Contos Circuitos
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Contos Circuitos - Idavan Delgado Ricciardi
CONTOS-
CIRCUITOS
CONTOS CURTOS
PARA LER DEVAGAR
E ACABAR DEPRESSA
Idavan Ricciardi
2
SUMÁRIO
I - Histórias que aconteceram
Conversa noturna - 7
A decisão - 9
O dilema - 13
Aconteceu de madrugada -15
Tem certeza? - 16
O suborno - 18
Uma tragédia grega - 20
Novela mexicana - 25
Copa do mundo - 27
O garimpeiro - 29
O contador de histórias - 32
II -Histórias que ouvi
Meu trabalho - 37
O campo. - 39
Duas histórias - 41
Aconteceu no convento - 45
Tô sabendo - 47
O dentista - 49
Era uma vez - 51
A ofensa - 53
Os olhos do baiano - 55
3
III – HISTÓRIAS QUE PODERIAM ACONTECER
A farsa - 58
A relatividade - 61
A invasão - 63
O segredo - 65
Praga ou maldição - 77
O mosteiro -79
Mataram alguém - 81
Corpo seco e o lobisomem - 83
Robô IA - 85
Em família - 88
O nadador - 90
O Relatório do flagrante - 93
Paixão obsessiva - 97
A escolha - 99
O gato - 101
O coveiro - 103
O fotógrafo - 106
As gêmeas - 109
O cemitério - 112
Falar de amor - 115
O espanto - 119
Terrores modernos - 121
A hora certa - 123
Assim dizem - 125
Velhos tempos -128
O turista - 131
A vacina - 134
4
IV – BUROCRACIAS
I- A Identidade - 136
II- A Certidão - 139
III- O Círculo Concreto - 141
IV- O Atestado - 142
5
- I -
HISTÓRIAS
QUE
ACONTECERAM
6
Conversa Noturna A conversa corria solta, variando os assuntos pelos interesses que, aos dezoito anos, são muitos, até chegar naquele da preferência do meu amigo, o sobrenatural.
Josué quando conseguia encaminhar a conversa tornava-se eloquente e, não contente em relatar, animava-se em dramatizar o fato. Bastava-lhe um ouvinte para sentir-se num palco, desfiando uma série de eventos, todos fantásticos e de difícil explicação.
Nessa noite, talvez pela lua cheia, a história prometia.
— Você não vai acreditar, mas eu estava no meu quarto, era umas dez horas e o pessoal aqui de casa já dormia. Estava lendo e ouvi um barulho no lado de fora da janela. Nada importante. Era como um roçar na parede. Olhei pela fresta da janela, e vi uma sombra em movimento lento. A sombra era baixa, não parecia ser de uma pessoa, mesmo que estivesse agachada. Pensei, um gato?
Não, muito pequeno. Era mais encorpado. Um gato grande? Como? Uma onça? O porte lembraria, mas uma onça no ramal de Madureira? De jeito nenhum. A sombra parou de se movimentar e ficou estática, de frente para a janela. Eu já tinha apagado a luz. Não poderia ser visto. Poderia ser farejado?
Talvez. Um cachorro grande? Um lobo? Nessa altura, eu já não estava tão tranquilo.
Apurei o ouvido em busca de qualquer ruído. Um arfar, rosnar, latir. Dizem que os grandes felinos podem emitir um som de ultrabaixa frequência que aterroriza os seres vivos que possam percebê-lo. Mas não ouvi nem percebi nada, além do silêncio pesado da noite.
7
Uma discreta luminosidade apareceu no lado de fora. Uma nesga de luar começou a iluminar a área, interrompendo a minha concentração nos possíveis ruídos e projetando uma sombra contra a parede oposta. Ilusão de ótica? Pode ser sido mas, o tamanho impunha, mais que respeito, temor e, contornando a parede da casa, desapareceu.
A sensação de isolamento voltou à visão da minha janela. O
conflito entre a curiosidade de saber o que era e o medo de confrontá-lo explicava o suor frio que escorria pelo meu rosto. É
claro que não arrisquei ao esclarecimento e custei a dormir.
Aquela sombra não saia da minha cabeça.
Conversávamos, caminhando pela noite sossegada do subúrbio carioca. Nessa altura, já eram duas da madrugada e, pela manhã, um novo dia de muitos afazeres.
Despedimo-nos e segui a pé para casa, não muito longe. Ia distraído, pensando na história da sombra quando, passando em frente a uma grade de jardim, ouvi um som, rasgando a noite, agudo, esganiçado, áspero, sei lá.
Não parei para interpretar. Pelo contrário, o que entrou pelos meus ouvidos, foi direto para minhas pernas que dispararam, em tempo olímpico, o que faltava para chegar.
Depois de entrar e fechar a porta, ainda espantado com a minha velocidade, pude perceber que tinha ouvido, apenas, o bem conhecido miado do namoro dos gatos. Mas, convenhamos, na escura solidão da madrugada, aquele miado combinava, e muito, com a sombria história da sombra do Josué
A Decisão
8
—É do consultó—Sim, senhora.
—Eu gostaria de marcar uma consulta.
—Pois não. Qual o seu nome?
— Não é para mim. É para meu pai
—O nome dele?
—Eustáquio.
—E o motivo da consulta?
—Ele é idoso e tem estado muito triste.
—Ele já fez alguma consulta clínica ou neurológica?
—Não. Fisicamente ele está muito bem.
—Quinta feira próxima, as 10 horas, estaria bem?
—Perfeito. Fica confirmado. Obrigada.
1a. Consulta:
—Bom dia, seu Eustáquio.
—Bom dia, doutor.
—Como o senhor vê a sua vinda aqui?
—Na verdade, minha filha é que está preocupada com o meu estado de espírito. Tenho andado muito triste.
—Não é uma situação incomum. A rotina da vida, volta e meia, nos deixa um pouco deprimidos. Ocorre ter vontade de chorar, às vezes, sem motivo?
—Não, doutor. Não estou deprimido. Só triste.
—Como o senhor diferencia essas duas situações?
—Bem, tenho a impressão que depressão é quando você é todo triste, sem saber o motivo certo, mas eu estou triste por uma razão só.
9
—E qual seria essa razão?
—Tenho sessenta anos de casado e uma família bem organizada.
Moramos todos juntos, minha mulher, minha filha, meu genro e eu.
—Algum problema com sua filha ou seu genro.
—Não, nenhum. Pelo contrário. Todos nos damos muito bem e esse genro é como o filho que não tive. Somos muito amigos.
—E?
—Ele está doente e isso me deixa muito triste. Nem gosto muito de falar sobre isso, porque me faz muito mal.
—Tudo bem. Vamos fazer uma pausa. Conversamos mais na semana que vem?
—Certamente, doutor. Até lá.
...................................................................................
Começando a conversa:
—Cerveja boa, hein?
—É artesanal. É o dono do bar que produz. Tá na moda, né? Você hoje não está com cara de sexta-feira, tá com cara de paisagem.
—Pois é. Ontem uma mulher marcou consulta para o pai, idoso, com comportamento tristonho. Até aí, sem novidade.
— Depressão senil. Certo, E daí?
—Daí que o paciente, oitenta e dois anos, com excelente apresentação. Modesto no vestuário, mas impecável. Barba bem feita, bigodinho antigo, quase diria vintage, higiene e cuidados pessoais perfeitos, sério, mas amável, lúcido e expressando-se muito bem. Chegou, mesmo, a negar um estado depressivo que, na sua opinião, seria quando a pessoa é toda triste, enquanto ele estava triste, mas por uma razão específica, que não gostaria muito de comentar. Disso tudo, o que mais me intrigou, foi a serenidade e segurança com que falava. Sem imposição ou qualquer sinal de agressividade, apenas certo e seguro.
10
—Bem, com tanto maluco solto por aí, é sempre bom encontrar alguém que tenha um discurso coerente com o que pensa.
—Acho que você encontrou a palavra certa. É a impressão que ele passa. É coerente.
2A. Consulta:
—Bom dia seu Eustáquio.
—Bom dia, doutor.
—O senhor comentou sobre o fato de seu genro estar doente.
Algo sério?
—Muito sério. Um câncer muito agressivo que causa muita dor e os remédios já quase não fazem mais efeitos.
Seu Eustáquio interrompe