Libertinagem e Estrela Da Manhã - Manuel Bandeira

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Libertinagem e Estrela da Manh


Manuel Bandeira

Roteiro de Leitura

DADOS SOBRE O AUTOR Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho nasceu no Recife (Pernambuco) em 1886 e morreu no Rio de Janeiro em 1968. Passou sua infncia no Recife, tendo se mudado para o Rio de Janeiro com sua famlia quando adolescente. Veio para So Paulo cursar Escola Politcnica que abandonou em 1904, aos dezoito anos, por causa da tuberculose. Em 1912, estando na Sua a tratamento, familiarizase com a poesia simbolista e ps-simbolista em lngua francesa. Esse contato influenciou muito sua produo potica, notadamente seus primeiros livros: Carnaval e Cinza das Horas. Voltando definitivamente para o Rio de Janeiro, trava amizade com escritores como Ronald de Carvalho, Graa Aranha e outros que, junto com ele, participam das mudanas literrias que culminaram com o Modernismo. Empregando o verso livre (sem mtrica) e branco (sem rima), alm da ironia, foi escolhido pelos participantes da Semana de Arte Moderna como o So Joo Batista do grupo. No participou pessoalmente da Semana por discordar do tom destruidor do grupo, porm seu poema Os Sapos, ntida crtica aos parnasianos, foi apresentado na primeira noite do evento por Ronald de Carvalho, sob vaias. Sua vida esteve sempre ligada literatura, quer como autor de poesias, crnicas literrias, obras didticas de nvel superior e tradues, quer como professor do colgio Pedro II e da Universidade do Brasil.

OBRAS PRINCIPAIS 1917 Cinza das Horas 1919 Carnaval 1924 Poesias (incluindo Ritmo Dissoluto) 1930 Libertinagem 1936 Estrela da Manh 1948 Mafu do Malungo 1952 Opus 10 1958 Estrela da Tarde 1966 Estrela da Vida Inteira

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CARACTERSTICAS DE SUAS OBRAS Manuel Bandeira difere de seus parceiros da 1a fase do Modernismo brasileiro em virtude de ter-se voltado para sua realidade interior e tentar explicar-se. Sua vida foi marcada pela tuberculose mal-curada e pela perda de seu pais e irmos, entre 1918 e 1922, que lhe parece ter dado um desejo de desertar da vida. Sua obra confunde-se com sua existncia, levando-nos a identificar o eu-lrico de seus poemas com o prprio poeta. Libertinagem composto por 38 poemas, sendo dois em francs. nesta obra que Bandeira configura-se como um autor verdadeiramente modernista, quer nos temas, quer na forma. Os temas so os mais variados, tais como: A infncia, as pessoas ligadas a ela e sua cidade natal, que servem de refgio ao eu-lrico (poeta descontente e infeliz); esses elementos aparecem como lenitivo de sua dor no presente. Poemas: O Anjo da Guarda, Porquinho-da-ndia, Evocao do Recife, Profundamente, Irene no Cu, O Impossvel Carinho, Poema de Finados. Imagens brasileiras, que evocam lugares, tipos populares e a prpria linguagem coloquial do Brasil, transformando o cotidiano em matria potica. Poemas: Mangue, Evocao do Recife, Lenda Brasileira, Cunhant, Camels, Belm do Par, Poema tirado de uma notcia de jornal, Macumba de Pai Zus e Penso Familiar. Anseio de liberdade vital, onde o eu-lrico (poeta melanclico, solitrio e irnico) extravasa seus ideais libertrios quer de sentimentos e desejos vitais, quer estticos. Poemas: No sei danar, Na boca, Vou-me embora pra Pasrgada, Potica, Comentrio Musical e O ltimo Poema. Viso desiludida e irnica da vida, mostrando uma melancolia profunda que gera, s vezes, uma viso surrealista com final inesperado ou um desejo de mudana. Poemas: No sei danar, O Cacto, Pneumotrax, Comentrio Musical, Chambre Vide, Banheur Lyrigue, Poema tirado de uma notcia de jornal, A Virgem Maria, O Major, Orao a Terezinha do Menino Jesus, Andorinha, Noturno da Parada Amorim, Noturno da Rua da Lapa, O Impossvel Carinho, Poema de Finados e O ltimo Poema. Amorosos, ora apresentando sentimentos puros e inocentes, ora apresentando imagens femininas erticas. Poemas: Mulheres, Porquinho-da-ndia, Tereza, Madrigal to engraadinho, Na Boca e Palindia. Em relao forma, Bandeira no emprega nenhuma mtrica padro, variando da redondilha maior em Vou-me embora pra Pasrgada at versos de dezessete slabas poticas como em Namorados; dentro de um mesmo poema percebem-se inmeras variaes. H em alguns textos a preocupao com a disposio grfica, como em Evocao do Recife. Tal preocupao no revelada em relao rima, porm sua maior expresso est na fora da palavra. Esta coloquial, cotidiana, mas empregada com brilhantismo, no desprezando seu aspecto sonoro, o que acaba por fornecer ao poema um ritmo pessoal e harmonioso que, somado emoo, assemelha-se a uma cano.

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ANTOLOGIA COMENTADA Os textos que se seguem foram retirados da obra Libertinagem & Estrela da Manh de Manuel Bandeira, da Editora Nova Fronteira.

No sei Danar
Uns tomam ter, outros cocana. Eu j tomei tristeza, hoje tomo alegria. Tenho todos os motivos menos um de ser triste. Mas o cculo das probabilidades uma pilhria... Abaixo Amiel! E nunca lerei o dirio de Maria Bashkirtseff. Sim, j perdi pai, me, irmos. Perdi a sade tambm. por isso que sinto como ningum o ritmo do jazz-band. Uns tomam ter, outros cocana. Eu tomo alegria! Eis a por que vim assistir a este baile de tera-feira gorda. Mistura muito excelente de chs... Esta foi aafata... No foi arrumadeira. E est danando como o ex-prefeito municipal: To Brasil! De fato este salo de sangues misturados parece o Brasil... H at a frao incipiente amarela Na figura de um japons. O japons tambm dana maxixe: Acugl banzai! A filha do usineiro de Campos Olha com repugnncia Para a crioula imoral. No entanto o que faz a indecncia da outra dengue nos olhos maravilhosos da moa. E aquele cair de ombros... Mas ela no sabe... To Brasil! Ningum se lembra de poltica... Nem dos oito mil quilmetros de costa... O algodo do Serid o melhor do mundo?...Que me importa? No h malria nem molstia de Chagas nem ancilstomos. A sereia sibila e o ganz do jazz-band batuca. Eu tomo alegria!
Petrpolis, 1925

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O poema acima inicia a obra Libertinagem e j nos d idia de qual ser o tom da obra. primeira vista, percebe-se um poema em versos brancos e livres, em que a estrofao irregular, notando-se a preocupao grfica do poeta. O eu-lrico, impossibilitado de danar (No sei danar), observa o baile carnavalesco to brasileiro, onde tipos humanos dos mais diversos, como o japons que mistura idiomas (acugel banzai), a arrumadeira, o ex-prefeito, a filha do usineiro e a crioula imoral mesclam-se num mesmo ambiente, esquecendo-se da situao de seu pas. Assim como alguns empregam drogas para se livrarem da melancolia, o poeta bebe a tera-feira gorda que lhe entra pelos olhos. Seu tom melanclico e irnico, chegando a Amiel, poeta suo dono de esprito inquieto e ativo que constantemente era paralisado pela sua timidez mrbida, alm de Maria, prosadora russa, em cuja obra citada no poema percebe-se a luta e o desespero de seu esprito inquieto e melanclico, tal como o do poeta.

Pneumotrax
Febre, hemoptise, dispnia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que no foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o mdico: Diga trinta e trs. Trinta e trs... trinta e trs... trinta e trs... Respire. .................................................................................................................................................... O senhor tem uma escavao no pulmo esquerdo e o pulmo direito infiltrado. Ento, doutor, no possvel tentar o pneumotrax? No. A nica coisa a fazer tocar um tango argentino. Nesse poema, atravs de formas nitidamente modernistas versos brancos livres Bandeira mescla dilogo com frases afirmativas e recursos grficos, empregando toda sua auto-ironia melanclica. Nele, o eu-lrico desabafa no 2o verso todo o seu drama interior. A vida inteira que podia ter sido e que no foi. Isto , aos desejos frustados, aos sonhos no realizados do poeta s resta tocar uma cano trgica em homenagem.

Irene Preta
Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor. Imagino Irene entrando no cu: Licena, meu branco! E So Pedro bonacho: Entra, Irene. Voc no precisa pedir licena. Irene preta uma das figuras mais famosas e queridas da infncia do poeta. Aqui, seu eu-lrico presta-lhe uma homenagem muito especial. Atente para a linguagem coloquial com frases nominais.

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Potica
Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionrio pblico com livro de ponto expediente protocolo e manifestaes [ de apreo ao Sr.diretor Estou farto do lirismo que pra e vai averiguar no dicionrio o cunho vernculo [ de um vocbulo Abaixo aos puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construes sobretudo as sintaxes de exceo Todos os ritmos sobretudo os inmerveis Estou farto do lirismo namorador Poltico Raqutico Sifiltico De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. De resto no lirismo Ser contabilidade tabela de co-senos secretrio do amante exemplar com cem [ modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar s mulheres,etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bbados O lirismo difcil e pungente dos bbados O lirismo dos clowns de Shakespeare No quero mais saber do lirismo que no libertao. Potica a sntese da concepo de um poema moderno do autor, sendo, portanto, metalingstico. Para o eu-lrico, um poema no deve seguir regras externas ao eu interior do poeta. Ele contra todas as normas sintticas, semnticas ou poticas, numa oposio clara aos poetas parnasianos. Prefere o lirismo, isto , expresso dos sentimentos do eu-lrico livres e espontnea como a dos bbados e dos clows de Shakespeare.

Belm do Par
Bembelelm VivaBelm! Belm do Par porto moderno integrado na equatorial Beleza eterna da paisagem Bembelelm VivaBelm! Cidade pomar (Obrigou a polcia a classificar um tipo novo de delinquente: O apedrejador de mangueiras.)
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Bembelelm VivaBelm! Belm do Par onde as avenidas se chamam Estradas: Estrada de So Jernimo Estrada de Nazar Onde a banal Avenida Marechal Deodoro da Fonseca de todas as cidades do Brasil Se chama liricamente Brasileiramente Estrada do Generalssimo Deodoro Bembelelm VivaBelm! Nortista gostosa Eu te quero bem. Terra da castanha Terra da borracha Terra de birib bacuri sapoti Terra de fala cheia de nome indgena Que a gente no sabe se de fruta p de pau ou ave de plumagem bonita. Nortista gostosa Eu te quero bem. Me obrigras a novas saudades Nunca mais me esquecerei do teu Largo da S Com a f macia das duas maravilhosas igrejas barrocas E o renque ajoelhado de sobradinhos coloniais to bonitinhos Nunca mais me esquecerei Das velas encarnadas Verdes Azuis Da doca de Ver-o-Peso Nunca mais E foi pra me consolar mais tarde Que inventei esta cantiga: Bembelelm VivaBelm! Nortista gostosa Eu te quero bem.
Belm, 1928

O eu-lrico prope-se a inventar uma cano como forma de consolo para suas saudades futuras, quando se ausentar da cidade. No poema o eu-lrico refere-se ao porto, paisagem, s ruas, ao idioma, s riquezas naturais e arquitetnicas, demonstrando sua admirao e afeto por Belm do Par.

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O autor realmente faz uma cano de amor a Belm, pois nos versos Bembelelm/ VivaBelm a preocupao com a sonoridade ntida, assim como a influncia de cantigas infantis (Bambalalo/ Senhor Capito). Alm disso, o emprego da redondilha menor em Nortista gostosa/ Eu te quero bem no ocasional, visto ser a medida empregada nas cantigas medievais, ligadas msica.

Evocao do Recife
Recife No a Veneza americana No a Mauritssatd dos armadores das ndias Ocidentais No o Recife dos Mascates Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depoisRecife das Revolues libertrias Mas o Recife sem histria nem literatura Recife sem mais nada Recife da minha infncia A Rua da Unio onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraas da casa de [ Dona Aninha Viegas Totnio Rodrigues era muito velho e botava o pincen na ponta do nariz Depois do jantar as famlias tomavam a calada com cadeiras, mexericos, namoros [ risadas A gente brincava no meio da rua Os meninos gritavam: Coelho sai! No sai! A distncia as vozes macias das meninas politonavam: Roseira d-me uma rosa Craveiro d-me o boto (Dessas rosas muito rosa Ter morrido em boto...) De repente nos longes da noite um sino Uma pessoa grande dizia: Fogo em Santo Antnio! Outra contrariava: So Jos! Totnio Rodrigues achava sempre que era So Jos. Os homens punham o chapu saam fumando E eu tinha raiva de ser menino porque no podia ir ver fogo Rua da Unio... Como eram lindos os nomes das ruas da minha infncia Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal) Atrs de casa ficava a Rua da Saudade... ...onde se ia fumar escondido Do lado de l era o cais da Rua da Aurora... ...onde se ia pescar escondido

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Capiberibe Capibaribe L longe o sertozinho de Caxang Banheiros de palha Um dia eu vi uma moa nuinha no banho Fiquei parado o corao batendo Ela se riu Foi o meu primeiro alumbramento Cheia! As cheias! Barro boi morto rvores destroos redomoinho sumiu E nos peges da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de [bananeiras Novenas Cavalhadas Eu me deitei no colo da menina e ela comeou a passar a mo nos meus cabelos Capiberibe Capibaribe Rua da Unio onde todas as tardes passava a preta das bananas com a xale vistoso de [ pano da Costa E o vendedor de roletes de cana O de amendoim que se chamava midubim e no era torrado era cozido Me lembro de todos os preges: Ovos frescos e baratos Dez ovos por uma pataca Foi h muito tempo... A vida no me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na lngua errada do povo Lngua certa do povo Porque ele que fala gostoso o portugus do Brasil Ao passo que ns O que fazemos macaquear A sintaxe lusada A vida como uma poro de coisas que eu no entendia bem Terras que no sabia onde ficavam Recife... Rua da Unio... A casa do meu av... Nunca pensei que ela acabasse! Tudo l parecia impregnado de eternidade Recife... Meu av morto. Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu av.
Rio, 1925.

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Evocar significa chamar de algum lugar, fazer aparecer chamando de certo modo. O eu-lrico evoca no presente a Recife de sua infncia, atravs das lembranas, das brincadeiras e canes infantis, dos hbitos de seu povo, de seus tipos humanos com suas falas, das suas ruas e rios. Essa evocao tem um tom melanclico e triste dado pelos ltimos versos, em que se percebe que essa Recife de sua infncia, que ele pensava que fosse eterna, est to morta quanto o seu av e s revivida na sua memria, da seu poema ser uma evocao. Em Potica o eu-lrico expe suas idias sobre como deveria ser um poema modernista, j em Evocao do Recife ele faz uma obra prima modernista de acordo com os objetivos propostos. O eu-lrico descreve no a Recife histrica, libertria, mas a sua amada Recife de infncia que lhe evoca um passado feliz, que, no presente, serviria no lenitivo para as dores do poeta Bandeira. , portanto, um poema altamente lrico, isto , carregado de sentimentos puros e espontneos como os dos bbados (Potica) e no tirados dos manuais de cartas, mas da observao de fatos cotidianos brasileiros, das brincadeiras, das enchentes e dos preges dos ambulantes. A linguagem simples, coloquial, pois, segundo o texto, o povo fala gostoso o portugus do Brasil, que o empregado no poema. No h preocupao com rima ou mtrica, apenas com a disposio grfica dos versos e a expresso de um lirismo profundo, de modo a impregnar o presente de sua Recife to brasileira e inesquecvel.

Mangue
Mangue mais Veneza americana do que o Recife Cargueiros atracados nas docas do Canal Grande O Morro do Pinto morre de espanto Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta Caf baixo Trapiches alfandegados Catraias de abacaxis e de bananas A Light fazendo crusvaldina com resduos de coque H macumbas no piche Eh cagira mia pai Eh cagira E o luar uma coisa s Houve tempo em que a Cidade Nova era mais subrbio do que todas as Meritis da [ Baixada Ptria amada idolatra de empregadinhos de reparties pblicas Gente que vive porque teimosa Cartomantes da Rua Carmo Neto Cirurgies-dentistas com razes gregas nas tabuletas avulsivas O Senador Eusbio e o Visconde de Itana j se olhavam com rancor (Por isso Entre os dois Dom Joo VI plantou quatro renques de palmeiras imperiais) Casinhas to trreas onde tantas vezes meu Deus fui funcionrio pblico casado [ com mulher feia e morri de tuberculose pulmonar Muitas palmeiras se suicidaram porque no viviam num pncaro azulado. Era aqui que choramingavam os primeiros choros dos carnavais cariocas

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Sambas da tia Ciata Cad mais tia Ciata Talvez em Dona Clara meu branco Ensaiando cheganas pra o Natal O menino Jesus Quem sois tu? O preto Eu sou aquele preto princip do centro do cafange do fundo do rebolo. [ Quem sois tu? O Menino Jesus Eu sou o fio da Virge Maria. O preto Entonces como fio dessa senhora, obedeo. O menino Jesus Entonces cuma voc obedece, reze aqui um terceto pr'esse [exero v O Mangue era simplesinho Mas as inundaes dos solstcios de vero Trouxeram para Mata-Porcos todas as uiaras da Serra da Carioca Uiaras do Trapicheiro Do Maracan Do Rio Joan E vieram tambm sereias de alm-mar-jogadas pela ressaca nos aterrados da Gamboa Hoje h transatlnticos atracados nas docas do Canal Grande O Senador e o Visconde arranjaram capangas Hoje se fala numa poro de ruas em que dantes ningum acreditava E h partidas para o Mangue Com choros de cavaquinho, pandeiro e reco-reco s mulher s mulher e nada mais Oferta Mangue mais Veneza americana do que o Recife Meriti meretriz Mangue enfim verdadeiramente Cidade Nova Com transatlnticos atracados nas docas do Canal Grande Linda como Juiz de Fora. Esse poema homenageia o Mangue, no Rio de Janeiro, descrevendo sua paisagem e seus tipos humanos, tal como em Evocao do Recife e Belm do Par. Diferencia-se dos demais na medida em que reproduz dilogos, grafando as palavras de acordo com a pronncia popular e mesclandose com os versos de maneira inesperada.

Poema tirado de uma notcia de jornal


Joo Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilnia num barraco [sem nmero. Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Danou Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

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Joo Gostoso, o personagem annimo do barraco sem nmero, bebe,dana, canta e suicida-se na lagoa que embeleza a paisagem. Assim como Macaba, de Clarice Lispector, Joo Gostoso o heri annimo que sucumbe voracidade da cidade grande. Para o autor, no so necessrias muitas palavras, metros ou rimas para compor uma tragdia; os fatos bastam por si s. um poema modernista em sua primeira fase: anlise crtica da realidade brasileira expressa atravs de uma linguagem coloquial, sucinta, em que se restringe os fatos, como em uma notcia de jornal.

Profundamente
Quando ontem adormeci Na noite de So Joo Havia alegria e rumor Estrondos de bombas luzes de Bengala Vozes cantigas e risos Ao p das fogueiras acesas. No meio da noite despertei No ouvi mais vozes nem risos Apenas bales Passavam errantes Silenciosamente Apenas de vez em quando O rudo de um bonde Cortava o silncio Como um tnel. Onde estavam os que h pouco Danavam Cantavam E riam Ao p das fogueiras acesas? Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo Profundamente Quando eu tinha seis anos No pude ver o fim da festa de So Joo Porque adormeci Hoje no ouo mais as vozes daquele tempo Minha av Meu av Totnio Rodrigues Tomsia Rosa Onde esto todos eles? Esto todos dormindo Esto todos deitados Dormindo Profundamente.

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Neste poema, o eu-lrico relembra das festas juninas de sua infncia, que lhe trazem lembranas alegres, mas que terminaram, pois o tempo passou e as pessoas queridas j se foram. Note no texto a alternncia entre a infncia e o presente, alm da meno da pessoas ligadas sua infncia, to mencionadas pelo poeta. importante salientar a preocupao do poeta na escolha da palavra profundamente, que valoriza o poema pela sua sonoridade no refro, pois h repetio de sons nasais (assonncia) e, sozinha, constitui-se numa redondilha.

Vou me embora pra Pasrgada


Vou-me embora pra Pasrgada L sou amigo do rei L tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasrgada Vou-me embora pra Pasrgada Aqui eu no sou feliz L a existncia uma aventura De tal modo inconseqente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginstica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a me-d'gua Pra me contar as histrias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasrgada Em Pasrgada tem tudo outra civilizao Tem um processo seguro De impedir a concepo Tem telefone automtico Tem alcalide vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de no ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar L sou amigo do rei Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasrgada.

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O eu-lrico demonstra seu desejo de buscar um lugar imaginrio e ideal para viver como forma de fuga do plano real, que s lhe causa tristeza, infelicidade e vontade de se matar.

Em Pasrgada o eu-lrico poder satisfazer todos os desejos fsicos e afetivos (mulher que eu quero, prostitutas bonitas), e de aventuras (fazer ginstica, andar de bicicleta, nadar no mar etc), que lhe sero facilitados, pois sou amigo do rei. Pasrgada um lugar moderno (tem alcalide, telefone e mtodo seguro de anticoncepo), onde o absurdo no existe (vem a ser contraparente/ Da nora que nunca tive; me-d'gua conta-lhe histrias) e a Rosa de sua infncia est presente. O poema construdo em redondilha maior, que, junto com a linguagem oral, d ao texto o ritmo agradvel das canes populares, inteno clara do autor; que no fere o Modernismo em virtude dessa intencionalidade.

O ltimo Poema
Assim eu quereria o meu ltimo poema Que fosse eterno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais Que fosse ardente como um soluo sem lgrimas Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais lmpidos A paixo dos suicidas que se matam sem explicao.

O ltimo poema de Libertinagem expressa os desejos do eu-lrico para um ltimo poema (funo metalingstica). Ele deveria conter ternura, ardor, beleza e pureza simples, alm da paixo dos suicidas que no explicam seus motivos.

CARACTERSTICAS DE ESTRELA DA MANH Estrela da Manh composto de 28 poemas, 9 em versos livres, 16 metrificados e 3 poemas em prosa, sendo um deles em francs.

Essa obra marca o nicio da ltima fase do poeta, chamada por alguns crticos de ps-modernista. a fase mais madura de sua obra. Nela, o autor combina o que de melhor havia na tradio (soneto italiano, soneto ingls, rond, vilancete, sextilha, cantiga etc.) com as conquistas modernas empregadas anteriormente.

J que o estilo simples, lrico, emotivo e humilde permanece, sendo porm mais fortes o erotismo, os versos surrealistas, a melancolia e a desiluso de viver.

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Estrela da Manh
Eu quero a estrela da manh Onde est a estrela da manh? Meus amigos meus inimigos Procurem a estrela da manh Ela desapareceu ia nua Desapareceu com quem? Procurem por toda parte Digam que sou um homem sem orgulho Um homem que aceita tudo Que me importa? Eu quero a estrela da manh Trs dias e trs noites Fui assassino e suicida Ladro, pulha, falsrio Virgem mal-sexuada Atribuladora dos aflitos Girafa de duas cabeas Pecai por todos pecai com todos Pecai com os malandros Pecai com os sargentos Pecai com os fuzileiros navais Pecai de todas as maneiras Com os gregos e com os troianos Com o padre e com o sacristo Com o leproso de Pouso Alto Depois comigo Te esperarei com mafus novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma [ternura to simples Que tu desfalecers Procurem por toda a parte Pura ou degradada at a ltima baixeza Eu quero a estrela da manh. O poema acima introduz e d nome ao livro. Permanece o emprego de versos livres e brancos. O eu-lrico anseia pela estrela da manh perdida e roga por ela com insistncia, num tom de ladainha, chegando a pedir ajuda. No se importa caso ela venha degradada ou pura, ou se tenha se perdido em outras mos, ele a esperar com festas (mafus, novenas, cavalhadas); far sacrifcios (comerei terra) e ser poeta (direi coisas de uma ternura to simples). Em relao forma no h preocupao rimtica, mtrica e nem com a estrofao. Observe que a estrela tratada por ela, tu e vs. H o emprego de anfora (6a e 7a estrofes) e imagens surrealistas (5a estrofe), que parecem brotar do inconsciente do eu-lrico.
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Trem de Ferro
Caf com po Caf com po Caf com po O... Quando me prendero No canavi Cada p de cana Era um ofici Virgem Maria que foi isto maquinista? O... Menina bonita Agora sim Caf com po Agora sim Voa, fumaa Corre, cerca Ai seu fogista Bota fogo Na fornalha Que eu preciso Muita fora Muita fora Muita fora Vou depressa Vou correndo Vou na toda O... Foge, bicho Foge, povo Passa ponte Passa poste Passa pasto Passa boi Passa boiada Passa galho De ingazeira Debruada No riacho Que vontade De cantar! Sua riqueza est centrada no ritmo e na sua musicalidade, a qual se baseia na mtrica, na aliterao e na assonncia, alm de incluir trs canes em seu interior (O...O). O ritmo do trem marcado pelo nmero de slabas poticas do verso; quando veloz h trisslabos; quando perde velocidade, possui quatro ou cinco slabas poticas (caf com po). A linguagem coloquial e as imagens fugidias que passam pela janela do trem e que so percebidas por um eu-lrico infantil ou ingnuo aumentam a riqueza do poema. O poema uma imitao sonora de um trem em movimento. Que s levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente... Para mat minha sede O... Vou mimbora vou mimbora No gosto daqui Nasci no serto Sou de Ouricuri O... Do vestido verde Me d tua boca

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Tragdia Brasileira
Misael, funcionrio da Fazenda, com 63 anos de idade. Conheceu Maria Elvira na Lapa-prostituta, com sfilis, dermite nos dedos, uma aliana empenhada e os dentes em petio de misria. Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estcio, pagou mdico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria. Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. Misael no queria escndalo. Podia dar uma surra,um tiro, uma facada. No fez nada disso, mudou de casa. Viveram trs anos assim. Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa. Os amantes moraram no Estcio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marqus de Sapuca, Niteri, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estcio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Invlidos... Por fim na Rua da Constituio, onde Misael, privado de sentidos e de inteligncia, matou-a com seis tiros, a polcia foi encontr-la cada em decbio dorsal, vestida de organdi azul.

No texto acima, Misael, 63 anos, homem correto, apaixona-se por uma prostituta mal cuidada. Tira-a dessa vida e cuida de sua sade e aparncia, instalando-a em sua casa. Assim que se ps bonita e bem cuidada, ela arrumou um namorado. Misael, pouco afetivo a violncias, resolveu mudar-se. A cada namorado novo, nova casa, durante trs anos. No final, aps 19 mudanas, Misael perdeu a cabea e matou-a com seis tiros. um poema em prosa, em que o poeta, atravs de frases concisas, demonstra ser aquele que melhor soube ver a poesia, no caso, trgica, presente no cotidiano. A liberdade formal que lhe caracterstica, leva-o a imitar, no final do poema, a linguagem jornalstica, ressaltando dessa forma a ironia presente no texto (matou-a com seis tiros).

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