Filosofia medieval

A filosofia medieval é uma tradição e um período da história da filosofia, formada pela convergência de filosofias cristãs latinas, árabes ou islâmicas, judias, e também, em menor medida, filosofias persas e bizantinas - escritas em latim, árabe, grego, hebreu e farsi. Tem seu início em torno do século VIII, com variações cronológicas dependendo do local, e por vezes com poucas distinções em relação ao período helenístico anterior. Já seu fim não possui ponto exato, coincidindo com a chamada filosofia renascentista, e preservando referências, técnicas e temas, em alguns locais, ao longo dos séculos XVI e XVII.[1]

Retrato do século XIX da filósofa francesa Heloísa de Argenteuil

A característica distintiva das filosofias medievais é o interesse em integrar a doutrina da revelação com a racionalidade filosófica e científica,[2] ou, em outras palavras, fazer da filosofia uma auxiliar da teologia,[3] nesse sentido, a base comum da religiosidade monoteísta e abraâmica apresentava aberturas de diálogo entre as várias tradições.[4] O problema da fé e sua relação com a racionalidade também deu origem à elaborações não-integrativas - que rejeitam a filosofia, afirmando uma fidelidade total à fé, ou, alternativamente, subordinando a fé à filosofia. No entanto, a maioria dos filósofos sustentou diferentes formas de conciliação entre ambos.[2] A preponderância do religioso implicou que poucos pensadores do período se considerassem propriamente filósofos, principalmente na cristandade latina, definindo-se mais frequentemente como teólogos.[5] Além disso, é caracterizada pela herança comum da filosofia grega antiga, especialmente através do neoplatonismo tardio, ainda que, também, possua uma influência dominante do aristotelismo.[4] Todas as correntes da filosofia medieval se desenvolvem de maneira profundamente interconectada, com filósofos judios inspirando-se nas elaborações dos árabes, e filósofos cristão influenciados pelos comentários e traduções árabes dos gregos antigos, ainda que outras partes, como os bizantinos, fossem mais isoladas.[4]

Herança da Antiguidade

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As dificuldades de transmissão da filosofia antiga foram determinantes na compreensão que os medievais formaram do pensamento dos filósofos e escolas do passado. A escassez inicial de escritos primários, comentários e histórias, e o crescente acesso no momento tardio do período medieval, influenciaram o repertório, as ênfases e as metodologias utilizadas nos diferentes contextos e momentos da filosofia medieval. O acesso à obra de Platão foi, por muito tempo, limitado à uma tradução incompleta de apenas um diálogo, o Timeu, considerado um dos diálogos menos filosóficos do autor, desenvolvendo, na maior parte, explicações metafóricas da cosmologia.[6] Os escritos de Aristóteles fora da lógica só se tornaram disponíveis na metade do século XII. O conhecimento da filosofia antiga dependia, portanto, de tratados e materiais didáticos da antiguidade tardia, principalmente os escritos dos Platonistas latinos e dos trechos mais filosóficos dos Pais da Igreja.[7]

 
Versão do diálogo platônico Timeu - Codex Parisinus graecus 1807

A sobrevivência do Timeu, por sua vez, é resultado do fascínio que o diálogo causava no público romano, sendo o mais popular da antiguidade, inclusive entre os platonistas, que admiravam seu conteúdo metafórico e místico apesar do déficit em argumentação e raciocínio filosófico que o torna pouco representativo da filosofia de Platão.[8]Aristóteles, que desenvolveu uma metodologia filosófica bastante distinta, conquistou poucos seguidores diretos na antiguidade, destacando-se mais por sua influência indireta, principalmente de sua lógica, em outras escolas, como o próprio platonismo, o que resultou, entretanto, numa adaptação de sua filosofia ao princípios metafísicos dessas mesmas escolas, descaracterizando-a consideravelmente.[8] O conceito de nous presente na filosofia de Aristóteles é um examplo de assimilação por parte do neoplatonismo.[9]

Importantes ideias filosóficas da antiguidade foram inicialmente, nos primórdios do período medieval, transmitidas por menções passageiras de textos literários, retóricos e frequentemente pouco sistemáticos. É o caso dos textos ecléticos de Cícero, que em seu Tusculanae Disputationes apresenta uma versão bastante heterodoxa do platonismo. Sêneca, igualmente, retorna frequentemente às elaborações filosóficas gregas na exposição de suas ideias. Apuleio apresenta ideias platônicas em seu De dogmate Platonis, que esteve disponível aos filósofos medievais. Calcídio, tradutor da versão preservada do Timeu, juntava às suas traduções longos comentários que demonstram a influência de filósofos anteriores, especialmente neoplatônicos. Numênio de Apameia, um filósofo grego pitagórico, teve também texto preservadores que seviram de referência sobre ideias que foram igualmente influentes na formação do neoplatonismo.[9] A importância dessas fontes sobre a filosofia medieval é difícil de ser estipulada, dado a brevidade da menções, e a conjunto pouco coerente que formavam. Foram, mais provavelmente, interpretadas à luz do neoplatonismo tardio mais familiar ao medievais.[10]

Neoplatonismo

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A filosofia de Plotino representou uma convergência de muitos elementos da filosofia antiga em seu período tardio. Seu pensamento, reunido nas Enéadas por Porfírio, com algumas modificações, foi amplamente popularizado naquele momento. Ainda que a obra não estivesse disponível aos primeiros filósofos medievais, sua influência indireta se fez sentir pela impressão que causou em toda filosofia imediatamente posterior.[10]

Um marco do pensamento de Plotino é a mobilização do conceito de nous da filosofia grega, traduzido como intelecto, numa certa hierarquia da realidade em que o Uno constituia a escala superior, subordinando o próprio intelecto em razão de sua dualidade. O Uno, para Plotino, é o princípio absolutamente simples e unitário, por isso mesmo ilimitado em sua constituição. Nesse sentido, o nous é derivado do intelecto, um processo também chamado de emanação, do qual, por sua vez, deriva-se também a alma. Esses três formam os níveis da realidade. Em certo sentido, a filosofia de Plotino é mística, por avançar ideias que não podem ser compreendidas por formulações discursivas - ainda que procedendo por métodos de especulação filosófica que partem do pensamento platônico, os elementos místicos e religiosos, presentes metaforicamente nos escritos de Platão, e mais intensamente investidos por gerações subsequentes de platonistas, são radicalizados por Plotino e tornados explícitos.[11]

As vias de transmissão da filosofia neoplatônica - os textos didáticos que demonstram maior influência de Porfírio, como os comentários escritos por Calcídio e Macróbio; os autores cristãos gregos e latinos, como Boécio, que seguiram um neoplatonismo influenciado pelos sucessores de Porfírio; e os Pais da Igreja latinos, como Agostinho de Hipona, que leu diretamente tanto Plotino quanto Porfírio.[12] É dessa última via que o legado neoplatonista receberá sua maior reelaboração criativa, que irá enfatizar, acima de qualquer conceito, a compreensão da relação entre filosofia e religiosidade presente nessa tradição.[12] Já na vertente patrística grega, o neoplatonismo tornou-se muito representado pelos escritos de Pseudo-Dionísio, o Areopagita.[13] Foi em grande parte pela influência indireta de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que Proclo tornou-se o neoplatônico cujo pensamento foi o mais decisivo e dominante na trajetória do platonismo na Idade Média, principalmente a partir da alta escolástica.[14]

Patrística

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 Ver artigo principal: Patrística

Agostinho de Hipona

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 Ver artigo principal: Agostinho de Hipona

O aparecimento de Agostinho de Hipona (354 - 430) seria crucial para a filosofia cristã. Agostinho de Hipona reconciliou a filosofia grega com a fé cristã,[15] retomando de Plotino o tema das três naturezas e identificando-as com as três pessoas da Trindade cristã, mas concebendo sua relação processional não mais em um sentido degradante, mas em uma perspectiva de igualdade-consubstancialidade. Para Agostinho, fé e razão não estavam em oposição, mas em uma relação complementar.[16] A fé precede a razão, mas esta é importante para confirmar a fé e, portanto, eram dois campos que precisavam ser equilibrados e complementados. Agostinho anteciparia Descartes sustentando que a mente, enquanto em dúvida, está ciente de si mesma: se estou iludido, existo (Si enim fallor, sum).[17] Como a percepção do mundo externo pode levar ao erro, o caminho da certeza é a interioridade que, por um processo de iluminação, se encontra com as verdades eternas e com o mesmo Deus que, segundo ele, está no mais íntimo de cada um.[15] Ele foi um dos primeiros autores cristãos com uma visão clara sobre a antropologia teológica.[18] Ele via o ser humano como uma unidade perfeita de alma e corpo, e também estabeleceu que existe uma Igreja com duas realidades: o aspecto visível (a hierarquia institucional, os sacramentos e os leigos) e o aspecto invisível (as almas).[19] Ele ensinou que Deus ordena todas as coisas enquanto preserva a liberdade humana[20] e afirmou que os cristãos devem ser pacifistas como uma postura filosófica pessoal,[21] embora em caso de lesão grave a defesa de si mesmo ou de outros possa ser uma necessidade, especialmente quando autorizada por uma autoridade legítima.[22] Agostinho rompe com o tempo cíclico defendido por filósofos como Platão e levanta reflexões sobre a história e o tempo onde há um começo e um fim.[23]

Boécio

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 Ver artigo principal: Boécio

Primórdios da filosofia medieval

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Tradução grego-árabe

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Primeiros filósofos medievais

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Alcuíno

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 Ver artigo principal: Alcuíno

Cassiodoro

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 Ver artigo principal: Cassiodoro

al-Kindī

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 Ver artigo principal: Alquindi
 Ver artigo principal: Rasis

al-Fārābı̄

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 Ver artigo principal: Alfarábi

Peripatéticos de Bagdá

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Ibn Sı̄nā

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 Ver artigo principal: Avicenna

Escolas filosóficas medievais

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Lógica

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Teologia

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Anselmo

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 Ver artigo principal: Anselmo de Cantuária

al-Ghazālı̄

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 Ver artigo principal: Algazali

Abelardo

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 Ver artigo principal: Abelardo

Ibn Tufayl

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 Ver artigo principal: Ibne Tufail

Erígena

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 Ver artigo principal: João Escoto Erígena

ibn Rushd

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 Ver artigo principal: Averróis

Princípio da Escolástica

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 Ver artigo principal: Escolástica

Filosofia medieval tardia

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Universidades e Escolástica

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William de Auvergne

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Tomás de Aquino

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 Ver artigo principal: Tomás de Aquino

Henri de Gante

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 Ver artigo principal: Henri de Gante

Duns Escoto

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 Ver artigo principal: João Duns Escoto

Ockham

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 Ver artigo principal: Guilherme de Ockham

Escolástica tardia

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 Ver artigo principal: Escolástica tardia

Francisco Suárez

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 Ver artigo principal: Francisco Suárez

Francisco de Vitória

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 Ver artigo principal: Francisco de Vitória

Tradições constitutivas da filosofia medieval

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Filosofia cristã

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 Ver artigo principal: Filosofia cristã

Filosofia árabe-islâmica

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 Ver artigo principal: Filosofia islâmica

Filosofia judaica

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 Ver artigo principal: Filosofia judaica

Filosofia persa

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 Ver artigo principal: Filosofia persa

Filosofia bizantina

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 Ver artigo principal: Filosofia bizantina

Escolas medievais

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Escola de Oxford

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Foi uma escola fundada por Roberto Grosseteste no século XI.[24] Entre seus membros mais proeminentes estavam:

Escola de Chartres

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Foi uma escola fundada no início do século XI por Fulberto de Chartres,[25] bispo de Chartres e aluno de Gerberto de Aurillac (Papa Silvestre II), atingindo seu apogeu no século XII. Seus membros eram conhecidos como "Chartrains".[26] Entre seus membros proeminentes podem ser encontrados:

Escola de São Vítor

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Foi uma escola fundada no século XII por Guillermo de Champeaux, adversário de Pedro Abelardo.[27] Seus membros são conhecidos como "Victorinos". Teve como membros proeminentes:

Ver também

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Referências

  1. Marenbon 1998, p. 1.
  2. a b Gracia 2008, p. 1.
  3. Gracia 2008, p. 3.
  4. a b c Marenbon 1998, p. 2.
  5. Gracia 2008, p. 4.
  6. Marenbon 1983, p. 5.
  7. Marenbon 1983, p. 3.
  8. a b Marenbon 1983, p. 6.
  9. a b Marenbon 1983, p. 7.
  10. a b Marenbon 1983, p. 8.
  11. Marenbon 1983, p. 9.
  12. a b Marenbon 1983, p. 10.
  13. Marenbon 1983, p. 18.
  14. Gersh, Stephen (9 de novembro de 2020). Metaphysics and Hermeneutics in the Medieval Platonic Tradition (em inglês). [S.l.]: Routledge 
  15. a b Tornau, Christian (2020). Zalta, Edward N., ed. «Saint Augustine». Metaphysics Research Lab, Stanford University. Consultado em 5 de maio de 2021 
  16. Filosofia. Vol. II: Antropologia, Psicologia Y Sociologia. Profesores de Enseñanza Secundaria. Temario Para la Preparacion de Oposiciones. Ebook (em espanhol). [S.l.]: MAD-Eduforma. 3 de fevereiro de 2000 
  17. «El descubrimiento de la mente: de San Agustín a Descartes». web.archive.org. 11 de julho de 2020. Consultado em 5 de maio de 2021 
  18. Tornau, Christian (25 de setembro de 2019). «Saint Augustine». Consultado em 5 de maio de 2021 
  19. González, Justo L. (1987). A History of Christian Thought Volume 2: From Augustine to the Eve of the Reformation (em inglês). [S.l.]: Abingdon Press 
  20. Levering, Matthew (26 de maio de 2011). Predestination: Biblical and Theological Paths (em inglês). [S.l.]: OUP Oxford 
  21. «A Time For War?». web.archive.org. 29 de abril de 2021. Consultado em 5 de maio de 2021 
  22. «St. Augustine of Hippo». archive.is. 28 de julho de 2012. Consultado em 5 de maio de 2021 
  23. G. de Mayer, Rosita (29 de agosto de 2017). «San Agustín, primer filósofo de la historia» (PDF). web.archive.org. Consultado em 5 de maio de 2021 
  24. «Franciscan Schools of thought - Part 3». web.archive.org. 7 de junho de 1997. Consultado em 11 de maio de 2021 
  25. E. Jeauneau, La philosophie médiévale, p. 47
  26. M. M. Davy, op. cit., p. 35
  27. Ferruolo (1985) The Origins of the University, Stanford University Press

Bibliografia

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  • Marenbon, John (2004). Medieval philosophy (em inglês). [S.l.]: Routledge. ISBN 0-203-02846-5 
  • Libera, Alain de (1989). A Filosofia Medieval. [S.l.]: Jorge Zahar 
  • Marenbon, John (1983). Early Medieval Philosophy (480–1150) - An Introduction. [S.l.]: Routledge 
  • Marenbon, John (1996). Later Medieval Philosophy (1150-1350) - An Introduction. [S.l.]: Routledge 
  • Marenbon, John (2007). Medieval Philosophy - An historical and philosophical introduction. [S.l.]: Routledge 
  • Marenbon, John, ed. (1998). Routledge History of Philosophy - Medieval Philosophy. [S.l.]: Routeledge. ISBN 0-203-02846-5 
  • Gracia, Jorge JE; Noone, Timothy B., eds. (2008). A companion to philosophy in the Middle Ages. [S.l.]: John Wiley & Sons 
  • HARVEY, Steven; GERMANN, Nadja, eds. (2008). THE ORIGIN AND NATURE OF LANGUAGE AND LOGIC - Perspectives in Medieval Islamic, Jewish, and Christian Thought. [S.l.]: Brepols Publishers n.v. ISBN 978-2-503-58892-6 
  • Bouton -Touboulic, Anne-Isabelle; Lévy, Carlos, eds. (2016). Scepticisme et religion - Constantes et évolutions, de la philosophie hellénistique à la philosophie médiévale. [S.l.]: Brepols Publishers n.v. ISBN 978-2-503-56545-3 
  • El-Rouayheb, Khaled (2019). The Development of Arabic Logic (1200–1800). [S.l.]: Schwabe Verlag 
  • Adamson, Peter; Taylor, Richard C., eds. (2005). The Cambridge companion to Arabic philosophy. [S.l.]: Cambridge University Press 
  • McGinnis, Jon; Reisman, David C. (2007). Classical Arabic philosophy: an anthology of sources. [S.l.]: Hackett Publishing Company, Inc.