrarmos bem que, se historicamente, Arthur Ferreira tem razo, sociologicamente nada se alterou da sua chamada fase agropecuria, desde que ela no [pg. 327] ganhou consistncia econmica nem realidade social suficiente para imprimir no quadro regional da Amaznia traos significativos. preciso no esquecer que, apesar de serem disciplinas complementares, a Histria e a Geografia possuem mtodos prprios e princpios bsicos autnomos, que, sob certos aspectos, a Histria e a Geografia se opem mesmo em seus princpios. Enquanto a Histria preocupa-se pelo fato excepcional engrandecido em sua singularidade de categoria histrica, a Sociologia ocupa-se muito mais do fato tpico, do caracterstico, do no-excepcional. A Histria e a
cincia do singular, enquanto que a Sociologia, do tpico. Ora, o fato referido, por exemplo, pelo embaixador Ferreira Reis, de que, no Alto Rio Negro, durante o Consulado de Pombal, fora tentado at o cultivo de frutas europias, embora represente uma curiosidade histrica, no tem qualquer significao sociolgica, desde que esse plantio nada pde significar alm de uma malograda tentativa, sem base ecolgica, sem a mnima possibilidade de sucesso econmico. Esta a razo por que no sobrecarregamos a nossa documentao com singularidades histricas, com detalhes pitorescos, sem significao na dinmica social daquela regio. J noutro ponto de sua crtica, o historiador tem razo, porque desta vez as suas observaes histricas coincidem com a realidade social. quando ele insiste na contribuio da banana na dieta do amazonense: de notar-se, todavia, que Josu de Castro ignorou, na arrumao de seu quadro to impressionante e to exato, alguma coisa que entra na alimentao do amaznico, e nos parece de uma importncia especial para explicar por que. desnutridos como so, os amaznicos ainda no foram de todo destrudos: a banana. No h, em toda a Amaznia, stio, seringal, povoado que no tenha o seu bananal. E tanto o caboclo como o nordestino, os dois tipos humanos que do cor sociedade amaznica. servem-se intensamente da banana, como se valem do peixe, da farinha, do aa, da caa. E que no encontrvamos, nos trabalhos consultados, referncias a essa to constante presena daquela fruta na economia amaznica. Nem em Arajo Lima. nem em Nunes Pereira, nem noutros estudiosos da dieta regional. Estranhamos o fato, marcamos mesmo o contraste com a Bacia do Congo, onde a banana um ingrediente obrigatrio da cozinha regional, mas no quisemos nos aventurar a afirmar, sem uma base slida, idntica situao para a Bacia Amaznica. Agora, Ferreira Reis nos fornece com suas observaes essa base, para [pg. 328] que possamos afirmar que a banana entra cotidianamente na dieta do homem amaznico, valorizando sobremodo a sua com posio. Outro ensaio rico de sugestes fui o escrito no Jornal do Comercio de Manaus, por Nunes Pereira, trazendo o apoio de sua larga e aguada experincia s nossas ideias. Discorda o etnlogo Nunes Pereira dos pontos de vista de Ferreira Reis. admitindo que embora o colonizador portugus tivesse tentado no nosso meio equatorial criar as bases de subsistncia para sua tarefa colonizadora, procurando vencer a hostilidade do meio, a verdade que por fora desse imperativo o de
outros, decorrentes da situao do prprio Reino de Portugal tal como a revoluo comercial que tanto aqui como na Amrica se iniciara, vindo suas razes, na opinio de Shannon, da Idade Mdia data daquela poca o ciclo de destruio das riquezas naturais da. Amaznia, do aviltamento da organizao econmica e social do ndio e da introduo de outro tipo de trabalhador escravo o Negro. Da a Amaznia faminta que nos legaram, cujas lendas e cujos mistrios se chocam, paradoxalmente, com a realidade, que essa Amaznia com populaes escassas e inertes, cuja vida medeia entre os grficos da tuberculose, do paludismo. da lepra e da mortalidade infantil, cujas reservas precrias de animais silvestres e aquticos, ano a ano, se reduzem, cuja pecuria e cuja agricultura ainda so das mais primitivas do pas, cujos rios e canais, se no esto entulhados, esto praticamente abandonados e inexplorados, cujas cachoeiras captveis esto por explorar, cujos caminhos e comunicaes esto por abrir no rumo de zonas mais ricas e de populaes mais laboriosas, cujo parque industrial s aproveita quatro ou cinco matrias-primas das suas florestas. A fome na Amaznia tem, pois, para Nunes Pereira, suas razes histricas fincadas profundamente, desde os tempos coloniais. Noutro ponto de seu magnfico artigo, chama o etnlogo ateno para o possvel exagero de Agassiz, orando em cerca de 2.000 o nmero de espcies de peixes da Bacia Amaznica. Exagero ou fantasia, supe o articulista, por ns aceito como realidade e ao qual ele antepe a experincia e a anlise meticulosa de Goeldi. um ponto a rever. O melhor da contribuio de lvaro Maia concentra-se na inteligente apresentao que faz do quadro de ininterrupta [pg. 329] destruio das riquezas naturais da Amaznia. Destruio levada a efeito atravs de diferentes variedades da aventura extrativa vivida nas sucessivas fases da economia amaznica. Tipo de economia que representou sempre, a seu ver, uma preparao inconsciente para a fome. O historiador norte-americano Paul V. Shaw tomou como pretexto o nosso ensaio, para revelar, num bem fundamentado artigo de O Jornal, a sua experincia da Amaznia, adquirida como soldado durante a ltima guerra mundial. As suas revelaes resumindo a experincia dos mdicos militares e navais que dirigiram o Servio da Sade da Base Militar de Belm do Par, demonstram, de maneira
insofismvel, a aclimatabili-dade do homem branco na Amaznia. So revelaes de uma alta significao, como um documento de observao direta, que merecem ser transcritas em alguns de seus pargrafos: A terceira razo que justifica as minhas observaes sobre o livro de Josu de Castro que durante a ltima guerra servi 20 meses com as tropas americanas no Norte e Nordeste e por causa da natureza dos meus servios estive em intimo contato com os mdicos militares e navais, especialmente nos 11 meses em que servi em Belm do Par, a principal cidade da primeira regio que Josu de Castro descreve no seu livro. Parte da minha obrigao era justamente a de fiscalizar a alimentao fornecida aos sobrinhos de Tio Sam quando saam das bases e iam s cidades nos seus dias de lazer. Os mdicos militares e navais americanos tinham que velar pela sade dos soldados e marinheiros e eu os observei precisamente nessas zonas que Josu de Castro estuda to detalhadamente. Devo dizer, antes de chegar s concluses que desejo apresentar, que esses mdicos, a maioria peritos em questes tropicais, dispunham de hospitais, laboratrios e auxiliares, de fundos aparentemente inesgotveis, para cumprir a sua misso e de milhares de pacientes para realizar as suas experincias. Soldado ou marinheiro doente no ganha a guerra. A nossa obrigao era, pois, mant-los com sade. Isto ou entregar os pontos de vez ao inimigo. E para manter a sua eficincia e a sua sade, a primeira grande batalha era contra essa natureza que Josu de Castro retrata to fielmente. Pois podemos afirmar que as concluses a que chegaram praticamente os mdicos militares e navais norte-americanos naquelas regies foram, tintim por tintim, as mesmas de Josu de Castro no que se refere s carncias vitamnicas, ao clima [pg. 330] e umidade, s aguas infectadas e s doenas do meio e dos perigos que constituem para a sade fsica e mental do soldado. Era uma luta insana, de dia e de noite, nos hospitais, nas barracas, nos ranchos e nas cozinhas da Base, e implicava numa superviso meticulosa dos lugares fora da Base onde a rapaziada de farda comia ou bebia. Tomavam medidas hericas para conquistar a natureza hostil. E, depois de mostrar uma lista desta medidas, conclui o socilogo com as seguintes palavras: Resultado: apesar de a Base de Val de Cans, em Belm, ter sido a nica classificada como unsanitary pelas foras americanas que passaram algum tempo no Brasil e de ser essa a regio mais inspita e insalubre, na descrio de Josu de
Castro; apesar de tudo isso, os mdicos militares americanos da Base de Val de Cans mostravam, com bem justificado ufanismo, os grficos que demonstravam que os coeficientes de sade e eficincia no seu campo eram os melhores de todas as bases do Nordeste e do Norte do Brasil. Se o que acabamos de relatar tem algum valor, demonstra cabalmente que toda a tese de Josu de Castro foi confirmada pela experincia norte-americana que durou mais de trs anos naquela regio amaznica. este um documento de primeira ordem, demonstrando que possvel vencer tecnicamente os obstculos do meio natural e evidenciando o fato de que o ponto nevrlgico dessa luta o problema da alimentao. Na anlise dos aspectos regionais do problema, merece tambm um comentrio destacado a crtica formulada por Srgio Milliet. Reclamou o crtico paulista faltar ao nosso trabalho unidade de concepo por se ter alongado em mincias no estudo de certas reas, passando por outras um tanto superficialmente. Sendo extremamente minucioso em relao ao Amazonas e ao Nordeste e passando um tanto por alto nas zonas do Centro e do Sul. Realmente o trabalho foi construdo desta forma, mas no vejo onde atribuir-lhe, diante desse fato, falta de unidade. Este livro pretende ser uma geografia da fome, procurando estudar as diferentes reas de fome no mundo e, portanto, tendo que concentrar-se, forosamente, no estudo exaustivo de todas as reas geogrficas do planeta. No caso do volume dedicado geografia da fome no Brasil, a matria a ser analisada concentra-se naturalmente nas trs reas de fome j apontadas. Se nos alongssemos no estudo de todas as reas geogrficas do pas, no estaramos fazendo uma geografia da fome mas sim uma geografia [pg. 331] econmica do Brasil. Coisa bem diferente do nosso objetivo. Se tivssemos planejado uma geografia alimentar do pas, um balano dos seus recursos de subsistncia e dos hbitos de nutrio dos seus grupos humanos, ainda compreenderamos o ponto de vista de Srgio Milliet. Mas, numa geografia da fome, seria falsear o sentido da obra, dando ao leitor uma impresso falsa, no caso concreto de So Paulo, a que o crtico alude, a idia de tratar-se de uma rea de fome, o que no verdade. Diante disso, pensamos que o que Srgio Milliet julga uma grave falha de construo do livro seja mesmo um dos esteios fundamentais de sua estrutura.
Como expresso da influncia da fome e da subnutrio na vida de outras regies brasileiras, so dignas de destaque as referncias de Abelardo Montenegro e Raul Gomes, o primeiro chamando ateno para o fato de que o romance cearense de todos os tempos tem sido predominantemente um romance de fome, e o segundo, mostrando que a subnutrio assola um dos estados mais frteis do pas, o Estado do Paran. Para terminar esse apndice, onde procuramos incorporar ao nosso trabalho as sugestes mais fortes que nos foram feitas pela crtica, queremos nos referir a uma de carter geral, formulada por Ary da Matta, quando, referindo-se aos objetivos de nosso ensaio, diz que ele se concentra em estudar universalmente o complexo geogrfico da fome. Esta formulao no tem apenas o valor de uma bela expresso verbal, mas contm em sua essncia um rico filo a ser explorado pela anlise cientfica. bem possvel que este achado verbal de Ary da Matta influa no sentido de alargar de muito as perspectivas do nosso projeto, levando-nos a indagar acerca da influncia tragicamente marcante dos complexos regionais da fome em diferentes grupos humanos. E a ligao que se estabelece de maneira indissolvel entre a Geografia e a Sociologia da fome ligao que ressaltar com maior nitidez no segundo volume desta obra, quando estudarmos o fenmeno da fome e as revolues hispano-ame-ricanas, captulo que estamos investigando com especial carinho, por sugesto que nos foi trazida pelo socilogo francs Roger Bastide. Francs, digo mal, franco-brasileiro, porque poucos brasileiros se identificaram tanto e se compenetraram tanto do esprito de brasilidade como Roger Bastide. [pg. 332]
BIOGRAFIA
Nasceu Josu Apolnio de Castro em 5 de setembro de 1908, na cidade do Recife, e faleceu em Paris, no exlio a que fora condenado pelo regime militar brasileiro, ao completar 65 anos, em 1973. Fez seu curso de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro onde colou grau aos 21 anos de idade. Mas foi em Recife que comeou a exercer a medicina, nessa mesma cidade que havia despertado no menino pobre que nela nascera e crescera a ateno para a realidade social de uma regio marcada por profundos contrastes econmicos e humanos. O seu interesse pela sorte dos deserdados numa sociedade desigual levou-o, ainda recm-formado, a promover o primeiro inqurito sobre as condies de vida da classe operria em Recife, estudo pioneiro no pas e que serviria de modelo para investigaes semelhantes, nos anos 30 e 40, em outros Estados da Federao, no bojo do movimento que se desenvolvia pela fixao do salrio mnimo e pelo reconhecimento dos direitos dos trabalhadores. Em 1935, transferia-se para o Rio de Janeiro onde se vinculou equipe de educadores e cientistas que pugnavam pela transformao do ensino universitrio. Assim, integrou-se experincia renovadora que era representada pela Universidade do Distrito Federal, na qualidade de professor de Antropologia Fsica. Interessava-lhe, sobretudo, por sua formao cientfica e inquietao intelectual de acentuada sensibilidade humanstica, buscar na Medicina respostas concretas para o problema da fome e da subnutrio que [pg. 333] afligia milhes de brasileiros. Da sua primeira docncia em Fisiologia e da sua experincia clnica nos bairros operrios de Recife, passou a realizar, no Rio de Janeiro, pesquisas bioqumicas que constituiriam o embrio do futuro Instituto de Nutrio da Universidade do Brasil, por ele idealizado e concretizado. Tais estudos levaram-no, ainda, ao seu primeiro contato com a Europa, tendo estagiado, em 1938, no Instituto Bioqumico de Roma
e dado cursos nas Universidades de Roma, Npoles e Gnova. Dessa experincia resultou a publicao, em 1939, do estudo Alimentazione e Acclimatazione Umana nei Tropici. De volta ao Brasil, em 1939, integrou o corpo docente da recm-criada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo conquistado, por concurso, a Ctedra de Geografia Humana, em 1947. com a tese A Cidade do Recife, Ensaio de Geografia Urbana. Entre 1939 e 1945, promoveu cursos sobre Alimentao e Nutrio no Departamento Nacional de Sade Pblica e na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil; foi eleito, em 1942, Presidente da Sociedade Brasileira de Nutrio; criou o Servio de Alimentao da Previdncia Social (SAPS); foi chefe do Departamento Tcnico de Alimentao da Coordenao da Mobilizao econmica e membro, entre outras atividades no menos profcuas, da Comisso Organizadora da Comisso do Bem-Estar Social. Distinguiu-se nos anos que se situaram entre a sua formao em Medicina e o final da Segunda Guerra Mundial pela publicao de numerosos livros, destacando-se, alm dos j mencionados estudos sobre condies de vida da classe operria no Recife, salrio mnimo e alimentao dos trpicos, os seguintes: O Problema da Alimentao no Brasil, Alimentao e Raa, Documentrio do Nordeste, A Alimentao Brasileira Luz da Geografia Humana, Fisiologia dos Tabus. Tais trabalhos constituram a fase preparatria das duas obras que o lanariam como um autor mundialmente lido e admirado, a Geografia da Fome (1946) e a Geopolitica da Fome (1951), livros esses que produziram um grande impacto praticamente em todos os pases do mundo, da terem sido traduzidos, em edies sucessivas, em 24 idiomas. Pela primeira vez, era a opinio pblica internacional [pg. 334] alertada sobre o problema da fome, estigma do subdesenvolvimento e resduo das estruturas scio-econmicas herdadas do colonialismo. Alm de sua extraordinria produo cientfica e editorial. Josu de Castro, professor, administrador, trabalhador incansvel, dinamizador de ideias, insubmisso aos dogmas e a qualquer ortodoxia, manteve, at 1955, no Rio de Janeiro, seu consultrio mdico, como clnico e especialista em doenas de nutrio. J internacionalmente conhecido por sua obra e sua luta implacvel contra as
desigualdades econmicas e a misria dos povos que sofreram a explorao colonial do mundo capitalista, denunciando a fome e a subnutrio como os males sociais do subdesenvolvimento e do colonialismo, foi eleito Presidente do Conselho da Organizao para a Alimentao e a Agricultura das Naes Unidas (FAO). Roma (1952-1956). Em 1960. presidiu a Campanha de Defesa contra a Fome promovida pelas Naes Unidas, advogando como primeiro direito do Homem o de no passar fome. De 1955 a 1963, exerceu, pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o mandato de Deputado Federal por Pernambuco, ao qual renunciou para assumir o posto de Embaixador brasileiro junto aos organismos internacionais das Naes Unidas em Genebra (1963-1964); demitiu-se em virtude do golpe militar de 31 de maro de 1964 que lhe cassaria os direitos polticos no dia 9 de abril do mesmo ano. Criou e dinamizou a Associao Internacional de Luta contra a Fome, ao lado do Abb Pierre e do Padre Joseph Lebret e dirigiu, at sua morte, a Associao Internacional das Condies de Vida e Sade. Foi membro participante de inmeras associaes cientficas na Europa, nos Estados Unidos e na Unio Sovitica. Recebeu, em 1952, a meno anual da American Library Association; em 1953, o Prmio Franklin D. Roosevelt da Academia Americana de Cincia Poltica; em 1954, o Prmio Internacional da Paz do Conselho Mundial da Paz e, ainda, a Grande Medalha da Cidade de Paris, o grau de Oficial da Legio de Honra da Frana, o ttulo de Professor Honoris Causa das Universidades de San Marcos (Peru) e Santo Domingo, a medalha do Mrito Mdico do Brasil, o Prmio da Associao Brasileira de Escritores, o Prmio da Academia Brasileira de Letras. [pg. 335] Nos ltimos anos de vida, em Paris, deu continuidade sua obra, criando o Centro Internacional de Desenvolvimento, participando ativamente do movimento intelectual europeu em defesa dos povos do Terceiro Mundo, realizando conferncias em vrios pases da Amrica, da Europa, da sia e da frica, organizando congressos e simpsios internacionais, lecionando na qualidade de professeur associ a cadeira de Geografia Humana na Universidade de ParisVincennes. No primeiro ano de exlio, sua sensibilidade diversificada levou-o a repensar a infncia passada em Recife, inspirando-lhe uma incurso na rea da literatura de que resultou um romance escrito com paixo, Homens e Caranguejos. Traduzido em vrias lnguas, foi, ainda, adaptado para o teatro por Gabriele Cousin
com o ttulo Le Cycle du Crabe ou Les Aventures de Z Lus, Maria et Leurs fils Joo (Galli-mard, 1969). Nesse mesmo perodo, elaborou reedies atualiza-das de seus principais trabalhos e publicou, alm de numerosos artigos na imprensa especializada europia e americana, Sete Palmos de Terra e Um Caixo (Brasiliense, 1965) cuja traduo inglesa recebeu o ttulo Death in the Northeast (Random House, 1966). Participou tambm da edio de Ou en Est la Rvolution en Amrique Latine?, debate pblico que travou com Claude Julien, Juan Arrocha e Mario Vargas Llosa (1965) com John Gerassi e Irving Louis Horowitz, escreveu Latin American Ra-dicalism: a Documentary Report on Left and Nationalist Move-ments (Random House, 1968); com vrios colaboradores, publicou os seguintes livros: El Hambre, Problema Universal (Editorial La Pleyade, 1969), O Drama do Terceiro Mundo (Publicaes Dom Quixote, 1970), O Brasil na Encruzilhada (Publicaes Dom Quixote, 1970), A China e o Ocidente (Cadernos do Sculo XXI, 1971), Amrica Latina y los Problemas del Desarrollo (Monte Avila Editores, 1974). Ao falecer em Paris, dele escreveu Le Figaro de 25 de setembro de 1973: Cheio de flama e de paixo pela grande causa a que ele servia, ajudando, por suas frmulas marcantes, a tocar de perto as realidades do subdesenvolvimento, a tomar conscincia do crculo vicioso no qual se encerrou o mundo, exerceu ele uma influncia profunda e duradoura. Mais do que no Brasil, a imprensa mundial rendeu uma sentida homenagem ao brasileiro [pg. 336] e pernambucano que dedicou sua vida, sua inteligncia inquieta e extraordinria capacidade de trabalho a denunciar a pobreza como criao dos sistemas sociais historicamente gerados e a alertar opinio pblica brasileira e do Terceiro Mundo contra as falcias das polticas de desenvolvimento econmico que enfatizavam o crescimento industrial e ignoravam a agricultura voltada para a produo de alimentos, bem como os angustiantes problemas do homem do campo o agricultor expropriado da terra e de seus instrumentos de trabalho. O dilema Po ou Ao, a que aludia no final da dcada dos 50, e o aniquilamento progressivo dos recursos naturais, sem atentar para o equilbrio ecolgico, levariam, no ao extermnio da pobreza e, sim, ampliao da misria e da desigualdade social. A atualidade de sua obra a est, mais viva do que antes: o desnudamento, nos ltimos anos, do mito da industrializao e da urbanizao a qualquer preo.
Josu de Castro deixou viva Glauce Pinto de Castro, com quem se casara em 1934, e trs filhos, Josu Fernando de Castro, economista, Anna Maria de Castro, sociloga, e Snia de Castro Duval, gegrafa.
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