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Os corpos nus dos moribundos
Os corpos nus dos moribundos
Os corpos nus dos moribundos
E-book183 páginas2 horas

Os corpos nus dos moribundos

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Sobre este e-book

"Os corpos nus dos moribundos", primeiro romance de Emerson Maia, mergulha nas lágrimas das mães vítimas da violência, na decadência dos sertões mineiros e na solidão da pandemia. Minas é, para o autor, um microcosmo que reflete um Brasil fragmentado, confrontando tradição e modernidade. A narrativa neobarroca de Emerson explora a essência desse estado mineiro, marcado pela fé, pela intolerância e pela violência, unindo, nesse esforço, memória e ficção.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de jul. de 2024
ISBN9786585122146
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    Os corpos nus dos moribundos - Emerson Maia

    PRÓLOGO

    Nas ladeiras de Araribá, raiava outra manhã suorenta de um agosto que nunca chegava ao fim. Começava, pois bem, a cair uma chuva miúda, dessas, assim-assim, que não parecem que irão durar muito tempo, mas que são capazes de ensopar as roupas e, toda vez que surgem mancomunadas com ventanias endiabradas, excepcionalmente aptas a levar pelos ares revoadas de homens franzinos.

    Vários quilômetros depois de Catas Altas do Matto Dentro, ainda assim com uma visão arrebatadora para a Serra do Espinhaço,

    [lá ao longe

    perfurando

    as nuvens]

    o distrito de Araribá se derramava por entre quatro colinas feito a água atirada das bicas das praças e dos baldes das lavadeiras. As casas se erguiam com as portas alegremente coloridas no ziguezaguear de ruazinhas de pedras. As fachadas eram decoradas por perfumosas floreiras e painéis de madeira, pintados de forma tão impecável que se passavam por autênticos azulejos portugueses. Em alguns dos endereços, as janelas exibiam finas tapeçarias com iconografias de cruzes, santos para tudo quanto é gosto, ramos de trigos, cenas da Paixão de Cristo e toda uma variedade de motivos religiosos. Pois além de tudo isso, somavam-se à ornamentação do casario as senhoras empoleiradas nas sacadas feito pombas engomadas, assim como as jovens que, mais parecendo pinturas emolduradas pelas janelas de cantaria, apoiavam os rostos nas mãos e apreciavam as ruas com os olhares luminosos e apaixonados. Eram mulheres que não poucos achavam estarem suspirando casórios vantajosos, mas que, muito pelo contrário, planejavam suas fugas de Araribá para se tornarem artistas circenses e nunca mais voltarem a pisar os pés ali.

    Pois não era segredo a devoção do povo até não poder mais. Em cada esquina, havia uma bonita capela para se fazer o sinal da cruz, assim como um sem-número de oratórios para que os fiéis pudessem acender uma vela e clamar por

    i) sonhos impossíveis;

    ii) amores mercantis;

    iii) curas para enfermidades;

    iv) e desejosas vinganças para os mais odiosos desafetos.

    No entanto, apesar de uma evidente mania local de construir templos majestosos, cujas edificações, embora pouco fosse falado, escancaravam as rixas das irmandades religiosas que competiam entre si na busca por suntuosidade, fato é que a pérola mais emblemática de Araribá era sua matriz. Não por menos, o frontispício e a decoração interior proclamavam todo o resplendor de uma arte arcana, que ganhava sobrenome naquela região dos montes de ferro: o barroco mineiro. Consagrada a São Francisco de Assis, tinha uma única torre, mas era tão, mas tão alta que, conforme maldiziam os habitantes mais ortodoxos, constituía uma claríssima intenção pagã de reconstruir a Torre de Babel e, sob a máscara da cristandade, enfurecer a Deus e trazer novas línguas para o mundo…

    [… como se tudo

    já não fosse

    confuso

    por demais.]

    Naquelas bandas montanhosas em que o céu costuma se forrar de ferrugem e as tardes cheiram à extração de bauxita e manganês, por quase cem anos houve uma sanguinolenta exploração de ouro. Tão logo foi dado o primeiro grito anunciando sua presença nos ribeirões e nas entranhas das serras, se deslocaram para aquela promessa de um Eldorado dos trópicos muitas levas de paulistas, baianos, portugueses e mais toda sorte de olhos que esbugalhavam com as riquezas que ali abundavam. Ouro que, por sinal, foi contrabandeado em quantidade incalculável dentro de santinhos de pau oco, assim constituindo um truque muitíssimo adotado por vigários e donos das minas para burlarem um imposto odiento praticado pela Coroa Portuguesa, mais conhecido como o quinto dos infernos.

    Se nos fins dos Oitocentos a economia de Araribá era irrigada pelas vastas lavouras de café, a sua história fora forjada a partir da corrida do ouro, muito antes do poder se consolidar nas mãos da aristocracia agrária. Noutros tempos já quase esquecidos, um espaço ocupado por uma aldeia indígena e por renques de macaúbas, paineiras, tamboris e por ipês. Assim-então permaneceu, até que se intrometeram os bandeirantes, que exploraram a região com facões e espingardas, pilhagem e escapulários, todos atraídos pelos rios de volumosas águas rubras, tal e pascoal fizera o senhor Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, lá pelas bandas de Vila Boa. Tão logo escorraçados os indígenas, aos poucos novos assentamentos foram surgindo, bem como os jeitinhos e os traços de um povo e de um lugar partido por dicotomias de toda ordem, alicerçado pelas mais efervescentes relações cívicas e pelas mais descaradas inconsistências morais.

    [Estão aí as raízes

    da tal mineiridade.]

    Mas como tudo e todos cursam para o intangível brumoso, contrariando preces, feitiços e fortunas, reza a lenda que, tão logo a exploração aurífera de Araribá entrou em crise, de uma das minas estripadas irrompeu um cavaleiro montado num cavalo baio, que carregava consigo um tridente. Em sua postura de emissário profético, tal figura mítica proclamou o tempo vindo das vacas magras, do ranger de dentes e das lágrimas de sangue. Já lançada sua maldição implacável, quase que de imediato apareceu o ócio; e do ócio surgiu uma crise na economia local, que fez jorrar um mar de agouros e desânimos por aquelas bandas montanhosas. Há quem diga que, brotando do solo como fogo-fátuo, o cavaleiro da fome, montado num belo corcel negro, aportou em Araribá e transformou grande parte dos moradores em caveiras ambulantes, mas que não tardaram a tombar nas suas valas e sepulturas. E então se iniciou um longo período de penitências, evasões e deslembranças, que somente foi encerrado muitos e muitos anos depois.

    Bem, atravessado esse tempo sombrio, um problema de outra natureza planou sob as cartolas dos bairristas e dos defensores mais entusiasmados da ideia de Araribá. Muito embora aparecesse direto e reto sob o signo de distrito nos documentos oficiais, bem como nos trabalhos científicos de naturalistas europeus que investigavam as longas caminhadas noturnas dos lobos-guarás, a verdade é que Araribá era grande o suficiente para ser considerada uma cidade autônoma, com expressiva população, bens de serviço que a tornava quase independente, uma economia viva e tudo o mais que se exige que uma cidade tenha. Pois olhar aquele horizonte enladeirado, tomado por casarios bem cuidados e pela torre da Igreja de São Francisco de Assis, era a prova mais que pura de um lugar que não admitia, sob qualquer circunstância, ser alcunhado de distrito. Mas implicações de ordem política, mal camufladas pelas alegações de falta de quórum eleitoral, impediam que Araribá tivesse uma Câmara Municipal, um estatuto legal próprio e, assim-pois-então, fosse emancipada da comarca de Riviera de São Lourenço.

    Pior para Araribá…

    […assim melhor

    para Riviera.]

    No entanto, retorno aos floreios: o céu pode até ser parecido em todos os cantos desse mundão besta; por ali, contudo, o firmamento varia como um topázio multicolor, passando de um tom de esperançosa esmeralda, nos dias de romaria, para um dourado escurecido, feito o ouro de aluvião, quando é tempo de colheita. Em alguns feriados santos, é verdade que está mais para um reluzente diamante, embora esteja sempre refletindo os metais preciosos e as gemas exuberantes que lapidaram a memória da província e nomearam muitas das cidades mineiras. Pois é deveras, o último dia apodreceu quente como o inferno, o céu não menos que um vermelho esbraseante feito um precioso rubi. Mas conforme as horas se arrastavam, a temperatura foi baixando e as nuvens ficaram da cor de um cinza deprimente, agitadas pela força das sequências de ventanias que transformaram o céu num imenso caldeirão borbulhante. Pela tarde despencou um baita frio, instituindo que casacos e cachecóis de lã fossem trajados aos montes, bem como fez os ossos reumáticos do povo rangerem todos de uma só vez feito velhas portas e janelas, uma vez que, naquela região de muita superstição e fácil esquecimento, tão espantosa era a falta de costume do povo com o menor sopro do vento.

    A propósito, diante dessas circunstâncias nada convencionais, uma única certeza era capaz de fazer os habitantes de Araribá se esquecerem de suas antigas desavenças e darem as mãos: todos ali temiam que essas primeiras e inocentes gotas de chuva se transformassem noutro dilúvio profético e avassalador. Os moradores mais antigos juravam de pés juntos que a destruição das lavouras era a obra de uma entidade indígena enfurecida. Alguns pingados, por outro lado, consideravam que fosse a ira do espírito vingativo de um morador que teve as terras roubadas por fazendeiros. Contudo, a esmagadora maioria declarava, em alto e bom som nas rodas de conversas de domingo após a missa da manhã, tratar-se das merecidas punições dadas por Deus para aquela terra que vinha germinando todos os tipos de vícios e as transgressões mais condenáveis.

    Deus é amor…

    [… mas também

    é fogo consumidor.]

    Apesar dos pesares, tal conjuntura era generosa em certa medida, pois os ventos úmidos, num lugar de invernos secos e propensos a bronquites e sangramentos nasais, acabavam sendo, no fim das contas, favoráveis a alguns momentos de deleite nos exaustivos cotidianos dos habitantes. Isto posto, erguiam-se xícaras e mais xícaras de café, chá de boldo, maçã ou mate, sempre acompanhadas de biscoitos de polvilho frito, broas de milho e pesados tabuleiros de pães de queijo. Para as donas e matronas, surgiam a oportunidade perfeita para exibirem seus graciosos xales, cachecóis de finas lãs, bonnets da última moda inglesa, chapéus ornamentados com um carnaval de plumagens coloridas [quando não pássaros inteiros!] e, quem sabe, a chance de andarem pelas ruas de barro com suas saias volumosas e cheias de babados que, verdade seja dita, já tinham caído em desuso fazia tempo. E, de forma alguma, se pode ignorar as longas e espalhafatosas conversas aquecidas sob o calor de lareiras que, por terem pouco uso naquelas terras tupiniquins aradas por valores eurocêntricos, serviam apenas como peças decorativas para impressionar as visitas.

    A despeito dos reclames e configurando uma verdadeira tragédia social, o calor retornou acompanhado de uma garoinha fina. E naquela manhã de domingo em que essa história se passa, dia que raiou propenso a sebo, litros de suor, exaustão e coceira, chegar atrasado na missa se resumia a uma atitude imperdoável, de uma audácia profana; e aquele que ousasse tamanho delito moral atrairia para si comentários corrosivos, chuvas de olhares intimidadores e, como se não bastasse todo esse constrangimento, uma promessa de excomunhão pela própria boca de um enfurecido padre Divino. Por isso, amedrontados com tais possibilidades de reclusão social e retaliações celestiais, numerosos eram os que dispensavam buchas, escovões e longos banhos para não chegarem atrasados na igreja. Em contrapartida, nulificavam certos cheiros corporais com fricção de óleos de macadâmia, rosa mosqueta e abacate. À sombra dos umbrais dos portais escancarados, cumprimentavam-se feito velhos amigos numa festiva ceia da comunidade, quando, a bem da verdade, estavam ali os conhecidos que falavam mal uns dos outros pelas costas, os funcionários que amaldiçoavam seus patrões e parentes que compunham famílias disfuncionais.

    Na Igreja de São Francisco de Assis, o povo se espremia nos bancos e reclamava do calor. As chamas das velas não se extinguiam por algum motivo divino, pois eram tantos os leques abanando que formavam ventanias pelas naves. Os mais pobres faziam contraste com o templo, todo em talhas de ouro, mármore e espantosa abundância. Lá atrás, assistiam e espiavam a procissão de rendas, brocados, sutaches, cetim e tudo o mais que fosse excessivo, opulento e promovesse admiração e inveja. As mulheres sufocavam em vestidos de anáguas de crinolinas, as mangas bufantes e os altos penteados sob chapéus que quase se passavam por coroas; já os homens adotavam as barbas com suíças e bigodes viçosos, muitos portando bengalas de mogno e indaiá, assando dentro de fraques e casacos elegantíssimos combinados com cartolas impecáveis.

    Na procissão de entrada, primeiro vieram os diáconos e, logo depois, o padre Divino, tudo ao som sacrossanto do coral. O padre, de costas para os fiéis, foi beijar o altar e encharcou a mesa com a secreção de suas tosses. O sininho foi tocado e todos fizeram o sinal da cruz.

    Em nome do Pai,

    do Filho

    e do Espírito Santo.

    Amém.

    Agora sim, a celebração havia começado. Primeiro, o diácono leu uma passagem do livro de Josué; depois o coral cantou um salmo e, aos trancos e barrancos, o padre passou para a segunda leitura: a Carta de São Paulo aos Filipenses. Os fiéis se levantaram, pois o ato penitencial havia começado e a Glória estava sendo cantada. O padre fez o sinal da cruz sobre o Lecionário e, também, sobre a testa, a boca e o peito, rezando em silêncio. Os gestos foram se repetindo copiosamente entre os fiéis, a proclamação do evangelho, o ponto culminante da Liturgia da Palavra. Depois começou a homilia, a conversa familiar entre o padre e os fiéis. O padre Divino começou por advertir as criancinhas endiabradas a respeito do pecado da desobediência, a

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